Resumo: O presente trabalho tem como objetivo investigar a islamofobia na França. Partindo do entendimento de islamofobia como "atitudes negativas indiscriminadas ou emoções dirigidas ao Islã ou aos muçulmanos" (BLEICH, 2012), examinou-se o fenômeno através de três elementos: (i) as leis francesas que (indiretamente) restringiram o uso do véu islâmico; (ii) o apoio da opinião pública francesa às referidas legislações; (iii) dados empíricos sobre os atos islamofóbicos. Metodologicamente, empregou-se o estudo do caso francês, e os instrumentos de coleta de dados foram: (i) Revisão bibliográfica da literatura especializada (incluindo surveys e pesquisas de opinião franceses); (ii) Pesquisa documental nas fontes primárias das leis e em documentos oficiais; (iii) Pesquisa de campo na França, que resultou na obtenção de informações e dados empíricos sobre o fenômeno, obtidas junto aos dois principais bancos de dados sobre a islamofobia na França (CCIF e CNCDH). O problema de pesquisa pode ser resumido na questão: “Como se constrói e como evolui a islamofobia na França?” Como principais resultados, constatou-se que a islamofobia na França se desenvolve- a partir de dois eixos interligados: a associação do Islã com a violência terrorista; e a conexão da religião com a opressão feminina, simbolizada pelo uso do véu. A descoberta de correlação entre atos terroristas de grande porte e o aumento da islamofobia, é uma evidência do primeiro eixo. Já a constatação de que as mulheres islâmicas portando o véu representam a grande maioria das vítimas da islamofobia, constitui-se como uma evidência do segundo eixo.
Palavras-chave: Islamofobia, Migrações, Identidades, Minoria muçulmana, França.
Abstract: The present work aims to investigate Islamophobia in France. Starting from the understanding of Islamophobia as "indiscriminate negative attitudes or emotions directed towards Islam or Muslims" (BLEICH, 2012), the phenomenon was examined through three elements: (i) French laws that (indirectly) restricted the use of the Islamic veil; (ii) the support of French public opinion for the aforementioned legislation; (iii) empirical data on Islamophobic acts. Methodologically, the French case study was used, and the data collection instruments were: (i) Bibliographic review of the specialized literature (including French surveys and opinion polls); (ii) Documentary research in the primary sources of laws and in official documents; (iii) Field research in France, which resulted in obtaining information and empirical data on the phenomenon, obtained from the two main databases on Islamophobia in France (CCIF and CNCDH). The research problem can be summarized in the question: “How is Islamophobia construct and how does it evolve in France?” As main results, it was found that Islamophobia in France develops from two interconnected axes: the association of Islam with terrorist violence; the connection of religion with female oppression, symbolized by the use of the veil. The finding of a correlation between large-scale terrorist acts and the rise of Islamophobia is evidence of the first axis. The finding that Islamic women wearing the veil represent the vast majority of victims of Islamophobia constitutes evidence of the second axis.
Keywords: Islamophobia, Migrations, identities, Muslim minority, France.
Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo investigar la islamofobia en Francia. Partiendo de la comprensión de la islamofobia como “actitudes o emociones negativas indiscriminadas dirigidas hacia el Islam o los musulmanes” (BLEICH, 2012), se examinó el fenómeno a través de tres elementos: (i) las leyes francesas que (indirectamente) restringían el uso del velo islámico; (ii) el apoyo de la opinión pública francesa a la referida legislación; (iii) datos empíricos sobre actos islamófobos. Metodológicamente, se utilizó el estudio de caso francés y los instrumentos de recolección de datos fueron: (i) Revisión bibliográfica de la literatura especializada (incluyendo encuestas y encuestas de opinión francesas); (ii) Investigación documental en las fuentes primarias de leyes y en documentos oficiales; (iii) Investigación de campo en Francia, que resultó en la obtención de información y datos empíricos sobre el fenómeno, obtenidos de las dos principales bases de datos sobre islamofobia en Francia (CCIF y CNCDH). El problema de investigación se puede resumir en la pregunta: “¿Cómo se construye la islamofobia y cómo evoluciona en Francia?” Como principales resultados se encontró que la islamofobia en Francia se desarrolla a partir de dos ejes interconectados: la asociación del Islam con la violencia terrorista; la conexión de la religión con la opresión femenina, simbolizada por el uso del velo. El hallazgo de una correlación entre los actos terroristas a gran escala y el aumento de la islamofobia es evidencia del primer eje. El hallazgo de que las mujeres islámicas que llevan velo representan la gran mayoría de las víctimas de la islamofobia constituye una prueba del segundo eje.
Palabras clave: Islamofobia, Migraciones, Identidades, Minoría musulmana, Francia.
Migrações contemporâneas: desafios para os territórios e os direitos humanos
A identidade secular do território francês e as identidades dos migrantes muçulmanos na França: o fenômeno da islamofobia
The secular identity of French territory and the identities of Muslim migrants in France: the phenomenon of islamophobia
La identidad laica del territorio francés y las identidades de los inmigrantes musulmanes en Francia: el fenómeno de la islamofobia
Recepción: 10 Marzo 2022
Aprobación: 30 Junio 2022
A islamofobia pode ser entendida, sinteticamente, como o medo, a hostilidade e práticas discriminatórias contra os muçulmanos e o Islã. Estas ações e percepções negativas contra os islâmicos, encontram-se no centro das atuais discussões acerca da complexa relação e integração entre muçulmanos e Estados hóspedes liberais europeus. Ainda que a islamofobia seja histórica na Europa, remontando ao período das Cruzadas e do Colonialismo, o estudo do fenômeno ingressou no radar acadêmico apenas a partir do final dos anos 1990. A ocorrência do 11 de Setembro, e a conseguinte Guerra ao Terror1, impulsionaram a investigação da islamofobia.
Aliás, a expansão do fenômeno está conectada com a difusão de representações negativas dos islâmicos por parte da elite política, mídia e intelectuais, legitimadas a partir do trauma de ataques terroristas associados ao Islã. Este ponto revela uma das complexidades da islamofobia: ela significa, ao mesmo tempo, discursos e práticas indiscriminados contra os muçulmanos.
Os discursos e práticas islamofóbicas estão presentes tanto no nível governamental quanto no societal. Retoricamente, na instância pública, a islamofobia pode ser notada em declarações, discursos e pronunciamentos de representantes públicos; em âmbito social, ela acontece por meio de manifestações, ataques verbais e atitudes preconceituosas, contra muçulmanos.
Em sua competência prática, a islamofobia empreendida por entes públicos pode ser constatada em legislações que restrinjam ou retirem direitos dos islâmicos, e em comportamentos discriminatórios executados por funcionários públicos diretamente contra membros desta fé. Na sociedade civil, o fenômeno adquire a forma de insultos, agressões físicas, ou ataques contra mesquitas, centros islâmicos ou propriedades de muçulmanos2.
Entre os Estados que, historicamente, possuem um contencioso islamofóbico, destaca- se a França. O país possui a maior comunidade muçulmana da Europa Ocidental, com cerca de 5,72 milhões de indivíduos, representando cerca de 9% de sua população (PEW RESEARCH CENTER, 2017). Os islâmicos estão assentados na França há pelo menos três gerações, boa parte deles vindos das ex-colônias francesas3 (KAYA, 2009). Essas comunidades enfrentam dificuldades em se adaptar a uma sociedade com valores centrais distintos dos seus de origem, acrescidas de uma difícil inserção no mercado de trabalho.
Agregam-se a essa problemática, enraizadas visões orientalistassobre os muçulmanos pela sociedade, herdadas do período colonial francês (SAID, 1979; LOUATI, 2017). A França colonial abarcou também diversos territórios de maioria muçulmana. No período atual (pós-independência dos países do Norte da África e Oriente Médio), Paris, intervém, constantemente, e política e militarmente em suas ex-colônias4 e em outros cenários da região5. Esse comportamento intervencionista, por sua vez, é empregado por grupos extremistas como uma das justificativas para realizar atentados terroristas em solo francês.
A discussão da islamofobia na França se reveste de grande importância, especialmente se levarmos em conta o peso do Estado para a Europa. Em termos demográficos, residem no país entre um quarto e um quinto (22,25%) de toda a população muçulmana da União Europeia6 (PEW RESEARCH CENTER, 2017). Estes indivíduos habitam a maior nação em extensão territorial da União Europeia, e a segunda maior economia do bloco7. Ademais, o tópico da islamofobia, a despeito de sua franca investigação em outros centros internacionais, ainda são, minimamente, estudados no âmbito da academia brasileira. Além do número reduzido de estudos, constata-se a inexistência de pesquisas sobre o fenômeno da islamofobia na França em âmbito brasileiro.
Outrossim, a temática integra os atuais debates sobre os estudos de identidade, migrações, segurança e territórios, dinamizados pela inerente lógica transnacional e multiterritorial das religiões, que contribui para a crescente fluidez das relações entre o âmbito doméstico e o internacional dos Estados. Nesse sentido, a islamofobia constitui um dos grandes desafios para as sociedades europeias. Ao marginalizar os muçulmanos e o Islã, os atos e a retórica islamofóbica atacam não somente os direitos humanos desses indivíduos, como também as bases do próprio Estado democrático de direito e, em um contexto mais amplo, as fundações do ideal liberal europeu.
Dito isso, o presente trabalho8 tem como objetivo central investigar a islamofobia na França. O problema de pesquisa pode ser resumido na questão: “Como se constrói e como evolui a islamofobia na França?”
Para tanto, o artigo está divido em cinco seções, além desta introdução. Inicia-se discorrendo sobre o conceito de islamofobia, fundamental para este trabalho. Após, a metodologia da pesquisa é exposta. Posteriormente, as seções 4 e 5, investigam, respectivamente, a manifestação da islamofobia no poder público francês e seus aspectos gerais e históricos. Em seguida, são apresentadas as principais conclusões do artigo.
O emprego do vocábulo islamofobia para a qualificação da violência discursiva e prática contra os muçulmanos, não apresenta consenso, ainda que seu uso seja difundido entre os especialistas9 (MENDELSKI, 2019). Na França, empregam-se os termos racisme anti- maghrébin10 e racisme anti-arabe, que indica que a problemática é percebida, essencialmente, como uma forma de racismo anti-imigração árabe-magrebina (KAYA, 2016).
Para Bleich (2012), uma das razões pelas quais islamofobia (além da falta de uma definição universal) se enraizou em discursos públicos, políticos e acadêmicos é o desejo de entender a realidade de uma sociedade na qual o Islã e os muçulmanos surgiram com objetos de aversão, medo e hostilidade nas democracias liberais contemporâneas. O autor destaca, ainda, que “atualmente a islamofobia evoluiu de um conceito, fundamentalmente político, para se tornar, cada vez mais, uma categoria analítica” (2012, p. 180, tradução livre).
O presente artigo utiliza-se a conceptualização proposta por Bleich (2012) como ponto de partida para o aprofundamento dessa discussão conceitual. O autor define islamofobia como "atitudes negativas indiscriminadas ou emoções dirigidas ao Islã ou aos muçulmanos" (BLEICH, 2012, p. 1581, tradução livre). Segundo Helbling (2012), a significação de Bleich atua como uma "definição norteadora", principalmente porque enfatiza que a islamofobia não denota críticas racionais. Bleich (2012) destaca ainda que criticar aspectos da doutrina ou práticas islâmicas não é islamofobia, a menos que essa crítica seja inequívoca e os discursos negativos sejam fixos, imutáveis e indiscriminados.
Além disso, a definição proposta está muito próxima da usada pelas duas instituições francesas que atuam como os principais bancos de dados para o estudo da islamofobia por esta trabalho: a Commission nationale consultative des droits de l'homme (CNCDH) e o Collectif Contre l’Islamophobie en France (CCIF). A primeira compreende o fenômeno como “atitude de hostilidade sistemática a muçulmanos ou pessoas percebidas como tal e / ou ao Islã" (2019. p. 24, tradução livre). Já a segunda define o vocábulo como: "todos os atos de discriminação ou violência contra instituições ou indivíduos por causa de seu pertencimento, real ou suposto, ao Islã" (CCIF, ONLINE, tradução livre).
Cabe constatar que a islamofobia, como fenômeno que gera atos de violência e discriminação contra os muçulmanos, representa uma violação aos direitos humanos desses indivíduos (MENDELSKI, 2019). Essa visão é corroborada pelo Conselho da Europa, que afirma que “independentemente se ela toma as formas diárias de racismo e discriminação ou formas mais violentas, a islamofobia é uma violação dos direitos humanos e uma ameaça à coesão social” (2004, p. 6, tradução livre). A União Europeia, por meio de sua Agência para os Direitos Fundamentais (FRA sigla em inglês), também sustenta o ponto, colocando que “o direito ao tratamento igualitário e a não discriminação está associado aos direitos de liberdade de pensamento, consciência e religião” (FRA, 2017, p. 12, tradução livre).
Além disso, a compreensão da islamofobia como restrição aos direitos humanos, igualmente expõe suas relações com o racismo, conforme atesta a conceituação proposta pela Organização para a Cooperação Islâmica: “(...) forma contemporânea de racismo e xenofobia (...) diferentemente do racismo e da xenofobia clássicos, a islamofobia é principalmente baseada na estigmação de uma religião e de seus seguidores” (2011, p. 5, tradução livre).”
Na mesma linha, Kalin (2011) argumenta que a islamofobia se tornou uma forma de racismo por não se ater somente à religião. Por meio dela, incita-se o ódio a um grupo de pessoas, considerando-se, também, tradições culturais e experiências étnicas. Para o autor (2011) o antigo racismo centrado na inferioridade biológica ressurge, com a islamofobia, por meio de um segregacionismo étnico, cultural e religioso. Ademais, entender a islamofobia somente por meio do enquadramento religioso, não somente ignora o tema do racismo, como também permite uma maior legitimação dessas práticas e discursos em sociedades seculares (como a França), onde a crítica à religião é vista como saudável e como um exercício da liberdade de expressão (MONDON e WINTER, 2017).
Igualmente, Garner e Selod (2014) sustentam que a islamofobia é uma forma específica de racismo, em virtude de os atos e retóricas se constituírem não somente de referências à religião, mas também por abrangerem aspectos culturais, como a aparência física (incluindo, mas não se limitando, a vestimenta) (ibidem). Dessa forma, a islamofobia materializa-se na perceptível discriminação e exclusão de indivíduos com base em atributos físicos, um dos eixos do racismo (MENDELSKI, 2019).
Constatado o caráter racista e iliberal da islamofobia (na medida que ela viola os direitos humanos em seu sentido liberal), cabe agora avançar seu aspecto discursivo e ideológico. A ação da islamofobia depende da construção de uma visão essencialista e deturpada do Islã, capaz de posicioná-lo como o “outro”. As representações negativas permitem e legitimam a discriminação dos muçulmanos (MENDELSKI, 2019).
A concepção do Islã como “outro” executa-se por meio de sua contraposição a dois conjuntos de valores europeus: liberalismo-secularismo e Cristianismo. O ponto que une ambas percepções consiste em uma concepção reducionista, monolítica e imutável do Islã como religião. Em outras palavras, será o pensamento orientalista, nos termos apresentados por Said (1979), o elemento que une diferentes perspectivas na direção contrária ao Islã. Ou seja, os argumentos liberais de secularismo e igualdade de gênero, bem como posições iliberais que situam os muçulmanos como inferiores aos cristãos, se aglutinam na visão orientalista de inerente superioridade Ocidental diante dos islâmicos.
Allen (2010) afirma que a islamofobia é uma posição ideológica contemporânea nas sociedades ocidentais que, negativamente, enquadra a religião islâmica e os muçulmanos como o “outro”, como um problema para “nós”, assumindo essa posição ideológica diferentes formas e efeitos. A islamofobia, construída mediante a antítese entre Islã e os valores liberais e seculares europeus, assenta-se na exacerbação de uma incondicional s incompatibilidade do credo muçulmano com tais valores. Segundo Bezirgan (2011), essa visão defende que o Islã é incapaz de aquiescer com os pressupostos europeus de laicidade do espaço público e de progressividade nos temas sociais.
Expostos as principais questões conceituais do trabalho, move-se para as considerações metodológicas.
O estudo da islamofobia na França abarcará o período de 1996 até 2019. Este recorte se justifica por dois motivos. Primeiro, o ano de 1996 marca o início da disponibilização de dados sistemáticos sobre atos de violência e preconceito contra a comunidade magrebina francesa, pela CNCDH. Ainda que seu escopo remeta mais à condição imigratória de um grupo (os magrebinos) do que religiosa (os muçulmanos), esses dados são os pioneiros dentro do contexto da investigação da islamofobia, uma vez que as informações sobre o fenômeno somente começaram a ser expostas em 2003, pela CCIF. Segundo, o período de 1996 até 2019 engloba a promulgação e a entrada em vigor das três legislações examinadas por esse trabalho: lei 2004-228, lei 2010-1192, e as leis municipais do burkini (2016).
Algumas considerações sobre as principais fontes para a análise empírica dos atos islamofóbicos, a CCIF e a CNCDH, são necessárias. A primeira apresenta informações sobre o fenômeno desde 2003, e, de modo anual, desde 2005. A segunda, expõe os números desde 2010. De 1996 até 2010, a CNCDH agrupava as ocorrências visando a comunidade muçulmana no item de racismo anti-magrebino, situado na categoria de racismo e xenofobia
Retornando à CCIF, a entidade em termos operacionais, caracteriza-se como uma ONG engajada no tema: composta por indivíduos muçulmanos, ela não apenas recolhe as informações sobre a islamofobia, mas também dispõe de um sistema de amparo psicológico e jurídico aos cidadãos vítimas de islamofobia, militando contra a islamofobia. Contudo, o trabalho da organização é amplamente estimado internacionalmente, simbolizado pelo reconhecimento da Anistia Internacional e Human Rights Watch (CCIF, ONLINE). Ademais, a CCIF também colabora com outras instituições envolvidas na defesa dos direitos humanos como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e a União Europeia (UE) por meio da Agência de Direitos Fundamentais (CCIF, ONLINE).
Já a CNCDH é uma organização estatal de caráter independente ligada ao primeiro-ministro, composta de integrantes governamentais e de membros da sociedade civil, bem como de especialistas em direitos humanos (CNCDH, ONLINE). Dispõe de um permanente diálogo com diversos setores da sociedade francesa, colaborando inclusive com a CCIF no combate à islamofobia, tendo como função monitorar o respeito aos direitos humanos na França, aconselhando o governo francês na matéria.
No quesito metodológico, CNCDH e CCIF adotam procedimentos distintos a respeito da coleta dos dados referentes à islamofobia e do entendimento acerca dos tipos de ações islamofóbicas. Essa diferença resulta em números divergentes no que tange à totalidade e as modalidades de atos islamofóbicos. A CNCDH contempla, em suas estatísticas, somente os fatos que deram origem a uma reclamação ou intervenção policial, seguidos de um registro pelos agentes de segurança11.
Já a CCIF inclui em seus materiais, além dos dados contabilizados pela polícia, os relatos de vítimas ou de testemunhas que são encaminhados para a organização. As denúncias são verificadas pela CCIF antes de ingressarem nas estatísticas sobre islamofobia (CNCDH, 2014). Para Najib e Hopkins, a opção da CCIF de incluir também as denúncias dos indivíduos feitas à instituição, proporciona um rico banco de dados sobre a temática da islamofobia na França (2020, p. 4).
Outra distinção reside na inclusão pela CCIF do item discriminação como uma categoria específica em seus bancos de dados, ao contrário da CNCDH. A entidade ligada ao governo francês, limita-se a expor os casos de discriminação dentro do amplo escopo envolvendo incidentes discriminatórias transcorridos "por causa de raça, origem, etnia ou religião”. Ademais, a incorporação da esfera discriminação por, somente, uma das duas instituições, ocasiona uma diferença estatística significativa entre os dados expostos pelas duas entidades, visto que tradicionalmente, o item discriminação representa a larga maioria das ocorrências de islamofobia reportada pela CCIF (CNCDH, 2014; CCIF, 2018).
Estipulado o recorte temporal, e as considerações sobre a natureza das fontes, pode-se avançar para a explicação da metodologia da pesquisa. O método principal consiste no estudo de caso da França (1996-2019). Através dessa abordagem, é possível examinar especificamente um objeto de estudo, garantindo um foco determinado. Ademais, essa escolha metodológica, por centrar-se em apenas uma peça investigativa, chancela uma análise mais profunda e detalhada do objeto (YIN, 2005). Assim, empreende-se um estudo de quase um quarto de século ao fenômeno da islamofobia na França, examinando sua ocorrência tanto na sociedade, quanto no poder público.
Delimitado o arcabouço metodológico, pontua-se os instrumentos de coleta de dados para a execução do estudo de caso: (i) Revisão bibliográfica; (ii) Pesquisa documental; (iii) Pesquisa de campo. A primeira explora a literatura teórica referente a islamofobia, direitos humanos, migração, sobre a integração dos muçulmanos na França, sobre secularismo, religião e identidade. Além disso, empregaram-se surveys executados por institutos franceses, de modo a identificar a opinião pública a respeito dos muçulmanos, como o Institut d’études opinion public (IFOP), Ipsos France, Institut national d'études démographiques (INED) e Institut Montaigne.
A pesquisa documental contou com fontes primárias referentes às legislações 2004-228, 2010-1192, e leis sobre o burkini. Igualmente investigaram-se documentos oficiais do governo francês a respeito das leis mencionadas e de temas relacionados aos muçulmanos, disponibilizados pelo Conseil d’Etat, Ministère de l'intérieur français e na Assembleia Nacional e Senado.
A pesquisa de campo ocorreu durante o doutorado sanduíche na Sciences Po (2019-20). O período de estudos em Paris possibilitou que o pesquisador realizasse visitas de trabalho as duas principais entidades que sistematizam as informações sobre a islamofobia na França: CNCDH e CCIF. A estadia na Sciences Po, também permitiu uma nova experiência imersiva: a própria vivência pessoal em um país distante, na condição permanente de estrangeiro (com todas as dificuldades e implicações que esse status pressupõe), ampliou as percepções e os entendimentos do pesquisador a respeito do sentimento de sentir-se estrangeiro.
Feitas essas considerações acerca das fontes, metodologia e coleta de dados, pode-se avançar a respeito de sua investigação em termos quantitativos e qualitativos.
Uma dificuldade a respeito do estudo da minoria muçulmana na França, diz respeito a ausência de estatísticas oficiais sobre religiosidade e etnicidade no país. (MENDELSKI, 2019). Segundo a Pew Research Center (2017), 8.8 % dos franceses pertencem ao credo islâmico. Eles representam cerca de 5,7 milhões de franceses, tornando a França, o Estado europeu com o maior número absoluto de muçulmanos do continente (PEW RESEARCH CENTER, 2017).
A migração massiva de muçulmanos advinda de territórios islâmicos para a França, começou no pós 2ª Guerra Mundial (MENDELSKI, 2019). A maioria dos indivíduos vieram da Argélia, Tunísia e Marrocos (KAYA, 2009). A maior parte dos muçulmanos franceses origina-se dessa onda migratória (INSTITUTE MONTAIGNE, 2016). No final dos anos 1960, trabalhadores da África Sub-Saariana começaram a emigrar em grande número (NIELSEN, 2016). Com isso, as principais origens dos muçulmanos franceses são: Argélia (38 %), Marrocos (25 %), países da África Sub-Saariana (9 %), e Turquia (8 %) (INSTITUTE MONTAIGNE, 2016).
Contudo, historicamente as relações entre migrantes e franceses são tensas. De acordo com Louati (2017), as elites francesas, amparadas na herança colonial, as elites francesas têm manipulado a questão muçulmana por décadas, confinando a comunidade islâmica francesa à posição de estrangeiros dentro de uma nação. Mesmo os muçulmanos de terceira e quarta geração são vistos com desconfiança (LOUATI, 2017). Esta relação problemática, foi potencializada com a ocorrência do 11 de Setembro, a Guerra ao Terror, e a crise de refugiados síria (2014-16) (MENDELSKI, 2018).
Ademais, a integração dos muçulmanos tem sido instrumentalizada no âmbito da luta contra o terrorismo: entre 2015-17, a França foi o país europeu que mais sofreu atentados terroristas, sendo também aquele que apresentou o maior número de mortes por essas ações (MENDELSKI, 2018; EUROPOL, 2016). Também se destaca que no mesmo período, Paris tem sido o país europeu que mais realizou prisões de suspeitos (em grande parte muçulmanos) de praticar atos terroristas (MENDELSKI, 2018; EUROPOL, 2015; 2016; 2017).
Retornando as questões demográficas dos muçulmanos franceses, consta-se que aproximadamente dois-terços são afiliados com uma denominação específica do Islã: 52% são sunitas, 4% são xiitas e cerca de 1% são alevitas (BERTELSMANN FOUNDATION, 2017). Essa classificação, bem como a pluralidade dos locais de origem, atestam a complexidade e diversidade da comunidade muçulmana na França. O Institute Montagne (2016, p. 22), ao investigar as práticas dos muçulmanos franceses, apresenta interessantes conclusões. Ele classifica os fiéis islâmicos da França em três grandes categoriais, de acordo com o grau de religiosidade e a aderência aos valores franceses:
A relação entre nível de aderência aos valores franceses e a fé islâmica, conforme expostos acima, representa um dos elementos mais importantes no processo integrativo do grupo na França. Sarter (2012) destaca a problemática visão da integração como assimilação aos valores franceses, defendida por boa parte da classe política francesa e pela opinião pública. Nessa concepção, a integração representa a plena adoção do modo de vida percebido como especificamente francês, resultando no abandono da maioria das práticas culturais e religiosas do Islã. Estas vinculações religiosas ao Islã, são, sobretudo, associadas (devido a sua distinção e visibilidade), ao uso do véu islâmico12 por muçulmanas.
Dessa forma, no nível estatal, a regulamentação do véu islâmico constitui a principal fonte de tensão entre o Estado francês e sua minoria muçulmana. Segundo Kastoryano (2002), o caso do véu na França tem situado o Islã no centro das negociações identitárias, desafiando a relação entre Estado e religião. Nesse debate, o secularismo francês, tradicionalmente construído em oposição a religião em geral, está sendo reestruturado hoje contra o Islã em particular (ROY, 2005).
Kastoryano afirma que o véu se tornou vinculado a uma balança de poder entre as percepções francesas sobre a identidade nacional (com foco no princípio de laïcité) e a identidade das últimas ondas de imigrantes (baseada no Islã) (2004, p. 1239). A visibilidade da religião islâmica na França fortemente secularizada, tem contribuído para o que Roy (2005) qualifica como crise da identidade nacional francesa. Nesse contexto, o Islã surge não como causa do problema, mas como o espelho em que a sociedade se vê, projetando no “outro”, os elementos identitários que reprova (ROY, 2005).
Dito isso, a presente seção examina a ocorrência da islamofobia em três políticas públicas francesas: a lei 2004-228, lei 2010-1192, e leis municipais sobre o burkini (2016). Essas medidas impactaram diretamente na comunidade muçulmana, por meio da proibição do uso público de determinadas vestimentas (hijab, véu integral e burkini), e da restrição de certas liberdades individuais no contexto do estado de emergência. A investigação concentra-se no: (i) texto legal das legislações, (ii) apoio da opinião pública francesa e muçulmana às medidas.
Argumenta-se que as políticas públicas em questão afetaram de maneira desproporcional as liberdades fundamentais dos muçulmanos franceses. Ainda que os textos legais se apresentem neutros e não especifiquem os islâmicos, se observa empiricamente e a nível discursivo, que essa comunidade foi o alvo principal das medidas. O enfraquecimento da democracia francesa, em virtude da deterioração das liberdades individuais da minoria muçulmana, conforme indicado pela Freedom House (2016; 2017; 2018; 2019; 2020) e pelo The Economist Democracy Index (2016; 2017; 2018; 2019) é um importante reflexo do impacto dessas legislações.
No final dos anos 1980, a discussão e a promulgação de leis regulamentadoras da religião em espaços públicos tornaram-se um assunto em ascensão. O tópico ganhou impulso com o chamado caso do véu em 1989, quando três garotas adolescentes chegaram em suas escolas públicas vestindo o véu islâmico (KASTORYANO, 2004, p. 1238). O tema gerou debates em todos os níveis da sociedade francesa, tornando-se conectado com as matérias da imigração e da integração, e permanecendo até a atualidade como grande fonte de tensão (KASTORYANO, 2003, p. 284).
Parte dos franceses percebe o uso do véu como um símbolo da falta de integração social dos imigrantes muçulmanos e de sua recusa em adotar os valores seculares do país (ASAD, 2006). Esta percepção negativa é constatada por surveyse pesquisas de opinião. Em 2009, a Gallup identificou que consideráveis parcelas da sociedade francesa associavam o uso do véu com o fanatismo (46%), a opressão (53%), e subjugação das mulheres (52%). Em outro estudo, a Gallup (2011) conclui que mais de um terço dos franceses (39%) concordam com afirmação de que mulheres usando o véu são ameaças à cultura europeia.
O nível de desconfiança em relação ao adorno e ao seu simbolismo mantém-se na contemporaneidade. Em julho de 2019, o IFOP identificou que 47% dos entrevistados franceses sentiam-se pessoalmente incomodados vendo uma mulher na rua usando o véu islâmico (IFOP, 2019a). Zempi e Chakraborti (2014, p. 24) explicam que a estereotipação e a demonização do Islã, por meio de sua íntima conexão com o terrorismo, fundamentalismo e opressão de gênero, fornecem um terreno fértil para expressões públicas da islamofobia, como abuso verbal, ameaças e intimidação, assédio, agressão física e violência, danos à propriedade e discursos de ódio.
No âmbito público, em março de 2004, foi promulgada à lei 2004-228 que afirma que “nas escolas públicas primárias e secundárias, o uso de sinais ou uniformes pelos quais os alunos, ostensivamente, manifestem uma afiliação religiosa é proibido” (LOI 2004-228, tradução livre). Na ocorrência desse fato, a legislação estipula que as instituições de ensino deverão implementar um procedimento disciplinar contra o estudante (LOI 2004-228).
A matéria gerou controvérsia e foi criticada por acadêmicos franceses (GEISSER, 2010; LOCHAK, 2004; ROY, 2004; TÉVANIAN, 2005), internacionais, (ASAD, 2006; FEKETE, 2009; JOPPKE, 2007a; LACORNE, 2019; LOUATI, 2017; LETTINGA e SAHARSO, 2014), ONG’s (CCIF, 2005; 2015), ONGI’s (HUMAN RIGHTS WATCH, 2004, ANISTIA INTERNACIONAL, 2012) e órgãos da ONU (COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS, 2006; 2015, COMISSÃO DE ESPECIALISTAS EM ASSUNTOS DE MINORIAS, 2008 e COMISSÃO PARA OS DIREITOS DA CRIANÇA, 2004). O ponto central levantado pelos críticos reside no efeito discriminatório da legislação às estudantes muçulmanas que usam o véu. Como consequência, eles entendem que as alunas são privadas de sua liberdade de expressão religiosa e passíveis de sofrerem marginalização do ambiente escolar.
Empiricamente, nota-se que embora verse sobre todos os credos, a legislação atingiu sobretudo as estudantes muçulmanas que usavam o hijab (MENDELSKI, 2018). No primeiro ano após a promulgação da lei, relataram-se 639 ocorrências de uso de símbolos religiosos nas escolas públicas francesas. No total, 97,96% (626 dos casos) envolveram o uso do véu, 1,72% (11 casos) o turbante Sikh, e 0,31% (2 casos) o uso de crucifixos (RAPPORT HANIFA CHÉRIFI, 2005). O impacto nos estudantes judeus não foi significativo em virtude da grande maioria daqueles que usam símbolos religiosos estarem matriculados em escolas judaicas privadas (ANISTIA INTERNACIONAL, 2012). Também chama a atenção que apenas uma única avaliação oficial quantitativa do impacto da legislação foi realizada pelo governo francês (ANISTIA INTERNACIONAL, 2012).
A CCIF (2009) alerta que a legislação fomentou também, indiretamente, dois tipos de discriminações. Primeiro, uma interpretação excessiva da lei tem justificado inúmeros casos de segregações por agentes públicos ou privados. Em nível público, muitas escolas têm recusado o acompanhamento de mães que usam o véu em viagens escolares citando a lei como justificativa (CCIF, 2013). Também na esfera pública, a discriminação contra os muçulmanos é operacionalizada por funcionários estatais que, frequentemente, se referem a leis ou regulamentos conectados ao princípio de secularismo para sustentar a sua abordagem (CCIF, 2013).
Zempi e Chakraborti (2014, p. 9-10) acrescentam que o véu é visto estereotipicamente como um símbolo da opressão das mulheres contra as quais o Ocidente se orgulha de ser emancipador. Essa abordagem está estruturada de acordo com os contornos do raciocínio colonial: a suposição é que as mulheres no Islã são incapazes de autodeterminação e autonomia. Visto sob essa luz, um corpo velado é, necessariamente, um corpo vitimizado, na medida em que as mulheres muçulmanas com véu são incapazes de autonomia ou agência (ZEMPI e CHAKRABORTI, 2014, p. 10). Esta lógica patriarcal e colonial, também é observável na lei 2010-1192, que indiretamente, baniu o uso do véu islâmico completo em público.
Em junho de 2009, por iniciativa da Assembleia Nacional, foi designada uma comissão parlamentar para investigar o uso do véu facial completo (burca e niqab) no território francês (JOPPKE, 2013). O grupo de trabalho, foi apoiado pelo então Presidente francês, Nicholas Sarkozy, e após cinco meses de investigação, concluiu que o véu completo é totalmente contrária aos valores republicanos franceses, e que deve ser combatida (MISSION D’INFORMATION SUR LA PRATIQUE DU PORT DU VOILE INTEGRAL SUR LA TERRITOIRE NATIONAL, 2009).
O documento embasou as discussões parlamentares ocorridas nos subsequentes meses, culminando com a promulgação da lei 2010-1192 pelo então presidente Sarkozy em 11 de outubro de 2010. A medida contou com largo apoio popular. No ano de sua proclamação, um survey da IPSOS/Le Point, constatou que 74% dos respondentes mostravam-se favoráveis à uma lei anti-burca (IPSOS/LE POINT, 2010). Em 2019, quase uma década após a sua publicação, o percentual de franceses que apoiava a restrição governamental ao véu integral subiu para 89% (IFOP, 2019b).
Contendo sete artigos, a legislação afirma em seu primeiro artigo que “em qualquer espaço público, ninguém deve usar roupas destinadas a ocultar o rosto” (LOI 2010-1192, p. 1, tradução livre). O texto em seu segundo artigo exime indivíduos que cubram o rosto por razões de saúde, motivos profissionais, prática de esportes, festividades ou eventos artísticos. A não obediência da lei será considerada um delito de segunda categoria, punível com multa (LOI 2010-1192). Uma circular do governo francês emitida a posteriori, explicou que a face poderia ser coberta apenas dentro de carros privados, residências ou locais de culto, mas não em locais privados abertos ao público (parques, praias, hospitais, bibliotecas, museus, estádios, lojas, restaurantes e cinemas) (CIRCULAR LOI 2010-1192, 31 de maio de 2011, tradução livre).
A matéria recebeu diversas críticas de especialistas, entidades e organizações internacionais, que destacaram a restrição as liberdades de expressão e de crença das mulheres muçulmanas que usam o adorno. De acordo com a Human Rights Watch (2014), a lei 2010- 1192 possui um impacto desproporcional sobre as mulheres islâmicas, violando o seu direito de não serem discriminadas com base na religião e no gênero. O banimento do véu completo ocasionado pela lei interfere no direito das mulheres de expressarem a sua religião e crença livremente no exercício de sua autonomia pessoal (MENDELSKI, 2018). Além disso, a legislação pouco contribui para proteger as mulheres que são obrigadas a usar o véu completo por sua família e/ou comunidade (HUMAN RIGHTS WATCH, 2014). Similarmente, a Anistia Internacional “acredita que proibições gerais sobre o véu integral violam os direitos de liberdade de religião e expressão daquelas mulheres que escolhem usar a vestimenta como uma expressão de suas identidades ou crenças religiosas, culturais ou pessoais” (2012, p. 93, tradução livre).
Em âmbito prático, os dados disponíveis a respeito da implementação da lei, demonstram que a medida impactou diretamente nos muçulmanos. Desde o início de sua aplicação até 30 de abril de 2013, o Estado francês realizou 705 verificações, incluindo 423 em mulheres com véu. Algumas cidadãs foram verificadas várias vezes (OBSERVATOIRE DE LA LAÏCITÉ, 2014, p. 91).
O estudo After the Ban: The Experiences of 35 Women of the Full-Face Veil in France da Open Society Foundation (2013) apresenta interessantes apontamentos acerca dos efeitos da lei 2010-1192 na vida de 35 mulheres francesas que usam o véu completo. Todas as entrevistadas relataram que a lei teve significativos efeitos negativos em suas vidas e que a legislação não as empoderou, nem as libertou. No escopo do estudo, 70% das mulheres inquiridas continuaram a usar a vestimenta. Entre aquelas que deixaram de usar a roupa, nenhuma delas enquadrou a sua decisão em termos de uma ação libertadora positiva (OPEN SOCIETY FOUNDATION, 2013).
Zempi e Chakraborti (2014) afirmam que a lei 2010- 1192 estigmatiza as mulheres muçulmanas veladas como “criminosas”, potencialmente, justificando atos de violência contra elas quando são vistas em público. Nesse sentido, a proibição “aumenta o senso de vulnerabilidade das mulheres muçulmanas vestidas de niqab na esfera pública. Mesmo que não incite explicitamente a violência motivada pelo ódio, a lei em sua aplicação, contribui para um clima de intolerância e para a crescente tensão entre o Islã e o Ocidente” (ZEMPI e CHAKRABORTI, 2014, p. 21, tradução livre).
Empiricamente, constata-se que as mulheres são historicamente as principais vítimas de ações islamofóbicas na França, conforme demonstra o gráfico 1:
Entre as mulheres, a maioria das vítimas de atos islamofóbicos portava o hijabou no niqab no momento da agressão (CCIF, 2016). Mais do que, tão somente, um adorno religioso, o véu é entendido e, constantemente, construído como um símbolo da alteridade muçulmana, reforçando a visibilidade da religião (ZEMPI e CHAKRABORTI, 2014). Em 2009, dentre os ataques a indivíduos (agressões e ameaças/ataques verbais) mapeados pelas CCIF, 99% das mulheres agredidas portavam o hijab ou o niqab. Em 2015, 80% das mulheres que sofreram agressões físicas de caráter islamofóbico portavam algum tipo de véu (CCIF, 2009; 2016). A hostilidade ao véu islâmico também ganhou impulso, a partir de 2016, com as leis de alguns municípios franceses que proibiram o uso do traje de banho islâmico, o burkini, em suas praias.
Antes de analisar as leis do burkini é necessário retomar o contexto francês do período. Entre o início de 2015 e o meio de 2016, a França foi abalada por uma sequência de grandes ataques terroristas (MENDELSKI, 2020). Em 7 de janeiro de 2015, dois homens portando rifles e outras armas, invadiram o escritório do jornal satírico Charlie Hebdo em Paris e assassinaram 12 pessoas (EUROPOL, 2016). Dois dias depois, um cúmplice dos terroristas, assassina 4 indivíduos em uma mercearia judaica na capital francesa. Um dia antes, o extremista havia assassinado uma guarda municipal (LE FIGARO, 2015). O grupo Al-Qaeda na Península Arábica assumiu o assalto ao Charlie Hebdo, declarando que se tratava de uma vingança pelos cartoons satíricos do periódico sobre o profeta Muhammad (AL JAZEERA, 2015). O DAESH por sua vez, reivindicou a autoria dos atentados de 8 e 9 de janeiro (LE FIGARO, 2015).
Posteriormente, em 13 de novembro, uma série de ataques coordenados em Paris, incluindo tiros, explosões suicidas em cafés, restaurantes, uma casa de show e outros locais públicos, resultaram em 130 mortos e 494 feridos (EUROPOL 2016). A ação representou o pior episódio de violência na França desde a 2ª Guerra Mundial (CASTILLO et al, 2015). A organização DAESH assumiu a autoria das agressões, culpando a “guerra contra o Islã na França” e os bombardeios do país contra os territórios controlados pelo grupo no Oriente Médio (SHARMA, 2015, p. 1). Imediatamente após os incidentes, o Presidente francês François Hollande declarou o estado de emergência (MENDELSKI, 2020).
Oito meses depois, durante as celebrações do Dia da Bastilha (14 de julho), um homem pilotando um caminhão lança-o em direção a uma multidão na cidade de Nice, matando 85 pessoas e ferindo 201. O crime foi reivindicado pelo DAESH (EUROPOL, 2017). A insegurança causada por mais esse evento terrorista, foi usada pelos líderes franceses como justificativa para a manutenção do estado de emergência. O período de excepcionalidade jurídica foi estendido seis vezes até outubro de 2017, quando fora substituído pela nova lei antiterrorista (FOLHA DE SÃO PAULO, 2017; MENDELSKI, 2020).
Foi então, no cenário de grande instabilidade e desconfiança para com os muçulmanos, devido as ações terroristas, que se inserem as leis contra o burkini. A polêmica envolvendo a vestimenta surge e ganha projeção nacional com a proibição do uso de roupas religiosas na praia na cidade de Cannes, por meio de um decreto municipal de 28 de julho de 2016, menos de duas semanas dos ataques terroristas ocorridos na cidade vizinha de Nice (LE MONDE, 2016a). A medida foi seguida por outras 30 cidades francesas13 (LE FIGARO, 2016).
Abaixo segue a transcrição dos principais pontos referente ao decreto de Cannes:
Os trajes de praia que manifestam uma afiliação religiosa, enquanto a França e os locais de culto religioso são atualmente alvos de ataques terroristas, provavelmente criarão riscos de distúrbios na ordem pública (brigas, aglomerações, etc) os quais são necessários evitar.
É proibido o acesso as praias e à natação desde a assinatura desse decreto até 31 de agosto de 2016, a qualquer pessoa que não esteja vestindo os trajes corretos, respeitando a moral e o secularismo, respeitando as regras de higiene e segurança do banho adaptadas ao domínio marítimo público.
Também é proibido o uso de roupas durante a natação com conotação contrária a esses princípios (...) qualquer ofensa será objeto de denúncia e será punida com multa de primeira categoria, ou seja, 38 euros (LE MONDE, 2016b, p. 1, tradução livre).
Analogamente à lei 2004-228 e 2010-1192, o decreto de Cannes e das demais cidades, não especificam a vestimenta religiosa muçulmana que na prática irá restringir. Os outros decretos sobre o burkinitambém se justificam na necessidade de proteger a ordem pública, a higiene ou as leis francesas sobre o secularismo (THE GUARDIAN, 2016, p. 1).
Similarmente a outras legislações investigadas nesse trabalho, observa-se nas falas dos líderes políticos envolvidos na elaboração da lei, o seu direcionamento aos adornos islâmicos. De acordo com o diretor geral dos serviços da cidade de Cannes, Thierry Migoule, após a emissão do decreto, nenhum burkini foi visto nas praias de Cannes (LE MONDE, 2016b). Migoule revela ainda que é necessário proibir “roupas ostensivas que se refiram à lealdade a movimentos terroristas que fazem guerra contra nós" (LE MONDE, 2016b, p. 1, tradução livre). Ademais, o próprio prefeito de Cannes, Davis Lisnard, afirmou que “nós não proibimos o véu, nem o kipá, nem as cruzes, eu simplesmente proibi um uniforme que é o símbolo do extremismo islâmico” (LE MONDE, 2016b, p. 1, tradução livre, grifos nossos).
Conforme sustentam Migoule e Lisnard, a representação do burkini como símbolo do extremismo islâmico e sua direta associação com o terrorismo contribuem para o sentimento de estigmação da comunidade muçulmana francesa. Também colaboram para a manutenção da percepção negativa da maioria da população francesa diante os muçulmanos. Outrossim, “os discursos podem ajudar a sustentar e reproduzir o status quo, quanto também transformá-lo” (FAIRCLOUGH e WODAK, 1997, p. 258, tradução livre).
Similarmente, às leis 2004-228 e 2010-1192, a proibição do burkini contou com grande apoio popular: em 2016, 64% dos franceses eram contrários a vestimenta; em 2017, 77%; e em 2018, 78% posicionavam-se contrariamente (IFOP, 2016; 2019c) e IPSOS (2017).
A parte do largo apoio popular, os decretos municipais anti-burkiniforam fortemente criticados por acadêmicos, instituições da sociedade civil, ONGIs e organismos multilaterais. Na visão dos críticos os decretos atacam as liberdades de expressão e de religião das muçulmanas que usam o burkini e também fomentam uma perigosa associação entre terrorismo e a vestimenta, contribuindo para as tensões sociais e a discriminação dos muçulmanos franceses. Segundo a Anistia Internacional, os banimentos ao burkini são “um ataque às liberdades de expressão e religião das mulheres, bem como ao direito à não discriminação” (2016, p. 1, tradução livre). A Human Rights Watch, por meio de sua diretora, Bénédicte Jeannerod, possui um entendimento semelhante: “a proibição do burkini estigmatiza mulheres praticantes do Islã, excluindo-as dos espaços públicos, e privando-as de seus direitos à autonomia, a atividades de lazer, a vestir o que escolherem e, é claro, a praticar sua fé” (HUMAN RIGHTS WATCH, 2016, p. 1, tradução livre).
Em âmbito prático, constatou-se que as proibições ao burkinicontribuíram para a marginalização das mulheres muçulmanas que usam a vestimenta, além de fomentar a tensão entre muçulmanos e não muçulmanos. Para Almeida, “ao proibir roupas no estilo burkini, os decretos municipais emitidos no verão de 2016 contribuíram para fortalecer as barreiras discursivas entre ser muçulmano e ser cidadão pleno de uma República secular (2018, p. 31, tradução livre). O distanciamento entre as diferentes religiões na França também é destacado pela Anistia Internacional (2016), que afirma que a proibição ao burkinié ao mesmo tempo fomentadora e fomentada por preconceitos e intolerância.
Discutido as relações entre as legislações francesas e a islamofobia, avança-se para a investigação dos dados empíricos sobre o fenômeno no país europeu.
Discute-se, nessa seção, a evolução do número de atos islamofóbicos e do racismo anti-magrebino ao longo dos anos, destacando os momentos de significativos de aumentos em suas incidências, e relacionando o fenômeno com os principais eventos associados aos muçulmanos e ao Islã. O gráfico 2, abaixo, ilustra esses pontos
A respeito do desenvolvimento temporal das ocorrências, destacam-se dois pontos. Primeiro, observa-se que a oscilação dos números referentes ao racismo anti-magrebino é maior do que os incidentes islamofóbicos. Estas alterações podem estar relacionadas tanto com o maior escopo da categoria (abarcando episódios caracterizados também por uma xenofobia a imigrantes magrebinos), quanto pelo impacto de importantes eventos, como os sangrentos ataques terroristas do 11 de Setembro e de Madri e entrada em vigor da lei 2004-228. O segundo ponto refere-se a diferença entre os dados da CCIF e CNCDH: a adoção de metodologias distintas na coleta das ocorrências islamofóbicas, altera significativamente as ocorrências da CCIF. De acordo com a própria CNCDH, a principal diferença entre os dados das duas instituições reside no emprego da categoria discriminação(CNCDH, 2015, p. 418).
Retomando as considerações no início dessa subseção, é salutar refletir sobre as relações entre os ápices de violência anti-magrebina e o terrorismo de larga escala. O gráfico mostra que dos quatro picos de violência contra os magrebinos franceses, três coincidem com ocorrência de ataques terroristas de grande alcance: o 11 de Setembro nos EUA (cerca de três mil mortes), o atentado em Madrid em 2004 (cerca de 193 mortos) e o ataque em Londres em 2005 (cerca de 56 mortos) (EUROPOL, 2007). Entre os anos de 2000 e 2002 o número de ações contra magrebinos triplicaram, enquanto durante os anos de 2003 e 2004, os episódios aumentaram 261%.
Visto que os assaltos terroristas não se sucederam em solo francês, o que explica esse aumento expressivo da violência contra os magrebinos? Para Najib e Hopkins, a islamofobia intensificou-se desde o 11 de Setembro e a Guerra ao Terror, sobretudo devido a frequente associação do Islã com o terrorismo efetuada por parte da mídia e dos políticos (2020, p. 2). Desde esse período, o imaginário orientalista sobre o Islã, tradicionalmente, marcado por representações negativas associadas à opressão das mulheres e ao passado colonial, agregou também a identidade terrorista.
Wolfreys (2018) sustenta que desde o 11 de Setembro o discurso islamofóbico francês mesclou elementos externos securitários da Guerra ao Terror com debates internos identitários sobre o véu (presenciados desde os anos 1990). Com isso, a representação dos muçulmanos como ameaçadores combinou aspectos securitários e identitários, edificando o Islã como um perigo aos valores seculares franceses (WOLFREYS, 2018). Conforme exposto anteriormente, a narrativa de construção dos muçulmanos como ameaça, intensificou-se no durante o estado de emergência. Nesse período, os governantes franceses reforçaram o estereótipo dos muçulmanos como terroristas, contrapondo-as a identidade nacional secular francesa (MENDELSKI, 2020).
Esse esforço retórico, se encaixa naquilo que Wolfreys (2018) e Zragua (2018) chamam de radicalização do secularismo, instrumentalizado pelos políticos, intelectuais e mídia franceses, a fim de controlar a minoria muçulmana. A radicalização do secularismo, e sua correlata demonização da identidade islâmica, tem contribuído para o aumento da discriminação e violência contra instituições e/ou indivíduos percebidos como muçulmanos (WOLFREYS, 2018, p. 4).
A instituição da lei 2004-228 parece ter tido fundamental papel nesse processo de construção de identidades opostas. Comentando a respeito da islamofobia na França, Beydoum sustenta que o fenômeno “também é um movimento no qual as políticas estatais direcionadas aos muçulmanos endossam os estereótipos prevalecentes, incentivando, por sua vez, a animosidade individual em relação aos muçulmanos” (2018, p. 32, tradução livre). Dessa maneira, a lei 2004-228 ocasionou uma exacerbação do secularismo, contraposto a uma suposta identidade retrógrada muçulmana, simbolizada pelo véu. Sendo justamente, a retórica liberal e secular, mecanismos fundamentais para a sustentação da islamofobia, conforme advoga esse artigo. Destarte, para a CCIF a islamofobia na França é
baseada numa licença para discriminar, em uma licença para odiar, possível pelo eufemismo de um racismo que é legítimo e que manipula os valores republicanos. O desvio do secularismo é um claro exemplo disso. Para politicamente justificar seu racismo, muitos não hesitam em explorar o secularismo de modo que ele gere exclusão e rejeição (2019, p. 5, tradução livre).
O período seguinte à promulgação da lei 2004-228 é uma importante evidência do forte crescimento de atos de violência e intolerância contra a minoria magrebina.
Infere-se, portanto, que a existência de mortíferos ataques terroristas no Ocidente, atue como elemento fundamental para o discurso islamofóbico presente na França e na Europa, na medida que exploram e exacerbam o pânico e a revolta causado pelo terrorismo, associando-os com os muçulmanos.
Considerando apenas os dados sobre a islamofobia, segundo a CCIF, o fenômeno, após um período de baixa elevação entre 2005-2008, cresceu, vertiginosamente, ao longo dos anos seguintes, atingindo seu pico em 2015, conforme apresenta o gráfico 7. Na sequência, os anos de 2016 e 2017 apresentam uma redução. Em 2018 ocorre um novo crescimento das ocorrências. Já de acordo com as informações da CNCDH, a incidência da islamofobia manteve-se mais estável, com exceção do ápice de 2015.
Nessa linha do tempo constatou-se que os aumentos significativos da islamofobia correspondem a emergência de acontecimentos associados aos muçulmanos/Islã. Assim, vê-se que o primeiro grande incremento no número de ações islamofóbicas transcorre entre os anos de 2008 e 2009, em um aumento de 130% (CCIF, 2010). O mesmo vale para os registros anti- magrebinos, que cresceram 235% (CNCDH, 2010). O ano de 2009 é marcado pelos debates a respeito da lei 2010-1192, com sua ênfase no banimento do niqab e da burca.
Segundo a CCIF (2010), a superexposição do tema pela mídia, somada a uma postura islamofóbica de parte dos políticos, dos intelectuais e da própria imprensa, contribuiu para o aumento de uma percepção negativa da sociedade a respeito dos muçulmanos. Especificamente, os dois meses de maior incidência de atos islamofóbicos de 2009 coincidem com o polêmico discurso do então presidente Nicolas Sarkozy, no qual ele ataca, duramente, a burca (junho), e com o lançamento oficial do debate sobre identidade nacional (novembro). Ainda de acordo com a CCIF: “palavras e atos islamofóbicos são dois elos da mesma cadeia de desprezo e intolerância” (2010, p. 9, tradução livre).
Outra importante elevação dos casos de islamofobia acontece em 2011. Este é ano da entrada em vigência da lei 2010-1192. Conforme fora exposto anteriormente, a legislação fomentou o aumento da intolerância e da discriminação a muçulmanos que utilizam a vestimenta, ou simplesmente o hijab. A constatação (também posta antes) de que as mulheres que vestem o véu (hijab ou niqab) representam as maiores vítimas da islamofobia, atesta a forte correlação entre a lei 2010-1192 e o aumento da islamofobia executada pela sociedade civil.
No ano seguinte, 2012, o desenrolar de dois eventos devem ser considerados no exame das incidências islamofóbicas. No primeiro, um terrorista assassinou quatro soldados franceses e feriu outro nas cidades de Toulouse e Montauban, respectivamente nos dias 11 e 15 de março de 2012. Depois em 19 de março, em Toulouse, ele vitimou, fatalmente, um professor e três estudantes em uma escola judaica, além de ferir outras quatro pessoas (BBC, 2012a). O atirador, que foi morto pela polícia pouco depois, apresentou-se como membro da Al-Qaeda e justificou as mortes em razão dos palestinos, pela presença militar francesa no Afeganistão e pelo banimento francês do véu integral (BBC, 2012b).
No mês de setembro, o lançamento do curta metragem “A inocência dos muçulmanos” provocou polêmica por apresentar uma imagem caricata e ofensiva do profeta Mohammad. Para a CCIF (2013), os picos de islamofobia em 2012 coincidem com notícias de grande impacto relacionadas ao Islã/muçulmanos, como o atentado terrorista em Toulouse e Montauban e o lançamento do curta “A inocência dos muçulmanos”. Investigando os dados (CCIF e CNCDH), observa-se que os meses relacionados ao lançamento do filme (setembro e outubro) testemunharam uma alta considerável das incidências islamofóbicas, com um aumento de 100% das ocorrências segundo a CNCDH (2013) e cerca de 25% de acordo com a CCIF (2013) comparado com a média mensal.
A CCIF aponta a existência de uma correlação histórica na França entre a representação midiática de eventos relacionados ao Islã/muçulmanos, o tratamento político do fato e a elevação nos atos islamofóbico (CCIF, 2013, p. 6). Similarmente, Cesari (2011, p. 24) sustenta que o discurso público sobre o Islã por políticos, intelectuais e a mídia, contribui para um ambiente que pode resultar em práticas islamofóbicas.
O ano de 2015 representa a mais significativa elevação dos casos de islamofobia em toda a série histórica da França. Foram 905 casos registrados pela CCIF e 427 casos anotados pela CNCDH. Este pico é, claramente, observável no gráfico 7. O ápice de ocorrências islamofóbicas coincide com o ano mais mortal causado pelo terrorismo jihadista na França. Nesse ano, o país sofreu dois traumáticos atentados: o ataque à revista satírica Charlie Hebdo, resultando em doze mortes e oito feridos, ocorrido em 7 de janeiro; e os assaltos coordenados em Paris em 13 de novembro, resultando em 130 mortes e 368 feridos.
Analisando o histórico mensal, percebe-se que os atentados terroristas de janeiro e novembro de 2015 convergem com os maiores registros de islamofobia mensais: em janeiro de 2015 houve 178 casos segundo a CNCDH e 162 de acordo com a CCIF, ao passo que novembro de 2015 apresentou 74 casos (CNCDH) e 88 casos (CCIF). A comparação desses meses com seus pares de 2014 destaca a magnitude da explosão de notificações de islamofobia: entre janeiro de 2014 e janeiro 2015 a incidência de islamofobia aumentou 1.100% (14 para 178 casos) enquanto entre novembro de 2014 e novembro de 2015, o acréscimo foi de 3.600% (2 para 74 casos) (CNCDH, 2015; 2016).
A CCIF e a CNCDH reconhecem a influência dos ataques terroristas de 2015 no crescimento das ocorrências islamofóbicas. A primeira afirma que os atos islamofóbicos de 2015 encaixam-se diretamente no contexto dos atentados terroristas de 2015. A organização destaca que, após os assaltos de janeiro, em três semanas foram registrados 120 casos de islamofobia, o maior número já registrado pela CCIF (DEBAH, 2016). A CNCDH constata que o efeito dos ataques de janeiro e de novembro no aumento da violência contra os muçulmanos foi particularmente destacado (CNCDH, 2019, p. 49).
A partir de 2016, contudo, nota-se uma consistente queda na islamofobia. Para Louati (2017), é importante considerar a problemática do não registro dos atos islamofóbicos por parte das vítimas dentro do contexto do estado de emergência. Não obstante, nota-se um ápice de ocorrências islamofóbicas durante o mês de julho de 2016. Similarmente aos dois outros picos (janeiro e novembro de 2015), constata-se que o crescimento de incidências islamofóbicas acompanham violentos ataques terroristas (atentado de Nice em julho de 2016). Consoante, a CNCDH sustenta que a existência do pico de islamofobia na esteira dos atentados de Nice revela a necessidade contínua de lutar-se contra amálgamas entre afiliação religiosa e terrorismo (2019, p. 49).
Somam-se as polêmicas a respeito do burkini surgidas também em julho de 2016. Segundo Louati (2017), a histeria em relação a vestimenta normalizou a retórica racista contra os muçulmanos, fazendo da política identitária central na campanha presidencial de 2017. Visões estereotipadas e preconceituosas diante os islâmicos foram comuns a grande maioria dos presidenciáveis (LOUATI, 2017). Dado que o ano de 2015 testemunhou os maiores picos de islamofobia em toda a série histórica, é pertinente investigá-lo em detalhe, comparando-o com os anos anterior e posterior. O gráfico abaixo traz os registros mensais de islamofobia entre 2014-16, de modo a evidenciar a conexão entre os picos de islamofobia e a existência de ataques terroristas:
Ocorrências islamofóbicas mensais entre 2016-14 na França
Fonte: CNCDH (2015; 2016; 2017).Conforme exposto no gráfico, a conexão entre terrorismo e aumento da islamofobia é relevante. Porém, os dados parecem indicar que existe uma diferença no que diz respeito a letalidade dos ataques e sua correlação com a islamofobia. Na esteira de atentados terroristas, os registros recordes islamofóbicos foram vistos, somente, no contexto de assaltos que resultaram um número expressivo de mortos. Esta inferência também é corroborada quando se considera atos terroristas de grande magnitude ocorridos em outros países ocidentais, conforme exposto anteriormente.
A queda do número de incidências islamofóbicas em 2017 e 2018 coincide com a existência de violência terrorista de baixa letalidade. Essa questão é também levantada pela CNCDH (2019) que salienta que a redução das incidências islamofóbicas em 2017 e 2018 se harmonizam com a ausência de grandes ataques terroristas resultantes em mortes, ao contrário de 2015 e 2016. Além disso, o número registrado em 2018 é o mais baixo desde que a instituição iniciou o mapeamento das ações anti-muçulmanas em 2010 (CNCDH, 2019).
Contudo, se considerarmos os dados da CCIF que contemplam o item discriminação, nota-se que os números ainda permanecem altos e que a queda em 2016 e 2017 é interrompida em 2018. Porém, mesmo levando em conta os dados integrais da CCIF, é possível constatar que os picos da islamofobia (ano de 2015, e meses de janeiro e fevereiro) coincidem com a ocorrência do ano mais mortífero em termos de terrorismo da história da França.
Ademais, não é possível afirmar que a tendência seja de estabilização do número de atos islamofóbicos. No entanto, é perceptível a clara correlação entre eventos de grande repercussão ligados ao Islã/muçulmanos, como a discussão e implementação da lei 2010-1192, filmes de caráter polêmico, debate sobre o burkini e ações terroristas, com o crescimento da islamofobia. Um elemento que adiciona complexidade à discussão da islamofobia na França, reside no emprego de retóricas liberais para a legitimação de atos racistas contra os muçulmanos. Conforme aponta Bouamama: “a islamofobia contemporânea, apresentando-se como a forte defesa de valores liberais (democracia, direitos das mulheres, liberdade de expressão, respeito pelas minorias, etc.) torna possível dar uma forma de "respeitabilidade" ao racismo” (2018, p. 28, tradução livre).
Centrado nos debates científicos acerca da integração dos muçulmanos nas sociedades liberais europeias, este trabalho investigou a islamofobia na França durante o período de 1996 a 2019. Partindo do entendimento de islamofobia como atitudes e emoções negativas indiscriminadas contra o Islã ou muçulmanos, o exame do fenômeno foi orientado pela seguinte pergunta de pesquisa: “Como se constrói e evolui a islamofobia na França”?
Observou-se que a islamofobia na França se desenvolve a partir de uma complexa associação e co-constituição entre discursos e práticas hostis aos muçulmanos. Constatou-se que a representação negativa dos muçulmanos e do Islã é calcada, sobretudo, em construções discursivas de matriz securitária e identitária. A primeira remete a violência, simbolizada pelo terrorismo; enquanto a segunda, a opressão a mulher, identificada pelo uso de vestimentas religiosas como o véu, burca e burkini. Ambos são alimentados pela existência do pensamento orientalista na França, o qual remete ao período colonial.
A pesquisa mostrou que os dois conjuntos de representações (securitárias e identitárias) são hegemônicos, difundidos por parte da elite política e mídia, sendo também, respaldados pela opinião pública francesa. Essas representações negativas não apenas refletem os preconceitos e hostilidades societais contra os muçulmanos, como também fomentam essas percepções na sociedade. Nesse processo, a identidade muçulmana, concebida como terrorista fundamentalista é contraposta a uma identidade francesa idealizada, ou seja, civilizada e secular.
Iniciando pela investigação do terrorismo na França, os dados empíricos revelaram uma correlação entre a ocorrência de atos terroristas de grande porte e o aumento significativo dos casos de islamofobia. Os meses que testemunharam os três atentados mais mortíferos executados em solo francês, também foram aqueles que experienciaram os maiores picos de islamofobia. Em termos governamentais, a ambiguidade discursiva dos líderes políticos a respeito da (não) associação dos muçulmanos com o terrorismo e a seletividade das medidas do estado de emergência aos muçulmanos, igualmente contribuíram para a vinculação da comunidade islâmica à violência terrorista. Ademais, empiricamente descobriu-se que parte considerável dos casos islamofóbicos relacionam-se com a associação dos muçulmanos ao terrorismo. Discursivamente nota-se que, entre um terço e 40% da população francesa tradicionalmente associa o Islã à violência e ao terrorismo (IPSOS, 2019).
O outro elemento construtor e impulsionador da islamofobia na França é a demonização do véu islâmico, seja em sua versão hijab ou niqab/burca. A vestimenta constitui-se no principal marcador da alteridade muçulmana perante a sociedade francesa secular. Não por acaso, a análise dos dados revelou que mulheres portando o véu equivalem a grande maioria das vítimas da islamofobia. Cerca de 75% dos indivíduos alentados pela islamofobia são mulheres.
Assim como no caso do terrorismo, a demonização do véu islâmico se encontra imbuída em uma constante articulação entre discursos, percepções e práticas islamofóbicas. As legislações que, indiretamente, baniram o hijab, niqab/burca e burkini, expunham uma roupagem liberal e neutra, na medida que nunca mencionavam o Islã como alvo de suas disposições. Contudo, o exame discursivo e empírico revelou que elas foram sim destinadas a atingir a visibilidade do Islã em público. A proibição indireta do véu nas escolas, do niqab/burca em público e do burkini nas praias representou um ataque aos direitos individuais de liberdade religiosa dos muçulmanos. Com isso, as medidas são ao mesmo tempo iliberais e islamofóbicas.
Constatou-se também que a existência contínua da islamofobia na França contribuiu para o enfraquecimento da democracia no país, ao violar os direitos humanos da minoria islâmica. Como evidência, têm-se o déficit democrático francês, expostos pela Freedom House e pelo The Economist Democracy Index.
A islamofobia e seus impactos nas liberdades individuais dos muçulmanos e na própria qualidade da democracia dos Estados é uma temática atual, complexa e que demanda estudos adicionais. O papel específico da imprensa, como impulsionadora das tensões societais e de posições islamofóbicas, constitui uma interessante possibilidade de estudos na área. Especialmente levando em conta os limites da liberdade de expressão frente à crítica indiscriminada aos muçulmanos e ao Islã. Outra sugestão de pesquisa reside na discussão do papel e comportamento dos partidos políticos no âmbito da islamofobia. Como eles são estruturados diante da integração dos muçulmanos? Quais são as semelhanças e diferenças entre eles no contexto democrático europeu? Essas são questões relevantes que demandam um olhar atento da academia.
Por fim, este trabalho buscou apresentar novos insights para o estudo da integração dos migrantes muçulmanos na França, a partir do marco teórico da islamofobia. A problemática integração dos muçulmanos nas democracias liberais ameaça não somente os direitos fundamentais dessa minoria, mas também as bases democráticas dos Estados. O fortalecimento do ideal de igualdade no espectro liberal, orientado pelas premissas dos Direitos Humanos é peça fundamental na construção de sociedades menos intolerantes e menos islamofóbicas.
Ocorrências islamofóbicas mensais entre 2016-14 na França
Fonte: CNCDH (2015; 2016; 2017).