Resumo: As migrações dos indígenas têm recebido atenção crescente de estudiosos de diversos países, tanto por sua intensificação quanto pelos desafios interpretativos trazidos pelo fenômeno. O presente artigo investiga a migração e a mobilidade espacial de um grupo de indígenas Pataxó que vive entre a Região Metropolitana de Belo Horizonte e o sul do Estado da Bahia. As análises foram realizadas com base em uma metodologia qualitativa de pesquisa, a partir de entrevistas feitas com os migrantes. O referencial teórico utilizado no texto destaca as transformações por que vem passando o fenômeno migratório, com criação de espaços híbridos e redes territoriais multilocais de sobrevivência. Esses aspectos são observados entre diversos tipos de migrantes, incluindo indígenas de vários países latinoamericanos. Os resultados da presente análise alinham-se com esses estudos, ao descreverem o processo pelo qual os Pataxó articulam pontos do território em uma rede multilocal, criada através de um processo de migração e mobilidade espacial que cria conexões entre esses locais. O estudo também especifica os elementos dinamizadores dos deslocamentos espaciais que garantem sua perpetuação ao longo do tempo.
Palavras-chave: Migrações, Indígenas, Pataxó, Pesquisa qualitativa, Redes multilocais.
Abstract: Indigenous migrations have received increasing attention from scholars from different countries, both because of their intensification and because of the interpretive challenges brought by the phenomenon. This article investigates the migration and spatial mobility of a group of Pataxó indigenous people who live between the Metropolitan Region of Belo Horizonte and the south of the State of Bahia. The analyzes were carried out based on a qualitative research methodology, based on interviews with the migrants. The theoretical framework used in the text highlights the transformations that the migratory phenomenon has been going through, with the creation of hybrid spaces and multi-local territorial networks of survival. These aspects are observed among different types of migrants, including indigenous people from several Latin American countries. The results of the present analysis are in line with these studies, as they describe the process by which the Pataxó articulate different points of the territory in a multilocal network, created through a process of migration and spatial mobility that has strong connections between these places. The study also highlights the dynamic elements of spatial displacements, which guarantee their perpetuation over time.
Keywords: Migration, Indigenous, Pataxó, Qualitative research, Multi-site networks.
Resumen: Las migraciones indígenas han recibido una atención creciente por parte de académicos de diferentes países, tanto por su intensificación como por los desafíos interpretativos que trae consigo el fenómeno. Este artículo investiga la migración y la movilidad espacial de un grupo de indígenas Pataxó que viven entre la Región Metropolitana de Belo Horizonte y el sur del Estado de Bahía. Los análisis se realizaron con base en una metodología de investigación cualitativa, a partir de entrevistas con los migrantes. El marco teórico utilizado en el texto destaca las transformaciones que ha venido atravesando el fenómeno migratorio, con la creación de espacios híbridos y redes territoriales multilocales de sobrevivencia. Estos aspectos se observan entre diferentes tipos de migrantes, incluidos los indígenas de varios países de América Latina. Los resultados del presente análisis están en línea con estos estudios, ya que describen el proceso por el cual los Pataxó articulan diferentes puntos del territorio en una red multilocal, creada a través de un proceso de migración y movilidad espacial que tiene fuertes conexiones entre estos lugares. El estudio también destaca los elementos dinámicos de los desplazamientos espaciales, que garantizan su perpetuación en el tiempo.
Palabras clave: Migraciones, Indígena, Investigación cualitativa, Pataxó, Redes multisitio.
Migrações contemporâneas: desafios para os territórios e os direitos humanos
Migração e mobilidade espacial em uma rede multilocal: o caso dos Pataxó na RMBH
Migration and spatial mobility in a multisite network: the case of the Pataxó in the RMBH
Migración y movilidad espacial en una red multisitio: el caso de los Pataxó en la RMBH
Recepción: 22 Febrero 2022
Aprobación: 30 Junio 2022
As migrações de indígenas para as cidades recebem atenção crescente de estudiosos de diversos países, o que decorre tanto da intensificação do fenômeno quanto pelos desafios interpretativos que ele nos traz. Sua ocorrência tem sido atribuída ao incremento dos intercâmbios ocorrido entre suas regiões tradicionais de habitação e as áreas urbanas dos países onde vivem, o que se deve tanto ao avanço dos meios de transportes e comunicação como da crescente pressão de “lógicas de mercado e de estado” sobre as populações indígenas.
A produção acadêmica do campo no Brasil tradicionalmente direciona-se para as regiões Norte e Centro-Oeste, onde estão as maiores concentrações de população indígena do País. Recentemente, contudo, começa a surgir uma literatura dedicada à migração de indígenas para outras regiões, como as metrópoles do Sul e Sudeste.
O presente artigo tem como objetivo investigar a migração e a mobilidade espacial de um grupo de indígenas Pataxó que vivem entre a Região Metropolitana de Belo Horizonte e o sul do Estado da Bahia. Isso é feito com base em uma pesquisa de campo cujos resultados foram submetidos a uma metodologia qualitativa análise, validação e representação.
Os resultados mostram que essas migrações colocam desafios significativos para os territórios onde elas ocorrem, ligados tanto à inserção socioeconômica dos migrantes nos locais de destino como à “sobrevivência cultural” dessas populações. Provoca também a necessidade de se repensar as abordagens acadêmicas tradicionalmente utilizadas para estudo das migrações, tanto em termos de instrumentos analíticos como de arcabouços conceituais que possam favorecer o entendimento de um fenômeno com tamanha complexidade.
A multidimensionalidade do objeto migratório e sua imbricação ao contexto histórico espacial em que ocorre tem incitado uma multiplicidade de abordagens teóricas e empíricas para estudo do tema. Tal fato, aliado à crescente fragmentação nos campos disciplinares das ciências sociais, tem gerado asserções queixosas referentes à falta de uma unificação teórica para entendimento do tema (Massey et. al., 1998) e um clamor pela construção de abordagens holísticas do fenômeno (BETTRELL, 2016).
Nesse processo, aspectos variados têm sido considerados como determinantes para a ocorrência da migração. Diferenciais espaciais nos salários e nas condições de emprego, minimização de riscos, diferenciais nas estruturas do mercado de trabalho, exigências das economias industriais e da globalização, entre outros, são exemplos dessa diversidade de perspectivas para explicação das migrações.
Em meio às clivagens acadêmico-disciplinares existente entre os arcabouços teóricos e metodológicos dos estudos da migração, despontam modismos e tendências nas formas de aproximação do tema. As perspectivas mais influentes para o estudo das migrações da segunda metade do século XX, bastante influenciadas pela teoria da modernização, inseriam o fenômeno no interior de uma estrutura bipolar que opunha as áreas de envio e recebimento de migrantes (Lewis, 1954; Ranis e Fei, 1961; Harris e Todaro, 1970; Sjaastad, 1962). No caso das migrações internas essa dualidade ocorria entre áreas urbanas e rurais; no trato das migrações internacionais, entre países pobres e ricos. Dava-se ênfase às decisões econômicas dos agentes em resposta à diferenciais racionalmente percebidos entre os locais de origem e destino dos migrantes. Nessa perspectiva também se incluiam abordagens que, embora com menor ênfase no aspecto econômico, destacam a atração da vida urbana em detrimento dos espaços de vida anteriores do migrante, especialmente entre os homens jovens. Eram as chamadas “teorias das luzes da cidade”, influentes inclusive no estudo das migrações dos indígenas (BETTRELL, 2016).
Em resposta a essas abordagens dualistas, posteriormente surgiram teorias que complexificaram o estudo do fenômeno, como a teoria do mercado de trabalho dual (Piore, 1979) e também a Nova Economia da Migração e Trabalho (Stark, 1984; Lauby and Stark, 1988; Taylor, 1986). Apesar de ainda estar alicerçada sobre diferenciais espaciais, a Nova Economia da Migração e Trabalho propunha uma alteração na escala de análise da migração, passando do indivíduo para a família, assim como concentrava-se em motivos relacionados à minimização de riscos e diversificação de atividades no seio da economia familiar.
As limitações conceituais das perspectivas dualistas e dos modelos de equilíbrio espacial com o qual essas teorias lidavam estimularam o desenvolvimento de estudos que utilizavam de uma perspectiva diversa, inserindo os deslocamentos populacionais em processos agregados de cunho histórico-estrutural (BETTRELL, 2016). O interesse desses pesquisadores voltava-se para o entendimento dos sistemas capitalistas globais (Portes and Walton, 1981; Castells, 1989; Sassen, 1988, 1991) ou da existência de sistemas mundiais (Fawcett, 1989; Zlotnik, 1992), dentro dos quais inseriam suas explicações para a ocorrência da migração.
Paralelamente, parte importante dos estudiosos da migração procurou ir além de abordagens economicistas ou macrossociais para enfatizar a importância de tópicos como cultura, identidade e raça para o entendimento do fenômeno (WRIGHT e ELLIS, 2016). Tais abordagens chamavam a atenção para dimensões contextuais próprias das comunidades de origem dos migrantes, enraizando a migração em repertórios de comportamento local (BETTRELL, 2016).
Umas das maiores guinadas teórico metodológicas ocorridas recentemente no campo de estudos da migração ocorreu por influência da chamada “virada transnacional”, a partir dos trabalhos pioneiros de Glick Shiller, Basch e Blanc-SZanton (1992) e Vertotec (1999). Sua inspiração partiu da constatação de que os migrantes conservavam fortes vínculos com suas regiões de origem, mantendo inclusive um padrão de deslocamento constante com essas áreas mesmo após migrarem. As migrações passam a ser vistas como um processo no interior do qual se desenvolvem relações multifacetadas – familiares, econômicas, sociais, religiosas e políticas – que atravessam fronteiras e conectam os locais de origem e destino.
Essa mudança altera completamente o foco espacial dos estudos da migração, que passam da análise de características fixas de locais isolados para os estudos que dão destaque às ideias de trânsito e fluidez (BETTRELL, 2016). Esse redirecionamento analítico busca também atender interesses mais amplos em termos de teorização, emergentes das teorias pós-modernista e teorias feministas, que buscam pensar o espaço de novas maneiras, embora repousem em aspectos que já apareciam nos estudos sobre redes sociais e migrações (Hugo, 1981; Taylor, 1986; Massey, 1990).
Nessa nova tendência, predominante nos dias atuais, os estudiosos têm sido levados a uma reconceitualização das categorias migratórias, lançando mão de chaves analíticas como “diáspora”, “espaços intermediários” e “formas híbridas” de identidade e cultura (BETTRELL, 2016). Essa perspectiva coloca-se também como alternativa decolonial aos estudos tradicionais da migração, no momento em que busca dar voz aos migrantes na conceitualização de suas experiências.
Embora se coloque como crítico às chamadas “abordagens tradicionais”, esse movimento tem recebido uma contra-crítica, face ao exagero com que alguns de seus adeptos têm aplicado as análises da migração. Tal fato tem sido caracterizado por Mitchell (1997) como a “hype de hibridismo”. A autora afirma que:
talvez o transnacionalismo tenha sido um tema tão sexy nos últimos anos porque incorpora uma qualidade inerentemente transgressora. O transnacionalismo necessita de um cruzamento de fronteiras, tanto literal quanto epistemológica. Como as fronteiras são normalmente associadas às relações de poder – o poder de manter dentro ou fora – o movimento através das fronteiras, sejam elas fronteiras nacionais, fronteiras disciplinares ou fronteiras teóricas, carrega consigo o fascínio febril e o sabor do ilícito. (Op cit. pág. 101)
A crítica central da autora é dos riscos de se trabalhar apenas com abstrações que desconectam completamente os migrantes das realidades em que vivem e que experimentam física e psicologicamente nos territórios por onde circulam. Segundo Mitchell (1997), é preciso trazer de volta as noções de contexto e de enraizamento territorial das práticas migratórias para melhor posicionar o impacto epistemológico do transnacionalismo nesse campo disciplinar.
Estudos recentes sobre as migrações dos indígenas aninham-se no seio dessas transformações, conforme discutimos na seção seguinte.
A intensificação das migrações dos indígenas para as cidades tem sido atribuída ao incremento dos intercâmbios ocorrido entre suas regiões tradicionais de habitação e as áreas urbanas dos países onde vivem. Isso se deve tanto ao avanço dos meios de transportes e comunicação como da crescente pressão de “lógicas de mercado” e “estruturas de Estado” sobre as populações indígenas (Peluso, 2015).
Alinhados com as perspectivas teóricas contemporâneas, voltadas para a temática das diásporas e da formação de espaços híbridos, os estudos latinoamericanos têm destacado a adoção por esses migrantes de um padrão de ocupação espacial “multilocal”, estruturado em torno de circuitos de vida rurais-urbanos (Padoch et. al., 2008), formando “espaços híbridos” de sobrevivência e construção de identidade (Alexiades & Peluso, 2015).
Nesse processo, diversos autores dedicam-se a entender os mecanismos que condicionam a mobilidade espacial dos indígenas, com destaque para os estudos realizados na região andina (Trujano, 2008; Cielo & DURAN, 2012).
A produção acadêmica do Brasil tradicionalmente vincula-se às regiões Norte e Centro-Oeste do país, onde estão as maiores concentrações de população indígena (Fígoli e Fazito, 2009; BRASIL, TEIXEIRA e MAINBOURG, 2009). Recentemente, contudo, começa a surgir uma literatura sobre a migração de indígenas para outras regiões do País, como as metrópoles do Sul e Sudeste (CAMPOS e ESTANISLAU, 2016; CAMPOS e DAMASCENO, 2019; CAMPOS et al. 2019; ESTANISLAU, 2014). Merece destaque o caráter original e muitas vezes inovador no tratamento da questão no Brasil, o que reflete, ao menos em parte, a sofisticação da reflexão antropológica nacional sobre as populações indígenas. Ainda que acompanhem as “ondas” teóricas que avançam sobre os estudos de migração em outros países, destacadas na seção anterior, há particularidades importantes na produção acadêmica nacional sobre o tema.
O trabalho pioneiro de Cardoso de Oliveira (1968) exemplifica a riqueza das abordagens acadêmicas brasileiras sobre a migração indígena. Ao analisar a migração dos índios Terena para as cidades, o autor apresenta uma abordagem com forte paralelismo com a perspectiva de Robert Redfield. Redfield (1953) propõe o uso de um “gradiente folk-urbano” para entender os processos de contato entre populações tradicionais e as sociedades envolventes. Esse arcabouço analítico ancora-se sobre uma estrutura bipolar de análise, que opõe áreas de envio e recebimento de migrantes, contrastando distintamente os modos de vida das áreas rurais e urbanas, tradicionais e modernas. Cardoso de Oliveira (1968), contudo, avança em termos teóricos ao lançar novas possibilidades de entendimento sobre o processo que ultrapassam o modelo de Redfiel. Propõe um arcabouço interpretativo que articula os processos de adaptação e assimilação sem que nenhum deles se sobreponha completamente, através da criação do conceito de “fricção interétnica”.
Do ponto de vista dos estudos antropológicos, como no trabalho de Pacheco de Oliveira (1996), também há uma tentativa de rompimento com abordagens culturalistas ou essencialistas para melhor entendimento da relação entre indígenas e território. Segundo o autor, a ideia de que o índio e seu território mantêm uma relação visceral é, em suas palavras, uma “meia verdade”. Nesse sentido, postula que a migração de indígenas seja analisada sob uma ótica que a coloca em uma condição intermediária entre movimentes gerados tanto por causas econômicas como não-econômicas, muitas delas atuando segundo “cânones inteiramente gramaticais” de algumas culturas indígenas.
Original também é a contribuição de Horta (2017), que foge das perspectivas simplistas que reduzem os indígenas migrantes a uma imagem de pobres, marginalizados pela lógica de Estado que vigora nas áreas urbanas. Ao estudar o trânsito entre o Parque Indígena do Xingu e o município de Canarana (MT), a autora destaca a migração como um “momento criativo” da vida dos indígenas, momento esse que “impulsiona” suas práticas e que, segundo ela, fomentaria a consolidação de uma teoria indígena (autóctone) das transformações por que passam no contexto urbano. Outros estudos também destacam uma “releitura” da cidade feita pelos próprios indígenas a partir de sua migração para as cidades. Nesse processo, indica-se uma espécie de “indigenização” dos espaços urbanos e uma ênfase na complexidade e contradição na narrativa coletiva sobre a migração ou diáspora indígena (ARRUTI, 2019).
Em linha com as transformações recentes dos estudos de migração, esses estudos destacam a transposição e transformação da tradição entre contextos socioespaciais radicalmente diferentes (ARRUTI, 2019). O trabalho de Sertã (2021), por exemplo, é um exemplo de estudos que destacam a circularidade das populações indígenas entre uma rede territorial multilocal, assim como dos processos de construção de identidades entre (in-between) contextos.
Passamos agora a descrever o estudo de caso realizado no presente artigo, na tentativa de articulá-lo às considerações teóricas das seções anteriores.
As reservas dos Pataxó estão localizadas no extremo sul do Estado da Bahia, em seis Terras Indígenas distribuídas por 36 aldeias. Elas situam-se nos municípios de Santa Cruz Cabrália, Porto Seguro, Itamaraju e Prado. No estado de Minas Gerais, os Pataxó vivem nos municípios de Carmésia, Itapecerica, Araçuaí e Açucena, além de se distribuírem por alguns municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Não existem dados precisos de quando se iniciou a chegada de indígenas Pataxó à RMBH. É possível que alguns deles tenham chegaram na região ainda na década de 1980.
O grupo de indígenas que estudamos no presente artigo está envolvido em um processo por eles denominado de “retomada” da terra, que se manifesta na fundação de aldeias indígenas em diversas regiões do País, incluindo o interior de algumas regiões metropolitanas. Na RMBH existem hoje três processos de retomada capitaneados por indígenas Pataxó: as aldeias Naô Xohã e Katurama, no município de São Joaquim de Bicas e a aldeia Kamakã Mongoió em Brumadinho.
Trabalhamos no presente artigo com os indígenas que participaram da fundação da Aldeia Naô Xohã. Esse processo foi realizado por indígenas de etnias diversas, ainda que hoje abrigue grupos Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe, que mantém relações de parentesco entre eles.
Segundo o estudo realizado entre eles por De Campos (2019), o local foi escolhido após um indígena Pataxó Hã-Hã-Hãe tomar conhecimento da existência de um terreno com mata preservada, contíguo a um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no município de São Joaquim de Bicas. A área, que é um fragmento de Mata Atlântica, fica a 53 quilômetros do centro de Belo Horizonte e está na margem esquerda do Rio Paraopeba. A retomada teve início em outubro de 2017, assim que alguns indígenas acamparam no terreno. Daí em diante passaram a se revezar no acampamento para manter presença constante no local, deslocando-se entre a cidade e a aldeia enquanto trabalhavam para estruturar a área e criar as condições de permanência no local. Durante os primeiros meses, poucas famílias conseguiram se manter regularmente na aldeia, devido às condições precárias dos primeiros abrigos, às dificuldades de resistir ao período chuvoso e à falta de água e de alimentos. Para construção das ocas - modo como os moradores denominam suas habitações - foram usados materiais disponíveis na mata, em conjunto com materiais que lhes foram doados.
No presente estudo analisaremos as migrações e outras modalidades de mobilidade espacial realizadas por esse grupo de indígenas, com base em uma pesquisa de campo realizada no local, conforme descrito a seguir.
O presente artigo utilizou uma metodologia qualitativa de pesquisa tanto para a coleta dos dados como para análise dos mesmos. As informações que embasam empiricamente nossas análises foram construídas segundo quatro etapas de pesquisa: entrevistas, transcrição, codificação e validação dos resultados, descritas a seguir:
A primeira etapa, referente as entrevistas com os indígenas, foi realizada na Aldeia Naô Xohã, município de São Joaquim de Bicas, localizado na RMBH, em março de 2019. Foram feitas 10 entrevistas semiestruturadas com 14 indígenas moradores do local (algumas entrevistas foram feitas com dois indígenas simultaneamente). Foram entrevistadas tanto lideranças indígenas quanto demais moradores da Aldeia. Em sua maioria as entrevistas realizaram-se junto às moradias de cada entrevistado. A pesquisa contou com livre consentimento dos entrevistados, através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por cada participante, dando ciência e autorizando o uso científico das informações fornecidas. Todas elas foram gravadas em arquivos digitais que totalizaram, ao final, 6 horas e 42 minutos de gravação. Posteriormente foi feita transcrição textual do material, com foco no conteúdo das respostas dos entrevistados, produzindo então um banco de dados em formato de texto. As transcrições foram feitas com base no conteúdo literal das respostas, não incorporando dados sobre reações ou manifestações não verbais dos entrevistados que possam ter sido captadas pelas gravações. O conteúdo das entrevistas continha os temas trajetória migratória, condições de vida na aldeia Naô Xohã, além de questões sobre planos futuros de moradia.
O material transcrito passou por um tratamento analítico buscando produzir informações sobre migração e mobilidade espacial. Isso foi feito através da seleção de indicadores empíricos presentes nos textos das transcrições, conforme metodologia proposta por Adu (2019). Esses indicadores são os segmentos dos textos (sentenças) cujo significado está associado ao tema de interesse.
Em seguida, os indicadores empíricos foram codificados, em dois ciclos subsequentes.
No primeiro deles foi adotada uma codificação aberta. Essa técnica atribui rótulos textuais aos indicadores empíricos utilizando uma palavra ou frase curta que descreva o significado do assunto abordado (Saldanha, 2009). O conjunto desses códigos primários forneceu um primeiro inventário de tópicos relacionados a migração e mobilidade espacial desse grupo de indígenas. Os códigos criados estiveram sempre relacionados ou fundamentados (grounded) a um ou mais indicadores empíricos extraídos das respostas de ao menos um dos entrevistados. Isso confere mair segurança ao trabalho de codificação, favorecendo a interpretação do material e sua fidelidade à situações empírica vivida pelos indígenas. Esse método permite também recuperar as citações literais a que se referem os códigos, o que ajuda tanto no “refinamento” progressivo dos mesmos, assim como possibilidade resgatar fragmentos de texto para exemplificar os processos descritos.
Ao final do primeiro ciclo de codificação, 67 códigos foram gerados.
O segundo ciclo de codificação condensou os códigos iniciais em um conjunto compacto de categorias, tendo como base a afinidade temática entre os códigos. Isso foi feito a partir de um processo de codificação axial (Charmaz, 2014). Essa técnica consiste em atribuir relações que denotem a existência de padrões entre conjuntos reduzidos de códigos. Formam-se então as categorias analíticas, que são arranjos conceituais relativamente mais abstratos do que os códigos iniciais. Essas categorias, por serem diretamente derivadas desses códigos, não perdem referência ao material coletado, sendo possível resgatar os indicadores empíricos em que se baseiam (Saldaña, 2009; Miles e Huberman, 1994). Ao final do processo, os códigos foram agrupados em 10 categorias, apresentadas na Tabela 1.
O registro das relações existente entre as categorias e os códigos que as compões, assim como de sua relação com as demais categorias e subcategorias criadas favoreceu tanto a sistematização das análises e como a apresentação dos resultados. Durante todo o processo de codificação os dados foram repetidamente representados em diagramas, os quais compunham-se de redes de relações dos códigos e categorias. Além disso, os diagramas propiciaram a apresentação organizada dos resultados, em formato compacto e acessível para interpretação do fenômeno em estudo, conforme a metodologia proposta por Miles, Huberman e Saldana (2014).
A etapa de validação dos resultados foi realizada através de uma etapa de verificação dos resultados, no processo denominado memberschecking (Adu, 2019). Isso envolveu o envio dos resultados da análise a alguns entrevistados, visando captar suas reações aos achados da pesquisa. Foi possível aprimorar a precisão das descobertas, assim como descartar interpretações equivocadas. Essa abordagem é especialmente adequada em análises que envolvem codificação de dados, devido ao caráter interpretativo desse processo, que pode fazer com os códigos, eventualmente, distanciem-se das evidências produzidas no estudo.
A tabela 1 apresenta as categorias criadas no processo de codificação, divididas em duas dimensões. Na primeira delas, encontram-se as referências territoriais que os indígenas indicaram nas entrevistas, referentes aos locais em que nasceram, para onde se mudaram, onde viviam no momento da entrevista e para onde se deslocavam com regularidade para realizar suas atividades cotidianas. Esses locais incluem o conjunto de aldeias localizadas nas Terras Indígenas Pataxó no sul do Estado da Bahia, onde quase todos os entrevistados nasceram e de onde vieram antes de migrar para algum município da RMBH. A segunda referência espacial recorrentemente citada pelos indígenas é o município de Belo Horizonte, destino inicial da imigração, local onde conseguiram locais de moradia e desempenhos de atividades laborais ao chegar à RMBH, assim como onde buscam serviços para atender suas necessidades. Por fim, a Aldeia Naô Xohã, local de realização das entrevistas, foi a referência territorial principal descrita nas entrevistas, para onde os indígenas migraram após um período de residência em Belo Horizonte.
Embora em grande parte das vezes as respostas dos entrevistados fizessem referência fixa a algum desses três locais, do tipo “nasci em tal lugar” ou “moro aqui”, os relatos mostram destacam a intensa e persistente circulação dos indígenas por esses locais. Isso indica que mesmo que tenham se mudado “definitivamente” (migrado) para algum dos pontos, eles na verdade constituem-se como nós numa rede espacial pela qual se deslocam continuamente. Nesse sentido, a migração representaria um reposicionamento em algum ponto de uma rede multilocal de mobilidade espacial.
Os motivos e condicionantes dados pelos indígenas tanto para a ocorrência da migração como para a perpetuação dos deslocamentos na rede, descritos com riqueza de detalhes durante as entrevistas, foram categorizados em sete categorias, agrupada na dimensão “elementos dinamizadores dos deslocamentos espaciais”, apresentada na Tabela 1.
A primeira categoria descrita, pressões populacionais, refere-se às descrições dos entrevistados sobre diferentes tipos de pressões que os motivaram a migrar das aldeias da Bahia para Minas Gerais. A elevada densidade populacional e as dificuldades de garantir a sobrevivência econômica dos indígenas foram os dois principais motivos descritos por eles como motivos da saída das aldeias em busca de outros locais para viver. O principal aspecto relatado pelos indígenas nesse tema foi a intensa concorrência entre aqueles que se dedicam a venda de artesanato para os turistas na região das aldeias Bahia. Conforme relata um entrevistado, ao se depararem com um grupo de turistas na Bahia “todo mundo ia pra poder vender a mesma coisa”, o que fazia que os preços do artesanato fossem pressionados para baixo. Assim, ele completa dizendo que “não tinha um lucro pra manter os familiares”. Essa foi a justificativa dada pelo informante para tentar vender o artesanato em outros lugares. Conforme relata: “muitas famílias da nossa aldeia tomam essa atitude de sair pelo Brasil vendendo artesanato”.
Os fatores apontados por eles para terem vindo para a RMBH estiveram relacionados à presença prévia de parentes residindo na região. Essas referências compuseram a segunda categoria descrita como elementos dinamizador da migração, denominada redes familiares. Essas relações atuaram como elemento direcionador do fluxo migratório tanto dos primeiros entrevistados que chegaram como a vinda subsequente de seus parentes ou familiares. Essa rede atuou a partir do oferecimento de moradia inicial no município de Belo Horizonte assim como no auxílio para conseguir algum trabalho na RMBH. A possibilidade de comercialização de artesanato indígena em pontos de venda já estabelecidos na cidade pelos migrantes pioneiros também atuou, segundo os relatos, como fator atrativo para a migração de alguns indígenas.
Isso ocorreu, conforme os relatos, após um indígena que “adquiriu um ponto na cidade, um ponto para trabalhar” ou quando outro afirmou, narrando um diálogo com um parente que ia “vou ver se arrumo uma vaga pra você aqui”. Outro entrevistado descreve sua chegada à RMBH, assim como a vinda subsequente de sua família:
Eu vou deixar um pouco alojada aqui e vou ver o que eu arrumo para trazer elas”. Aí desfiz de umas coisas de dentro de casa, paguei dois meses de aluguel e vim pra aqui. Comecei a ralar aqui em obra, construção civil, esses trens, aí a situação melhorou e eu falei ‘vou ficar por aqui, cê vai vir com as crianças?’. Ela disse ‘vou’. ‘Eu vou alugar o barracão, vou te dar o dinheiro da passagem, aí cê vem’. Aí ela veio com as crianças.
O estabelecimento na RMBH dependeu, segundo relatam, da possibilidade de realizarem algum tipo de atividade econômica remunerada após a migração. Essas referências foram incorporadas na categoria trabalho. Os indígenas relataram exercer diversos tipos de ocupações na cidade. As principais referências para os homens foram o trabalho na construção civil e nos setores de comércio e serviço. No setor de comércio, relataram ter trabalhado em restaurantes como petisqueiros e, em alguns casos, pizzaiolos. Embora a atividade de pedreiro tenha surgido algumas vezes nos relatos, foi dada maior ênfase ao trabalho como ajudante de pedreiro, assim como ajudante de carpinteiro. Outra atividade a que se referiram, de jardinagem em hotéis da região, também teve como ênfase primária a ocupação de ajudante. Quando relatavam a ocupação das mulheres houve referências aos serviços de faxina. Ao ser perguntado sobre seu trabalho e de sua companheira nos primeiros dias de chegada à RMBH, um informante relatou: “eu comecei a fazer uns bicos, saía de casa cedo, chegava à noite. Ela começou a fazer faxina para ajudar a renda de casa”.
Aliadas às oportunidades que a grande cidade oferece em termos de emprego e renda, as dificuldades e o elevado custo de vida para se manter no interior das áreas urbanas foi um ponto recorrente nas respostas dos entrevistados. Esses aspectos compuseram códigos que estão englobados na categoria custo de vida. Os principais aspectos relacionados à dificuldade de estabelecimento e sobrevivência em Belo Horizonte foram os altos valores dos alugueis, a falta de espaço e as condições inadequadas de moradia, além de alusões a discriminação e violência sofrida pelos indígenas.
Quando a coisa está apertada você não pode perder a oportunidade não, você tem que segurar. Pagar aluguel. Qualquer ganho que vem, que você vai ver que vai ter ganho você tem que manter, porque senão o dono do aluguel não espera não. Ele bate na porta, liga. Se atrasa, xinga.
A dificuldade de pagamento do aluguel, tipo de gasto fixo que é incompatível com a volatilidade dos rendimentos dos indígenas no mercado de trabalho, é um dos importantes condicionantes por eles relatados para a migração para a Aldeia Naô-Xohã, na busca por um local mais condizente com suas aspirações e possibilidades de sobrevivência.
Além disso, a vida junto ao rio, no meio da mata, em um lugar tranquilo, com acesso a recursos naturais e propriedade coletiva da terra são fatores ligados à categoria tranquilidade, referente à vida na Aldeia Naô-Xohã, que também levou alguns indígenas a mudar para o local. As respostas indicam aspectos positivos como o que “a natureza traz de bom pra gente”, e afirmações do tipo: “aqui eu posso botar meu pé no chão, sentir a terra, respirar um ar sem poluição, sem zoada de carro”, que referendam a valorização pelos indígenas do estilo de vida da aldeia.
A falta de estrutura de serviços urbanos na aldeia recém-inaugurada, entretanto, como ausência de energia elétrica, de acesso a equipamentos de saúde e educação, dentre outros, fez com os indígenas seguissem deslocando-se continuamente entre o local e o município de Belo Horizonte, tendo alguns deles inclusive migrado novamente para o município. Esses fatores compõe a categoria estrutura urbana. Relata uma entrevistada: “meu filho tá na cidade estudando, porque se deixasse ele aqui, ele perdia, ia perder o ano de colégio e pra ele era ruim”. Outros também indicam a dificuldade para acessar o serviço de saúde partindo da Aldeia: “a dificuldade hoje maior é o transporte, que tendo o transporte você leva o parente para ir até a UPA, para ir até um posto. A dificuldade maior tá sendo o transporte e a nossa saúde”.
A vida na aldeia se coloca em uma encruzilhada, em uma situação em que há benefícios de redução do custo de vida, maior tranquilidade e segurança e um modo de vida mais condizente com as aspirações dos indígenas, ao mesmo tempo em que há falta da estrutura de serviços que necessitam para sobreviver. O relato abaixo, feito a partir da Aldeia, descreve o processo de forma emblemática:
O que está me incomodando aqui só é a escola dos meninos. A gente que já não teve oportunidade de estudar, né? Não pode ser irresponsável e deixar os filhos sem escola. Mas a não ser. Não tem preocupação de menino está indo em rua, saindo na rua. Eles ficam aí soltos, brincam o dia todo.
Nas dualidades dessa existência processos de atração e repulsão atuam conjuntamente que os mantém em constante movimento entre a rede de localidades que estrutura seu espaço de vida na RMBH.
Por fim, na categoria artesanato podemos apreender aspectos que mantem os indígenas em constante movimento entre as três referências espaciais que emergem das entrevistas. A comercialização do artesanato para não-indígenas, em sua maioria turistas, é a principal atividade econômica dos Pataxó nas aldeias da Bahia, assim como de muitos que vivem em outras cidades do Brasil (Sampaio, 2000; Cunha, 2013). O deslocamento para algumas cidades para a venda de artesanato foi recorrentemente apontado como estratégia de sobrevivência do grupo entrevistado, principalmente para grandes metrópoles nacionais como Brasília, São Paulo e Belo Horizonte. Isso ocorre, segundo eles, devido ao fato de haver um grande número de turistas nesses locais durante todo ano, e não apenas na temporada de verão, como na Bahia. Um exemplo emblemático foi dado por um informante quando disse que antes de vir para a RMBH já estava há um tempo a “viajar vendendo artesanato, divulgando a cultura, fazendo palestra em escola”. Não são poucas, entretanto, as dificuldades que enfrentam para conseguir se estabelecer nesses locais. Suas respostas indicam que algumas vezes são impedidos por fiscais municipais de realizar a comercialização, tendo inclusive sido vítimas de violência física e tendo seus produtos danificados. A resposta de um entrevistado resume o problema, quando ele nos conta como se deu a chegada de um fiscal, parafraseando-0: “ei índio, pode tirar que aqui não é aldeia não. Tira seu artesanato senão eu vou levar”.
Nesse contexto, a fundação da aldeia Naô Xohã surge como uma nova possibilidade de fortalecer a inserção desses grupos de indígenas no processo de venda e confecção de artesanato. Eles reclamaram que vivendo no município de Belo Horizonte estavam impossibilitados de confeccionar o artesanato, sendo que a aldeia seria uma possibilidade deles extraírem material e fabricarem seus produtos por conta própria, como no caso de gamelas, colheres e outros utensílios de madeira. Isso os leva continuamente a visitar as aldeias da Bahia, onde são fabricados os artefatos.
Destaca-se o incômodo com o intenso trânsito entre as aldeias e cidades o faz aspirar por uma vida sedentária, no ambiente da Aldeia: “não quero nem sair daqui de dentro pra ir lá pra Feira Hippie, eu quero vender aqui mesmo. Como vai ser, vai ter público, então não tem pra que eu sair. Eu quero produzir aqui e vender aqui mesmo”.
Feita a descrição isolada de cada um dos elementos dinamizadores dos processos de migração e mobilidade espacial dos Pataxó, é preciso avançar no entendimento de como esses elementos foram apresentados pelos entrevistados em termos de relações entre eles e com a rede de localidades descritas na pesquisa de campo. Isso será feito a partir da análise do diagrama explicativo apresentado na Figura 1, onde estão representadas as relações entre as categorias de análise de nosso estudo.
Segundo os relatos coletados, pressões populacionais atuaram nas aldeias da Bahia, o que motivou o grupo de indígenas a emigrar para outras regiões do país. A rede de contatos familiares estabelecida com indígenas que viviam previamente na RMBH atuou na atração do grupo em estudo para Belo Horizonte, conseguido moradia e trabalho para alguns migrantes. Após terem se estabelecido no local de destino, os migrantes trouxeram seus familiares (normalmente mulheres e filhos) e constituíram domicílios no município.
A inserção dos indígenas no mercado de trabalho deu-se através do desempenho de ocupações informais ou de baixa qualificação, assim coma em atividades relacionadas à venda de artesanato. Essa última atividade manteve-os num deslocamento contínuo entre Belo Horizonte e as aldeias da Bahia no intuito de comprarem os materiais a serem comercializados.
Ao longo de tempo, os indígenas relataram dificuldades para se permanecerem em Belo Horizonte, com elevado custo de vida, necessidade de arcar com aluguéis, assim como condições inadequadas de moradia. Também reclamaram de dificuldades para trabalhar, de sofrerem discriminação e de terem sido expostos à algumas situações de violência no município.
Em 2017 encontraram uma área em um município próximo a BH, onde fundaram a Aldeia Não Xoha, onde passaram a viver em um local que consideraram mais tranquilo e condizendo com seu modo de vida. Contudo, a região não dispõe da estrutura urbana de que necessitam para sobreviver, como serviços de educação e saúde, assim como não proporciona oportunidades de auferir algum tipo de rendimento. Os indígenas então seguem com forte vínculo com o município sede da RMBH, tanto para acessar esses serviço como para o comércio de artesanato. Essa última atividade também os mantém em constante trânsito entre a RMBH e as aldeias de origem na BA.
Todos esses fatores explicam o processo pelo qual os indígena precisaram construir uma rede espacial multilocal para garantir sua sobrevivência, dado que nenhum dos territórios que compõe a rede ofereciam os recursos e características de que precisavam para viver. Os relatos destacam a intensa e persistente circulação dos indígenas por esses locais. Isso indica que mesmo que tenham se mudado “definitivamente” (migrado) para algum dos pontos, a migração representaria um reposicionamento em algum ponto de uma rede multilocal de mobilidade espacial do que um rompimento das relações com os locais de origem da migração.
Uma multiplicidade de fatores atuou, conjuntamente, como elementos dinamizadores desses deslocamentos, dando sentido para as conexões estabelecidas entre os locais pelos quais transitavam. Os indígenas viviam em uma realidade espacialmente dual: quando nas aldeias da Bahia, estavam próximos da família mas sem oportunidade de sobrevivência; quando em Belo Horizonte, tinham oportunidade de auferir alguma renda e utilizar os serviços urbanos mas se incomodavam com os transtornos e o auto custo da vida urbana; na Aldeia Naô Xoha, vivam em um local tranquilo e junto a natureza, mas que os privava dos “benefícios” da cidade.
Ao longo da acelerada urbanização por que vem passando diversas populações indígenas em todo mundo (McSweeney & Jokisch, 2015; Peluso, 2015), os indígenas sofrem pressões de diversas ordens que os levam a criar novas formas de deslocamento e fixação (Cielo & Duran, 2012). Nesse contexto, desponta uma elevada vulnerabilidade socioespacial tanto em seus territórios de origem, como tem sido destacado pelos próprios autores indígenas (Santos, 2018; Souza, 2018), assim como por enormes dificuldades de inserção nas cidades onde vivem ou circulam (Trujano, 2008). Alinhados com as perspectivas analíticas contemporâneas, voltadas para a temática das diásporas e da formação de espaços híbridos, estudos sobre a migração de indígenas realizados em contextos latinoamericano têm destacado a adoção por parte desse migrantes de um padrão de ocupação espacial “multilocal”, estruturado em torno de circuitos rurais-urbanos (Padoch et. al., 2008), formando “espaços híbridos” de sobrevivência e construção de identidade (Alexiades & Peluso, 2015).
Articulados com o momento teórico atual, no presente artigo apresentamos uma análise da migração e da mobilidade espacial de um grupo de indígenas Pataxó na RMBH, que ocorre sobre uma rede espacial multilocal. Foram apresentados elementos dinamizadores desse processo, caracterizados como determinantes das migrações dos indígenas e da perpetuação dos deslocamentos espaciais realizados pelo grupo.
Isso foi feito a partir de uma pesquisa de campo, cujos dados coletados passaram por um rigoroso tratamento metodológico através dos processos de transcrição, codificação, diagramação e validação dos resultados
Acreditamos que as informações produzidas em nossas análises contribuem para o entendimento da complexidade do fenômeno migratório contemporâneo, assim como permitem identificar os desafios encontrados por determinados grupos populacionais para sobreviverem em meio às dificuldades que os diferentes tipos de territórios lhes impõem.