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Juventude rural: desafios e possibilidades de reprodução social da agricultura familiar
Cristiane Tonezer; Hieda Maria Pagliosa Corona; Eliziane Raquel Rauch Ceratti
Cristiane Tonezer; Hieda Maria Pagliosa Corona; Eliziane Raquel Rauch Ceratti
Juventude rural: desafios e possibilidades de reprodução social da agricultura familiar
Rural Youth: challenges and possibilities of social reproduction Family farming
Juventud rural: desafios y possibilidades em reproducción social de la agricultura familiar
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 27, 2022
Universidade de Santa Cruz do Sul
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Resumo: A juventude rural vem ganhando espaço no contexto dos debates sobre a dinâmica da reprodução e fortalecimento da agricultura familiar, bem como dos desafios entre ficar ou sair do meio rural, o que implica pensar nas relações entre urbano e rural, entre formação educacional e perspectivas de futuro dos jovens filhos de agricultores familiares. Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo analisar as estratégias de jovens rurais que cursam o ensino técnico em agropecuária do Instituto Federal Catarinense (IFC), Campus Concórdia, para a reprodução social da agricultura familiar. A metodologia adotada para o levantamento dos dados foi orientada pela pesquisa qualitativa, de natureza descritiva e interpretativa, por meio de entrevistas semiestruturadas com vinte e sete estudantes, sendo dez moças e dezessete rapazes. De acordo com os resultados apurados, pode ser aferido que a escolha de alguns jovens pelo curso técnico em agropecuária se configura como uma estratégia de reprodução da agricultura familiar, seja para aplicar os conhecimentos adquiridos na unidade rural, seja para dar continuidade aos estudos para acesso ao ensino superior, integrando a atividade rural com outra profissão. Já aqueles que querem sair do meio rural afirmam que no futuro buscarão cursos para a ascensão profissional no meio urbano. De modo geral, pode-se dizer que os projetos de futuro desses(as) jovens são resultantes das condições materiais e socioculturais das famílias, que implicam posições e papéis diferenciados desempenhados por eles no interior das unidades produtivas rurais. Todos(as) os(as) entrevistados(as) identificaram que o curso técnico em agropecuária possibilita a reprodução da agricultura familiar.

Palavras-chave: Jovens rurais, Agricultura familiar, Reprodução social, Projetos de futuro.

Abstract: Rural youth has been gaining relevance a subject of debates on the dynamics of reproduction and strengthening of family farming, as well as the challenges between staying in or leaving the rural environment, which implies thinking about the relationship between urban and rural, between educational background and future perspectives for young children of family farmers. In this sense, the present article aims to analyze the strategies of rural youths who attend technical education in agriculture at Instituto Federal Catarinense (IFC), Campus Concórdia, for the social reproduction of family farming. The methodology used to collect the data was guided by qualitative research, of a descriptive and interpretative nature, through semi-structured interviews with twenty-seven students, ten girls and seventeen boys. According to the results obtained, it can be verified that the choice of some young people for the technical course in agriculture is as a strategy for the reproduction of family farming, either to apply the knowledge acquired in the rural unit, or to continue their studies via access to higher education, integrating rural activity with another profession. Those who want to leave the rural area, on the other hand, say that in the future they will seek courses for professional advancement in the urban environment. In general, it can be said that the future projects of these young people are the result of the material and socio-cultural conditions of the families, which imply different positions and roles, played by them within the rural productive units. All respondents identified that the technical course in agriculture allows the reproduction of family farming.

Keywords: Rural youth, Family farming, Social reproduction, Future projects.

Resumen: La juventud rural ha ganado espacio en el contexto de los debates sobre la dinámica de la reproducción y el fortalecimiento de la agricultura familiar, así como los desafíos entre permanecer o abandonar las zonas rurales, lo que implica pensar en la relación entre lo urbano y lo rural, entre los antecedentes educativos y las perspectivas de futuro para los hijos de agricultores familiares. En este sentido, este artículo tiene como objetivo analizar las estrategias de los jóvenes rurales que asisten a la educación técnica en agricultura en el Instituto Federal Catarinense (IFC), Campus Concórdia, para la reproducción social de la agricultura familiar. La metodología adoptada para la recopilación de datos se guió por la investigación cualitativa, de naturaleza descriptiva e interpretativa, a través de entrevistas semiestructuradas con veintisiete estudiantes, diez del sexo femenino y diecisiete del sexo masculino. Según los resultados obtenidos, se puede verificar que la elección de algunos jóvenes para el curso técnico en agricultura se configura como una estrategia para la reproducción de la agricultura familiar, sea para aplicar los conocimientos adquiridos en la unidad rural, sino también para continuar los estudios para acceder a la educación superior, integrando la actividad rural con otra profesión. Los que desean abandonar el área rural, por otro lado, dicen que en el futuro buscarán cursos para el avance profesional en el entorno urbano. En general, se puede decir que los proyectos futuros de estos jóvenes son el resultado de las condiciones materiales y socioculturales de las familias, que implican diferentes posiciones y roles que desempeñan dentro de las unidades productivas rurales. Todos(as) los(as) encuestados(as) identificaron que el curso técnico en agricultura permite la reproducción de la agricultura familiar.

Palabras clave: Juventud rural, Agricultura familiar, Reproducción social, Proyectos futuros.

Carátula del artículo

Artigos

Juventude rural: desafios e possibilidades de reprodução social da agricultura familiar

Rural Youth: challenges and possibilities of social reproduction Family farming

Juventud rural: desafios y possibilidades em reproducción social de la agricultura familiar

Cristiane Tonezer
Universidade Comunitária da Região de Chapecó, Brasil
Hieda Maria Pagliosa Corona
Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Brasil
Eliziane Raquel Rauch Ceratti
Universidade Comunitária da Região de Chapecó, Brasil
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 27, 2022
Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 28 Enero 2021

Aprobación: 22 Enero 2022

1 Introdução

O processo de transformação das ruralidades contemporâneas exige respostas singulares diante dos desafios e perspectivas infligidos pelo movimento global em curso. Diante disso, a juventude rural, em sua pluralidade de expressões, situa-se no contexto das grandes demandas da agricultura familiar, haja vista a complexidade para promover a sua reprodução social e garantir a permanência dos jovens no campo.

A juventude rural, enquanto categoria social e ator político, torna-se central na medida em que tem se constituído objeto de recentes e agudas transformações sociais do campo e da sociedade brasileira (CASTRO, 2009). Suas demandas, consideradas como específicas, reforçam a escolha por um desenvolvimento rural baseado na agricultura de tipo familiar, cujo modelo é predominante nas unidades rurais.

A complexidade do processo de reprodução social da agricultura familiar, por meio da juventude rural, traz à tona antigos problemas estruturais do campo brasileiro, porém ainda atuais. A ausência de condições mínimas para se ter uma vida digna, com educação de qualidade, acesso à terra, aquisição de renda, opções de lazer e cultura, inclusão digital, estradas de fácil acessibilidade, políticas de saúde, emprego etc., faz com que muitos jovens se sintam atraídos pelas cidades e para lá migrem (STROPASOLAS, 2006).

Atualmente, os jovens rurais encontram-se diante de muitos desafios e incertezas entre “sair ou ficar” no campo (CASTRO, 2005), devido a uma série de fatores de ordem econômica, política, social e cultural, os quais influenciam na elaboração de seus projetos de futuro e na implementação de estratégias para a reprodução da agricultura familiar, tendo como um aspecto importante a sucessão rural.

Em termos normativos, o Estatuto da Juventude (BRASIL, 2013) define como jovem a pessoa com idade entre 15 e 29 anos. No entanto, a etapa da vida intitulada juventude ultrapassa o parâmetro idade, pois há outros elementos que perpassam essa fase. Para Castro (2009), deve-se considerá-la para além de um recorte de população específica, ou seja, a juventude é uma categoria que representa identidades sociais permeadas por processos e configurações sociais em diferentes contextos.

Assim, o objetivo geral do presente estudo é analisar as estratégias de jovens rurais que cursam o ensino técnico em agropecuária do Instituto Federal Catarinense (IFC) para a reprodução social da agricultura familiar. Para alcançar o objetivo proposto, foi realizada a pesquisa de campo com coleta de dados através de entrevista semiestruturada com vinte e sete jovens, nos meses de março, abril e maio de 2019.

2 Reprodução social da agricultura familiar e juventude rural

O interesse pela juventude rural acompanha a tendência das discussões sobre a agricultura familiar, alvo de debates e atenção do Estado e da sociedade civil organizada. O debate sobre a reprodução social da agricultura familiar é marcado por distintos problemas: econômicos, políticos, sociais e ambientais.

Para uma família rural conseguir se reproduzir através de sua juventude, num contexto de intensa exclusão social, fazem-se necessários: terra, meios de produção, boa infraestrutura e políticas públicas. Nessa lógica, o mundo rural presencia um duplo movimento: por um lado, há os(as) jovens que permanecem na unidade rural como sucessores ou se instalam em outras unidades produtivas; e por outro, os(as) jovens que até gostariam de permanecer, mas que, pelas escassas condições de viabilizar projetos de futuro, precisam migrar para os centros urbanos.

A reprodução social, de acordo com Spanevello (2008), tem como pano de fundo a ideia de continuidade dos indivíduos e grupos sociais. Segundo a autora, “[…] a noção de reprodução social envolve, por um lado, as dimensões da produção de bens materiais e, por outro, a organização social dessa produção através do trabalho” (SPANEVELLO, 2008, p. 39). Entretanto, para que a sociedade ou grupo social possa manter a reprodução social, deve contar com estratégias que visem a resolver problemas cotidianos e a elaborar projetos para o futuro na perspectiva de dar continuidade a um determinado sistema social, cultural, econômico, político etc.

A noção de estratégias utilizada por Bourdieu (2004) objetiva dar continuidade à reprodução da posição dos indivíduos dentro do grupo ou instituição social através da socialização. Essa socialização constitui o que o autor denomina de habitus, ou seja, o conceito de habitus é referenciado para explicar os mecanismos através dos quais aprendemos, desde a infância, a fazer parte de uma determinada sociedade ou grupo social e a reproduzi-la, sucessivamente, por meio das ações, aprendendo também a modificá-la através das nossas escolhas. A partir do habitus que os seres humanos vão adquirindo e dos contextos em que estão inseridos, é possível produzir pensamentos, ações, desejos e percepções. Nesse sentido, o próprio habitus tende a reproduzir o conjunto de condições e experiências que os indivíduos vivenciam cotidianamente.

Desse modo, a concepção de reprodução social implica reconhecer que toda sociedade é dotada de uma estrutura material, determinada pela existência de necessidades de produção e reprodução dos sujeitos para manter ou alterar a estrutura existente. Isso significa que existe um conjunto de conhecimentos, experiências, símbolos e estruturas que fazem parte de uma determinada sociedade e que, para garantir a sua continuidade, devem ser reproduzidos para as gerações que se sucedem (CORONA, 2006). Nesse processo, são reproduzidos os modos de vida, os cotidianos, os valores e as práticas sociais, econômicas, culturais e políticas, e a forma como são produzidos os conhecimentos na sociedade, ou seja, trata-se da reprodução da totalidade da vida social.

Essa concepção permite analisar as diferentes formas pelas quais os membros das famílias de agricultores familiares, inseridos em diferentes contextos sociais, buscam reproduzir-se socialmente e dar continuidade a esse tipo de atividade rural. A dinâmica da reprodução social conduz à apropriação e à assimilação de elementos que interagem dentro e fora das dinâmicas sociais e culturais, nas quais as famílias rurais buscam, por meio de estratégias, promover a permanência tanto do modo de vida quanto da unidade rural.

Nos casos em que não há perspectiva dos filhos de continuarem na unidade rural de seus pais, Bourdieu (2008, p. 440) afirma que:

A partida do herdeiro sinaliza a parada mortal da empresa agrícola - tendo-se mostrado que ela deve suas particularidades mais marcantes ao fato que a reprodução biológica da unidade doméstica, portanto de sua força de trabalho, faz parte das condições de sua reprodução; ela condena simultaneamente a esperança de toda uma vida e de quem a teve, e que não pode não sentir (sem poder necessariamente dizê-lo para si) que ele não pode querer para seu próprio filho, este outro si mesmo socialmente designado no qual estão depositados todos os seus investimentos, um projeto tão claramente mortal (BOURDIEU, 2008, p. 440).

Nessa linha de pensamento, Bourdieu (2008) esclarece que o filho que se recusar a se fazer herdeiro da propriedade agrícola dos pais estará cometendo uma espécie de “assassinato do pai” ao não o suceder (pior do que se o fosse suceder). Nesses casos, pode-se dizer que a unidade rural terá um destino diferente daquele previsto pela tradição cultural passada de geração em geração, o que sugere pensar nos desafios enfrentados pelos jovens e nas possibilidades inseridas em seus projetos de futuro.

2.1 Juventude rural: desafios e dilemas para a reprodução social da agricultura familiar

Na totalidade das transformações sociais, econômicas e culturais que afetam as ruralidades contemporâneas, a agricultura familiar convive com o dilema da saída e/ou permanência da juventude do campo. Décadas atrás, a dinâmica da agricultura familiar consistia na lógica de que os filhos de agricultores também se tornariam agricultores. Essa condição se dava pelas poucas possibilidades de outras formas de vida apresentadas à juventude do campo, especialmente em virtude do isolamento do meio rural, dos escassos serviços públicos e da distância entre o mundo rural e o urbano. Nesse contexto, prevalecia a lógica da continuidade rural (SPANEVELLO, 2008).

Atualmente, a juventude rural estabelece diferentes projetos para o futuro, não mais exclusivamente vinculados à agricultura, mas consideram trilhar outros caminhos que podem levar ou não à reprodução da atividade rural. Dessa forma, “[…] evidencia-se uma problemática social de abrangência regional, expressa na mobilização social e espacial da juventude […]” (STROPASOLAS, 2006, p. 23).

Como resultado, as famílias têm poucas perspectivas de poder passar adiante seus estabelecimentos rurais e a profissão de agricultor, pois “[…] a substituição dos produtores familiares em exercício se dá de forma endógena – os pais sendo substituídos pelos filhos […]” (BRUMER, 2014, p. 115). No entanto, essa dinâmica sucessória depende, sobretudo, dentre outros aspectos importantes, do interesse e das motivações dos jovens em dar continuidade à atividade dos pais.

Além disso, as questões que desafiam a reprodução social da agricultura familiar relacionam-se com a escassez de terras, a dificuldade de acesso às políticas públicas, a ausência de políticas sociais específicas para os jovens do meio rural, a remuneração “inadequada” pela atividade desenvolvida, a penosidade do trabalho, a falta de reconhecimento social da categoria profissional agricultor, a recusa dos filhos em seguir a profissão dos pais etc. (BRUMER, 2014; STROPASOLAS, 2006).

Tais situações são reforçadas por aquilo que Weishmeier (2013) revelou, num contexto pouco favorável para os jovens do meio rural: a questão da invisibilidade social, ou seja, a juventude rural tem seus direitos pouco efetivados, sendo raramente objeto de políticas públicas. Assim, “[e]ntre todos os excluídos e marginalizados de nossa sociedade atual, os jovens que vivem em territórios rurais figuram entre os mais vulneráveis” (WEISHMEIER, 2013, p. 13).

2.2 A dinâmica da sucessão rural

Ao falar sobre a sucessão rural, é importante retomar esse conceito e suas particularidades. Como, na agricultura familiar, o controle e a gestão da unidade rural são normalmente desempenhados pelos pais, quando esses se ausentam, são os filhos que assumem a responsabilidade pela administração do patrimônio material e pela gestão, inclusive da família.

O processo sucessório implica a transferência de poder e do patrimônio fundiário, de modo que a geração mais velha retira-se da gestão da unidade rural, passando o controle para a geração mais nova, formando-se um novo agricultor. Dessa forma, o sistema sucessório rural abrange a transferência do patrimônio material (casa, terra, maquinários, instalações, animais etc.) e imaterial, como o patrimônio histórico e sociocultural, impregnados de saberes e conhecimentos guardados e transferidos por gerações, além da tradição local e dos hábitos e costumes culturais, que poderão se perder ao passar do tempo com a ausência de sucessores (STROPASOLAS, 2011).

Nesse sentido, a sucessão é entendida como um processo no qual é formada uma nova geração de agricultores que permanecem no campo, assumindo a gestão da unidade rural, dando continuidade às atividades que os pais vinham desenvolvendo, sendo que os filhos destes poderão ser futuramente os novos sucessores.

Para Spanevello (2008), a sucessão está relacionada às condições econômicas e sociais existentes no interior de cada unidade rural. Segundo a autora, a sucessão envolve a formação de novas gerações de agricultores, sendo composta por três fases: a sucessão, a herança, e a retirada ou aposentadoria dos pais do comando da unidade rural.

Conforme Carneiro (2001, p. 25), o padrão de herança na sociedade camponesa passa por dois processos: “[…] a escolha do sucessor – aquele que assegura a continuidade da exploração agrícola e a manutenção do grupo familiar — e a partilha dos bens, diretamente associada ao primeiro […]”. Durante esses dois processos, a família passa por momentos de tensões e contradições que podem conduzir no sentido da fragmentação do patrimônio familiar, acarretando a sua inviabilidade econômica, ou podem atuar para manter a integridade do patrimônio.

Assim, o processo sucessório, ao fazer parte da reprodução da agricultura familiar, envolve diferentes configurações, tais como regras e estratégias que são utilizadas pelas famílias para a sucessão intergeracional, levando em conta as diferenciações entre as moças e rapazes (BRUMER; ANJOS, 2008) que, ao mesmo tempo, atendam às necessidades materiais da família e garantam a sucessão familiar. Nesse contexto, a questão de gênero assume uma importância, pois há tensões entre a tradição patriarcal na agricultura familiar e as fraturas que apontam para outras possibilidades para as mulheres, como será tratado no item 4.

3 Aspectos metodológicos do estudo

O presente artigo teve como base uma abordagem qualitativa, com perspectiva descritiva e interpretativa, com coleta e análise qualitativa de dados, orientadas à luz das teorias e de estudos acadêmicos para compreender o caso selecionado para o estudo. Nesse caminho, a pesquisa qualitativa visa compreender fenômenos sociais complexos, no intuito de explicar situações da vida real dos sujeitos pesquisados, focando em acontecimentos contemporâneos da vida real (YIN, 2005).

A pesquisa foi desenvolvida em duas fases. A primeira delas consistiu na etapa exploratória, em que se buscou informações na base de dados secundários, como as fichas dos alunos ingressantes pela cota da agricultura familiar, a fim de identificá-los e coletar informações que estivessem registradas nessas fichas, que pudessem ajudar a caracterizar esse grupo de estudantes. Nessa fase ainda ocorreram os primeiros contatos de aproximação com a população em estudo, em que foram identificadas as dinâmicas familiares e se problematizou melhor as questões de pesquisa com eles.

A segunda fase comportou a pesquisa de campo, com entrevistas contendo questões semiestruturadas direcionadas aos jovens oriundos da agricultura familiar, que ocupam a cota direcionada a essas famílias nas vagas do Ensino Técnico em Agropecuária do Instituto Federal Catarinense, a partir de aspectos levantados na fase exploratória.

O estudo foi realizado com os(as) alunos(as) ingressantes pelo sistema de ações afirmativas da cota de agricultura familiar, que, em 2019, encontravam-se no terceiro ano do curso técnico em agropecuária do Instituto Federal Catarinense – Campus Concórdia. Foram pesquisados vinte e sete estudantes (menores de idade) nessa condição, sendo dez moças e dezessete rapazes. Todos participaram das entrevistas.

A maneira escolhida para analisar e tratar os dados gerados foi o modo qualitativo, pois seu foco é “[…] principalmente, a exploração do conjunto de opiniões e representações sociais sobre o tema que pretende investigar […]” (DESLANDES; GOMES; MINAYO, 2008, p. 80), tendo como perspectiva de análise a explicação dos fenômenos apresentados para os sujeitos pesquisados. Para a análise de seu conteúdo, as entrevistas foram transcritas cuidadosamente para se manter as falas, expressões e detalhes mencionados pelos(as) jovens.

4 Olhares juvenis sobre a reprodução social da agricultura familiar: algumas reflexões

Analisar os diferentes contextos e situações vividas pela juventude rural tornou-se necessário para melhor compreender não apenas questões relacionadas à agricultura familiar e seus modos de reprodução, como também aquelas relacionadas à cultura, às relações de trabalho, de gênero, geração e outros aspectos que ressaltam a diversidade e a heterogeneidade presentes no mundo rural.

Embora a categoria juventude seja definida pelo parâmetro de idade (BRASIL, 2013), ela ultrapassa a compreensão apenas pela etapa biológica, com qualidades e necessidades específicas (CONJUNVE, 2006). Ela integra diferentes contextos e é permeada por múltiplas identidades sociais. Dessa forma, a caracterização e análise dos(as) jovens rurais do IFC, sujeitos deste estudo, considera a juventude rural diversa e heterogênea, especialmente em razão da diversidade socioeconômica e cultural presente na agricultura familiar do País.

Os(as) jovens entrevistados(as) compõem o quadro de discentes do terceiro ano do curso técnico em agropecuária do Instituto Federal Catarinense – Campus Concórdia. Do total de noventa e oito (53 rapazes e 45 moças) estudantes que se encontram nessa fase do curso, vinte e sete são egressos(as) da cota de agricultura familiar, ação afirmativa específica dessa instituição.

Esse grupo de jovens é formado por filhos(as) de agricultores familiares da região oeste de Santa Catarina e noroeste do Rio Grande do Sul. Eles dedicam-se à produção pecuária e agrícola de cunho mercantil, além das atividades rurais voltadas à subsistência familiar, todas desenvolvidas pelos membros da família, em unidades com predomínio de pequenas áreas de propriedades familiares ou arrendadas, incluindo trabalhadores rurais assalariados.

Como desdobramento da pesquisa de campo, buscou-se conhecer alguns elementos sobre a formação desses jovens num curso técnico em agropecuária e a relação do curso com a unidade rural e os projetos de futuro dos(as) estudantes.

Observou-se, nas entrelinhas das falas dos entrevistados, que a educação representa para eles uma perspectiva de realização de sonhos e projetos, de melhores condições de vida, seja dentro ou fora da unidade rural familiar. O estudo é apontado como responsável pela inclusão no mundo do trabalho, representando a ascensão social, em ser “alguém na vida”. Para os jovens, o curso técnico em agropecuária simboliza, em síntese, uma forma de ingressar no ensino superior, de melhorar a unidade rural familiar e também de conquistar um emprego.

Com base nas falas dos(as) entrevistados(as), a escolha de um curso técnico direcionado à habilitação em agricultura deve-se à afinidade com a área rural, por suas famílias serem do campo e por terem interesse em aumentar seus conhecimentos para, posteriormente, aplicá-los nas suas próprias unidades rurais.

Com base nos relatos dos jovens, foi possível notar que a identificação e o convívio no meio rural são fatores importantes e decisivos para a escolha do curso e, por consequência, para a inserção em uma atividade profissional futura ou para o aperfeiçoamento da agricultura familiar.

Tendo em vista que a “regra” de que “quem fica na agricultura não precisa estudar” demonstra que a educação não é mais tão percebida como porta de saída do campo, nota-se que, pelo contrário, as produtividades elevadas nos vários setores da agricultura despertam nos jovens a busca por aperfeiçoamento em escolas técnicas, com o objetivo de abranger visões mais amplas e aumentar a produtividade de suas unidades rurais, bem como buscar formas alternativas e sustentáveis de produção. Isso pode ser compreendido como estratégias de reprodução social da agricultura familiar (AF).

Somente oito jovens afirmaram que ninguém os(as) influenciou em sua escolha pelo curso. Os(as) demais foram influenciados(as) por alguém próximo, um familiar, um amigo. Uma moça relatou que, apesar de ter sido influenciada pelos pais, o técnico em agropecuária não era o que ela queria fazer.

Em síntese, os motivos implicados na escolha pelo curso técnico em agropecuária evidenciam as condições do meio rural como espaço de produção e reprodução social. O processo de formação profissional em atividades agropecuárias emerge como central, principalmente, pela oferta em uma Instituição Federal de Educação. A possibilidade de cursar de forma integral o ensino médio e o ensino técnico, a afinidade com a área rural, a busca por conhecimentos para melhorar as atividades produtivas rurais da família, bem como a influência familiar foram os motivos mais citados para a escolha do curso.

Ressalta-se que todos(as) os(as) entrevistados(as) ingressaram nesta instituição de ensino através de um processo seletivo que dispõe de ações afirmativas para aqueles que são oriundos da agricultura familiar. Isso se justifica pela ampliação do acesso e permanência, transversalmente promovidos pelas políticas públicas sociais, como o sistema de cotas nas instituições e universidades públicas.

Ao serem questionados(as) sobre o que identificam nos objetivos e no currículo do curso que dê possibilidades de atuação na unidade familiar rural ou na agricultura familiar e para os seus projetos de futuro, muitos jovens responderam que o curso fornece inúmeros subsídios para atuação nas atividades produtivas, na medida em que serve como apoio técnico-profissional quando retornam à unidade rural. Dessa forma, o curso técnico em agropecuária fornece possibilidades para a reprodução da unidade familiar e/ou da agricultura familiar. A maioria enfatizou que a formação técnica contribui para a ampliação de conhecimentos teóricos e práticos na área rural e que pode ser direcionada também ao mercado de trabalho. O curso técnico fornece subsídios tanto para a atuação como assalariado de uma empresa, para a administração e atuação nas unidades rurais familiares, quanto para seguir estudando em cursos de graduação ligados à área, como veterinária e agronomia, o que está interligado com os projetos de futuro desses jovens.

Quando questionados(as) se a família aceita os conhecimentos e habilidades adquiridos no curso para desenvolver as atividades de produção e gestão na sua unidade familiar rural, mais da metade (62%) responderam que sim. Outros 33% afirmaram que a família aceita às vezes e, somente em um caso, a jovem relatou que a família não aceita.

No decorrer da história, muitas mudanças foram marcando a configuração e a organização das famílias e, para garantir um bom relacionamento e convívio familiar, o diálogo é fundamental, inclusive com as famílias rurais nas quais, historicamente, os papeis sociais são definidos pela prerrogativa de gênero e geração.

Nesse contexto, perguntamos aos(às) entrevistados(as) quais são as vantagens e desvantagens em morar e trabalhar na área rural. As respostas apontaram para: qualidade de vida; ser dono(a) do próprio negócio; a flexibilidade de horários e o convívio familiar.

Como vantagem na agricultura familiar, podemos elencar os vários pontos frisados nos depoimentos dos(as) jovens, que estão relacionados com a reprodução social da AF em sua multidimensionalidade (econômico, social, ecológico). O aspecto econômico inclui a possibilidade de poder gerir, administrar e trabalhar no próprio negócio, sem necessariamente contratar mão-de-obra. No aspecto ambiental e ecológico, está a forma de produção que pode ser agroecológica e/ou orgânica. Por fim, a dimensão social consiste na vantagem de poder trabalhar em equipe com os familiares, e de não correr o risco de ficar sem emprego e sem renda.

Quanto às desvantagens da AF, pode-se dizer também que ela abrange vários aspectos. Destacam-se a baixa valorização monetária dos produtos; a penosidade de algumas atividades; a pouca tecnologia; a desvalorização da profissão; o custo elevado dos insumos; o difícil acesso às unidades rurais; a incipiência de serviços públicos, entre outros.

Em relação às vantagens e desvantagens no modo de viver no rural, os elementos que compõem a descrição dos jovens na convivência familiar e comunitária pressupõem o entendimento de uma dupla dinâmica social. Por um lado, a dinâmica rural está circunscrita à casa, à família, ao trabalho, à vizinhança, à comunidade local etc. Por outro lado, relaciona a cidade com a tecnologia, urbanidade, opções de cultura, lazer, acesso à saúde e à educação. Trata-se de espaços sociais com suas particularidades distintas, mas que entrecruzam os espaços de vida dos jovens rurais e que dão matéria à experiência de vida e à sua projeção para o futuro.

Como aparece no relato dos jovens, o “acesso escasso” a alguns serviços, como entretenimento, influencia na decisão do jovem entre ficar ou sair. Na interpretação de Chauveau (2014, p. 100), há uma discrepância na oferta dos serviços públicos oferecidos para os jovens rurais e os urbanos. Segundo a autora, “[…] o desequilíbrio entre a oferta cultural farta do meio urbano e o ‘deserto cultural’ rural se faz sentir cada vez mais […]”. Sob essa análise, a juventude rural se propõe a buscar nas cidades as oportunidades que não encontra nas suas comunidades locais.

Ainda em tempos atuais, a juventude rural vivencia, cotidianamente, situações antagônicas, marcadas pela exclusão do sistema produtivo vigente, assim como pelo precário acesso aos serviços e recursos de infraestrutura, além de políticas públicas específicas para a juventude do campo. De acordo com a análise de Castro (2016, p. 104), embora tenha ocorrido uma progressiva visibilidade da categoria juventude rural, esta não se traduziu no pleno acesso e na formulação de políticas públicas, colocando em evidência um paradoxo, isto é, há “[…] um importante avanço no reconhecimento social e político dessa juventude, mas que não rompeu algumas das fronteiras ‘internas’ e ‘externas’ que enfrentam diariamente”.

Em vista disso, os obstáculos no acesso à educação, ao trabalho, à renda e à terra dificultam a inserção social no processo de desenvolvimento do País. Por isso, “[p]ara muitos jovens, viver no mundo rural, hoje, ainda significa enfrentar barreiras para sua autonomia e suas possibilidades de escolhas […]” (CASTRO, 2016, p. 101). Ou seja, as possibilidades reais de acesso à educação de qualidade, à terra suficiente para viver e produzir e à renda satisfatória para atender a todas as necessidades são desafios que precisam ser alcançados com a implementação e a qualidade de políticas públicas que possam contribuir para atender a essas demandas e romper com o “[…] olhar que trata a juventude rural como símbolo de atraso e a serviço da cidade […]” (CASTRO, 2016, p. 103-104).

Ao responder sobre como descrevem as relações entre o rural e o urbano a partir de suas experiências, os jovens rurais apresentaram visões particularmente interessantes e com significados distintos para cada um. Notam-se várias observações bem pertinentes e distintas que os jovens fazem a respeito da relação entre o mundo urbano e o rural. Aparecem nas falas a questão da pouca valorização do meio rural em comparação com o urbano; o preconceito em relação à população rural; a baixa valorização monetária dos produtos da agricultura familiar; a qualidade de vida no campo, entre outros.

Desse modo, observa-se uma valorização do rural e, consequentemente, um movimento de quebra de paradigmas de que o rural é somente voltado para a produção agrícola. A agricultura familiar, inclusive, está sendo ressignificada e revalorizada pela sociedade a partir da demanda por alimentos saudáveis, a conscientização sobre a necessidade de preservar os recursos naturais, bem como a conservação do patrimônio histórico e cultural das comunidades rurais (STROPASOLAS, 2011).

Além disso, a percepção pessoal dos jovens sobre como avaliam a vida na cidade em relação à vida no campo indica que, no meio urbano, não se encontram aspectos como paz, tranquilidade e sossego. A vida na cidade é descrita pelos jovens como uma vida mais agitada, com barulho, tumulto, agitação. O estilo de vida urbano não foi citado como algo sonhado e almejado pelos(as) jovens entrevistados(as). O que se percebeu nas falas daqueles(as) que pretendem sair do meio rural é que as cidades oferecem maiores oportunidades.

Questionados(as) sobre quais ações concretas já propuseram para a unidade familiar, se elas têm relação com os conhecimentos adquiridos no curso técnico em agropecuária, e se foram implementadas, do total, 44,44% responderam que nunca propuseram nenhuma ação para a unidade rural familiar e outros 55,55% afirmaram que já propuseram algo. Dentre aqueles(as) que já propuseram ações, 66,66% afirmaram que foram implementadas, enquanto outros 33,33% afirmaram que não foram implementadas. Todas as ações propostas pelos jovens tiveram relação com o curso técnico em agropecuária.

Percebe-se, nos depoimentos dos interlocutores, que a formação profissional pode fazer grande diferença na unidade rural, com maior possibilidade de produtividade, lucratividade e aprimoramento dos resultados obtidos, a partir da implementação de projeções, conhecimentos e informações de projetos dos quais os jovens participam no IFC. Nesse sentido, o curso técnico em agropecuária contribui na medida em que os jovens tentam repassar os conhecimentos e habilidades desenvolvidos no curso, isso ligado ao fato de que o que eles mais gostam no curso são as aulas práticas.

4.1 Projetos de futuro dos jovens rurais

Historicamente associada ao processo migratório, a categoria juventude rural é constituída por inúmeras questões e problemas relacionados aos espaços sociais nos quais transita. Tanto certa rejeição dos filhos em seguir a profissão dos pais, como a escolha em continuar a reprodução da atividade rural estão baseadas em diferentes razões. Algumas dessas razões podem ser encontradas nos estudos de Renk e Dorigon (2014) e nos dados coletados por esse estudo.

Dentre os vinte e sete jovens entrevistados, duas moças e nove rapazes pretendem ficar no meio rural ou na agricultura familiar, seja para apenas morar ou para se estabelecer como produtor(a) rural por meio da agricultura familiar. Outros 22% (quatro moças e dois rapazes) querem sair. Os demais 37% (quatro moças e seis rapazes) ainda estão indecisos.

Os motivos declarados pelos jovens para permanecer no meio rural e na agricultura familiar sugerem a compatibilidade entre a formação profissional de técnico em agropecuária e a profissão de agricultor familiar. Os conhecimentos e habilidades adquiridos durante a formação profissional possibilitam aperfeiçoamento das atividades rurais, abrangendo visões gerais sobre técnicas diversificadas de produção sustentáveis no meio rural.

As justificativas evidenciam a participação nas atividades desenvolvidas pela família; a afinidade com o meio rural e a agricultura familiar; e o laço de sentimento e pertencimento familiar. Consequentemente, anunciam perspectivas de reprodução da AF, através de estratégias que conjugam aspectos da produção e do modo de vida.

Por ora, analisa-se também que o rural é um espaço promissor de trabalho. Em um cenário em que o rural é visto como lugar de produção e de modos de vida, os(as) jovens vislumbram possibilidades de realização pessoal e profissional, com a continuidade e o aperfeiçoamento das atividades já desenvolvidas pela família e com a implantação de outras novas.

Em contraponto, os motivos elencados pelos jovens que não querem permanecer no meio rural indicam, entre outras razões, a questão relativa à terra. Em linhas gerais, condições socioeconômicas envolvendo o tamanho da propriedade da terra em relação ao número de filhos(as) e os subsídios econômicos para o desenvolvimento das atividades rurais, além da afinidade com a atividade rural, podem se apresentar como aspectos determinantes no processo de escolha profissional dos(as) jovens.

Nesse contexto amplo, em que as relações de trabalho, terra e renda estão interligadas, a questão econômica da agricultura familiar é um aspecto analisado pela juventude rural (STROPASOLAS, 2006) no processo de tomada de decisão entre permanecer ou sair do campo. Embora não seja apenas o único fator considerado, ela implica diretamente na decisão desse jovem, pois o acesso à renda possibilita a conquista de outras dimensões, como a terra, a cultura, o lazer etc.

Quanto ao processo de sucessão, em se tratando de famílias numerosas, de acordo com Wanderley (2009, p. 78), “[…] é comum que os filhos não sucessores procurem uma alternativa profissional fora do estabelecimento familiar”, o que, por consequência, não resultaria em uma crise de reprodução. Isso pode ser verificado em uma das falas dos jovens indecisos entre ficar ou sair do meio rural. Ele explica que tem dois irmãos mais novos e que por isso, talvez, saia do meio rural, para deixar que um de seus irmãos assuma a sucessão.

Nesse sentido, os relatos dos(das) jovens e os estudos citados permitem compreender que permanecer na AF não se limita apenas a uma escolha individual de cada um. Como se pode observar no decorrer da pesquisa, o projeto de futuro emerge como singular a partir de determinadas condições socioeconômicas e culturais da família implicadas no processo de constituição e formação dos próprios sujeitos.

Quanto aos projetos de futuro dos(as) jovens, alguns estão relacionados diretamente com a reprodução das unidades produtivas das famílias e da AF. Dos(as) que pretendem ficar, estes(as) querem seguir como agricultores(as) familiares e dar continuidade às atividades produtivas de suas famílias. Outros(as) almejam buscar a estabilidade do emprego assalariado urbano ou, ao mesmo tempo, residir no meio rural e continuar com as atividades rurais familiares. Nota-se a pluriatividade nesses casos.

Já os(as) que querem sair do meio rural remetem à educação como o caminho para a realização profissional. Visualizam na ampliação da escolarização a possibilidade de conseguir “uma vida melhor”. A preocupação com a continuidade dos estudos reflete o desejo de mudar para a cidade.

Nessa dinâmica, a juventude quer os benefícios dos dois mundos: urbano e rural. O primeiro, com seu espaço qualitativo de moradia e bem-estar; o segundo com suas maiores possibilidades de entretenimento e acesso a serviços públicos e privados.

Os(as) jovens das gerações atuais estão cada vez mais atentos às mudanças sociais, econômicas e culturais em curso. Nesse cenário, alguns jovens rurais buscam desempenhar atividades tanto urbanas como rurais, pois o que se percebe é que eles(as) não querem ficar restritos(as) apenas ao tradicional processo produtivo das unidades rurais de suas famílias, ou seja, desejam ampliar e/ou inovar as atividades de produção da família.

Isso significa que hoje o rural é pensado, inclusive, como espaço para morar, para viver, e não apenas para trabalhar. De modo geral, o meio rural passou a ser um espaço valorizado, inclusive pela sociedade urbana, em que a agricultura familiar tem exercido novas funções a partir da heterogeneidade, diversidade e pluralidade de experiências de vida e trabalho nesses lugares, onde os jovens são vistos como atores em potencial para a promoção do fortalecimento da agricultura familiar e do desenvolvimento rural.

Por isso, Castro (2005, p. 2) destaca que “[…] A ‘juventude rural’ reaparece em diferentes contextos rurais da atualidade como uma categoria chave para a própria reprodução social do campo e em especial da produção familiar[…]”. Para tanto, é preciso pensar em um projeto de agricultura familiar onde apareça o protagonismo juvenil, apoiado na valorização da juventude rural. E isso perpassa, inclusive, pelo apoio da família para que o(a) jovem ali permaneça.

A pesquisa de campo revelou que 44,44% (nove rapazes e três moças) dos(as) jovens são incentivados(as) a ficar no meio rural; já 33,33% (seis rapazes e três moças) são incentivados(as) pela família a sair; enquanto 11,11% (dois rapazes e uma moça) têm incentivo familiar ao mesmo tempo a ficar e a sair do meio rural; e outros 11,11% (três moças) têm famílias que não opinam, não se manifestam. Observa-se que os rapazes 52,94% (nove casos) são mais incentivados a permanecer no meio rural do que as moças (30% três casos).

A amostra sugere que a preferência das famílias em relação à continuidade no meio rural ainda está na figura do filho homem, e as moças são incentivadas a estudar para buscar, no meio urbano, outras oportunidades de trabalho. Quando elas são incentivadas a permanecer, é porque normalmente são as únicas herdeiras, não havendo irmão homens. Uma das moças, de 16 anos, relata que “minha mãe quer que eu saia, porque não tem futuro. Olha, até agora eles me incentivam a sair, porque eles não veem futuro”. Nas palavras de outra jovem de 17 anos que é incentivada a sair do meio rural: “eles querem que eu tenha oportunidades que eles não tiveram”. Em contraponto, outra moça de 17 anos informa o motivo pelo qual é incentivada a permanecer no meio rural: “porque, como eu disse, eles não teriam pra quem deixar as coisas, e daí, como meu pai também está cuidando do nono e da nona”.

Ademais, observa-se nas falas de alguns rapazes que são incentivados a sair do meio rural sob a justificativa, assim como a das moças, de que não há perspectiva de futuro na agricultura. Essas são situações em que a reprodução da AF não é abordada como um projeto coletivo familiar.

Ainda que algumas famílias incentivem seus filhos a permanecer no meio rural, elas não deixam de reconhecer a importância dos estudos para seus filhos, visto que o estudo é relacionado a maiores oportunidades de vida. Ademais, quando não há território suficiente para todos os filhos se instalarem no meio rural, geralmente o filho mais novo fica como sucessor dos pais, como declara um dos rapazes de 17 anos quando questionado se sua família o incentiva a ficar ou sair do meio rural: “Ela incentiva a sair, porque eu tenho irmãos mais novos”. Nos casos em que a família tem como projeto coletivo a permanência de ao menos um dos filhos, ela não deixa de incentivar os estudos, mesmo que o filho fique no meio rural.

Sobre a expectativa da família em relação à profissão dos jovens, 25,92% (seis rapazes e uma moça) afirmaram que a família espera que o(a) jovem se torne agricultor(a) familiar, enquanto 55,55% (sete rapazes e oito moças) responderam que a família espera que sigam outra profissão. Já para 3,70% (uma moça), a família não opina sobre isso. E para 14,81% (quatro rapazes), a família espera que o jovem integre duas profissões (agricultor familiar e alguma outra profissão).

Entende-se que são as famílias rurais que produzirão as próximas gerações de agricultores(as), visto que a reprodução da profissão de agricultor implica a socialização da atividade rural, iniciada durante a infância, e o aprendizado ocorre na prática, sendo transmitido de pais para filhos (BRUMER; ANJOS, 2008). Mais da metade dos jovens relataram que a família os incentiva a buscar outra profissão, e isso revela, implicitamente, vários aspectos: a insuficiência de terra/patrimônio para estabelecer todos os filhos na unidade rural; a escolha de apenas um filho(a) sucessor(a); a análise que as famílias fazem da agricultura; entre outros.

Em relação à sucessão e à partilha da unidade rural, as respostas dos(as) entrevistados(as) indicam que os filhos(as) que não residem mais com os pais no meio rural e que receberam bens materiais no meio urbano provavelmente não partilharão da divisão da propriedade e dos bens da família. Do mesmo modo, os dados mostram que a maioria das famílias terá apenas um sucessor. Apenas em dois casos aparece mais de um filho como sucessor.

Nesse contexto, é importante avaliar as diferentes motivações dos(as) jovens para permanecer ou não no campo. Percebe-se, especialmente nas falas das moças, que as famílias pouco falam sobre a questão da partilha, herança e sucessão da unidade rural. Já nos relatos dos rapazes, parece ser mais comum esse tipo de assunto.

Para Paulilo (2004), mesmo que o direito garanta a igualdade de gênero, as mulheres ainda são excluídas de várias formas da partilha do patrimônio familiar. São priorizados os filhos homens à sucessão da terra, restando à mulher o acesso através do casamento. Ademais, aos que estudam, sejam homens ou mulheres, geralmente não há acesso à herança, porque “já ganharam o estudo”. Também não recebem herança aqueles(as) que vão trabalhar na cidade. As mulheres que não se casam e permanecem no núcleo familiar geralmente nada recebem, restando a elas cuidar dos pais e, depois, “viver” na casa de um irmão, auxiliando nos afazeres domésticos.

A garantia da sucessão nas unidades familiares rurais está relacionada ao conjunto de características da dinâmica familiar interna, ou seja, ao processo de ensino-aprendizagem do trabalho rural, à internalização de valores e costumes tradicionais, e à proximidade geográfica, econômica e social com as cidades. Essas características podem afetar a sucessão em razão das próprias mudanças em torno das atividades agrícolas e do modo de vida do meio rural (SPANEVELLO, 2008).

Nesse sentido, a sucessão familiar rural é complexa, pois o que está em jogo, muitas vezes, para os filhos de agricultores vai além do aspecto econômico, ou seja, os(as) jovens buscam nas cidades uma realização pessoal e profissional difícil de ser encontrada nas áreas rurais (STROPASOLAS, 2006).

5 Considerações finais

Como reflexão diante do exposto, observa-se que são diversos os fatores de caráter macro e microssocial, em constante interação, que influenciam a juventude rural na elaboração de seus projetos de futuro. Estes, por sua vez, são resultantes das condições materiais e sociais/culturais das famílias, que implicam em posições e papéis diferenciados, desempenhados pelos jovens rurais no interior das unidades produtivas.

Entre os resultados obtidos nesta pesquisa, destaca-se que a escolha pelo curso técnico em agropecuária se configura como uma das estratégias de reprodução da AF por alguns jovens. Esses (duas moças e nove rapazes dentre os vinte e sete), buscam realizar os seus projetos de futuro dentro e/ou fora das unidades rurais de suas famílias no contexto da AF. Constatou-se, também, que esses mesmos jovens já foram definidos, implicitamente, pela própria família, como sucessores de seus pais.

Outros(as) (quatro moças e dois rapazes), que pretendem sair do meio rural, direcionados(as) em alguns casos pela família, buscarão realizar seus projetos de futuro nos centros urbanos. Nesses casos, o acesso ao ensino superior permitirá, segundo eles(as), a inserção no mercado de trabalho e a ascensão profissional. Os(as) demais ainda estão indecisos(as) e encontram-se no dilema entre sair ou ficar do meio rural.

Ao descreverem elementos que compõem o modo de viver no meio rural, todos os(as) jovens destacaram inúmeras vantagens, como a qualidade de vida; a possibilidade de ser dono(a) do próprio negócio; a flexibilidade de horários; o convívio familiar; a tranquilidade do meio rural; a possibilidade de produzir alimentos saudáveis para o autoconsumo da família; entre outros.

Como desvantagens da AF e do meio rural, eles(as) pontuaram elementos como a baixa valorização monetária dos produtos; a penosidade do trabalho, a pouca tecnologia; a desvalorização da profissão; o custo elevado dos insumos; o difícil acesso às unidades rurais; a incipiência de serviços públicos; o acesso escasso à cultura e entretenimento; a impossibilidade de ter descanso semanal, entre outros.

Quanto ao ensino do técnico em agropecuária do IFC, todos(as) os(as) entrevistados(as) identificaram que ele abrange várias possibilidades de reprodução da AF, na medida que o curso fornece conhecimentos e habilidades teórico-práticas para a inovação, o empreendedorismo, e o aperfeiçoamento das atividades produtivas e da própria unidade rural.

Material suplementario
REFERÊNCIAS
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