Resumo: Inserido na interseção entre os campos de estudos territoriais e organizacionais, este artigo explora as possibilidades histórico-geográficas e os limites estruturais-sistêmicos de iniciativas emancipatórias, notadamente a partir de um programa de extensão realizado em uma comunidade tradicional. Ao articular os conceitos de governança autogestionária, organicidade socioprodutiva e cooperativa integral, o artigo objetivou analisar os elementos que contribuem para a instituição de uma governança territorial autogestionária. O campo empírico foi a construção da cooperativa integral Quilombarras, da comunidade quilombola Barra da Aroeira, localizada no estado do Tocantins. Trata-se de uma composição teórica a partir das reverberações de um estudo de caso, dentro de um percurso metodológico que agregou pesquisa-ação com a perspectiva crítico-dialética. Os resultados mostram que o horizonte da governança territorial autogestionária, para ser alcançado, requer a confluência de elementos que ampliem a governança política da comunidade, bem como, a construção de relações sociais de produção lastreadas em um sistema de organicidade socioprodutiva à vista da sustentabilidade do território, em conjunto com a ampliação e adequação das forças produtivas que o constituem.
Palavras-chave: Comunidade quilombola, Cooperativa integral, Organicidade socioprodutiva, Governança autogestionária, Território autossustentável.
Abstract: Inserted in the intersection between the fields of territorial and organizational studies, this article explores the historical-geographical possibilities and the structural-systemic limits of emancipatory initiatives, notably from an extension program carried out in a traditional community. By articulating the concepts of self-managed governance, socio-productive organicity and integral cooperative, the article aimed to analyze the elements that contribute to the institution of self-managed territorial governance. The empirical field was the construction of the integral cooperative Quilombarras, of the quilombola community Barra da Aroeira, located in the state of Tocantins. It is a theoretical composition based on the reverberations of a case study, within a methodological path that added action research with a critical-dialectical perspective. The results show that the horizon of self-managed territorial governance, in order to be achieved, requires the confluence of elements that expand the political governance of the community, as well as the construction of social relations of production backed by a system of socio-productive organicity in view of the sustainability of the territory, together with the expansion and adequacy of the productive forces that constitute it.
Keywords: Quilombola community, Integral cooperative, Socio-productive organicity, Self-management governance, Self-sustaining territory.
Resumen: Insertado en la intersección entre los campos de los estudios territoriales y organizacionales, este artículo explora las posibilidades histórico-geográficas y los límites estructural-sistémicos de las iniciativas emancipatorias, en particular a partir de un programa de extensión realizado en una comunidad tradicional. Articulando los conceptos de gobernanza autogestionaria, organicidad socioproductiva y cooperativa integral, el artículo tuvo como objetivo analizar los elementos que contribuyen a la institución de la gobernanza territorial autogestionaria. El campo empírico fue la construcción de la cooperativa integral Quilombarras, de la comunidad quilombola Barra da Aroeira, ubicada en el estado de Tocantins. Se trata de una composición teórica a partir de las reverberaciones de un estudio de caso, dentro de un recorrido metodológico que sumó la investigación-acción con una perspectiva crítico-dialéctica. Los resultados muestran que el horizonte de la gobernabilidad territorial autogestionaria, para ser alcanzado, requiere de la confluencia de elementos que amplíen la gobernabilidad política de la comunidad, así como la construcción de relaciones sociales de producción sustentadas en un sistema de organicidad productiva en vista de la sostenibilidad del territorio, junto con la expansión y adecuación de las fuerzas productivas que lo constituyen.
Palabras clave: Comunidad quilombola, Cooperativa completa, Organicidad socioproductiva, Gobernanza autogestionada, Territorio autosuficiente.
Artigos
Cooperativa integral, organicidade socioprodutiva e governança autogestionária: explorando confluências, possibilidades e limites para a construção de um território sustentável
Integral cooperative, socio-productive organicity and self-management governance: exploring confluences, possibilities and limits for the construction of a self-management sustaining territory
Organicidad cooperativa integral, socioproductiva y gobernanza autogestionada: explorando confluencias, posibilidades y límites para la construcción de un territorio sostenible autogestionado
Recepción: 04 Abril 2022
Aprobación: 05 Octubre 2022
Se é verdade que toda organização social precisa de algum tipo de dominação para manter o mínimo de coesão e reproduzir-se (WEBER, 2012), sendo que a própria democracia pode ser conceituada como uma forma de dominação (BENINI et al., 2019), quando se têm em conta a criação e a reprodução dos ambientes geográficos e sociais, assim como das instituições que os compõem, as reflexões são geralmente conduzidas pelo questionamento dos fatores estruturantes do comportamento humano e social, ou seja, das formas de mediação que articulam a produção material e as formas de consciência do ser social.
Ao se ponderar, ainda, que a produção social do espaço é uma matriz determinante das condições de sustentabilidade e bem-estar social de uma dada sociedade ou territorialidade, é fundamental compreender a dinâmica de associação, interação e interdependência entre as práticas e rotinas, consubstanciadas nas relações sociais produtivas e nas estruturas institucionais e ideológicas que as condicionam e as conformam, para aspirar às práticas objetivas significativas para a transformação ontológica do ser social, ou mesmo para estabelecê-las (SOUZA & SANTOS, 1986; SANTOS, 2005, 2006; HARVEY, 2005, 2012; HAESBAERT, 2007; MÉSZÁROS, 2006; DARDOT & LAVAL, 2017).
Tendo em vista que as dinâmicas macrossociais de desenvolvimento econômico, ou o simples investimento produtivo, não conduzem necessariamente ao desenvolvimento de um território singular, dada a condição anárquica, fragmentária e despótica do mercado e dos seus agentes econômicos, a dissociação entre produção econômica e produção planejada e regulada do espaço interdita processos sinérgicos, favoráveis a uma efetiva sustentabilidade do desenvolvimento de um dado espaço geográfico ou território e da promoção do bem-estar social dos seus habitantes, isto é, para a transição a um padrão mais efetivo e avançado de civilidade (POLANYI, 2000; SANTOS, 2003).
Dessa forma, por meio da indução histórica, observando os macro desafios do atual tempo histórico, tais como desemprego, destruição de ecossistemas, desigualdade social e normalização/institucionalização de lógicas de mercado e concorrência degenerativa nas mais diversas dimensões da vida social (DARDOT & LAVAL, 2017), ou ainda dado o processo de fragmentação entre produção, distribuição e controle (MÉSZÁROS, 2006), um processo inverso dessa dissociação estruturante apontada seria, ainda que em caráter lógico-dedutivo e experimental, a constituição de uma matriz de organicidade socioprodutiva radicalmente nova, que se coloque tanto como viável no tempo imediato como em perspectiva temporal de transição e transformação.
É nesse contexto que este estudo insere a tentativa de construção de um território sustentável e autogovernado pelos seus habitantes, como objeto de estudo e problemática epistêmica, procurando responder, de forma provisória e dialética, ou seja, em sintonia com a realidade concreta, quais são as variáveis determinantes para se constituir um determinado território, de forma que engendre práticas emancipatórias e sustentáveis. Ou ainda: quais elementos e práticas são necessários para que se movimente na direção de um horizonte de auto governo (ou autogestão em sentido amplo) de um território?
Diante do exposto, este artigo teve como objetivo analisar, a partir da práxis de um projeto de extensão em uma comunidade territorial, os elementos que contribuem para a instituição de uma governança territorial autogestionária, levando-se em conta a sua possibilidade histórico-geográfica concreta e os seus limites estruturais-sistêmicos. Intentou-se descrever os principais elementos estruturais identificados na comunidade, tendo em mente as suas organizações e instituições constitutivas, assim como o tensionamento da realidade concreta observada com as estruturas necessárias e instituídas pelo programa, para uma efetiva capacidade de controle das dinâmicas de produção e reprodução sociometabólicas, ou seja, uma sustentabilidade autogestionária como elemento, inclusive, para se viabilizar a sustentabilidade socioambiental.
A metodologia utilizada foi a composição analítica entre pesquisa-ação, na qual se insere a pesquisa participante em um caso singular, orientada pela perspectiva epistêmica crítico-dialética. O campo empírico foi a execução de um projeto de extensão em uma comunidade quilombola, localizada no estado do Tocantins, no período de junho de 2017 a dezembro de 2019. Os principais elementos do campo empírico foram: as reuniões de trabalho, as conversas informais e os documentos produzidos pela comunidade, tais como as Atas e o Estatuto, registrados na Junta Comercial do estado do Tocantins, referentes à Cooperativa de tipo Integral recém-criada na comunidade, expressão de uma construção coletiva de dois anos.
A exposição do artigo está organizada da seguinte forma: logo após esta introdução, a exposição dos procedimentos de pesquisa; discutem-se as questões teóricas que desafiam e orientam, por meio de um programa de extensão, uma prática viável de constituição da autodeterminação de trabalhadores em associação, em um determinado território; a discussão sobre o estudo de caso do projeto de extensão Raios de Sol; e as considerações finais. A produção social do espaço: organicidade socioprodutiva, governança autogestionária e a construção de territórios autogestionários e sustentáveis.
A abordagem metodológica utilizada foi a articulação entre pesquisa-ação (Thiollent, 1997), notadamente em razão das interações múltiplas entre pesquisadores e participantes do campo empírico com o devido diálogo teórico crítico-dialético. De forma colaborativa, identificou-se a situação-problema do território e, por meio de ações de diagnóstico e planejamento, procedeu-se à formulação de uma estratégia de ação em direção ao desenvolvimento de um território relativamente autossustentável.
O procedimento mediador consequente da pesquisa-ação foi a pesquisa participante, por meio da qual ocorreu naturalmente a observação sistematizada e intencional junto ao projeto de extensão universitária do Núcleo de Economia Solidária da Universidade Federal do Tocantins, na qual um dos autores deste artigo é coordenador do projeto. Não obstante o projeto ainda esteja em vigência, para este trabalho foram consideradas as visitas realizadas entre os anos de 2017 e 2019.
Além da observação participante inserida no escopo da pesquisa-ação, a pesquisa foi amparada na análise dos documentos relacionados à execução do projeto de extensão, que abrangem as práticas, as experiências e a avaliação de resultados. Desses documentos, destacam-se as Atas e o Estatuto, registrados na Junta Comercial do estado do Tocantins, referentes à Cooperativa, recém-criada na comunidade, expressão de uma construção coletiva de dois anos, conforme anunciado na introdução deste texto, que é caracterizada por ser integral, justamente por aportar, nas suas aspirações sociais e estatutárias, tanto elementos de produção como de reprodução social, sintetizado na sua própria denominação oficial, a saber, Cooperativa Multissetorial de Produção Agroecológica, Distribuição Solidária e Serviços Comunitários Quilombarras.
Complementarmente, utiliza-se o utopismo dialético (HARVEY, 2012) como recurso metodológico e referência de reflexão. Por meio dele, busca-se proceder a uma práxis questionadora e transformadora de uma realidade social adversa, engendrando uma processualidade histórica – inovações nas formas de organização social – e geográfica – inovações nas formas de produção do espaço – composta e sustentada pela compreensão crítica e construção política da emancipação social. Assim, é por meio do utopismo dialético que se intenta lançar luz a uma força política pró-mudança, como alternativa contraposta à lógica destrutiva engendrada no vigente modo de produção capitalista, em sua fase globalizada.
Segundo Harvey (2005, 2012), Souza e Santos (1986), a produção social do espaço é uma matriz determinante das condições de sustentabilidade e bem-estar social de uma dada sociedade ou territorialidade. Entretanto, historicamente, observa-se um dado processo de produção social que estrutura a fragmentação entre o controle social, organizações produtivas e formas de intercâmbio, processo este que tem gerado efeitos nocivos sobre a natureza e sobre contingentes crescentes de comunidades e de povos, lhes impondo processos crescentes de alienação (SANTOS, 2003. SINGER, 2003; MÉSZÁROS, 2006).
Sob essa perspectiva teórico-argumentativa, de fragmentação social e separação estrutural entre produção e controle, entre concepção e execução, em suma, entre proprietários e não proprietários, a dissociação entre o desenvolvimento produtivo econômico e o próprio desenvolvimento organizativo societário e territorial, interdita processos sinérgicos favoráveis a uma efetiva sustentabilidade do desenvolvimento e da promoção do bem-estar social, isto é, de sedimentação a um caminho e um padrão mais efetivo e sustentável de civilidade. Por sua vez, um processo inverso e de negação, ainda que parcial, da dissociação estruturante descrita, apontaria justamente para a estruturação e a sistematização de uma matriz alternativa de organicidade, integrada e não sectária, composta por elementos capazes de instituir novas relações sociais, de produção e de propriedade (MÉSZÁROS, 2006. BENINI, 2012). Ou, como preferem Dardot & Laval (2017), de instituir o comum.
O comum – entendido como um princípio político que catalisa e orienta novas práticas de pensar e agir de forma cooperada e recíproca – tem sido objeto de intensa disputa no modo de produção capitalista. Isso porque o comum representa um regime de experiências, lutas, instituições e pesquisas que lançam luz para um futuro não intensivo em capital, mas em recursos e relações amplamente compartilhados e geridos coletivamente. Com efeito, tem-se que a notabilização da racionalidade política do comum tem inspirado a busca por formas democráticas novas, a exemplo das experiências de autogestão e cooperação que – a partir de princípios e regras estabelecidos em níveis comunitário e territorial – constituem novos arranjos descentralizados de governança (DARDOT & LAVAL, 2017).
Como argumento teórico, ainda que de cariz provisório e lógico, tem-se que a transição/caminho– ou o ato de instituir1 – para uma produção emancipatória e sustentável dos territórios advém da forma como são combinados recursos críticos, tais como: o uso e a finalidade do território; a questão hídrica e energética; a articulação entre moradias, mobilidade e atividades econômicas; e, no centro das relações sociopolíticas, a organização e direção sociotécnica do trabalho – o que inclui todos os processos técnicos e políticos estruturantes da própria racionalidade e finalidade do trabalho.
Assim, em face dos desafios cognitivos e epistêmicos que a perspectiva teórica aqui põe em tensionamento, alguns esclarecimentos analítico-conceituais são necessários, a fim de contextualizar os aspectos fundantes do quadro teórico em curso e que orientaram uma construção coletiva que conecta demandas diretas de uma comunidade e questões históricas do nosso tempo, expressos na crítica teórica.
Por organicidade socioprodutiva entende-se um sistema de organização da produção no qual não ocorre fragmentação ou individualização. Ou seja, um sistema orgânico caracterizado pela integração patrimonial, econômica e material, que possibilita um patamar superior ou ampliado de alocações e combinações de recursos, força e capacidade produtiva, como um agregado comum, nos termos defendidos por Dardot & Laval (2017) aos seus associados, frequentemente observado em comunidades, assentamentos e territórios comunitários, aglutinado por aspectos da produção econômica com a reprodução social (BENINI, 2012).
Esse processo de integração orgânica, que compreende e agrega as dimensões da produção, circulação e socialização, pode ser exemplificado por meio de algumas experiências organizativas de trabalho associado, desenvolvidas no contexto de constituição e de redes de empreendimentos econômicos solidários (MANCE, 1999). Suas práticas frequentemente lançam mão de processos colaborativos mais amplos de organização produtiva, comunitária e territorial, viabilizando, assim, elementos incipientes ou fundantes de uma estrutura de governança autogestionária (BENINI, 2012), mesmo que tais práticas ainda não tenham logrado êxito em superar satisfatoriamente o intercâmbio mercantil ou a sua insuficiência em forças produtivas (PINHEIRO & PAULA, 2015; BENINI & BENINI, 2015).
A governança autogestionária pode ser caracterizada, em boa medida, pelos processos de auto-organização e autodeterminação mais amplos e extramuros da ‘fábrica’, formatados pelos próprios trabalhadores. Nela se articulam os ideais do trabalho associado e da produção cooperativa (NOVAES, 2011). Esse modelo de governança apoia-se na existência – e ampliação – da propriedade coletiva, em alternância/oposição à propriedade privada – e fragmentada – dos meios de produção. Nesse modelo, os trabalhadores detêm a posse dos meios de produção e todo o processo decisório ocorre sob a lógica de conselhos e democracia direta (BENINI, 2012).
Tendo em vista o cenário exposto – que, de imediato, salta aos olhos como uma tipologia ideal –, o desafio teórico-prático para aqueles que se lançam ao estudo de novos arranjos de governança e de processos de trabalho consiste em equacionar a utilização de recursos comuns/compartilhados com as dimensões do consumo e da produção, a partir de experimentos societais reais que, por sua vez, moldam esses novos arranjos para a perspectiva de construção de um território sustentável autogestionário, que problematiza assim uma dupla luta, a de proteção dos territórios, e das possibilidades de produção e reprodução social, emancipada e sustentável a partir desses.
Nesse contexto, de defesa e autodeterminação dos territórios, a proposta trazida pelo trabalho associado inscreve-se justamente como práxis viabilizadora de elementos que podem tornar superadas as limitações de fragmentação econômica e material das atuais cooperativas e associações de trabalhadores (BENINI & BENINI, 2015).
Por conseguinte, pensar a efetividade do trabalho no contexto do trabalho associado e da economia solidária (SINGER, 2003) é perceber, também, a importância econômica e simbólica dos territórios na construção de seus processos mediadores e viabilizadores de arranjos alternativos de governança, nesse caso, uma governança autogestionária. Ao se somar o exercício ativo decisório em direção à construção efetivamente socioprodutiva, pautada na cooperação e auto-organização do trabalho – que se observa ao longo do estudo de caso aqui analisado – com a autodeterminação do próprio território onde os trabalhadores efetivam a sua existência social, tem-se um achado significativamente estratégico para se pensarem atributos e/ou dimensões de governança territorial autogestionária na regulação dos seus recursos endógenos e no intercâmbio com outros territórios/recursos.
Além de uma prática isolada, o presente estudo de caso ilumina características importantes para a constituição e viabilidade de uma proposta de governança autogestionária, pautada nos ideais (ou mesmo necessidades históricas) de propriedade orgânica e na auto-organização social e produtiva (BENINI, 2012), que tem no território e na utilização de seus recursos simbólicos e materiais o seu mote. Ao trazer a lume uma articulação proposital entre arranjos alternativos de governança, autogestão e um sistema de organicidade socioprodutiva (BENINI et al., 2017), inaugura-se, também, uma agenda endereçada à contribuição para a formulação de políticas públicas favoráveis a essa construção ou fomentadoras dela.
Insta frisar algumas reflexões teóricas que já apontavam a importância da dimensão territorial como elemento estratégico no surgimento de uma agenda de efetiva transformação social. Ao realizar a clássica contribuição sobre economias substantivas – aquelas cujo desenvolvimento decorre de um processo de enraizamento das relações sociais com o seu ambiente – Polanyi argumenta:
Trabalho e a terra nada mais são do que os próprios seres humanos nos quais consistem todas as sociedades e o ambiente natural [...]. Incluí-los no mecanismo de mercado significa subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado (2000, p. 93).
O excerto ajuda a iluminar boa parte dos argumentos elaborados neste trabalho, notadamente em direção à construção de um território autossustentável.
Polanyi (2000) coloca em perspectiva a possibilidade de se pensar um modo de produção alternativo – e, com ele, uma economia alternativa . “a terra é um elemento inexplicavelmente entrelaçado com as instituições do homem” (p. 214). A experiência concreta elucidada por meio do estudo de caso, sob a forma de cooperativa integral, reúne, nos saberes, no conhecimento e no processo de trabalho associado e auto-organizado, características que advêm do próprio contexto territorial, no qual se entrelaçam relações culturais, sociais e produtivas.
Além de sua dimensão funcional e geográfica (HARVEY, 2012), o território também pode figurar como espaço de resistência frente à lógica global de progresso técnico, regulado pelo tecnicismo centrado na valorização de capital, que engendra, em seu interior, novas formas precarizadas de relações de trabalho. Sob essa perspectiva, observa-se:
O território é o chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi (SANTOS, 2003, p. 47).
Do mesmo modo, tem-se em curso uma articulação teórica que visa compreender, por meio de experiências vivenciais no e com o território, processos estratégicos que clarificam os intentos do trabalho em curso
Trata-se, aqui, da produção local de uma integração solidária, obtida mediante solidariedades horizontais internas, cuja natureza é tanto econômica, social e cultural como propriamente geográfica. A sobrevivência do conjunto, não importa que os diversos agentes tenham interesses diferentes, depende desse exercício da solidariedade, indispensável ao trabalho e que gera a visibilidade do interesse comum (SANTOS, 2000, p. 109-110).
Invariavelmente, os excertos carreados no trabalho em curso reconhecem a importância da construção de processos estruturantes de desenvolvimento econômico, mais orgânicos e socialmente justos, a partir de um território autossustentável ou que se insira nesse horizonte. O território compreende o somatório da identidade cultural, componentes naturais, culturais, históricos e econômicos. É um devir, por ser um produto da historicidade das relações humanas. Por sua vez, a territorialidade está ligada a interdependências específicas da vida econômica, não podendo ser definida meramente uma localização das atividades
[...] a territorialidade, além de incorporar uma dimensão mais estritamente política, diz respeito também às relações econômicas e culturais, pois está intimamente ligada ao modo como as pessoas utilizam a terra, como elas próprias se organizam no espaço e como elas dão significado ao lugar (HAESBAERT, 2007, p, 22).
E, se todo devir tem um processo de produção que é pensado e depois materializado, tem-se que a identificação e simbolização do território está diretamente vinculada a um sentido mais amplo, para além da esfera produtiva e demais questões funcionais. Está vinculada à própria necessidade simbólica: o território tem uma forma e conteúdo que são construídos por meio do uso humano no tempo e no espaço (SANTOS, 2003).
Ademais, o território é multidimensional, uma vez que possui múltiplas relações entre natureza, economia, política, cultura etc. Dada essa configuração, o território é determinante do espaço e, portanto, interfere diretamente nas demais estruturas da sociedade. As formações sociais resultantes do território moldam as práticas econômicas. O território é um espaço de resistência em que, a partir dos sujeitos que o constituem, se moldam arranjos institucionais e administrativos com lógica igualmente territorializada (HARVEY, 2011).
Ao se apropriar de um determinado território, torna-se possível mobilizar, de forma orgânica e articulada, os recursos naturais e humanos para fins econômicos e políticos (HARVEY, 2005). Assim sendo, o território sustentável autogestionário, nos moldes aqui propostos, supera a dimensão geográfico-espacial. Revela questões-chave estruturantes para se pensar um modelo de governança que viabilize a autonomia territorial e a construção de novos espaços de sociabilidade, a partir da autogestão e da produção orgânica no horizonte de uma riqueza social efetivamente compartilhada (BENINI, 2012).
Essa perspectiva, a dos territórios como decorrentes das relações de poder e do somatório de territorialidades, parece estabelecer diálogos promissores quanto ao desenvolvimento do presente artigo: “gente junta cria cultura e, paralelamente, cria uma economia territorializada, uma cultura territorializada, um discurso territorializado, uma política territorializada” (SANTOS, 2000, p. 144).
A construção de uma matriz de trabalho agregada de forma associada, equitativa e autogestionária – no qual não há a separação entre a propriedade dos meios e o trabalhador – é um esforço histórico que se situa, ao mesmo tempo, como reação aos efeitos colaterais e deletérios do trabalho assalariado – a alienação, a precariedade e o desemprego –, como também se enriquece em um projeto ou perspectiva emancipatória de sociabilidade (SINGER, 2003. NOVAES, 2011. BENINI & BENINI, 2015).
Como bem pontua Santos (2006, p.14) “o território é fundamento do trabalho; o lugar da resistência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida”. Ou seja, as relações de produção estão imersas no cotidiano dos indivíduos que constituem e dão sentido ao território, com mediações e significações complexas que, frequentemente, carecem de estruturas e organização adequadas àquela realidade.
Vale ressaltar, colocando novamente a reflexão, que foi nesse duplo movimento, qual seja, o estrangulamento das ofertas de emprego assalariado e a busca por alternativas de geração de trabalho e renda, que surgiu a denominada economia solidária (SINGER, 2003), constituída por um conjunto de empresas sociais, na forma de cooperativas e associações formais ou informais, também tipicamente definidas como Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) (GAIGER, 2003).
Seu diferencial em relação às empresas convencionais seria justamente a superação da condição de mercadoria do trabalho assalariado, que passa a ser qualificado como trabalho associado em solidariedade distributiva. A partir disso, passa-se a promover – ou no mínimo indicar tal propósito estruturante – processos produtivos centrados no valor de uso, condição na qual ganha relevo o bem-estar do consumidor – que também se coloca no horizonte de ser um futuro associado –, bem como ganha efetivo relevo o equilíbrio socioambiental.
No entanto, os EES, segundo ponderações de Benini (2012), carecem de mediações de segunda ordem, próprias e adequadas a um projeto emancipatório e aglutinado de autogestão societal. Aqui há, dentre um campo variado de críticas, ressalvas, apontamentos e ideias para a economia solidária, uma proposta de constituição de novas relações de propriedade, trabalho, produção, distribuição e socialização, a partir da ampliação e aglutinação do alcance do projeto de autogestão social – autodeterminação nas relações sociais – ou mesmo societárias – autodeterminação da sociedade como um conjunto integrado.
Seguindo a crítica elaborada por MÉSZÁROS (2002), que explica a necessidade histórica de um novo sociometabolismo, na forma de um Sistema Orgânico do Trabalho (SOT) como alicerce para um sistema comunal, uma possível matriz institucional e organizacional para se concretizar um SOT (BENINI, 2012) se constituiria a partir de três mediações fundantes: a) autogestão de caráter societal; b) o controle jurídico dos meios de produção, por meio de uma propriedade orgânica ou comum destes por parte dos trabalhadores associados em igualdade substantiva; e c) mecanismos de alocação e distribuição parametrizados, a partir de uma renda de origem sistêmica e destinação equitativa, vinculando a definição da renda dos trabalhadores ao produto global disponibilizado para o consumo.
Tendo em vista tal arcabouço propositivo de médio alcance, surge o desafio de sua implantação inicial, de natureza prática e experimental. Nessa busca, lançou-se mão do desenvolvimento de uma metodologia de organicidade socioprodutiva (BENINI et al., 2015), que culminou com a elaboração de um projeto de desenvolvimento orgânico, solidário e autogestionário, executado na forma de um projeto de extensão universitária, chamado Projeto Raios de Sol (NÚCLEO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA, 2016).
O Projeto Raios de Sol surgiu, inicialmente, como uma demanda do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Tocantins para a implantação de um SOT em um novo assentamento rural da reforma agrária. Houve, pelo menos, cinco reuniões com o movimento e os seus participantes, quando se desenharam detalhes do projeto, durante os anos de 2015 e 2016, culminando com a elaboração de uma cartilha sobre a metodologia do projeto Raios de Sol (CENTRO DE FORMAÇÃO EM ECONOMIA SOLIDÁRIA, 2016). No entanto, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, no ano de 2016, não houve mais cenário político favorável para a implantação de tal proposta no contexto da reforma agrária e dos respectivos órgãos governamentais.
Posteriormente, a proposta de constituir um SOT, por meio do projeto Raios de Sol, foi debatida em vários encontros e atividades do movimento de economia solidária do Tocantins. Com a divulgação informal nesses encontros, a proposta chegou ao conhecimento de uma comunidade quilombola, a Barra da Aroeira. Em virtude do interesse de algumas pessoas da comunidade, o presidente da sua associação convidou os idealizadores do projeto para apresentarem a ideia na comunidade, o que ocorreu em fevereiro de 2017. Houve mais três oficinas nos meses seguintes. Ao final desse processo, a comunidade aderiu ao projeto, por meio de assembleia da sua associação, em junho de 2017.
Após a inserção da comunidade, o programa de extensão Raios de Sol, articulado pelo Núcleo de Economia Solidária (2016) da Universidade Federal do Tocantins, saiu da etapa preliminar de elaborar uma metodologia de organicidade socioprodutiva para a perspectiva de buscar meios para a implantação efetiva e experimental de um SOT em uma comunidade territorializada.
Dessa forma, as ações do programa articularam um conjunto de parcerias para viabilizar o projeto na comunidade, incluindo o governo estadual do Tocantins, outras universidades e entidades de apoio e fomento à economia solidária e à agricultura familiar. O quadro 1 sintetiza os grupos de trabalho constituídos e seus respectivos objetivos.
A partir de então, foram promovidas diversas oficinas, reuniões e encontros da equipe técnica do projeto na comunidade quilombola Barra da Aroeira. Durante essa etapa de planejamento e construção conjuntos, foi elaborado um diagnóstico socioeconômico da comunidade. Com a média de duas atividades por mês junto à comunidade, os grupos de trabalho confluíram necessidades e ideias em uma proposta de captação de recursos, para obter um patamar minimamente necessário de forças produtivas para o território e para o funcionamento da cooperativa.
Tende em vista essa demanda crítica, integrantes do movimento da economia solidária indicaram, para o projeto, a possibilidade de solicitar investimentos junto ao Fundo Estadual de Combate e Erradicação da Pobreza do Tocantins (FECOEP). Tendo a Secretaria de Agricultura e Desenvolvimento Agrário do Tocantins (SEAGRO) como proponente, e o Núcleo de Economia Solidária/UFT como responsável técnico, foi elaborado, apresentando e aprovado pelo conselho do FECOEP, no dia 8 de março de 2018, uma matriz de investimentos produtivos (também denominado projeto “Raios de Sol”) considerados cruciais para retirar a comunidade de uma situação de vulnerabilidade ou submissão direta frente ao sociometabolismo dominante. Já era abertamente ponderado, pela equipe técnica do projeto, que o seu ponto mais frágil era justamente a obtenção dos meios de produção para os trabalhadores associados, fato imprescindível para o exercício, em todo o seu potencial, de uma estrutura de organicidade socioprodutiva.
Dividido em quatro eixos – administração, logística, agroecologia e bioconstrução – e com a previsão orçamentária inicial de cerca de R$3,5 milhões, o Projeto Raios de Sol, na versão aprovada pelo FECOEP, intentou potencializar um território quilombola de 1000 hectares para uma autêntica governança autogestionária territorial em transição para a sustentabilidade.
Para viabilizar tal governança, o projeto previu, em termos de meios de se trabalhar, um conjunto de investimentos estruturantes, distribuídos em um complexo articulado de construções, veículos, máquinas, equipamentos e a constituição de uma casa de farinha certificada, ou seja, que atendesse todas as normas e exigências sanitárias, além da constituição da primeira moeda social do estado do Tocantins, tudo isso em fluxos de trabalho e destruição em um sistema sociometabólico orgânico, por sua vez, organizado e administrado pela cooperativa integral.
Após essa aprovação, para que os investimentos financiados por um fundo público gerassem benefícios concretos para a comunidade, e de forma a terem um bom aproveitamento na sua utilização, surgiram três novas demandas para o biênio 2018-2019: um plano diretor de uso e ocupação sustentável do território; a constituição – em termos jurídicos, como também como incorporação da sua lógica pela comunidade – da cooperativa integral; e o detalhamento dos itens a serem adquiridos, por licitação pública.
Para a constituição da cooperativa integral, foi mobilizada uma ampla rede de advogados e especialistas em cooperativismo, de modo voluntário, inclusive com a formação de um grupo de estudos com acadêmicos e o apoio e a orientação de dois professores do curso de Direito da UFT. Após a busca de diferentes soluções jurídicas e institucionais que viabilizassem um SOT por meio de uma cooperativa integral, em julho de 2018, chegou-se a uma minuta de Estatuto Social da cooperativa, após ser discutida com a comunidade em pelo menos quatro oficinas. O corolário do processo ocorreu em novembro de 2018, quando foi fundada, no quilombo, a Cooperativa Multissetorial de Produção Agroecológica, Distribuição Solidária e Serviços Comunitários QUILOMBARRAS, registrada na Junta Comercial do Tocantins em fevereiro de 2019, após um processo de ajustes burocráticos durante alguns meses.
Os recursos do FECOEP foram inicialmente orçados de modo agregado, distribuídos em eixos de intervenção do projeto. Tendo em vista que a lei de licitações brasileira exigia um profundo detalhamento, também foi necessário contar com o trabalho voluntário dos parceiros do projeto, priorizando-se os seguintes eixos: da agroecologia – compra de material permanente e de insumos; da bioconstrução – equipamentos e insumos; e da administração – construir e equipar a sede da cooperativa e um centro distributivo. Entretanto, como no ano de 2019 houve o início de um novo governo estadual, e somente no mês de julho deste ano a equipe da SEAGRO passou a receber os planos detalhados de aplicação para, posteriormente, providenciar o processo licitatório. Em agosto de 2019, o detalhamento dos eixos da agroecologia e da bioconstrução já tinha sido enviado para a licitação2. O detalhamento da casa da farinha – projeto arquitetônico, hidráulico e elétrico – ficou na dependência da sua alocação geográfica no território para conclusão, o que ocorreu em março de 2020. Já as construções previstas no projeto – 400 m² de área construída da central administrativa e 20 casas em bioconstrução para os associados – encontram-se, no momento em que se relata este artigo3, na dependência da contratação/licitação de serviços de elaboração e acompanhamento de projetos de edificação.
Para o planejamento do território quilombola, o projeto contou com o trabalho voluntário de cerca de dez pesquisadores e cinco acadêmicos, que procederam à análise minuciosa dos recursos hídricos, solo, bioma, áreas de preservação ambiental, espaços de trabalho, moradia e convivência, estes agregados em um núcleo urbano. Foi um trabalho profundamente técnico e participativo, de praticamente dois anos e meio.
Ressalta-se a importância da articulação de uma agenda sociotécnica encampada pelo projeto juntamente com a comunidade quilombola. Isso contribuiu para a realização de atividades estratégicas em direção à produção orgânica e autogestionária, criando sinergias e forças coletivas, além de valorizar a dimensão territorial como propriedade fundante/estruturante das atividades realizadas. Observou-se, de fato, a concretização de uma pesquisa-ação, para a qual confluíram e confluem questões teóricas de ampla envergadura – novo sistema socioprodutivo –, questões técnicas imediatas – adequação a legislação atual, soluções para problemas pontuais de água, energia, entre outros – e as demandas e necessidades dos moradores da comunidade que, aos poucos, assumem a futura condição de trabalhadores organicamente associados.
Enfim, para que a cooperativa QUILOMBARRAS comece a exercer plenamente as diferentes atividades cuidadosamente planejadas e preparadas pela equipe técnica e parceiros do programa de extensão, a expectativa de todos, equipe e comunidade, é imprescindível a chegada dos investimentos do FECOEP, pois sem essa nova configuração produtiva ou sociometabólica, a cooperativa tem sido utilizada apenas para auxiliar na comercialização da produção local. Inclusive avalia-se que tal distensão temporal para a execução do processo licitatório tendo a exaurir toda a sinergia e engajamentos conquistados, logo, configura-se na desagregação e desacumulo das ações de capacitação e formação cultural já realizadas junto com a comunidade e com isso, potencialmente tende a surgir novos problemas.
Dessa forma, observa-se uma mobilização política da comunidade na luta pela aplicação efetiva dos recursos do FECOEP, aprovados desde março de 2018, que qualifica a própria luta de defesa do seu território, a partir do autoconhecimento do seu potencial e das suas demandas efetivas por melhores condições de vida.
Conforme já discutido neste texto, uma possibilidade de recuperar, com mais energia e efetividade, a luta histórica pela emancipação social e territorial, estaria na construção coletiva de uma estrutura de organicidade socioprodutiva e governança autogestionária, realizada por uma determinada comunidade, em um território comum, ou, conforme anunciado, por meio de um SOT. Ressalta-se, à luz das observações do campo empírico ao qual os olhares e as mãos foram lançados, que este processo de construção coletiva, se qualificou organicamente em um tecido estruturante de empoderamento político, situando o território sobre o qual se teve o domínio do ‘comum’ como fundante e instituinte de novas rotinas e hábitos, assim como de sujeitos em clara perspectiva de autonomia e construtivos de alternativas emancipatórias
Outro ponto fundamental na construção de um SOT, também observado na concretude, em que pesem todas as limitações e funcionalidade, diz respeito à recuperação de forças produtivas e/ou dos meios necessários de se trabalhar, por parte dos trabalhadores associados. Além de fato concreto imprescindível para se dar início a qualquer produção material, ou ainda, de reparação histórica, a fim de devolver ao trabalho as suas condições de se trabalhar – o retorno do caracol à sua concha –, é possível, também, tensionar um processo desencadeado de reestruturação produtiva, ainda que em nível micro, em clara perspectiva de adequação sociotécnica (NOVAES, 2011) pari passu a uma genuína produção equilibrado com o meio ambiente, numa lógica de busca pela economia circular, poupar recursos naturais e gerar bem estar ao trabalho, em outras palavras, de transição para a sustentabilidade. A construção de pautas e o detalhamento técnico dos itens, a serem licitados no bojo do FECOEP, ilustram toda a riqueza de uma construção conjunta entre o conhecimento teórico de ampla envergadura (trazido pela equipe técnica do projeto) com o conhecimento tácito e tradicional da comunidade.
Por conseguinte, em termos de elaboração sociotécnica, vislumbra-se que um SOT pode incorporar um potencial maior de geração de trabalho e renda, no caso, de trabalho associado, a um custo menor daquele praticado pelo mercado – o que podemos classificar de efetividade social. Pode ainda, por meio de uma estrutura de organicidade socioprodutiva, viabilizar uma crescente dinâmica de compartilhar recursos e produzir com maior qualidade e/ou maior vida útil – revertendo a tendência mercantil da obsolescência –, um evidente avanço em termos de sustentabilidade (BENINI, 2012; BENINI et al., 2015; BENINI et al., 2017; NÚCLEO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA, 2016; CENTRO DE FORMAÇÃO EM ECONOMIA SOLIDÁRIA, 2016), mas tais pressupostos e perspectivas precisariam ainda ter a oportunidade de ser postos a prova pela recuperação, via um fundo público, de forças produtivas.
O presente artigo trouxe a lume a possibilidade de construção e aplicação dos preceitos de uma forma de autogestão societal integradora, por meio de um projeto experimental de organização territorial-comunitário, como estratégia construtiva de novas estruturas e dinâmicas de sociabilidade, a favor do bem-estar das pessoas e do uso efetivamente racional de recursos naturais.
Confluindo conhecimento teórico de profundidade, o conhecimento técnico das áreas específicas em tela (como a agroecologia, o direito, a arquitetura, a administração e a economia) e o saber tradicional da comunidade, o projeto Raios de Sol conseguiu agregar um relativo consenso em torno de um conjunto de instituições necessárias, inclusive a constituição de uma empresa social de novo tipo, na forma de uma cooperativa integral, para uma construção coletiva em um território a ser qualificado como bem comum ou recurso compartilhado para o uso e regulação sustentáveis.
Especificamente, por meio de um projeto de extensão que incluiu diversas oficinas, reuniões, articulações e encontros da equipe técnica - em uma inovadora estratégia de pesquisa-ação na comunidade quilombola Barra da Aroeira - foi possível analisar como práticas de governança territorial autogestionária, ainda que em um estágio experimental, potencialmente fortalecem processos emancipatórios de produção, notadamente a partir dos conceitos de organicidade socioprodutiva, governança autogestionária e de cooperativa integral.
Dessa forma, a implementação dessas práticas de governança territorial autogestionária, na comunidade tradicional estudada, aponta para uma agenda que tem em seu horizonte processos de trabalho mais sustentáveis e alinhados com a preservação dos recursos naturais locais e com a inclusão solidária e produção colaborativa de seus habitantes. Tais aspirações, demandas e necessidade formaram uma agenda propositiva clara e incisiva dos pontos críticos a serem reivindicados perante a sociedade em geral e para as políticas públicas em particular.
Não obstante, mesmo com o possível desenvolvimento racional e ideal projetado, a questão da funcionalidade e dos limites estruturais impostos pelo macrossistema metabólico do capital – observados no caso descrito e entendidos como limites estruturais – apontam, também, para a necessidade de articulação do trabalho associado em níveis cada vez maiores de agregação e adensamento político e econômico ou, ainda, como espaço de resistência ativa e de possível subversão libertária dos múltiplos territórios e dimensões produtivas.
Se é válida a assertiva de que, em grande medida, a transição para a sustentabilidade depende de uma reorientação dos objetivos da produção material da vida, na qual a acumulação para poucos precisa ser substituída pela distribuição equitativa e justa, e se a lógica de produção é para esse bem estar social, logo, o uso de novas tecnologias, em conjunto com novos padrões de produção e de consumo, se articulam em uma sinergia que equaciona eficácia sociopolítica com eficiência econômica, em síntese, um novo modo de produção e distribuição.
Considerado a possibilidade e legitimidade desse percurso, então a transição para um efetivo padrão de existência societal sustentável é também uma transição para um novo sociometabolismo, o que requer a composição de inclusão social integrada dos trabalhadores e a recuperação do controle social autogestionário dos meios/recursos de se trabalhar, temos aqui, em estágio de nascimento, um projeto político de transformação social.
Destarte, a articulação política e o apoio de entidades e grupos de interesse figuraram como estratégicos para o acúmulo de forças, manutenção e ampliação das ações desenvolvidas no território, ou mesmo um horizonte de composição intra-territorial, frente aos desafios impostos pelas estruturas do sistema sociometabólico do capital.