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Transformações e características da cadeia produtiva da soja em Mato Grosso (Brasil)
Transformations and characteristics of the soybean production chain in Mato Grosso (Brazil)
Transformaciones y características de la cadena productiva de la soja en Mato Grosso (Brasil)
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 27, 2022
Universidade de Santa Cruz do Sul

Artigos


Recepción: 21 Junio 2021

Aprobación: 05 Agosto 2022

DOI: https://doi.org/10.17058/redes.v27i1.16725

Resumo: Este artigo analisa as transformações e a características da cadeia produtiva da soja em Mato Grosso (Brasil), com ênfase na expansão do cultivo no estado, nos atores (sobretudo produtores rurais e indústrias) e na estrutura de mercado. Para tanto, conciliou-se um conjunto de técnicas de pesquisa, como revisão bibliográfica, análise estatística e entrevistas semiestruturadas. Os resultados apontam que, além do grande crescimento na área plantada, na produção e na produtividade da soja, o cultivo do grão tem se concentrado entre os produtores com maior área. Além disso, o setor está dominado por um reduzido número de grandes empresas transnacionais, que inclusive atuam em vários elos da cadeia produtiva de forma verticalizada. O que se observa, sinteticamente, é a elevada imersão do mercado mato-grossense da soja nas redes globais de produção, de modo que a governança desta cadeia local está perpassada, cada vez mais, por processos, dinâmica e atores transnacionais.

Palavras-chave: Agronegócio, Mercado da soja, Empresas transnacionais.

Abstract: This article analyzes the transformations and characteristics of soybean production chain in Mato Grosso (Brazil), focusing on the expansion of this crop in the state, on involved actors (mainly rural producers and industries) and on market structure. To this end, a set of research techniques was combined, including literature review, statistical analysis and semi-structured interviews. Findings indicate that, in addition to huge growth in soybean planted area, production and productivity, most of this grain cultivation is concentrated in large estates. Moreover, the sector is dominated by a small number of large transnational companies, which operate vertically in various stages of the production chain. In sum, soybean market in the state of Mato Grosso is seen to be highly immersed in global production networks, so that the governance of this local chain is increasingly permeated by transnational processes, dynamics and actors.

Keywords: Agribusiness, Soybean market, Transnational companies.

Resumen: Este artículo analiza las transformaciones y características de la cadena productiva de la soja en Mato Grosso (Brasil), con énfasis en la expansión del cultivo en el estado, en los actores (especialmente productores e industrias rurales) y en la estructura del mercado. Para ello, se combinó un conjunto de técnicas de investigación, como revisión de literatura, análisis estadístico y entrevistas semiestructuradas. Los resultados muestran que, además del gran crecimiento en el área sembrada, en la producción y en la productividad de la soja, el cultivo del grano se ha concentrado entre los productores con mayor superficie. Además, el sector está dominado por un reducido número de grandes empresas transnacionales, que incluso operan en varios eslabones de la cadena productiva de manera vertical. Lo que se aprecia, sintéticamente, es la alta inmersión del mercado de la soja de Mato Grosso en las redes de producción global, por lo que la gobernanza de esta cadena local está cada vez más permeada por procesos, dinámicas y actores transnacionales.

Palabras clave: Agronegocio, Mercado de la soja, Empresas transnacionales.

1 Introdução

Ao longo das últimas décadas o mercado de commodities agropecuárias tem passado por transformações de grande envergadura nos campos econômicos, políticos, institucionais, regulatórios, financeiros, sociais, tecnológicos e organizacionais, que modificaram de forma substancial a dinâmica do sistema agroalimentar como um todo (NIEDERLE; WESZ JR., 2018). Apesar de diferentes leituras sobre o momento contemporâneo, compreendido como um “regime alimentar corporativo” (MCMICHAEL, 2016), “regime alimentar neoliberal” (OTERO, 2012) ou “sistema alimentar neoliberal” (IORIS, 2017), todos reconhecem a crescente concentração econômica dos mercados agroalimentares nas mãos de um grupo restrito de conglomerados transnacionais aliados ao capital financeiro.

O estado do Mato Grosso é, provavelmente, um dos locais mais representativos dessa dinâmica contemporânea do mercado das commodities agrícolas no Brasil. Atualmente Mato Grosso é qualificado como a “fazenda do Brasil” (ou do mundo, para os mais otimistas), dada a grande disponibilidade de recursos naturais, condições edafoclimáticas favoráveis, uso intenso de inovações tecnológicas e elevada produtividade. Nesse cenário, a soja é a protagonista. Segundo a Conab (2020), o grão alcançou 10 milhões de hectares plantadas na safra 2019/20 (superior a área total de Portugal), absorvendo 91% das lavouras temporárias de Mato Grosso (IBGE, 2020) e respondendo por 64% do valor das exportações totais do estado em 2019 (SECEX, 2020). Em nível nacional, o Mato Grosso é o estado líder no cultivo de soja, com 29% da produção em 2019/20 (CONAB, 2020), e sozinho responde por mais do dobro da produção conjunta de Bolívia, Paraguai e Uruguai (FAO, 2020).

Este artigo analisa as transformações e as características da cadeia produtiva da soja em Mato Grosso (Brasil), com ênfase na expansão do cultivo no estado, nos atores (sobretudo produtores rurais e indústrias) e na estrutura de mercado.

Este trabalho está subdividido em cinco partes, além desta Introdução e das Considerações Finais. Inicialmente se apresenta a metodologia de pesquisa e, na sequência, o processo de expansão do cultivo da soja em Mato Grosso, destacando a área cultivada, produção e regiões de cultivo, desde seu início nos anos 1970 até o período atual. Depois o foco recai sobre algumas características dos produtores de soja do estado. O item seguinte é focado no segmento a montante da cadeia produtiva (“antes da porteira”), caracterizado pela produção de fatores de produção, como máquinas e equipamentos, e de insumos, como sementes, fertilizantes e defensivos agrícolas. Por fim é analisado o segmento a jusante da cadeia produtiva, que se refere à etapa “depois da porteira”, que inclui o armazenamento, processamento e distribuição da produção.

2 Aspectos metodológicos do estudo

Este estudo conciliou um conjunto de procedimentos e técnicas de pesquisa de natureza qualitativa e quantitativa. Inicialmente, foi realizada uma revisão bibliográfica em documentos que discutem os temas abordados neste artigo, assim como foram coletadas informações em materiais midiáticos, especialmente jornais e revistas, além de um levantamento nos relatórios, boletins institucionais e balanços particulares das empresas que atuam no setor. Também foi realizada uma sistematização de dados secundários tendo como referência diferentes fontes estatísticas, as quais foram apresentadas em gráficos e tabelas organizadas no software Microsoft Excel, além de serem elaborados alguns cartogramas no programa computacional QGIS 3.18.

Além disso, foram realizadas pesquisas de campo no estado, concentrando-se na capital, Cuiabá, e nas regiões Sudeste (municípios de Rondonópolis, Primavera do Leste, Campo Verde, Poxoréo e Jaciara) e Parecis (Sapezal, Campos de Júlio e Campo Novo do Parecis). No total foram realizadas 40 entrevistas semiestruturadas em 2012 (20 entrevistas), 2013 (15) e 2020 (5), cujos temas perpassavam diferentes dimensões da cadeia produtiva. Dada as dificuldades de agendar as entrevistas previamente e o receio das pessoas em participar da pesquisa, optou-se por utilizar as redes familiares e de amizade para fazer a intermediação com os atores-chaves. E, ao final da entrevista, pedia-se a indicação de outras pessoas envolvidas com o mercado da soja na região para a realização de outras entrevistas.

Apesar de uma amostragem não probabilística, o foco foi cobrir um conjunto amplo de atores que, de maneira direta ou indireta, se conectam com o mercado da soja em Mato Grosso. Nesse sentido, foram entrevistados representantes de 6 empresas a jusante (agroindústria, trading, armazenadora e usina de biodiesel), de 4 empresas a montante (revenda de insumos e sementeira), de 3 sociedades civil organizada (sindicatos e associações), de 2 cooperativas e de 2 poder público, além de 6 autônomos (agrônomos, assistência técnica, serviço terceirizado e caminhoneiro).

Também foram entrevistados 17 produtores rurais, que apresentavam uma grande diversidade de situações: diferentes condições fundiárias (vários tamanhos de área e com terras próprias e arrendadas1), diversos graus de participação social (em cooperativas, sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos, etc.), variadas formas de comercialização (venda direta, contratos futuros, troca de grãos por insumos, etc.), distintas origens (gaúchos, paulistas, paranaenses, argentinos, mato-grossense, catarinenses, rondonianos, etc.), diferentes graus de diversificação do negócio (somente soja e milho, lavoura e pecuária, lavoura e atividades complementares, etc.) e diversa infraestrutura na propriedade (desde quem terceiriza todo o processo produtivo até aqueles que possuem toda a estrutura no estabelecimento).

A maioria das pessoas permitiu que a entrevista fosse gravada em áudio, viabilizando, na sequência, a sua transcrição e análise. Nos demais casos utilizou-se o diário de campo para anotar o maior número de informações disponíveis, tanto no momento da entrevista quanto depois da sua realização.

3 Expansão do cultivo da soja em Mato Grosso

Mato Grosso, ao longo do século XX, foi alvo de inúmeras iniciativas de expansão da fronteira2, que ocorreram por meio do extermínio e despovoamento de modos de vida tradicionais, fabricando assim um grande estoque de terras e vazios demográficos. Esse processo foi fundamental para o avanço da produção agropecuária no estado, pois permitiu que nestas áreas fossem construídas iniciativas de colonização privada e pública, que junto com a ação de agentes intermediários, como corretores e grileiros, favoreceram a aquisição de grandes extensões de terras por emigrantes sulistas a preços relativamente baixos quando comparados com outros estados do centro-sul (FERNÁNDEZ, 2007). Em paralelo, houve uma série de políticas públicas para a abertura de área, aquisição de máquinas, construção de infraestrutura (entre elas estradas, portos e cidades), investimentos em pesquisa, formação de mercados, assistência técnica, etc. (BARROZO, 2008; HEREDIA; PALMEIRA; LEITE, 2010). As condições edafoclimáticas também facilitaram o avanço do cultivo de grãos: terras de planalto, com topografia plana, favorecendo o cultivo em larga escala; latossolo, que apesar da baixa fertilidade natural e da acidez, é profundo e bem drenado, permitindo a mecanização; regularidade climática, com duas estações bem definidas, facilitando o desenvolvimento dos ciclos produtivos (MORENO; HIGA, 2005).

Até a metade da década de 1970, o plantio da soja era experimental e resultado de iniciativas individualizadas, que foram realizadas em diferentes municípios do Estado. Um dos produtores entrevistados, natural de Cruz Alta/RS, comprou uma propriedade de 15 mil hectares na região de Primavera do Leste em 1973 e declara: “o primeiro que plantou soja aqui [região de Primavera do Leste] fui eu. Foi de 1976 para 1977. No início não produziu bem, não tinha variedade adaptada pro clima e pro tipo de terra daqui, mas depois foi aprimorando” (Produtor rural, 2012). Naquele período ainda haviam barreiras que dificultavam e/ou impediam o plantio da soja, decorrentes da baixa fertilidade natural dos solos e da sua elevada acidez, além da ausência de variedades adaptadas aos dias longos e de problemas de infraestrutura para a produção e escoamento.

Nos dados da Pesquisa Agrícola Municipal (PAM/IBGE), o primeiro registro do cultivo em Mato Grosso ocorreu em 1974, com 50 hectares cultivadas em Barra do Bugres (IBGE, 2020). Já os dados da Conab (2020) identificam, para a safra 1977/78 (início da série histórica), mil hectares com o cultivo da soja. Mas, no começo da década de 1980, a oleaginosa teve um movimento de crescimento da área cultivada, chegando a mais de 300 mil ha em 1983 (Figura 1). Neste momento o principal local de produção eram os cerrados do Sudeste Mato-Grossense, que concentravam mais de 70% da área colhida do estado, sobretudo nos municípios de Itiquira, Rondonópolis e Alto Araguaia (Figura 2). Segundo Fernández (2007), essa região era estratégica diante da proximidade com outras áreas produtoras em Goiás e em Mato Grosso do Sul, que já dispunham de calcário (para neutralizar o alumínio e a acidez dos solos) e variedades mais adaptadas, além de uma infraestrutura básica (estada, armazéns, bancos, etc.).


Figura 1
Área plantada e produção de soja em Mato Grosso (safra 1977/78 - 2019/20)
Fonte: Conab (2020). Elaboração do autor.

Ao longo da década de 1980 começam a ser introduzidas novas variedades de soja, mais adaptadas as condições edafoclimáticas do cerrado, e também se alteram as formas de plantio e manejo dos solos, sobretudo com aplicação de calcário (BERNARDES, 2005). Além disso, até meados dos anos oitenta vigorava uma política de crédito rural altamente subsidiada, que se voltava ao financiamento de custeio, investimento e comercialização da produção (LEITE, 2001). Também foi importante a retomada do preço internacional da soja na metade da década em diante e a substituição do consumo de gorduras animais (banha e manteiga) por óleos vegetais, estrategicamente elaborada pelas empresas do setor (WESZ JR., 2011). Esses elementos foram centrais para a expansão da área cultivada, que chegou a 1,7 milhão de hectares em 1989, bem como para o aumento da produção e da produtividade (que nesta década saltou de 30 para 40 sacas/ha) (IBGE, 2020).

Esses processos simultâneos e inter-relacionados favoreceram o avanço das lavouras de soja para duas novas regiões do estado: Microrregião de Parecis, próxima à fronteira com Rondônia, com destaque aos municípios de Sapezal, Campos de Júlio, Diamantino e Campo Novo do Parecis; e Microrregião de Alto Teles Pires, localizada ao longo da BR-163, abrangendo principalmente os municípios de Sorriso, Lucas do Rio Verde, Nobres e Nova Mutum (Figura 2), que foram alvo de diversos projetos de colonização. Estas duas microrregiões passaram a responder pela metade da superfície colhida no estado, que, se somada aos valores da mesorregião Sudeste, alcançavam 85% da área em 1989. Na década de 1980 o Mato Grosso se tornou o terceiro maior estado produtor de soja, atrás do Paraná e do Rio Grande do Sul. Outro marco deste período foi a superação da área colhida com arroz, que até então era o principal cultivo temporário (IBGE, 2020).


Figura 2
Área colhida com soja em Mato Grosso (1980, 1990, 2000, 2010 e 2019)
Fonte: Pesquisa Agrícola Municipal – diferentes anos (IBGE, 2020). Elaboração do autor.

A década de 1990 se inicia com a primeira redução na área e na produção de soja em Mato Grosso, seguindo a tendência nacional de baixa devido, fundamentalmente, à forte queda no preço internacional. Mas, na safra 1995/96, começa um processo de recuperação, com um crescimento praticamente ininterrupto da área cultivada até 2005/06, alcançando mais de seis milhões de hectares. Portanto, em dez anos a superfície cultivada com soja foi triplicada (Figura 1). Além do aumento da demanda e do preço internacional, foi fundamental para esta expansão a mudança da política econômica, que desvalorizou o câmbio e reeditou a política de geração de saldos comerciais ancorados na exportação de produtos primários (WESZ JR., 2011).

Neste momento de valorização da soja e capitalização dos produtores, o crescimento das lavouras seguia para as áreas de menor valor imobiliário, de solos planos e profundos e com acesso a infraestrutura de transporte, o que permitia ampliar a área cultivada com menor investimento (FERNÁNDEZ, 2007). Muitos produtores deslocaram-se para estas novas regiões. Esta estratégia foi empregada tanto por aqueles com menor poder econômico como pelos capitalizados. No primeiro caso, tratava-se de produtores endividados ou com reduzido ativo fundiário, que optaram por vender suas terras nas áreas valorizadas e comprar uma nova propriedade em regiões mais afastadas, onde havia terra mais barata. Já os produtores capitalizados mantinham suas áreas nas regiões valorizadas e, diante da maior margem de rentabilidade obtida nos “anos bons”, compravam novas terras em outras regiões (seja no próprio estado ou fora dele) (WESZ JR., 2014; DESCONSI, 2017). Durante as pesquisas de campo, pôde-se perceber que esta segunda modalidade foi utilizada por grandes grupos produtores de soja, que compraram vastas áreas na região do Vale do Araguaia/MT (municípios de Canarana, Porto Alegre do Norte, Querência e Água Boa), que se tornaram importantes produtores de soja nos últimos anos (Figura 2).

Vale dizer que, entre 2004 e 2007, o cultivo de soja passou por uma forte crise no estado, marcada pela queda do preço do grão, ferrugem asiática e variabilidade climática (que provocou baixa produtividade), aumento do custo de produção, defasagem cambial e tensões ambientais (WESZ JR., 2014). De 2006 a 2007, dois milhões de hectares deixaram de ser cultivadas em Mato Grosso. Entretanto, nas safras seguintes há uma nova retomada, alcançando 34,9 milhões de toneladas e 10 milhões de hectares – crescimento de 127% e 95%, respectivamente, de 2006/07 a 2019/20 (Figura 1). Neste intervalo de sete safras o preço da soja alcançou recordes históricos e a demanda internacional cresceu a passos largos. Também foram fundamentais para este avanço as inovações tecnológicas (difusão de sementes melhoradas, plantio de precisão, novos insumos, irrigação, etc.) e a reconversão das áreas de pastagens ou mata em lavouras temporárias (NIEDERLE; WESZ JR., 2018; COSTA et al., 2020).

A Figura 1, ao trazer a área plantada e a produção de soja em Mato Grosso desde a safra de 1976/77 até a de 2019/20, evidencia o elevado crescimento destas variáveis nestes mais de 40 anos. Chama atenção que, ao longo do período, em poucos momentos houve uma redução da superfície, seguido por forte retomada. Este desempenho consolidou Mato Grosso como maior estado produtor de soja do Brasil, tendo Paraná e Rio Grande do Sul alternando na segunda e terceira posição. Outros estados com crescimento expressivo nos últimos anos são Goiás e Mato Grosso do Sul, além de Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia (que ficaram conhecidos como “Matopiba”) (CONAB, 2020).

Em termos de produtividade, houve uma grande expansão entre a década de 1970 e o início dos anos 2000, quando o rendimento por hectare saltou de 1.300 para 3.000 (ampliação de 130%), fruto do desenvolvimento de tecnologia adaptadas para as condições do estado, como comentado acima. Já nos anos seguintes a produtividade manteve-se próximo das 3.000 ton./ha, marcado pela incorporação de novas áreas, inclusive que detinham menor potencial produtivo, mas que eram convidativas pelo baixo preço da terra e pelo alto valor do grão. Nos últimos anos (2017/18 – 2019/20) ocorre um crescimento da produtividade, ficando próxima dos 3.500 ton./ha, quando a incorporação de novas áreas de cultivo se desacelera (IBGE, 2020).

Como pode ser visto na Figura 2, até os anos 2000 a produção de soja em Mato Grosso se concentrou nas regiões de cerrado, principalmente em três grandes “manchas”: Parecis, BR-163 e Sudeste. De 2000 a 2010 ocorre um aumento das áreas com produção, que inclui tanto as regiões acima mencionadas (com expansão na direção Norte, no bioma amazônico) como a ampliação para novas áreas, com destaque ao Vale do Araguaia, que segue a BR-158, na fronteira com Goiás e Tocantins. Nesse caso, os principais municípios produtores são Querência, Canarana e Água Boa. Atualmente somente no Pantanal e na Depressão da Amazônia Meridional (Noroeste do estado) o cultivo do grão não está presente de modo significativo. Em 2019, dos 141 municípios do estado, apenas 20 (14% do total) não cultivaram o grão (IBGE, 2020).

Em suma, em quatro décadas Mato Grosso se consolida, de maneira incisiva, como principal área de produção de soja no Brasil. Ainda que, durante a pesquisa de campo, as respostas a esse desempenho estejam centradas quase que exclusivamente na inovação tecnológica, especialização da produção, empreendedorismo dos atores, gestão econômica e aumento do preço e da demanda, também foram decisivas as condições edafoclimáticas, topográficas e de estruturas de custos de produção dessas novas áreas, além do apoio recebido do Estado, via políticas de colonização, infraestrutura, financiamento e repasse de tecnologia, e dos governos locais, mediante programas de isenção fiscal (BARROZO, 2008; FERNÁNDEZ, 2007; HEREDIA; PALMEIRA; LEITE, 2010). Portanto, trata-se de um conjunto de condições e fatores que possibilitaram a expansão da soja em Mato Grosso, introduzindo no estado um novo padrão de acumulação da atividade agrícola.

4 Produtores de soja em Mato Grosso

O número de produtores de soja cresceu significativamente de 1980 a 2017, quando passou de 270 para 7.097, segundo dados dos Censos Agropecuários. Neste mesmo período houve um aumento muito expressivo na área cultivada (15.583%) e na quantidade produzida (33.416%). A Tabela 1 permite visualizar essas variáveis por grupos de área total dos estabelecimentos, cuja principal mudança ao longo dos anos refere-se à concentração nos estratos acima de mil hectares, sobretudo em termos de área colhida e produção, que era inferior a 70% em 1985 e chegou a 90% em 2017 (IBGE, 2020). Esta tendência de crescimento da soja em estratos de área maior se deve,

em primeiro lugar, à própria lógica de reprodução e de acumulação do capital na agricultura. O domínio tecnológico, associado às máquinas e implementos agrícolas com maior rendimento por unidade de trabalho, leva o agricultor a expandir a área cultivada, buscando maior eficiência dos investimentos. Em segundo lugar, o aumento do custo de produção por unidade de área e, consequentemente, a redução da margem de rentabilidade, leva o agricultor a buscar ganhos por escala de produção. E, em terceiro lugar, a atividade agrícola é uma alternativa para o agricultor continuar investindo o seu ganho. No conjunto, estes fatores, podendo ser acrescidos outros, têm contribuído para a concentração e a centralização tanto do capital quanto dos recursos naturais na agricultura (FERNÁNDEZ, 2009, p. 46).

Em relação ao número de produtores de soja de 1996 a 2017, percebe-se um crescimento em todos os estratos, incluindo os estabelecimentos com menos de 100 hectares, com uma ampliação tanto em termos absolutos (de 166 a 1.234) como relativos (de 6% a 17%). Este resultado se deve, principalmente, a implementação do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB), que estimula a participação dos agricultores familiares e assentados da reforma agrária na produção de soja (esse tema será retomado adiante).

Tabela 1
Número de estabelecimentos produtores de soja, área colhida e quantidade produzida por grupos de área total em Mato Grosso (1980, 1985, 1996, 2006 e 2017)

Fonte: Censo Agropecuário – diversos anos (IBGE, 2020). Elaboração do autor.

Em Mato Grosso a produção de soja é marcada pela presença de grandes grupos, sendo que os 20 maiores plantaram 533 mil hectares na safra 2004/05, respondendo por 9% da área cultivada com a oleaginosa no estado. Apesar dos dados apontarem para uma grande concentração, o Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (IMEA) demonstra que ao longo dos últimos anos esses valores foram ampliados, pois na safra 2009/10 os mesmos 20 grupos já controlavam 1,2 milhão de hectares (crescimento de 318%), o que representa 20% da área colhida com soja no estado (REGIONALMT, 2010). O nome dos grupos, a área cultivada e a sua nacionalidade são cada vez mais difíceis de serem identificados, em função da presença de grandes empresas de capital aberto, controladas por fundos estrangeiros ou por empresários nacionais ligados a outros ramos da economia (BERNARDES, 2017). Na mídia, Bom Futuro, Amaggi, SLC Agrícola e Bom Jesus aparecem como os principais grupos atuantes na produção de soja em Mato Grosso. A partir da consulta em seus sites, sabe-se que cada um cultivou, pelo menos, 133 mil hectares de soja na safra 2018/19, e que controlavam, no total, 1,7 milhão de hectares.

Ao olhar a produção de soja em Mato Grosso e no Brasil, uma diferença que ganha evidência diz respeito às dimensões fundiárias das unidades que produzem o grão. Apesar de ocorrer, em ambos os casos, uma concentração nos estabelecimentos com mais de mil hectares ao longo dos últimos anos, há significativas variações em termos proporcionais. Enquanto dados nacionais (desconsiderando os valores de Mato Grosso) apontam que aproximadamente metade da soja é oriunda de unidades com mais de mil hectares, no estado esse valor é superior a 90%, com destaque para aqueles com mais de dez mil – este foi o estrato que mais cresceu no último período, quando passou de 24% para 35% da produção (Figura 3).


Figura 3
Produção de soja por estratos de área total no Brasil (exceto MT) e em Mato Grosso (1985, 1996, 2006 e 2017)
Fonte: Censo Agropecuário – diversos anos (IBGE, 2020). Elaboração do autor.

Esta grande diferença relaciona-se com as formas de gestão do negócio agrícola e com a progressiva mudança no padrão de produção, que buscam crescentes índices de produtividade, eficiência e rentabilidade. Entretanto, é preciso reconhecer que a presença majoritária da produção de soja em unidades de larga escala está relacionada fundamentalmente com a dinâmica de ocupação do território e com o processo de colonização das terras, que enquadraram os indígenas em reservas e os posseiros em assentamentos, desobstruindo estas áreas para emigrantes do Sul – que encontravam dificuldades para manter ou ampliar suas áreas na região de origem e acabavam comprando terra a um preço reduzido no cerrado – e do Nordeste – cuja mão de obra foi empregada na catação de raízes (FERNÁNDEZ, 2007; MORENO, 2007; COY; BARROZO; SOUZA, 2020).

A área média do cultivo de soja por estabelecimento agropecuário em Mato Grosso cresceu substancialmente ao longo dos anos, como pode ser visto na Figura 4. Os dados do Censo Agropecuário de 1985 indicavam que em grande parte dos municípios a área média colhida era inferior a 300 hectares, mas havia uma maior dispersão do cultivo no estado – apenas Aripuanã não apresentou produção. Em 1996 aparecem os primeiros municípios com área média cultivada acima de mil hectares, os quais crescem em 2006 e se tornam a grande maioria em 2017. Em 2017 os municípios com maiores médias foram em São Félix do Araguaia (6.105 ha), Sapezal (5.507 ha) e Bom Jesus do Araguaia (4.381 ha) (IBGE, 2020). Ao cruzar a Figura 4 com a Figura 2, pode-se dizer que essa concentração não atinge apenas aqueles municípios com maior área cultivada, mas também localidades com um reduzido número de produtores, como no Sudoeste e Norte do estado.


Figura 4
Área média colhida de soja por estabelecimento agropecuário nos municípios de Mato Grosso (1985, 1995, 2006 e 2017)
Fonte: Censo Agropecuário – diversos anos (IBGE, 2020). Elaboração do autor.

Após apresentar as características fundiárias dos sojicultores em Mato Grosso3, cabe discutir a forma de organização deste mercado, com destaque para os demais atores que compõem a cadeia produtiva, bem como os vínculos estabelecidos entre eles.

4 Segmento a montante na cadeia produtiva da soja em Mato Grosso

Em Mato Grosso não há indústria de tratores e colheitadeiras, existindo somente concessionárias, que estão espalhadas nas principais regiões agrícolas. Segundo os Anuários da Indústria Automobilística Brasileira (ANFAVEA, 2020), eram 119 concessionárias em 2019 (enquanto que em 2010 haviam 81), sendo a maioria da CNH (40,3%), com as marcas Case e New Holland, além da John Deere (28,6%), da AGCO (24,4%), com as marcas AGCO, Massey Ferguson e Valtra, e da Agrale (6,7%) (Figura 5). A comercialização de máquinas e implementos agrícolas está intimamente relacionada com o resultado da safra anterior e com as expectativas dos produtores em relação à safra futura, que pode ser vista no declínio das vendas de tratores e colheitadeiras em 2005 e 2006, quando ocorreu a crise no setor, como comentado anteriormente. Contudo, de 2006 a 2013 ocorreu uma retomada nas vendas, superando, tanto no caso das colheitadeiras como dos tratores os números de 2003 e 2004. Já nos últimos anos o mercado se mostra mais estável, com as vendas anuais de tratores variando de 2.000 e 2.700 unidades e de colheitadeiras oscilando entre 900 e 1.300 máquinas (Figura 5).


Figura 5
Número de concessionárias por empresa e número de tratores e colheitadeiras vendidas em Mato Grosso
Fonte: Anfavea (2020). Elaboração do autor.

No que se refere aos fertilizantes, o Mato Grosso é o maior consumidor nacional, além de ser uma das regiões que mais aplica adubação por hectare no mundo, cerca de 450 kg/ha, enquanto na Argentina e nos Estados Unidos a média é de 40 kg/ha e 30 kg/ha, respectivamente. Apesar de não haver unidades de extração e produção de fertilizantes químicos granulados no estado, o elevado consumo tem estimulado a crescente instalação de indústrias misturadoras e distribuidoras. Em 2011 existiam 35 indústrias em Mato Grosso, divididas em: misturadoras de fertilizantes minerais mistos, produtoras de fertilizantes orgânicos e produtoras de fertilizantes líquidos. Entre as empresas instaladas, destacam-se as transnacionais ADM, Bunge, Mosaic (Cargill), Cofco e Yara, além das nacionais Heringer, Fertipar e Sudoeste. Rondonópolis concentra 50% das indústrias e 76% da capacidade instalada de mistura em Mato Grosso (SILVA, 2011). Embora não se tenha dados mais atualizados, imagina-se que o estado reproduz a elevada concentração existente no país, em que apenas 4 firmas controlam praticamente três quartos do mercado nacional: Yara (25%), Mosaic (20%), Fertipar (15%) e Heringer (13%) (AGROLINK, 2017).

Mato Grosso também é o maior estado consumidor de agroquímicos no Brasil, e a soja se destaca como o cultivo que mais absorve defensivo agrícola (50,2% do total) (AENDA, 2020). Apesar de ser o principal mercado nacional, Mato Grosso não conta com um número significativo de indústrias de defensivos (até porque, a maioria dos produtos são importados). Porém, é muito expressiva a presença de revendedores. Em um município como Campo Verde, que possui 350 mil hectares de lavouras temporárias, existiam em 2012 aproximadamente 20 revendas, todas localizadas no perímetro urbano. Além disso, também estão no estado os representantes técnicos de venda (RTV), que trabalham diretamente para a firma transnacional. Assim como no caso dos fertilizantes, não há dados em nível estadual, mas se deve reproduzir a lógica nacional, concentrado em poucas empresas transnacionais, como Syngenta (18,5%), que foi adquirida pela ChemChina; Bayer (15,6%), que comprou Monsanto; Corteva (10,9%), nova marca resultante da fusão entre a Dow e DuPont; e Basf (9,2%) (AGROLINK, 2020).

A produção de sementes de soja envolve, basicamente, dois atores fundamentais: mantenedoras de cultivares (ou indústrias de sementes) e sementeiras. As mantenedoras de cultivares são empresas que investem na pesquisa e no desenvolvimento de novas variedades de plantas, com características específicas para atender às distintas condições edafoclimáticas das regiões produtoras. Neste setor, se observam algumas semelhanças com o segmento de defensivos, como o grande número de fusões e aquisições e a concentração do mercado em poucas firmas, ainda que no caso das sementes existam corporações nacionais e públicas (como é o caso da Embrapa) (SANTOS, 2013). Outro elemento que chama atenção é a presença de empresas líderes na produção de ambos os produtos (sementes e defensivos), como Bayer/Monsanto, Dow/DuPont e Syngenta/Nidera/ChemChina. As mantenedoras de cultivares criam estações de melhoramento de sementes em diferentes regiões do Brasil buscando adaptar sua genética às condições locais. Em 2000 havia apenas uma estação de melhoramento de soja em Mato Grosso (Rondonópolis). Em 2013, o número de estações passou a oito no estado e saltou para 17 em 2020, com destaque às principais regiões produtoras do grão (Sudeste, BR-163 e Parecis) (CANAL RURAL, 2020).

As sementeiras, por sua vez, reproduzem o material genético criado pelas empresas mantenedoras de cultivares. Conforme entrevista com a Agrosol Sementes (2013), “nós fizemos uma parceria com a Bayer, Nidera, Monsoy [subsidiária da Monsanto] e a gente utiliza a base genética delas para produzir as sementes, que depois nós vendemos para os produtores da região”. Em 2020, haviam 46 sementeiras em Mato Grosso, predominantemente localizadas no Sudeste do estado. Algumas sementeiras pertencem a grandes grupos produtores de soja, como é o caso da Amaggi, Sementes Bom Futuro e Sementes Itaquerê (ABRASEM, 2020).

As constantes inovações biológicas, mecânicas e físico-químicas estão no bojo do segmento à montante da cadeia produtiva da soja, sendo responsáveis pelo surgimento de novos produtos a cada safra (COSTA et al., 2020). Um exemplo é a semente transgênica resistente à lagarta (INTACTA RR2 PRO), que foi desenvolvida pela Monsanto e era muito comentada na pesquisa de campo de 2012 e 2013, assim como a semente HB4, da brasileira TMG, que promete ser 30% mais resistente à seca, objeto de muita expectativa entre os produtores em 2020. Não resta dúvida que estas inovações são fundamentais para o aumento da produtividade agropecuária.

Contudo, o desenvolvimento tecnológico apresenta um custo, que cresceu nas últimas safras. Os levantamentos feitos pelo IMEA (2020) sobre as despesas da produção da soja transgênica evidenciam o aumento do dispêndio por hectare, que passou de R$ 1.563,20 na safra 2010/11 para R$ 4.378,99 na safra 2020/21 (ampliação de 180% em termos nominais). Chama atenção o peso dos insumos no custo total, que tem se mantido próximo de 50% nas safras analisadas, principalmente com fertilizantes (macronutrientes) e defensivos (inseticidas, fungicidas e herbicida).

Para custear as despesas da produção, os produtores recorrem a diferentes fontes de recursos (PROFETA et al., 2014). O IMEA (2020) tem procurado estimar esse valor, baseando-se em cinco grupos de fontes: banco com recursos públicos federais; multinacionais de agroquímicos, fertilizantes, sementes e grãos; revenda de insumos; sistema financeiro; e recursos próprios (Figura 6). Uma primeira questão é que a fonte principal varia conforme a safra. Já teve períodos em que predominavam os recursos próprios, das multinacionais e das revendas. O fato dos recursos próprios serem a principal fonte na maioria dos anos indica a grande capitalização dos produtores com a valorização do preço do grão. As multinacionais (sobretudo ADM, Bunge, Cargill, Dreyfus) acabaram reduzindo sua importância, sobretudo após a crise financeira internacional, enquanto as revendas assumiram parte desse papel, ainda que desde 2014/15 vem recuperando a sua participação.

Também chama atenção, principalmente nas última safras, a ampliação do capital financeiro no custeio da safra, chegando a responder por um quarto do total dos recursos utilizados para a produção de soja no estado (Figura 6).

O sistema financeiro, através de recursos livres, apresentou a principal mudança no funding nesta safra e alcançou o maior share deste player na série histórica do Imea. Pela sexta safra seguida houve crescimento da participação dos bancos com recursos originados de Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), recursos próprios, recursos em moeda estrangeira e outros. Com a redução da taxa Selic nos últimos meses e aumento da taxa de juros para o Plano Agrícola e Pecuário (PAP), ficou mais atrativo ao produtor rural acessar o financiamento através de recursos sem subsídio governamental, seja pela não limitação de recursos por CPF ou pelo menor tempo para aprovação do crédito. Assim, houve aumento de 7 p.p. [pontos percentuais] no share do custeio agrícola da soja em Mato Grosso para o sistema financeiro e ocorreu um recuo de 4 p.p. na participação dos bancos com recursos federais (IMEA, 2020, p. 1).


Figura 6
Fontes de recursos para produção de soja em Mato Grosso (2008/09 - 2019/20)
Fonte: IMEA (2020).

Em relação à aquisição dos insumos, em Mato Grosso ela geralmente acontece em três locais: na revenda, diretamente na indústria ou na cooperativa. O mais usual, principalmente para os médios e pequenos produtores que não estão organizados em cooperativas, é a compra nas revendas, onde são contratados os chamados “pacotes”, em que são vendidos sementes, fertilizantes e defensivos de forma agrupada, além da assistência técnica oferecida ao longo da safra (na maioria dos casos o valor da ATER é estabelecido a partir de um percentual da safra colhida). O pagamento do “pacote” pode ser à vista (quando dispõe de recurso próprio ou acessado nos bancos ou sistema financeiro) ou na safra, que caracteriza o financiamento das revendas (Figura 6), sendo o pagamento em dinheiro ou em soja (geralmente o valor é convertido em sacas de soja e é quitado com o grão após a colheita).

A segunda fonte de compra dos insumos é diretamente nas misturadoras e distribuidoras de fertilizantes, nas sementeiras ou nos RTVs, que também pode ser pago à vista ou na safra. Como o fertilizante é produzido ou vendido pelas mesmas empresas que compram a soja, acaba-se construindo uma relação vertical, que será aprofundada no próximo item. A compra através de RTV é realizada pelos maiores grupos de produtores (como Bom Futuro, Amaggi, Vanguarda, SLC Agrícola, Bom Jesus, Itaquerê, etc.), que adquirem grandes quantidades.

Por fim, a aquisição pode ocorrer por intermédio de uma cooperativa. Nesse caso é ela quem envia para as empresas o volume demandado de insumos (discriminando as especificidades dos produtos) e é quem define com quem será estabelecido negócio a partir da melhor opção de preço. Portanto, a cooperativa é quem intermedia a relação entre produtor e empresa, cujo principal benefício é o menor custo ao sojicultor na compra de insumos. Ainda que a presença de cooperativas tenha crescido nos últimos anos em Mato Grosso, ela não é tão difundida como no Sul do país (GIMENES; GIMENES, 2007).

6 Segmento a jusante na cadeia da soja em Mato Grosso

A soja produzida em Mato Grosso acaba seguindo, majoritariamente, para exportação direta, sem nenhum valor agregado (58% da safra 2018/19). Além deste destino, 9% é enviada para beneficamente em outros estados e 29% é processada em Mato Grosso, transformando-se em farelo (76%), cujo principal destino é a exportação, e óleo (20%), que é consumido fundamentalmente no país (IMEA, 2020). No Censo Agropecuário de 20064 havia uma pergunta que permitia identificar o ator que comprava a soja do produtor rural. E, no estado, o principal comprador, que absorvia 60% da produção, era indústria, que também inclui as tradings, dado que elas atuam tanto no processamento como na exportação do grão (IBGE, 2020). É importante destacar que a venda para esse ator é majoritária tanto nas áreas onde o cultivo da soja está mais consolidado, como na região Sudeste do estado, BR-163 e Parecis (sendo que nas duas primeiras já existe a presença das agroindústrias), como em microrregiões cuja expansão do cultivo é mais recente (Paranatinga, Norte Araguaia, Canarana, etc.). A capacidade de a indústria absorver o grão, mesmo com ampla dispersão territorial, se deve a uma estratégia comum usada pelas principais empresas: construir unidades de armazenamento (silos) nas diferentes regiões, visando captar essa produção, que depois é transportada para suas indústrias ou para seus terminais portuários (FREDERICO, 2009).

O segundo ator responsável pela compra da soja no estado em 2006 eram os intermediários, que absorviam 17,6% da produção (IBGE, 2020). Vale ressaltar que nesta categoria estão incluídos tanto o atravessador como as revendas de insumos. O atravessador (que seria o “intermediário tradicional”) é aquele que compra o grão e o revende em outra região a um preço maior. Isso ocorre com maior frequência nos locais de maior isolamento em relação às principais rotas de escoamento e que tem menor produção, como nas microrregiões de Aripuanã e Alto Guaporé, onde esta modalidade de venda atinge mais de 40% da produção total. As revendas de insumos são classificadas como intermediários porque elas recebem a soja do produtor – quando ele faz um contrato cujo pagamento é em grão – e comercializam com as agroindústrias ou tradings, visto que é raro encontrar uma revenda que esmague ou exporte a produção agropecuária via meios próprios. É provável que, atualmente, a atuação dos intermediários na compra do grão tenha se reduzido, pois, na medida que as regiões periféricas vão ampliando sua produção, cresce o interesse das grandes tradings em construir sistemas de armazenagem e escoamento das safras.

O restante da soja colhida em Mato Grosso em 2006 seguia para: empresas de integração (10%), com destaque à região de Sinop, Sorriso e Lucas do Rio Verde e Nova Mutum, que congrega um número expressivo de bovinos, suínos e aves, bem como de frigoríficos (BERNARDES; ARACI, 2010); cooperativas (5,7%), com maior presença no Sudeste do Estado; exportação direta (4,9%), sobretudo nas microrregiões de Parecis e Tangará da Serra (IBGE, 2020), onde a soja é escoada pela BR-364 até Porto Velho, e depois segue em barcaças graneleiras pelo Rio Madeira e pelo Rio Amazonas até chegarem ao Porto de Itacoatiara/AM. Vale pontuar que a região de Parecis é a principal área de atuação da “Divisão Agro” do Grupo Amaggi, que realiza a exportação direta.

Apesar destes dados, é importante considerar que grande parte da produção de soja acaba, em algum momento, sendo direcionada para as tradings e agroindústrias de esmagamento. Isso porque, a oleaginosa que os produtores vendem a atravessadores, revendas de insumos, pequenas empresas e cooperativas menores acaba sendo comercializada para as grandes agroindústrias, que possuem infraestrutura para beneficiamento, escoamento e exportação da produção (WESZ JR., 2011). Portanto, mesmo que os produtores entreguem sua produção para diferentes atores, grande parte da soja acaba afunilando para um pequeno número de empresas. Esse cenário fica claro em alguns relatos na pesquisa de campo:

Conforme os contratos com os produtor vão sendo fechados, a gente [revenda] vai organizando o negócio. Quando a gente tem um número bom de sacos de soja para receber, ai nós fizemos um contrato com alguma multinacional para entregar a ela a soja, com um preço fixo. [...] A soja que os produtor entrega pra nós, nós vende para as multinacional (Revenda de insumos, 2013).

Você pega a Sinagro, ela é a revenda que faz o maior volume de troca na região [Sudeste do MT]. Só que ela não exporta produção, ela tem que vender para as multinacional. A Agrovence é a mesma coisa, os cara não puxam um grão de soja que eles tem, 100% vai para as multinacional. No final tudo vai parar na mão das multinacional. Hoje é ADM, Bunge, nós [Cargill], Dreyfus, Noble, que é uma empresa nova que está comercializando bastante, e Amaggi (Agroindústria, 2012).

No estado a capacidade de armazenagem cresceu de maneira muito expressiva. Em 1980, havia condições de manter 242 mil toneladas nos silos, que passou para 5,6 milhões em 1990, 12,7 milhões em 2000, 26,7 milhões em 2010 e 37,9 milhões de toneladas em 2019 (Figura 7). Entre os municípios com maior capacidade, destaca-se Sorriso (241 unidades e 12,3% do total estadual), Primavera do Leste (129 / 6,5%), Lucas do Rio Verde (84 / 5,3%), Campo Novo do Parecis (113 / 4,8%), Sapezal (86 / 4,2%) e Nova Mutum (114 / 4,2%). Atualmente Mato Grosso é o estado com maior capacidade (22,3%), seguido por Rio Grande do Sul (18,2%), Paraná (17,7%), Goiás (8,0%) e São Paulo (7,8%). Em Mato Grosso, conforme a Figura 7, se considerar somente a soja, o estado apresenta uma capacidade de armazenagem 15% superior à produção. Mas, somando o conjunto da produção de grãos, a cobertura fica em apenas 56,2%, indicando uma deficiência de 29 milhões de toneladas em 2019 (CONAB, 2020).


Figura 7
Capacidade de armazenagem e produção de soja, milho e outros grãos (mil toneladas) em Mato Grosso (1980 - 2019)
Fonte: Conab (2020). Elaboração do autor.

Os silos permitem cadenciar a circulação dos grãos no tempo e no espaço, sendo imprescindíveis desde a produção até os estágios finais de exportação e consumo.

Nos fronts agrícolas, o controle do sistema de armazenamento se torna ainda mais estratégico, por se tratar da principal região produtora de grãos do país, pela grande distância com relação aos portos exportadores e regiões consumidoras e pela precariedade dos sistemas de transporte. Esse contexto torna a posse do sistema de armazenamento um elemento chave para o controle da produção. É por isso que nas principais regiões produtoras a posse dos sistemas de armazenamento é ainda mais seletiva, sendo controlada pelas grandes firmas processadoras e exportadoras de grãos, tornando os produtores e o Estado subservientes à política das empresas (FREDERICO, 2009, p. 5).

Além do aumento da capacidade de armazenagem, também ocorreu uma ampliação na capacidade de esmagamento de soja em Mato Grosso. Até 1980 não haviam indústrias no estado, que começaram a ser construídas no fim dessa década. Entretanto, é na virada do século que se inicia um forte movimento de crescimento na capacidade das firmas, passando de 10,5 para 42,5 ton/dia de 2000 a 2019. Em 2019, haviam 15 unidades de processamento de soja em Mato Grosso: ADM em Rondonópolis e Campo Novo do Parecis; Agrenco em Alto Araguaia; Amaggi em Lucas do Rio Verde; Araguassú (arrendada pela 7 Sete Agroindustrial) em Porto Alegre do Norte; Bunge em Rondonópolis e Nova Mutum; Caramuru em Sorriso; Cargill em Primavera do Leste; COFCO em Rondonópolis; Dreyfus em Alto Araguaia; Olvepar em Cuiabá; Clarion (arrendada pela Root Brasil) em Cuiabá; Sperafico em Cuiabá; e Tauá em Nova Mutum. Entretanto, em 2019 as indústrias da Agrenco, Olvepar, Clarion e Tauá estavam paralisadas (ABIOVE, 2020).

Se considerarmos a produção de soja no estado, havia-se condição de esmagar em Mato Grosso 42,2% da colheita em 2000, sendo que esse valor passou para 53,8% em 2009, dado o aumento da capacidade de processamento. Entretanto, na última década a indústria não acompanhou a velocidade da produção, e o valor ficou em 43,2%, próximo ao índice de 2000 (Figura 8). Em 2019, o Estado passou a responder por 22% da capacidade nacional de esmagamento, sendo o líder a nível de Brasil, enquanto Paraná está na segunda colocação, com 18,7%, e Rio Grande do Sul na terceira posição, com 15,9%. Em 1993 Mato Grosso era o sexto no ranking, passou a quarto em 2000 e assumiu a liderança em 2010 (ABIOVE, 2020).


Figura 8
Capacidade instalada de esmagamento de soja (toneladas/dia) e condição de processamento da safra em Mato Grosso (%)
Fonte: Abiove (2020) e Conab (2020). Elaboração do autor.

Além do aumento da produção, que estimula a aproximação das indústrias para reduzir seus custos, outros elementos contribuíram para esta ampliação da capacidade em Mato Grosso: a Lei Kandir, que incentiva o beneficiamento do grão dentro das delimitações estaduais para diminuir o valor dos impostos5; o aumento da demanda por farelo e a consolidação da produção de frangos e suínos; a melhoria do sistema de transporte regional e a diversificação dos meios de escoamento da produção (além da abertura de novas vias rodoviárias de distribuição da produção, foram ampliados os modais ferroviários e hidrográficos, barateando os custos e facilitando o acesso ao mercado internacional); a isenção fiscal concedida pelo estado; apoio político oferecido pelo governo, em consonância com as ações das empresas (BERNARDES; ARACI, 2010; HEREDIA; PALMEIRA; LEITE, 2010; WESZ Jr., 2011).

Outro segmento que ganhou importância no elo a jusante da cadeia produtiva da soja é o biodiesel. Em 2004 foi criado o PNPB, que determina a mistura obrigatória de biodiesel no diesel convencional, o qual vem crescendo ao longo dos anos e está, em 2020, em 12%. Um dos objetivos do Programa é a inclusão dos agricultores familiares nesta cadeia produtiva. Para tanto, a principal iniciativa construída foi o Selo Combustível Social, que é recebido pelas empresas que apresentam um compromisso com a compra da matéria-prima da agricultura familiar (FINCO; RIBEIRO; BAILIS, 2014; VAZ; OLAVE, 2015). Para obter o Selo em Mato Grosso, as indústrias precisam comprovar que no mínimo 15% da sua produção é abastecida com cultivos oriundos de agricultores familiares. As empresas que possuem o Selo têm como principais vantagens a diferenciação/isenção nos tributos PIS/PASEP e COFINS, o acesso a melhores condições de financiamento junto aos bancos e a participação assegurada nos leilões públicos da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), onde pode negociar até 80% do seu biodiesel. Esse cenário estimula que as usinas promovam a produção de soja junto aos agricultores familiares e assentados da reforma agrária. Mato Grosso é o segundo estado em produção de biodiesel em 2018, com 21,2% da produção nacional, sendo que a liderança está no Rio Grande do Sul (27,7%). Neste mesmo ano haviam 16 usinas de biodiesel no estado, sendo que 11 estavam em funcionamento (ADM, Bunge, COFCO, Transportadora Caibiense, Biocamp, Bio Óleo, Bio Vida, Biopar, Fiagril, Caramururu e Cooperfeliz). As usinas estão espalhadas por todas as regiões produtoras de soja de Mato Grosso, com destaque à região Sudeste e BR-163 (ANP, 2020).

As principais empresas a jusante no mercado da soja em Mato Grosso são as americanas ADM, Bunge e Cargill, a francesa Dreyfus (conhecidas como ABCD), a brasileira Amaggi e a chinesa COFCO (que poderiam se denominadas como AABCCD). Enquanto ABCD dominam a anos o mercado regional (WESZ JR., 2016) e global (MURPHY; BURCH; CLAPP, 2012) de grãos, COFCO tem ampliado sua participação neste mercado após a compra da Noble e Nidera (WILKINSON; WESZ JR.; LOPANE, 2016; ESCHER, 2021; WESZ Jr.; ESCHER; MEFANO, 2021), e Amaggi, pertencente à família do ex-governador Blairo Maggi, tem se internacionalizado (PASTRE, 2016). Estas firmas atuam em diferentes frentes da cadeia produtiva, como na oferta de fertilizantes e de financiamento para a produção de soja (como já visto), armazenagem, processamento da produção, venda de mercadorias prontas para o consumo e exportação de grãos e derivados. Para ampliar ainda mais o seu poder sobre as diferentes fases da cadeia produtiva, estas corporações realizam joint ventures em setores onde não possuem grande presença, como é o ramo de sementes e defensivos. Esse foi o caso das parcerias estabelecidas entre Cargill e Monsanto, Bunge e DuPont, Dreyfus e Genética Don Mario (parcialmente comprada pela Dow), identificadas durante as pesquisas de campo.

Em termos de armazenagem, estas empresas dispõem de um amplo e ramificado sistema de silos. Apesar de possuírem instalações em todas as regiões do estado, os investimentos concentram-se nos locais de elevada produção, próximos às plantas de esmagamento da soja e nas rotas de escoamento para o mercado internacional. Em 2000, ADM, Bunge, Cargill, Dreyfus, Amaggi e Noble tinham condições de conter em depósito 3,2 milhões de toneladas de soja, o que representava quase um terço da estrutura presente no estado. A capacidade de AABCCD aumentou para 6,6 milhões de toneladas em 2010 e 8,8 milhões de toneladas em 2020, mantendo um percentual de cobertura de 23,1% (Tabela 2). Atualmente Amaggi é a empresa com maior capacidade (5,7% do total de Mato Grosso), seguido por Bunge (4,4%), Cargill (4,2%), Dreyfus (3,1%) e ADM e COFCO (ambas com 2,8%) (Tabela 2). O restante da estrutura de armazenagem é distribuída entre empresas menores, cooperativas e produtores individuais e em grupo6, que inclusive aproveitaram o aumento dos recursos de crédito rural público para construção de silos (LEITE; WESZ Jr., 2014).

Tabela 2
Capacidade de armazenamento das principais empresas em Mato Grosso (2000, 2010 e 2020)

Fonte: Conab (2020). Elaboração do autor.* Até 2014, os dados dizem respeito à Noble

Em termos de capacidade de esmagamento, no início do século XXI Bunge e Amaggi já detinham planta em Cuiabá e ADM em Rondonópolis. Mesmo que com o controle de apenas três plantas, estas empresas respondiam por 76,5% das condições de processamento no estado em 2000 – considerando apenas as agroindústrias de esmagamento de soja ativas (OLIVEIRA; SANTOS, 2004). Ao longo da década de 2000 o cenário mudou significativamente: por um lado, as três empresas citadas ampliaram a sua capacidade de esmagamento de soja naquelas agroindústrias já instaladas; por outro, outras empresas transnacionais, de atuação global, construíram novos empreendimentos no estado, como Dreyfus, Cargill e COFCO, além de Bunge e Amaggi, que já detinham estrutura de beneficiamento em Mato Grosso. Em 2017, Bunge é a empresa com maior poder de mercado neste segmento, com 28,8% da capacidade estadual de esmagamento, seguido pela ADM (20,6%), Amaggi e COFCO (cada uma com 11,5%), Dreyfus (9,8%) e Cargill (8,6%) (Tabela 3).

Tabela 3
Capacidade de esmagamento de soja por empresa em atividade em Mato Grosso (2000 - 2017)

Fonte: Oliveira e Santos (2004); Pessoa e Pereira (2006); Wesz Jr. (2011 e 2014); Oleofar (2018); Abiove (2020). Elaboração do autor.* Até 2014, a indústria era controlada pela Noble

Estas seis firmas também se envolvem com a exportação de soja em grão. A dupla possibilidade – de beneficiar a oleaginosa ou exportá-la in natura – permite uma margem de manobra importante e fundamental para o aumento da rentabilidade das empresas, pois possibilita que elas façam opções conforme o contexto presente (WESZ JR., 2011). Desde o início dos anos 2000 AABCCD já atuavam no estado, com destaque a Bunge e Amaggi, que sozinhas superavam 40% das exportações de soja em grão mato-grossense entre 2003 e 2011. Já ADM, Cargill e COFCO (sendo Noble e Nidera até 2014) ampliaram seu poder de mercado ao longo dos anos, enquanto Dreyfus tem uma situação mais instável. O fato é que estas seis empresas, juntas, chegaram a controlar mais de 80% exportações de soja in natura em Mato Grosso entre 2008 e 2011. Mas, como inauguraram novas indústrias ou ampliaram a capacidade daquelas já em operações, a sua participação no mercado teve uma redução, mas ainda segue muito expressiva, próximo dos dois terços do total (Figura 9).


Figura 9
Volume exportado com soja em grão (mil toneladas) entre as principais empresas e o seu peso no conjunto das exportações deste produto em Mato Grosso (2003 – 2017)

*Até 2014, os dados dizem respeito a Noble e Nidera.

Fonte: Trase (2020). Elaboração do autor.

As distintas iniciativas e estratégias desenvolvidas por ADM, Amaggi, Bunge, Cargill, COFCO e Dreyfus se refletiram em um crescimento nas vendas ao mercado internacional. Segundo os dados da SECEX (2020), o valor das exportações destas seis empresas em Mato Grosso passou de US$ 1,25 bilhão em 2003 para US$ 9 bilhões em 2013 (crescimento de 645%). De 2013 a 2015[7] o valor das suas exportações teve uma queda de 22%, reflexo principalmente da redução no preço das commodities agrícolas. Vale destacar que Bunge, Amaggi, ADM e Cargill ocuparam as quatro primeiras posições no ranking das maiores empresas exportadoras no estado de 2007 a 2015. Em 2015 a Bunge controlava o maior valor nas exportações (US$ 2,1 bilhões), respondendo sozinha por 16,1% do total mato-grossense. A segunda colocada é a Amaggi e a terceira é a Cargill (ambas com US$ 2,1 bilhões), seguida pela ADM (US$ 1,1 bilhões), JBS (US$ 741 milhões), COFCO (US$ 691 milhões) e Dreyfus (US$ 501 milhões) (SECEX, 2020).

É importante destacar que de 2003 a 2015, quando as informações por firmas estavam disponíveis, AABCCD foram responsáveis por, pelo menos, metade do valor das exportações totais de Mato Grosso (em 2009 e 2011 chegaram a responder por dois terços) (Figura 10). Em suma, grande parte da balança comercial mato-grossense está atrelada a um reduzido número de firmas, na sua maioria transnacionais, que comercializam, entre outros produtos, soja em grão, farelo e óleo. A expressividade econômica destas corporações, com destaque à geração de superávit na balança comercial, torna o estado altamente dependente delas, o que lhes oferece um importante trunfo para negociar investimentos estatais nas áreas estratégicas para as empresas (lotes para construção das plantas industriais, infraestrutura de escoamento da produção, incentivos fiscais etc.).


Figura 10
Valor exportado (milhões de US$) pelas principais empresas e o seu peso no conjunto das exportações de Mato Grosso (2003 - 2015)
Fonte: Secex (2020). Elaboração do autor.

7 Considerações finais

Ao longo das últimas décadas, o cultivo da soja assumiu grande centralidade em Mato Grosso, ocupando nove de cada dez hectares cultivadas no verão e respondendo por dois de cada três dólares exportados no estado. Apesar disso, este estudo aponta para a sua elevada concentração, evidente tanto entre os produtores rurais (85% da produção é oriunda de estabelecimentos que detém uma área total superior a mil hectares) como entre as empresas a montante e a jusante (um número muito limitado de firmas controlam grande parte do mercado de máquinas, fertilizantes, defensivos, sementes, esmagamento e exportação). E, no caso das empresas, predominam as companhias líderes globais, que estão conectadas com o capital financeiro e que possuem um grande poder econômico e político, definindo o ritmo, a dinâmica e as formas com que esse mercado opera. Em suma, tem ocorrido um processo correlato de concentração e de transnacionalização na cadeia produtiva da soja em Mato Grosso, cuja atividade tem elevada dependência em um pequeno número de companhias predominantemente estrangeiras.

Embora a soja tenha uma incontestável importância econômica para Mato Grosso, quando se discute a contribuição desta cadeia produtiva para o desenvolvimento regional, a partir dos resultados desta pesquisa, deve-se tomar em conta dois riscos (para além de outros que não foram objeto de análise deste trabalho). O primeiro diz respeito à elevada dependência em um produto, que em caso de uma crise setorial - que pode derivar tanto de problemas climáticos como de oscilações de mercado, tensões diplomáticas, instabilidade econômica, etc. - provoca um enorme impacto para o estado por não dispor de outras atividades com o mesmo grau de relevância. O segundo risco refere-se ao reduzido número de beneficiários diretos nesta cadeia produtiva (sobretudo de origem nacional, quando olhamos para as empresas, ou de origem mato-grossense, quando nos centramos nos produtores), visto a estrutura de mercado altamente concentrada. Nesse sentido, deve ser objeto de estudos futuros a análise da capacidade de transbordamento dos ganhos econômicos da soja para o conjunto da sociedade mato-grossense.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 Foram entrevistados desde grandes grupos de produção agrícola, que plantam mais de 200 mil hectares de soja em Mato Grosso (entre própria e arrendada), até assentados da reforma agrária, que produzem o grão em 10 hectares.
2 É importante atentar para o fato de que o tema do avanço da fronteira foi amplamente comentado no Brasil, tanto pelos representantes do agronegócio quanto por acadêmicos. Contudo, como bem argumenta Bernardes (2005), é preciso ponderar que, no caso de Mato Grosso, não se trata de um avanço sobre terras “vazias”, onde os “pioneiros” fizeram a ponte entre o mundo selvagem e a civilização, levando o progresso. Ao contrário disso, havia indígenas, posseiros, garimpeiros, seringueiros, etc. Nesse sentido, é interessante a contribuição de Martins (1996), que argumenta que o avanço da fronteira se caracteriza pela nova racionalidade econômica, pela constituição formal e institucional de novas mediações políticas, pela expansão dos mercados e pela introdução de novas concepções de vida.
3 Tinha-se a intenção de apresentar outras características dos produtores de soja de Mato Grosso, mas não foi possível em função da indisponibilidade de acesso aos microdados do Censo Agropecuário de 2017.
4 Esta questão foi retirada do Censo Agropecuário de 2017.
5 A Lei Kandir estimula que o estado de produção seja o mesmo do processamento, pois a transferência interestadual de produtos implica em pagamento de impostos. Caso a soja mato-grossense seja esmagada em São Paulo, por exemplo, haverá uma cobrança de 12% de ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação). E, como Mato Grosso é o maior produtor nacional do grão, as indústrias se aproximaram da produção.
6 Entre os grandes grupos produtores de soja, merece destaque o Bom Futuro, considerado o maior produtor de soja do mundo, que dispõe de uma capacidade de 1,3 milhão de toneladas, o que representa 3,5% da estrutura disponível no estado (Conab, 2020).
7 Com o argumento de manter o sigilo das firmas, a Secex deixou de disponibilizar os valores das exportações por empresa.


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