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Uma estratégia para dinamizar arranjos de produção e comercialização agroalimentar: O caso da produção com atributos à venda direta em Tupanciretã – RS
Everton Lazzaretti Picolotto; Gisele Simi Turchetti
Everton Lazzaretti Picolotto; Gisele Simi Turchetti
Uma estratégia para dinamizar arranjos de produção e comercialização agroalimentar: O caso da produção com atributos à venda direta em Tupanciretã – RS
A strategy to streamline agrifood production and marketing arrangements: The case of production with attributes for direct sale in Tupanciretã-RS
Una estrategia para racionalizar los arreglos de producción y comercialización agroalimentaria: el caso de la producción con atributos para la venta directa en Tupanciretã-RS
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 27, 2022
Universidade de Santa Cruz do Sul
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Resumo: Um dos principais dilemas enfrentados pela agricultura familiar está no controle sobre o processo em que esta desempenha suas atividades econômicas/produtivas. Uma das formas que permitem a construção de sistemas alimentares alternativos e seu efeito combinado, para facilitar uma transição sustentável, reside em novos arranjos que combinam a produção e o consumo. Nesse sentido, o modelo de negócio adotado pelos pequenos agricultores que integram o processamento e comercialização nas atividades agrícolas é uma das soluções para as dificuldades enfrentadas. O artigo avança neste cenário. Utilizando uma abordagem qualitativa, buscou-se verificar estas iniciativas adotadas pelos agricultores familiares em Tupanciretã-RS, que estão situados em um contexto produtivista, coordenado por agentes vinculados às cadeias de valor global, privilegiados por altos fatores produtivos, produzindo, desse modo, uma das maiores lavouras de soja do Rio Grande do Sul, identificada como a capital da soja. Entretanto, uma série de atividades econômicas/produtivas operadas pelas famílias agricultoras heterogeneízam um contexto marcado pela homogeneidade socioeconômica no município. Com isso, uma das diretrizes que os agricultores familiares adotam para aumentar o valor agregado encontra-se na produção interna e na orientação de mercado. Em suas estratégias econômico-produtivas, a agroindustrialização dos produtos em alimentos finais emprega técnicas peculiares inerentes às tradições e heranças dos agricultores que os produzem. Isso se traduz no método adotado, condensado em um alimento com atributos vinculados à aspectos coloniais, caseiros e artesanais, o qual se desassocia do imperativo modo de produção especializado e intensificado que é praticado no setor agrícola do município.

Palavras-chave: Agricultura Familiar, Circuitos Curtos de Comercialização, Produtos locais.

Abstract: One of the main dilemmas faced by family farming is the control over the process in which it performs its economic/productive activities. One of the ways in which alternative food systems can be built and their combined effect, to facilitate a sustainable transition, lies in new arrangements that combine production and consumption. In this sense, the business model adopted by small farmers who integrate processing and marketing in agricultural activities is one of the solutions to the difficulties faced. The article advances in this scenario. Using a qualitative approach, we sought to verify these initiatives adopted by family farmers in Tupanciretã-RS, which are located in a productivist context, coordinated by agents linked to global value chains, privileged by high productive factors, thus producing a of the largest soybean plantations in Rio Grande do Sul, identified as the capital of soybeans. However, a series of economic/productive activities operated by farming families heterogeneize a context marked by socioeconomic homogeneity in the municipality. Thus, one of the guidelines that family farmers adopt to increase added value is domestic production and market orientation. In its economic-productive strategies, the agro-industrialization of products into final foods employs peculiar techniques inherent to the traditions and heritage of the farmers who produce them. This translates into the method adopted, condensed into a food with attributes linked to colonial, homemade and artisanal aspects, which is dissociated from the imperative specialized and intensified production mode that is practiced in the agricultural sector of the municipality.

Keywords: Family Farming, Short Circuits of Commercialization, Local products.

Resumen: Uno de los principales dilemas que enfrenta la agricultura familiar es el control sobre el proceso en el que realiza sus actividades económico-productivas. Una de las formas en que se pueden construir sistemas alimentarios alternativos y su efecto combinado, para facilitar una transición sostenible, radica en nuevos arreglos que combinen producción y consumo. En ese sentido, el modelo de negocios adoptado por los pequeños agricultores que integran el procesamiento y la comercialización en las actividades agrícolas es una de las soluciones a las dificultades enfrentadas. El artículo avanza en este escenario. Con un enfoque cualitativo, buscamos verificar estas iniciativas adoptadas por agricultores familiares en Tupanciretã-RS, que se ubican en un contexto productivista, coordinado por agentes vinculados a cadenas globales de valor, privilegiados por altos factores productivos, produciendo así una de las mayores soja. plantaciones en Rio Grande do Sul, identificada como la capital de la soja. Sin embargo, una serie de actividades económico-productivas operadas por familias campesinas heterogeneizan un contexto marcado por la homogeneidad socioeconómica del municipio. Así, uno de los lineamientos que adoptan los agricultores familiares para incrementar el valor agregado es la producción interna y la orientación al mercado. En sus estrategias económico-productivas, la agroindustrialización de productos en alimentos finales emplea técnicas peculiares inherentes a las tradiciones y herencia de los agricultores que los producen. Esto se traduce en el método adoptado, condensado en un alimento con atributos ligados a aspectos coloniales, caseros y artesanales, que se desvincula del imperativo modo de producción especializado e intensificado que se practica en el sector agrícola del municipio.

Palabras clave: Agricultura Familiar, Circuitos Cortos de Comercialización, Productos locales.

Carátula del artículo

Artigos

Uma estratégia para dinamizar arranjos de produção e comercialização agroalimentar: O caso da produção com atributos à venda direta em Tupanciretã – RS

A strategy to streamline agrifood production and marketing arrangements: The case of production with attributes for direct sale in Tupanciretã-RS

Una estrategia para racionalizar los arreglos de producción y comercialización agroalimentaria: el caso de la producción con atributos para la venta directa en Tupanciretã-RS

Everton Lazzaretti Picolotto
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Gisele Simi Turchetti
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 27, 2022
Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 16 Abril 2022

Aprobación: 05 Octubre 2022

1 Introdução

A crise do sistema alimentar e a necessidade de desenvolver um modelo socioeconômico diferente que envolva produção, processamento, comércio, distribuição, consumo e a eliminação dos alimentos são constatações que surgem em níveis distintos da sociedade. O modelo intensivo e globalizado na produção e distribuição de alimentos, estimulou o desenvolvimento do sistema agroalimentar enraizado por profundas mudanças econômicas, sociais, tecnológicas e espaciais, restritas ao controle de grandes players globais. Ademais, a operação nesse modelo tem se mostrado cada vez mais incapaz de satisfazer os requisitos do tripé do desenvolvimento sustentável (sustentabilidade ambiental, econômica e social), gerando externalidades que ameaçam os limites do ecossistema planetários.

Entretanto, novos cenários têm emergido nos últimos anos, principalmente a partir da construção de iniciativas de base, na busca de desenvolver novos caminhos destinadas a reincorporar a produção, distribuição e práticas de consumo de alimentos, por meio de processos de relocalização e inclusão de atributos de qualidade vinculados a aspectos culturais e ambientais – orgânico, local / regional, artesanal, tradicional, colonial, caseiros, da reforma agrária, a exemplo – nos alimentos, dentro do quadro de sistemas agrícolas mais sustentáveis. Além disso, sob o guarda-chuva rotulado de Redes Alimentares Alternativas (RAAs), em inglês Alternative Food Networks (AFNs), que são esquemas organizacionais que conectam produtores e consumidores de alimentos por meio de Circuitos Curtos de Comercialização (CCC), normalmente gerenciados em escala local, com foco na revalorização dos alimentos locais e tradicionais e na produção sustentável (para pessoas e para o meio ambiente), tais alternativas são vistas como um jeito diferente de produzir, distribuir, escolher, valorizar e consumir.

Diante disso, esses circuitos curtos de comercialização manifestam-se a partir da interação dos consumidores que compram produtos diretamente do produtor, em que a proximidade e a confiança são relações sociais mediadas que mantêm o consumidor conectado com os valores de quem produziu, respeitando as dimensões culturais, espaciais, sociais e ambientais deste. Além disso, essas iniciativas, com o intuito de remediar os efeitos do setor agroalimentar dominante, por vezes são orientadas para reequilibrar a apropriação de valor ao longo das cadeias globais de valor e das relações de poder embutidas. E, dentre as formas de produção agrícola familiar, o processamento de alimentos, especialmente a agroindustrialização na unidade familiar, é uma oportunidade para os agricultores contornarem esses modelos e obterem maiores valores monetários, agregando valor e eliminando links verticais em outros canais de venda (ROSSI, BUI & MARSDEN, 2019; ROVER & DAROLT, 2021; MIRANDA et al., 2021).

Logo, considerando este componente produtivo, considera-se importante a partilha de experiência que retrata esta base produtiva e sua capacidade de envolver-se como uma alternativa viável em um contexto que coevolui com o sistema agroalimentar convencional, buscando desafiar seus arranjos socioespaciais orientados para a produtividade, criando espaços econômicos locais. Frente a este cenário, o presente trabalho é apresentado a partir do contexto do município gaúcho que se intitula capital da soja, visto que a produção agrícola neste território é especializada em commodities agrícolas, sendo fomentada pela agricultura em larga escala e mecanizada. Ligada à economia agroalimentar global, compreendida pelos impérios alimentares (PLOEG, 2008), esta porção da agricultura do município pode ser considerada pela extensão do agronegócio.

Do outro lado do espectro da prática agrícola do município de Tupanciretã-RS, localizado na região centro do Estado do Rio Grande do Sul, na região Sul do Brasil, o rural é composto por (muitas) famílias de agricultores, dentre elas um quantitativo de assentamentos de reforma agrária que atualmente praticam agricultura de pequena escala em atividades diversificadas, como a bovinocultura leiteira, criação de animais, produção agrícola, hortifrutigranjeiros e agroindustrialização dos produtos desenvolvidos no núcleo familiar. Diante disso, o estudo visa avançar no conhecimento sobre as famílias agricultoras que processam os alimentos e vendem seus produtos por meio de circuitos curtos de comercialização relacionados às RAAs em um contexto socioeconômicos que predomina o mundo do agronegócio com suas referências e lógicas.

2 Procedimentos metodológicos

O artigo foi elaborado a partir da pesquisa de mestrado da primeira autora (Turchetti, 2021), que trata da dinâmica das redes alimentares alternativas que aspiram as ações das agroindústrias familiares em um contexto socioeconômicos que predomina o mundo do agronegócio com suas referências e lógicas.

A pesquisa foi realizada a partir de uma revisão sistemática e problematização da bibliografia nacional e internacional sobre as cadeias globais de commodities e as redes alimentares alternativas. Foi identificado no contexto do município de Tupanciretã, área fortemente influenciada pela dinâmica da produção de commodities de exportação, especialmente soja, a existência de experiências de formação de redes alternativas de famílias agricultoras e apoiadas por agentes públicos. Esta existência de circuitos curtos de produção e comercialização no contexto da “capital da soja” chamou a nossa atenção e nos fez problematizar como seria possível tais experiências em contexto adverso, pensando a problemática como um “enigma sociológico” (Lemieux, 2015).

A partir desta problemática, buscou-se os dados oficiais existentes sobre o município, especialmente dos Censos Agropecuários e Populacionais do IBGE, no que se refere à estrutura agrária, a produção agropecuária geral e os dados mais específicos sobre estabelecimentos de produção diversificada. Complementados com dados sobre acesso às políticas públicas e sobre crédito rural. Estes dados possibilitaram traçar um panorama geral do munícipio, o que produz, quanto produz, número e característica dos produtores, entre outros aspectos.

Em seguida, partiu-se para a produção de dados originais sobre as experiências das redes alimentares alternativas no município. Com base em roteiro de entrevistas semiestruturado, foram entrevistados, inicialmente, dois gestores municipais. Com base nos seus relatos e informações foi possível identificar o que se fazia, como e quem eram alguns os atores nas redes alimentares alternativas locais. Em um segundo momento, foram contactadas as famílias que formavam uma associação de agroindústrias, começando por uma família indicada por um gestor e, em seguida, solicitando novas indicações de famílias que compunham a rede. No total foram entrevistadas cinco famílias que agroindustrilizam (frango, salame colonial, bolacha e pães caseiros, rapaduras de melado, mandioca e polpas de frutas) e foi possível, com base nas entrevistas, realizar a análise sobre as práticas inovadoras que os agricultores familiares introduzem em suas propriedades, descrevendo os processos de agroindustrialização que realizam para buscar a viabilidade de suas unidades familiares fora das cadeias produtivas convencionais.

3 A trajetória socioeconômica do município de Tupanciretã-RS

É importante destacar que o município de Tupanciretã está localizado na região geográfica do Planalto Médio, que está situada entre as cadeias montanhosas da Serra Geral e o Planalto do Estado do Rio Grande do Sul (sul do Brasil) e distante 370 km a noroeste da cidade de Porto Alegre (capital do Estado). Fazendo fronteira com a Argentina e o Uruguai. Sendo, uma importante região que comporta um dos maiores polos agropecuários do Brasil. Ademais, constata-se que Tupanciretã-RS possuía, em 2010, uma população de 22.281 habitantes, com 19,12% desses residindo na área rural e de 80,88% na área urbana, ocupando uma superfície 2.251.863 km², que resulta em uma densidade demográfica de 9,89 habitantes por km² (IBGE, 2010), em que o setor agropecuário absorve o maior quantitativo pessoal ocupado no município, 31,16% (2010).

O município gaúcho passou por diferentes ciclos econômicos, dentre os quais se destacam o charque nos primeiros tempos de ocupação da região, o gado bovino em boa parte do século XX e nas últimas décadas vigora a produção de commodities agrícolas, especialmente, soja, milho e trigo (MOREIRA & MEDEIROS, 2017; BALEM & ALVES, 2021). As dinâmicas que influenciaram tais mudanças são numerosas, assim como, acompanham a difusão do progresso técnico difundido no Brasil, vistas também na região do Planalto Médio. No contexto do sistema agroalimentar, isso significa distinguir três grandes momentos que derivam de processos não homogêneos. O primeiro momento refere-se à modernização agrícola, que fora marcada por mudanças de base técnica, a partir da década de 1960, e que resultou em menor produção de produtos artesanais, especialização de mão de obra e concentração agrária. Ao mesmo tempo, o segundo momento foi marcado pela transformação da produção agrícola, a qual se aproximou ao modelo industrial, com a introdução de insumos – sementes, fertilizantes, agroquímicos e máquinas – e o fornecimento de matéria-prima por outros setores, como combustível, embalagens, etc. Por fim, o terceiro momento refere-se aos complexos agroindustriais a partir da década de 1980, os quais marcaram a inserção da agricultura na dinâmica financeira, com influência do capital internacional, por meio de subsídios à montante e a jusante (NIEDERLE & WESZ JR., 2018).

Esse processo implicava na adoção de novas tecnologias e insumos industriais para aumentar os rendimentos, ganhando vantagem competitiva com uso de sementes melhoradas, pesticidas e fertilizantes químicos. Assim, essa visão aberta, orientada para o progresso, floresceu no município, e, na virada do século, as forças sócioprodutivas promoveram o enfrentamento político favorável à abertura de biotecnologias (pró-transgênico), legitimadas nos discursos do Clube de Amigos da Terra de Tupanciretã-RS, adversos ao então campanha contra aos transgênicos do governo do estado do Rio grande do Sul (PICOLOTTO, 2022).

Diante disso, as novas prospecções geopolíticas que se arquitetaram após a metade do século XX definiram os processos de expansão do capitalismo monopolista no Brasil pela sujeição da agricultura à indústria, revolucionando modos de vida e formas produtivas (NAVARRO, 2001). Nesse sentido, é importante acrescentar que o Estado fomentou a ideia de promover o progresso colocando o espaço rural no modelo de desenvolvimento. Como Neves (1987) explica ao dissertar sobre como se dará sua integração à economia de mercado, “esse novo modelo passa a se fundamentar no uso intensivo dos fatores de produção e aumento da produtividade agrícola, incorporação de novas tecnologias agrícolas, políticas de crédito e preços mínimos” (NEVES, 1987, p. 345).

Ao mesmo tempo, porém, tais mudanças do modelo produtivo – graças ao progresso científico na química, biologia e biotecnologias – geraram uma transformação sistêmica mais profunda. Ao longo do final do século passado, as mudanças de ordem econômica no país, modernização conservadora da agricultura decorrente do período de governo militar, desencadearam também um conjunto de acontecimentos sociais. E, com a desigualdade estrutural histórica se aprofundando especialmente pelo caráter seletivo que beneficiou apenas os médios e os grandes produtores rurais dedicados à produção de monoculturas para exportação, o latifúndio reinava. Nesse contexto, a esmagadora maioria da população não tinha terras próprias e era obrigada a trabalhar de forma assalariada.

Além disso, os grandes proprietários detinham o acesso a crédito, as melhores terras, enquanto as terras de difícil manejo eram divididas em pequenas propriedades entre grandes famílias que as exploravam para subsistência. A partir dessas dinâmicas, a luta pela terra surgiu como alternativa de mobilização social para a camada da população rural que vislumbrava um pedaço de terra, bem como se organizar junto com movimentos sociais, o que era visto como uma possibilidade de construir projetos futuros, nos quais as áreas reformadas poderiam tornar-se lugares de vida, de trabalho e de produção agropecuária (BARCELLOS, 2010).

A questão agrária do local, assim como a do Brasil, postula, portanto, conflitos históricos, políticos, sociais e produtivos. Por um lado, tem-se negócios de terra com alto investimento inseridos em cadeias globais e a expulsão de pessoas da terra. Por outro lado, há movimentos agrários de resistência recorrendo a alianças de apoio para resistir em seus modos de vida. Diante disso, imprimindo o Brasil como um dos países de maior desigualdade na distribuição da propriedade da terra no mundo (MATTEI, 2014) e no caso de Tupanciretã-RS, Barcellos (2010) fundamenta as diferenças existentes:

Tupanciretã-RS destaca-se no RS por ter umas das maiores produções de Soja do estado, bem como um grande número de assentamentos de Reforma Agrária (dezessete assentamentos) e de pequenas propriedades que são responsáveis pela diversificação da produção agrícola local, nas quais plantam soja, milho, feijão, mandioca, arroz, dentre outros produtos agropecuários, e que também ao longo dos anos foram intensificadas atividades agropecuárias como a leiteira, a piscicultura e a suinocultura (Barcellos, 2010, p. 68).

Assim, buscando melhor compreender os processos sociais e os sistemas agrícolas dos modos de vida em Assentamentos de Reforma Agrária do município, Barcellos (2010) mostra como sua pesquisa de campo fornece subsídios para entendermos a importância do estilo de agricultura praticado nestas comunidades. Isso porque “aproximadamente 5000 pessoas residem em área rural e dos quais 706 famílias (2600 habitantes) vivem em assentamentos rurais. Este dado representa que 57,63% da população rural do município reside em assentamentos de Reforma Agrária” (BARCELLOS, 2010, p. 68).

Nesse viés, o Gráfico 1 apresenta o panorama da agricultura do município de Tupanciretã-RS. Em 2017, no setor rural do município, a terra era muito concentrada e a área média dos estabelecimentos agropecuários tinha um tamanho significativamente maior que médias propriedades, ou seja, cerca de 174 hectares de tamanho médio (o módulo fiscal adotado pelo município é de 35 hectares), sendo ainda muito grande se comparado à média do Estado do Rio grande do Sul (59 hectares). Em termos gerais, esses fenômenos, em nível municipal, embora sejam coadjuvantes na história do município, se esforçam na produção de alimentos com qualidade em suas agroindústrias familiares, que são um exemplo disso, assim como na valorização de seu desempenho para tornar as pluriatividades praticadas pela categoria mais visíveis no terreno, em que o agricultor familiar está limitado aos fatores produtivos.


Gráfico 1
Distribuição dos estabelecimentos agropecuários de Tupanciretã-RS, por grupo de atividade econômica e estratificação da área em 2017
Fonte: Censo Agropecuário, IBGE (2017).

Do ponto de vista da área agrícola do município, 75% dos estabelecimentos agropecuários possuem uma área até 50 hectares. Este percentual de estabelecimentos, cuja compreensão se mostra muito importante na representação dos estabelecimentos, representa apenas 7% da área agrícola total do município. Na grande maioria (54%) da superfície agrícola do município, que atualmente tem a maior visibilidade na agricultura local, estão os estabelecimentos agropecuários que possuem mais de 1000 hectares, representados por 4% dos estabelecimentos agropecuários (IBGE, 2017).

De acordo com o exposto, a realidade fundiária do município é contrastante. O município de Tupanciretã-RS possui 1.180 estabelecimentos agropecuários e, a partir do Gráfico 1, nota-se que as propriedades de até 100 hectares possuem mais de duas atividades econômicas, estando a lavoura temporária com maior representatividade, representando mais de 60% da atividade econômica dos estabelecimentos, seguida da pecuária. Ainda, vale ressaltar que, embora com menor representatividade, as atividades de horticultura, produção florestal e lavoura permanente são atividades econômicas realizadas pela agricultura familiar no município.

No caso da produção pecuária, a expressiva presença no estrato de estabelecimento até 20 hectares é representada pelas pequenas propriedades produtoras de leite. Em 2017, 72 % da bovinocultura de leite do município era a atividade econômica praticada nestes estabelecimentos, sendo responsável por 50,4% do volume total produzido no município. Assim, atividades econômicas concomitantes, com o preço do leite geralmente em torno de 0,90 centavos por litro, são alternativas tanto para a sobrevivência quanto para o desenvolvimento da base produtiva familiar, que possui poucas terras e limita-se às expectativas de retorno econômico da atividade agropecuária.

Desse modo, os agricultores familiares conciliam seus rebanhos com outras atividades econômicas (lavoura, produção de frutas, legumes, verduras e viveiros). Sendo essa, portanto, uma estratégia comumente adotada por agricultores familiares (até 100 hectares) que procuram contornar o alto nível de capital que requerem, visando desenvolver a pluriatividade, porque muitas vezes essa é a única viabilidade que eles têm na agricultura. Nas propriedades de mais de 100 hectares, até 2.500 hectares (21,36% dos estabelecimentos), a principal atividade é a lavoura temporária, chegando até mais de 95% dos estabelecimentos de 500 a 2.500 hectares. Já nas propriedades com mais de 2.500 hectares, além da lavoura temporária, também há a produção de sementes, gerando um valor agregado aos estabelecimentos agropecuários.

Em outras palavras, a estrutura do uso das terras do município está ligada à sua matriz econômica produtiva, que atua tanto no lado produtivo quanto nas esferas subjacentes ao resultado paradoxo do setor agrícola. Consequentemente, algumas zonas sofrem mais, uma vez que o processo não é singular. Entretanto, atualmente, a disputa pelo acesso à terra é um dos principais fatores que alimenta a expansão da fronteira agrícola, fomentada pelo aperfeiçoamento contínuo das inovações e de expansão da produtividade (NEVES, 2019). Isto é, além do fator trabalho, as máquinas, os equipamentos, a tecnologia e o capital humano são os elementos responsáveis pela acumulação de capital da agricultura moderna (MATTEI, 2014).

Assim sendo, de fato a introdução de subsídio (estatal e privado) para a práticas agrícola promoveu um aumento significativo nos indicadores técnicos de modernização agropecuária, aumento da produção, de sua diversificação e significativa alteração no padrão técnico do setor rural (DELGADO, 2001), o que fomentou a formação de uma economia agrícola orientada por um modo de funcionamento essencialmente capitalista (BUAINAIN et al., 2013).

Esse processo exigiu que a exploração agrícola se expandisse para novas fronteiras. Ademais, as áreas agrícolas em todo Brasil vêm se expandindo constantemente, geralmente na utilização das terras de florestas e de campo nativo nas últimas décadas (SAUER & LEITE, 2012). Assim, a forte expansão da produção agrícola no município é acompanhada pela redução (45% de estabelecimentos agropecuários com criação de pecuária) das principais heranças agroexportadoras, o gado bovino, como mostra o Gráfico 2.


Gráfico 2
Evolução da estrutura agrária e uso das terras em Tupanciretã-RS, de acordo com o grupo de área total e a atividade econômica de 1995 à 2017, em números de estabelecimentos
Fonte: Censo Agropecuário, IBGE (1995, 2006 e 2017).

Como pode-se perceber, o Gráfico 2 mostra a divisão por número de estabelecimento agropecuário, de acordo com o tamanho da propriedade em hectares e sobre o uso do solo nessas propriedades nos anos de 1995, 2006 e 2017. De acordo com ele, o número de lavouras temporárias nas propriedades de até 20 hectares de 310 (em 1995) passou para 405 estabelecimentos (em 2017), apesar de uma queda no ano de 2006. Já no caso do hortifrúti, no ano de 2006 tinha-se 9 estabelecimentos, o que diminuiu para 6, em 2017. A pecuária teve um crescimento em 2006, mas em 2017 teve uma queda de 189 estabelecimentos. Produção florestal e lavouras permanente reduziram em 2017, 7 e 0, respectivamente. Propriedades de 20 até 50 hectares aumentaram o número de estabelecimentos para lavouras temporárias, passando de 140 para 156. Já o hortifrúti tinha 3 estabelecimentos em 2006 e, em 2017, nenhum praticava a atividade. Pecuária e produção florestal reduziram, respectivamente, em 133 e 4 (em 2006), e para 62 e 1, em 2017. Em relação aos estabelecimentos agropecuários de 50 a 100 hectares e 100 a 500 hectares, a lavoura temporária reduziu cerca de 47% e 20%, respectivamente, de 1995 a 2017, já nas propriedades acima de 500 hectares nota-se um aumento de mais de 29 estabelecimentos até 2500 hectares, de 1995 a 2017, e acima de 2500 hectares não tinha nenhum estabelecimento em 1995, passando a ter 12, em 2017. Em geral, a pecuária perdeu espaço para a lavoura temporária em estratos familiares e não familiares.

Nesse âmbito, a difusão do progresso técnico no município acompanhada de uma nova onda de incorporação tecnológica, que modificou a forma de fazer agricultura, passaram a ter espaço no município. E, em vigor, esse avanço é produzido por uma conjunção de fatores econômicos, tecnológicos, biológicos e químicos. Dentre as tecnológicas associadas, se destacam: semeadura direta, sementes geneticamente modificadas (OGM e outros), mecanização, irrigação, pesticidas (herbicidas, inseticidas e fungicidas) e, mais recentemente, a utilização de softwares de precisão (agricultura 4.0 e 5.0).

Nesse contexto, evidencia-se que, em um curto período de 25 anos, as transformações do rural 1foram sendo condicionadas e retroalimentadas pela noção produtivista do paradigma do sistema alimentar convencional. Os dados que seguem na esfera produtiva (expansão da lavoura temporária em 177% da área – hectares) refletem o modo de transformação que se exige nas outras diversas esferas, ou seja, nas operações da cadeia produtiva que compõem a atividade agropecuária que estão intimamente conectadas (WESZ JR, 2016). Desse modo, tal fato foi possível frente à subutilização das áreas pastorais decorrente da forma extensiva de exploração que detinham mais da metade da superfície do município, cerca de 52,9%, cedendo sua área para a produção agrícola moderna (IBGE, 2017).

Ademais, a intensificação das lavouras temporárias corresponde atualmente à 71% da agricultura tupanciretanense feita nesta modalidade. A expansão da fronteira agrícola pelo avanço nas áreas pastagens naturais e plantadas foi absorvida pela concentração da produção em uma única safra, a soja. Até o início de 1995, esta safra compartilhou o espaço produtivo com outras alternativas, sejam elas agrícolas ou pecuárias. Todavia, o que é recente é o seu predomínio no espaço produtivo tupanciretanense e, consequentemente, na oferta, decorrendo daí o título atribuído ao município – capital da soja (MOREIRA & MEDEIROS, 2017). Isto é, a soja passa a ter status de monocultura nesse cenário de predominância, enquanto outras alternativas econômicas tentam se inserir em um contramovimento. Este fenômeno, por sua vez, foi chamado, por Balem e Alves (2021), de sojificação da sociedade2.

Nesse sentido, é importante destacar que desde a década de 1990 assistimos, em um contexto global, uma industrialização acelerada do setor agroalimentar, tanto no processo de produção (mecanização, intensificação) quanto no processamento (complexos agroindustriais). A lógica da integração de mercado pautada pela abertura do comércio promoveu, desse modo, uma diversificação dos produtos colocados no mercado, assim como a globalização da economia. A institucionalização de cadeias de valor como ferramenta de desenvolvimento configura-se, portanto, na articulação em nível macroeconômico, na forma de investimentos e comércio internacional. Do ponto de vista dos alimentos, o modelo refere-se à mercantilização e à industrialização, que se traduz em um padrão regulatório e normatizado de atores comprometidos com os produtos industrializados e ultraprocessados e com a consolidação e concentração de atividades comerciais relacionadas aos alimentos (DAROLT & ROVER, 2021).

Os efeitos dessas transformações com base na produção de monoculturas têm contribuído, desse modo, para o desequilíbrio proeminente da pequena produção pela grande, tanto no mercado quanto na agricultura, os quais garantem o direcionamento e a liderança ao setor corporativo restrito de grandes atores locais. Ademais, esse modelo tem mostrado uma marcada incapacidade para satisfazer os requisitos do tripé de sustentabilidade, gerando sérias externalidades ambientais, sociais e econômicas que têm causado impacto sobre a vida humana, social e ecossistêmica (BRUNORI, ROSSI & GUIDI, 2012; NIEDERLE & WESZ JR, 2018; MEDAETS, FORNAZIER & THOMÉ, 2020).

No entanto, no outro espectro agrícola do território – representado por atores menos visíveis, menos divulgados, apenas emergentes, que estão organizados principalmente em escala territorial, por meio de associação, que se opõem à governança global do regime alimentar corporativo –, um cenário composto por um mosaico de pequenas propriedades com alguns hectares – praticando uma produção diversificada baseada em um conjunto de práticas para cobrir as necessidades da família ligadas à esfera econômica, voltada para atender às necessidades da população local e das cidades vizinhas –, privilegiam os circuitos curtos de comercialização (feiras do produtor, entrega à domicílio, lojas de produtores, casas coloniais, venda direta na propriedade, venda institucional para alimentação escolar, entre outras formas de venda direta) em detrimento à alimentação padronizada da agricultura industrial caracterizada por Ploeg (2008) como “impérios alimentares”. Nesse contexto, Moreira e Medeiros compreendem o local como:

a ocupação de terras antes ociosas ou subutilizadas, através dos assentamentos rurais pelo caminho da desapropriação dos antigos latifúndios, possibilitou a introdução e o desenvolvimento da agricultura familiar no município via campesinato e a consequente diversificação da produção agrícola construída a partir dos saberes dos integrantes (2017, p. 126).

No nível local, as diretrizes da pequena escala incluem a produção de vegetais, como abóboras, mandiocas, frutas cítricas, etc., a bovinocultura leiteira, a criação de animais, o cultivo de grãos, como milho, soja, trigo e feijão, além de agroindústrias familiares (IBGE, 2017). Em suma, dentro de um quadro de orientação para a maximização de sua autonomia, a produção agrícola de pequena escala segue direções de diversificação de produção. Assim, implementando um conjunto de atividades que interagem com o meio urbano, os agricultores familiares, por meio da venda direta, buscam uma autonomia mesmo que relativa, ou seja, a produção de alimentos para comercializar fora do domínio das cadeias de valor globais, por meio de redes horizontais que estabelecem com os consumidores. Reforçando assim o tecido econômico local e fortalecendo as ligações urbano-rurais que moldam os processos de desenvolvimento rural em relação ao mercado global e suas lógicas, como afirma Ploeg (2008).

No contexto social e econômico, o território de Tupanciretã-RS se consolidou em torno da produção em grande escala, o que permitiu que este município fortemente se identificasse como um importante produtor de grãos. Inicialmente, o território foi organizado em torno da fazenda de gado, onde a carne bovina foi o símbolo nesta construção da identidade territorial. E, a partir da modernização agrícola e a globalização que representou as rupturas mais graves do domínio econômico exercido pelas grandes propriedades, sendo significativas no território – em termos do uso da superfície agrícola –, deu-se lugar a uma transição de um município dominado pela produção de gado para a produção de monoculturas. Por outro lado, o horizonte de ação da agricultura familiar foi identificado, ao longo da trajetória do município, pelo explosivo número de estabelecimentos familiares com uma participação e envolvimento territorial na forma de relacionamentos com os demais sujeitos da comunidade, por meio dos circuitos curtos de comercialização de produtos agroindustrializados na unidade familiar, o que responde às necessidades econômicas (vendendo o excedente de produto de produção própria), mas também à identidade (a necessidade de encontrar contatos, uma rede de apoio semelhante).

4 Circuitos curtos de comercialização

O modo de produção familiar, que envolve a luta pela autonomia, a intensificação do trabalho e a construção de uma base de recursos própria, englobando tanto as dimensões materiais como simbólicas, constrói capacidades de resiliência frente à agricultura industrial, de produção de larga escala, da dependência de insumos e tecnologia e da globalização das tomadas de decisão. A capacidade de resiliência consiste em sistemas produtivos diversificados e das relações estabelecidas entre produção, atores e territórios, ou seja, a dimensão local da atividade agrícola (PLOEG, 2008).

Ademais, restabelecer a conexão entre as pessoas e os alimentos, assim como defender a produção de alimento local, se manifesta, sobretudo, do ponto de vista do menor grau de dependência do mercado, especialmente dos insumos externos e das relações comerciais. Os quais, implementados simultaneamente, a fim de fortalecer seu modo de vida e de produção que não correspondem mais aos paradigmas da modernização, industrialização e globalização, são circunstâncias a seguir para propor a transição para um sistema alimentar mais justo e sustentável. Isto é, o projeto compartilhado alimenta-se – e reforça – mutuamente os resultados uns dos outros.

Este cenários têm emergido nos últimos anos, principalmente a partir da construção de iniciativas de base, na busca de desenvolver novos caminhos destinadas a reincorporar a produção, distribuição e práticas de consumo de alimentos, por meio de processos de relocalização e inclusão de atributos de qualidade vinculados a aspectos culturais e ambientais – orgânico, local / regional, artesanal, tradicional, colonial, caseiros, da reforma agrária, a exemplo – nos alimentos, dentro do quadro de sistemas agrícolas mais sustentáveis. Além disso, sob o guarda-chuva rotulado de Redes Alimentares Alternativas (RAAs), em inglês Alternative Food Networks (AFNs), que são esquemas organizacionais que conectam produtores e consumidores de alimentos por meio de Circuitos Curtos de Comercialização (CCC), normalmente gerenciados em escala local, com foco na revalorização dos alimentos locais e tradicionais e na produção sustentável (para pessoas e para o meio ambiente).

Ademais, as RAAs colocam em jogo diversos elementos de reconexão entre agricultura, alimentação, saúde, meio ambiente, economias locais e territórios, ao mesmo tempo que fornecem uma oportunidade de reincluir o tecido local rural, construindo uma alternativa ao paradigma produtivista e as suas relações predatórias (BRUNORI, ROSSI & GUIDI, 2012; NIEDERLE & WESZ JR, 2018; DAROL & ROVER, 2021; PICOLOTTO & BREMM, 2016). Desse modo, esses novos arranjos de produção e abastecimento possuem um ponto chave: a eliminação (parcial) de intermediários, ou seja, uma relação horizontal entre produtos e consumidores.

Nesse sentido, tais arranjos também proporcionam, através de um conjunto de elementos territoriais/espaciais e socioculturais, “a proximidade espacial entre produtores e consumidores; a distância relacional e informacional entre ambos, possibilitando conhecer o local, o modo de produção, as tradições e a cultura alimentar por detrás dos alimentos” (DAROLT & ROVER, 2021, p. 27). Isso reflete em uma renovada relação entre produtores e consumidores que assumem diferentes formas de comercialização, como vendas diretas aos consumidores; feiras de produtores (agroecológicas e da agricultura familiar); cestas semanais; lojas especializadas (lojas de produtos coloniais, naturais, orgânicos, artesanais, etc.); vendas institucionais (Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE); e vendas a pequenos mercados, restaurantes ou unidades de processamento mínimas (DAROLT & ROVER, 2021).

Diante disso, esses circuitos curtos de comercialização manifestam-se a partir da interação dos consumidores que compram produtos diretamente do produtor, em que a proximidade e a confiança são relações sociais mediadas que mantêm o consumidor conectado com os valores de quem produziu, respeitando as dimensões culturais, espaciais, sociais e ambientais deste. Ainda, essa prática de venda direta, fundada na renovação de vínculos entre espaços urbanos e rurais, assegura relações mais equitativas entre os participantes, bem como oferece uma oportunidade para os agricultores familiares operarem fora das cadeias globais de valor. Especialmente orientando suas produções para mercados alternativos, além da reprodução do núcleo familiar, em que a força de trabalho dos membros da família no uso dos meios de produção em pequena escala é ligada pelo consumo de alimentos em escala local (DAROLT & ROVER, 2021; MIRANDA et al., 2021; PLOEG, 2008).

5 As agroindústrias familiares de Tupanciretã-RS: da produção com atributos à venda direta

A produção agrícola familiar, responsável por boa parte da produção dos alimentos consumidos no Brasil, tem provado ter um importante papel em reconectar a produção e o consumo de alimentos, especialmente pela agregação de valor à produção agrícola e à transformação destes em produtos e serviços que circulam em nível local. Este quadro é apresentado no município, a partir das características que salvaguardam a satisfação de suas necessidades, que vão além do cunho econômico. As estratégias são postas em práticas pelo potencial de autonomia, que é cada vez mais restrito no sistema convencional de produção e comercialização que os agricultores estão inseridos. Esta saída viável para a produção agrícola familiar é, desse modo, operada de maneiras distintas, sendo baseada na compreensão das transformações que ocorrem em torno do alimento. Com isso, o foco está na produção de alimentos de qualidade e valor agregado, estabelecendo uma mediação e um relacionamento direto com os consumidores, por meio dos circuitos curtos de comercialização.

Este caminho de relações em nível local, se apresenta como um caminho mais formal na entrada de novas forças no sistema agrícola e alimentar local, para os agricultores familiares do município. E, com base em seu envolvimento em formas de comercialização que estão ligadas ao uso de canais de venda direta e vendas institucionais, a reconstrução dessa relação com o território é adotada por pequenos produtores, cujo aporte econômico, por meio de ganhos decorrentes dos produtos diferenciados, permite traçar caminhos alternativos de mercado que não dependem mais exclusivamente do sistema agroalimentar convencional para a existência e reprodução da unidade familiar, como veremos a seguir (PLOEG, 2008; DAROLT & ROVER, 2021).

Primeiramente, cabe ressaltar que existem dois elementos centrais, baseados neste caso: as agroindústrias familiares, que operam em escala de área menor do que a média de seu município (174 hectares); e o processamento de alimentos que, de alguma forma, surgiu como uma alternativa de renda para as famílias que passaram por momentos de limitações dentro do sistema convencional, entendido também como uma possibilidade de reter renda com a agroindústria.

As agroindústrias familiares rurais atuam no processamento de carnes bovinas e suínas, na fabricação de embutidos e derivados de carne, fabricação de pães e derivados, produção avícola de frango colonial, produção de cana-de-açúcar para destilados, rapadura e o melado, processamento de polpa de frutas e tubérculo e mandioca. Em uma iniciativa de expandir o valor agregado dos produtos, possuindo de dez a um ano de atuação, evitando a apropriação de tal valor pelos agentes da cadeia produtiva convencional, a produção artesanal diferenciada pelo emprego de técnicas peculiares utilizadas pela família na produção primária – seja de origem animal ou vegetal, em alimentos finais – é uma estratégia implementada pelos agricultores familiares. Isto é, ao adotar este processo de agroindustrialização, na inclusão de uma produção artesanal e tradicional, configura-se uma alternativa de inserção no mercado, a qual permite que o pequeno estabelecimento agroindustrial rural aborde a produção em um segmento de nicho de mercado. Estas são, desse modo, inovações que orientam as unidades a encontrarem novos espaços de consolidação (GUIMARÃES, 2011; SCHINEIDER et al., 2018).

Diante disso, a representação da vida agrícola apresentada pelo caso de Tupanciretã-RS fornece uma imagem de uma vida que gira em torno da produção de alimentos, que é determinada por escolhas individuais e motivada pelo desejo de viver um certo tipo de vida que repercute na produção. Ao mesmo tempo, a agroindústria familiar também é condicionada pela herança familiar de seus membros. Outra camada que contribui para a realização de uma experiência satisfatória na escolha do trabalho na agroindústria familiar é concretizada no ato da criação, ou seja, é o processo de produzir um alimento que depois é oferecido ao público, para consumo. Sendo assim, dominar o processo artesanal é muitas vezes vivido com orgulho pelos agricultores, assim como proporciona uma sensação de cumprimento. Logo, o feedback positivo dos consumidores que apreciam o produto e mantêm-se comprando é o ponto de referência para a construção das agroindústrias, de modo que, a atividade das agroindústrias parece ser dirigida por uma mistura de desejos e ambições, muitas das quais ocorrem paralelamente as orientações da atividade como negócio.

De maneiras diferentes, é possível, assim, considerar – com base nos entrevistados – que a troca satisfatória, decorrente do contato entre os agricultores e seus clientes, pode ser vista como uma das maneiras de reconexão entre produtores e consumidores, operando por meio de novas formas de abastecimento. Essa tentativa permite, desse modo, restaurar um elo perdido do sistema agroalimentar convencional, em que a produção é deslocada para outros espaços de consumo. Nesse viés, as redes de produção e comercialização alternativas às convencionais promovem uma visão compartilhada, pois suas operações implicam em uma coordenação que é capaz de considerar e valorizar diferentes papéis desempenhados no sistema agroalimentar pelos diferentes atores que o animam. E, além da reconexão entre produção e consumo, com maior autonomia e preços justos para produtores e consumidores, essa troca direta promove a dinamização de mercados locais com identidade territorial (ROVER & DAROLT, 2021).

As experiências das agroindústrias do município comercializando seus produtos por meio de venda direta é, assim, uma realidade e uma estratégia implementada por agricultores familiares. E, mesmo que haja referências, escopos, orientações produtivas e crenças diferentes, o padrão comum resulta da interação entre produção, transformação e comercialização, por meio de relacionamento direto e/ou compras institucionais de alimentos consumidos por pessoas de comunidades próximas. Em outros casos, a criação da agroindústria é uma estratégia de redimensionamento incorporada pelos agricultores familiares.

Desse modo, para os entrevistados, a qualidade orienta sua produção. A qual, em outros lugares, também é vista como elemento que sinaliza a destinação da produção de massa, que contrapõe os mecanismos empreendidos em processos de individualização e fragmentação que, por sua vez, caracteriza o processo produtivo vinculado à alimentação e preservação dos atores das cadeias produtiva globais (NIEDERLE & WESZ JR, 2018; PICOLOTTO & BREMM, 2016). E, para as pequenas agroindústrias familiares localizadas no meio rural do município, por meio da utilização de matéria-prima aliada ao conjunto de outros fatores, como fornecimento por atores locais, tais aspectos são essenciais no processamento de sua produção.

Por outro lado, as políticas públicas são intervenções necessárias para incentivar novas alternativas para os agricultores familiares. No caso das agroindústrias familiares de Tupanciretã-RS, pode-se constatar que os subsídios de programas públicos foram medidas de apoio no ingresso da agroindústria, principalmente por meio de incentivos no primeiro momento. Nesse contexto, é importante destacar que, historicamente, no Brasil, o espaço político e institucional é permeável de pressões e demandas de diferentes atores, a partir dos quais as políticas públicas sustentam a posição de certos atores (categorias) nas arenas públicas (relações de poder, recomposição das coligações e hierarquias), que são sempre jogos suscetíveis às relações de poder. Já no contexto municipal, o mapeamento das políticas públicas sofre com esse efeito sistêmico3.

Além disso, um dos instrumentos da política agrícola que atende as peculiaridades e beneficia a agricultura familiar atua em paralelo aos subsídios detidos pela agricultura de larga escala, para o qual a maior parte do orçamento é alocado, concretiza-se no financiamento de custos e investimento de atividade produtiva de base, exclusivamente na extensão de terras cultivadas. Isso se traduz no fato de que grandes as propriedades retêm a maior parte dos gastos públicos na agricultura, indicando um estilo de intervenção do Estado que alimenta o modelo agroexportador. Enquanto, para os pequenos agricultores familiares que atuam em sistema regionalizado, os subsídios não representam uma medida suficiente de proteção, sendo, assim, limitados por serem significativamente menores do que o primeiro pilar (SENCÉBÉ, PINTON & CAZELLA, 2020; GRISA et al., 2021).

Contudo, isso não muda o fato de que os agricultores familiares tenham contato com o aporte público. Nos espaços institucionais há caminhos para a manutenção de sua presença na paisagem local. Nesse sentido, os entrevistados afirmam que a atenção dada às suas necessidades pelo serviço de extensão rural do município dera-lhes a opção de seguir um caminho diferente. Os agricultores familiares também percebem essa demonstração de interesse em promover as agroindústrias familiares através do poder público local e estadual. Todavia, nem sempre se tinha essa capacidade para compreender as especificidades da produção de alimentos em pequena escala, que operam em circuitos curtos e são inseridos nas dinâmicas territoriais de produção e comercialização. Esta atitude decorre de todo um conjunto de arranjos regulatórios, políticos e relacionais que parecem contrários à agroindústria familiar e sua categoria (SENCÉBÉ, PINTON & CAZELLA, 2020). Assim, a imposição de uma série de obstáculos burocráticos e organizacionais limitam o espaço de manobra no início da atividade.

Sobre isso, sabe-se que esse conjunto de normas emanadas pelo ente público municipal teve proposições concretizadas, de modo que marca e orienta as operações de pequenas agroindústrias. Isto é, esse elemento de sustentação às agroindústrias familiares, além de promover o seu desenvolvimento em um ambiente político/regulatório que impõe requisitos que podem ser realizados apenas por grandes jogadores, faz com que os incentivos, por meio de política municipal e estadual e reconhecimento da categoria pelo ente público, tenham impacto positivo, implicando em um “quadro” adequado de intervenção, expresso por sua organização e por seus objetivos. Lançando, dessa maneira, luz na paisagem, por meio do seu alcance no condensado setor agropecuário do município.

Dentro do repertório que orienta as estratégias reprodutivas dos agricultores familiares, são implementadas práticas que interagem em uma estrutura reticular de relações – cujos nós interagem de forma a reduzir as dependências e aumentar a autonomia.

Essa sinergia é adotada pelos agricultores familiares que buscam maior escoamento comercial para seus produtos, por meio da participação na teia de circuitos curtos, sendo a estratégia comercial das agroindústrias familiares que condiciona essa autonomia. A orientação comercial das agroindústrias familiares de Tupanciretã-RS, são pronunciadas nas oportunidades fornecidas pelos circuitos curtos de comercialização, dentro do contexto que os agricultores estão inseridos. Utilizando um canal de comercialização ou outras combinações que acrescentam à promoção das vendas, como pode-se observar na Figura 1, algumas formas de comercialização que são mais utilizadas pelas famílias:


Figura 1
Formas de comercialização usadas pelas famílias
Fonte: Adaptação de Rover e Darolt, 2021.

Diante disso, é possível interpretar que as agroindústrias mantêm o canal de venda direta associado a outros tipos, eliminando qualquer intermediário que propicia maior autonomia, mantendo foco na produção e comercialização. A base comercial adotada pelas agroindústrias familiares é igualmente diversificada, há um base que vem da venda de produtos na propriedade e outra porção que deriva da venda online (via aplicativo WhatsApp), sendo entregue diretamente na casa do consumidor de forma semanal, bem como há também oferta de seus produtos em feiras agropecuárias e uma parte é obtida com a venda para pequenos varejistas no município e no entorno, além das compras institucionais.

Em muitos casos, ainda, a conexão com os consumidores proporciona uma autonomia que é ameaçada pelo sistema convencional. Assim, as agroindústrias familiares evitam ser absorvidas por situações que possam minar sua autonomia, definindo os circuitos curtos como objetivos alcançáveis para incrementar resilientemente suas atividades econômico/produtivas ao mesmo tempo em que se concentram na proteção do bem-estar de suas famílias, frente às desvantagens dos mercados convencionais ligados à incerteza (MALUF, 2004).

Nesse sentido, destaca-se a criação da Casa Colônia, - pequeno negócio de comercialização de produtos ligados à produção da agricultura familiar, sendo um importante elemento que compreende as estratégias dos proprietários das agroindústrias familiares, visto que a exposição dos produtos nesse lugar foi uma maneira encontrada para redefinir as práticas comerciais e escalonar o escopo dos produtos coloniais das agroindústrias familiares. Além de manter uma base de clientes que apreciam e valorizam os produtos, também se tem o efeito de disseminar o conhecimento sobre o produto na comunidade, atraindo o interesse de um maior número de consumidores e, assim, esse novo arranjo torna-se um instrumento de promoção das agroindústrias familiares do município de Tupanciretã-RS, derivada da apreciação demonstrado pelo público – consumidores da comunidade.

Vender diretamente ao público por meio de circuitos curtos, ou seja, com nenhuma ou pouca intermediação operada por terceiros oferece novas oportunidades para os agricultores. As famílias buscam este caminho alternativo devido aos problemas de liquidez (preços pagos) causados pelos mecanismos de preços (pressão pela queda ou crescimento de demanda), que são uma característica do canal de alimentação convencional. Outro exemplo comum é a comercialização de seus produtos por meio dos pedidos sob encomenda que são entregues pelo proprietário nas residências do comprador, pessoalmente, ainda que possam ser retirados na agroindústria, o que ocorre com pouca frequência.

A comercialização realizada em feiras agropecuárias, embora não tenha sido praticada em virtude das restrições sanitárias, é importante destacar que são mercados onde agricultores familiares expõem seus produtos, junto com outros produtores, em um local destinado à exposição de produtos oriundos da agricultura familiar. Assim, a finalidade do evento gira em torno na exposição de tecnologias para determinado público. Esses mercados são normalmente organizados por administrações públicas em parceria com empresas privadas relacionadas à agricultura, realizados anualmente em diversos municípios. Esta via é, desse modo, uma maneira de entrar em contato direto com os clientes de diferentes contextos e obter o preço premium. Diferentemente das feiras tradicionais, onde os comerciantes possuem suas propriedades localizadas no entorno das cidades, as feiras agropecuárias são realizadas em distâncias mais longas, tornando-se viável devido a quantidade de consumidores potenciais. Diante disso, os agricultores familiares veem esses arranjos comerciais alternativos possíveis, que, além do valor do agregado, adicionam uma camada de significado à sua atividade, pois sentem a recompensa derivada da valorização das pessoas por seus esforços.

Esse processo traz uma série de benefícios para as agroindústrias familiares do município, promovendo os produtos da agricultura familiar. E, além de fortalecer o vínculo entre as agroindústrias e a sociedade, imprime os agricultores em um papel social maior, que é cada vez mais reconhecido por segmentos maiores da população e por suas instituições representativas. Isso atribui a eles o potencial de ser parte ativa do metabolismo agrícola local (MALUF, 2004). Por último, existem, ainda, outras sinergias praticadas com outros canais de venda de alimentos: as operações mediadas pelas instituições públicas, que abrangem uma política pública em torno do acesso dos agricultores familiares aos mercados de aquisição de alimentos públicos. Esse caminho capacita cadeias de abastecimentos locais e regionais e sistemas alimentares (MARQUES & LE MOAL, 2014).

No Brasil, a partir do início da década de 1990, um quadro emergente de políticas voltadas para a agricultura familiar e segurança alimentar culminou com a saída do país do mapa da fome, graças ao Programa Fome Zero, lançado em 2003, com o objetivo de enfrentar o problema da insegurança alimentar e do desenvolvimento rural (SENCÉBÉ, PINTON & CAZELLA, 2020). Nessa mesma linha, teve-se o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), como parte desta ação governamental, que prevê a compra pública de alimentos para formar estoques estratégicos e abastecer famílias em dificuldade, através da agricultura familiar. Mais tarde, em 2009, foi introduzido o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Este programa oferece abastecimento de alimentos para alunos matriculados em escolas públicas, em todos os níveis básicos. O órgão executor desse programa são as secretarias de educação de municípios estaduais, que devem adquirir no mínimo 30% dos alimentos que consomem oriundos de agricultores familiares, remetidos às escolas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) (MARQUES & LE MOAL, 2014).

A participação das agroindústrias neste programa ocorre apenas em nível estadual. Entretanto, nessa modalidade de circuito curto que está associada às questões de soberania alimentar e proteção da agricultura familiar, algumas agroindústrias enfrentam dificuldades em acessar esse sistema, a nível municipal. Apesar das compras públicas de alimentos contribuírem para a geração de renda, produção e abastecimento de alimentos saudáveis, seguros, diversificados e acessíveis, interferindo diretamente na pobreza, fome, saúde e bem-estar da população, para as agroindústrias que procuram essa via – que para alguns é a chave para suas possibilidades de resiliência e dinamismo –, essa tem sido uma dimensão difícil de explorar. Estas limitações advêm de demarcação de faturamento por agricultor familiar e de ordens burocráticas, envolvendo os fornecedores (agricultores familiares) e os entes executores.

Ademais, a existência destas oportunidades de mercados são instrumentos que possibilitaram a consolidação das agroindústrias familiares do município de Tupanciretã-RS no contexto socioprodutivo. Assim, esses relacionamentos em que os municípios podem gerenciar a construção de um sistema alimentar local justo, para além do benefício dos pequenos agricultores e do incentivo, são exemplos de reconexão urbano rural, mantendo a promessa de promover um desenvolvimento rural territorializado. O papel das instituições públicas como promotoras de um processo de reestruturação do sistema alimentar poderia, nesse sentido, ser mais facilmente cedido às agroindústrias familiares na realização de suas atividades promocionais. Servindo, dessa maneira, ao propósito de aumentar a visibilidade da categoria e fazendo com que as vozes dos agricultores familiares sejam ouvidas pela comunidade.

Em termos gerais, a premissa levantada pelo agricultor, no potencial do mundo da agricultura familiar, adotando essa abordagem de RAA, pode definir as bases para a consolidação de um sistema alimentar mais justo e mais forte. Entretanto, a ativação da aliança entre a implantação de um sistema agroalimentar local, por meio do poder de compra das administrações locais, poderia introduzir alimentos locais como requisitos em seus contratos de serviços de alimentação, para fornecer às propriedades públicas (escolas, hospitais e casas de passagem). Isso, por sua vez, reduz as chances de disseminar outras formas de concepção de compromisso que circulam ao longo das linhas de promover uma transformação de base (ROVER & DAROLT, 2021).

Assim sendo, as características intrínsecas dos alimentos, frente às rápidas transformações animadas pelos rótulos locais (sustentável, saudável, orgânico, artesanal, etc.), seriam elementos centrais para a agricultura familiar. Isso relaciona-se com a forma que o alimento é produzido e com a conexão que é estabelecida com os consumidores. Por esse motivo, os alimentos passam a ter um valor que cruza as cifras monetárias. Estas iniciativas de inovação social exercem, desse modo, uma variedade de inovações de base, ou seja, são uma forma de abordar os problemas da produção agrícola, acesso e consumo de alimentos. Isto é, esse tipo de inovação social gira em torno de novas formas de colaboração, formas essas capazes de considerar e valorizar diferentes papéis e possibilidades de revitalização de valores e relações marginalizadas (ROVER & DAROLT, 2021).

Nesse contexto, as estratégias comerciais dos agricultores familiares que agroindustrializam sua produção se conjuga em um conjunto de iniciativas já que geralmente eles escolhem servir uma combinação mista de canais, como aderir a circuitos curtos e/ou compras institucionais entregando diretamente ao cliente e/ou em pontos de acesso aos seus produtos. Eles desenvolvem essas diferentes formas de acordo com as condições, a depender do tipo de produto, localização e de suas orientações estratégias como serviços, que são as Casas Coloniais e Tendas de Produtos Coloniais, onde produtos de outras agroindústrias do município também podem ser encontrados.

Alguns produtores, por exemplo, privilegiam as entregas em pontos centrais (padarias, fruteiras, casas coloniais) em vez de entregas a domicílio, isso porque fazer entregas em diferentes lugares e horários despende esforço logístico, que é necessário para fornecer aos seus vários canais diretos, requerendo uma nova operação para além do processo da atividade. Ademais, as condições de logística e o custo adicional representam umas das principais fraquezas dos agricultores familiares em meu estudo, isso porque, atuando de maneira direta, as vendas envolvem uma multiplicação de operações logísticas que deixaram as operações da agroindústria com falta de pessoas para a entrega do produto.

Diante disso, nota-se uma forma de cooperação entre as famílias agricultoras, que tem por objetivo reduzir os custos, é de extrema importância. Nesse viés, a Associação das Agroindústrias Familiares, criada no primeiro semestre de 2020, do município encontra-se, tendo esse mesmo propósito, visto que a partir dela, esses atores têm um canal e local de vendas em comum. Por exemplo, os produtores planejam viagens de entrega em conjunto. Neste esforço compartilhado, os produtores percebem um sinal positivo porque contribui para reforçar a iniciativa recém estabelecida que, assim, acabará por favorecer todas as agroindústrias e a agricultura familiar. Logo, esse relacionamento solidário com colegas ou invés de concorrer é visto como um sinal positivo para o município que, além de expandir sua identidade no território por meio da expansão da preferência por alimentos das agroindústrias locais, enquadra maior espaço no reconhecimento e peso no apoio institucional.

Por conseguinte, todos os produtores do caso em estudo experimentaram diferentes tipos de canais diretos e, na maioria dos casos, estes mantêm uma multiplicidade de canais de mercado. Com isso, o relacionamento com os clientes é construído em espaços de comercialização, em que a qualidade é um elemento de ancoragem. A venda direta é o instrumento escolhido pelos agricultores, para atender seu público e estabelecer esta reconexão com os alimentos locais

Além disso, em contraste com os modos de comercialização convencionais, a diversificação de mercados alternativos nos circuitos curtos permite novas formas de intercâmbio entre as cidades e o campo de produção e consumo. Nesse sentido, tal diversificação oferece novas oportunidades de defender o sustento dos agricultores familiares, contrapondo-se ao mercado convencional. Ainda, essa alternativa também é voltada para a multiplicação das chances de entrar no radar de apoio. Na verdade, quanto mais ampla a base social que a agricultura familiar pode desfrutar, ou seja, as possibilidades de tecer relações com pares que estão localizados no território – como venda direta para consumidores da cidade e articulação da associação por meio de entidades do município –, mais sua própria identidade se fortalece, assim como as impressões sobre esta. Assim, mais prováveis serão as oportunidades de suporte e, como consequência, as relacionadas à resiliência (PLOEG, 2008).

5 Conclusão

O presente artigo retrata um quadro mais amplo da produção agropecuária do município de Tupanciretã-RS, ao mesmo tempo que demonstrou, com detalhes, a realidade dos agricultores familiares que agroindustrializam sua produção. Desse modo, foi possível fazer uma descrição das pequenas agroindústrias familiares. Este contexto é, ainda, descrito com base no contexto agrícola local, a qual converge com o modelo produzido pelo desenvolvimento do agronegócio, situado na interface produtiva e territorial.

Ademais, pode-se constatar que a concepção da produção primária em um produto final, processado em pequena escala de produção, se dá nesse ambiente predominantemente hostil. Isso se reflete em uma inovação que se desassocia do imperativo modo de produção especializado e intensificado de commodities agrícolas (soja) que promoveu (promove) grandes mudanças a nível territorial – intrínseca, expressiva e social.

Esse novo percurso é criado a partir da independência da cadeia produtiva convencional, onde a transformação perpassa a produção e a comercialização de alimentos em uma dimensão espacial regionalizada. Este novo arranjo é composto, desse modo, combinando estratégias focadas em: (a) agroindustrializar os alimentos utilizando técnicas tradicionais que resultam na produção de um alimento com propriedades como o colonial, caseiro e artesanal, vinculados ao segmento de nicho de mercado; (b) eliminar os diversos elos e mecanismos das cadeias convencionais, privilegiando o relacionamento direto e parcial com os consumidores, trazendo seus produtos para comercializar em novos mercados, através dos circuitos curtos, que lhes permitem extrair maiores agregações de valor.

Portanto, o aspecto fundamental está na produção diferenciada, em que a qualidade caracteriza as iniciativas dos agricultores em oferecerem aos consumidores um produto com atributos idiossincráticos e simbólicos, em que os rótulos estão atrelados à agroindustrialização de um produto condensado pela proteção e respeito às tradições e hábitos. Assim sendo, vendendo em circuitos curtos, seja por meio da venda direta em feiras agropecuárias, casas colônias, compras institucionais, direto na propriedade e entregando a domicílio ou através de canais com intermediação (indiretamente), como casa colônias, padarias e mini mercados locais, as agroindústrias familiares tendem a preferir os canais que garantem um maior grau de autonomia.

Por conseguinte, no abandono das transações e links vinculados às cadeias de valor globais, as famílias buscam alternativas para produzir um produto com um valor agregado em mecanismos operacionais que apoiam o desenvolvimento de uma agricultura diferente da que domina o município. Nesse contexto, as famílias compartilham a estratégia de abordar o consumidor de forma direta, transmitindo e oferecendo-lhe um produto com características relativas aos processos de processamento e sua proveniência local, colocando em jogo elementos de reconexão entre agricultura, alimentação, economias locais e território. Dessa maneira, esta corrente é direcionada para usar recursos relacionados ao processamento de alimentos, os quais são oferecidos na mesa do consumidor com qualidade, por uma família do município, para combater questões locais estruturadas por fatores produtivos desiguais. Principalmente porque a produção agrícola familiar ocupa uma posição peculiar, sendo esmagada pelas forças produtivas locais.

Assim, ao traçar trajetórias de manobra ao modelo produtivista local, a agroindustrialização pela agricultura familiar é caracterizada pelo dinamismo, chave para suas possibilidades de resiliência, devido às características estruturais tradicionalmente associadas aos recursos produtivos, forças de mercado e atores dominantes. Nesse sentido, ao desfrutar de uma relação urbano rural, em que se transmite o conhecimento sobre os alimentos e quem os faz, avança-se nas bases para esculpir uma nova relevância para os agricultores familiares no terreno. Este reconhecimento está, portanto, encontrando seu caminho na esfera pública, envolvendo-se na articulação de stakeholders para obter espaços mais vibrantes.

Material suplementario
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
1 Segundo os dados censitários, mais da metade da frota agrícola está concentrada em estabelecimentos com mais de 100 hectares: 63% de tratores; 59% de semeadoras; 57% dos pulverizadores; e, 73% das automotrizes. Houve um crescimento de 66% da área irrigada em lavouras temporárias, no qual o principal método utilizado é a irrigação por aspersão em pivô central (CENSO AGROPECUÁRIO, 2006 e 2017).
2 A definição decorre do domínio técnico, econômico, de infraestrutura de apoio à produção de insumos, assistência técnica, serviços, máquinas, crédito agrícola e de mercados estabelecidos voltados basicamente para a soja (BALEM & ALVES, 2021).
3 Do montante de crédito contratado (agrícola/pecuária/custeio/investimento) pelo município, respectivamente 3,80%, 3,61%, 3,03%, 3,42%, 3,36%, 3,45%, 2,87% e 3,58%, dos recursos do plano safra em linhas gerais, nos anos 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020 foram contratados pelas categorias da agricultura familiar (Matriz de dados do crédito rural, 2020)

Gráfico 1
Distribuição dos estabelecimentos agropecuários de Tupanciretã-RS, por grupo de atividade econômica e estratificação da área em 2017
Fonte: Censo Agropecuário, IBGE (2017).

Gráfico 2
Evolução da estrutura agrária e uso das terras em Tupanciretã-RS, de acordo com o grupo de área total e a atividade econômica de 1995 à 2017, em números de estabelecimentos
Fonte: Censo Agropecuário, IBGE (1995, 2006 e 2017).

Figura 1
Formas de comercialização usadas pelas famílias
Fonte: Adaptação de Rover e Darolt, 2021.
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