Migrações contemporâneas: desafios para os territórios e os direitos humanos
Política pública para imigrantes: os desafios no acesso aos serviços da Atenção Primária em Saúde (APS) em Lajeado/RS
Public policy toward immigrants: challenges in accessing Primary Health Care (PHC) services in Lajeado/RS
Política pública para inmigrantes: desafíos en el acceso a los servicios de Atención Primaria de Salud en Lajeado/RS
Política pública para imigrantes: os desafios no acesso aos serviços da Atenção Primária em Saúde (APS) em Lajeado/RS
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 27, 2022
Universidade de Santa Cruz do Sul
Recepción: 10 Marzo 2022
Aprobación: 11 Julio 2022
Resumo: O presente artigo apresenta o recorte de uma pesquisa no campo de Desenvolvimento Regional, realizada no município de Lajeado/RS no ano de 2021. Foram selecionados dois serviços de saúde que atendem o maior número de imigrantes no município, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) São José Praia e a Unidade Básica de Saúde (UBS) Moinhos, e, além destes, a 16ª Coordenadoria Regional de Saúde (CRS), responsável pelos serviços da região. A partir a escolha dos serviços em saúde foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa, com a realização de entrevistas semiestruturadas com um total de 13 sujeitos, entre eles oito profissionais da saúde, quatro imigrantes haitianos e uma gestora, coordenadora regional da Política de Atenção Primária em Saúde. O objetivo deste estudo foi contextualizar os desafios no acesso a serviços prestados para imigrantes no Sistema Único de Saúde (SUS). A partir dos resultados da pesquisa, identificamos a necessidade de se criarem políticas públicas específicas para imigrantes no SUS, pois acreditamos que o planejamento das ações de saúde deve levar em conta a influência cultural desses sujeitos, e para isso, há a necessidade de se pensarem políticas públicas que atendam as especificidades advindas dos fatores culturais. Ainda, entre os principais resultados dessa pesquisa, apontamos como desafios nos atendimentos da APS de Lajeado/RS a barreira linguística, os ritos religiosos e de saúde como fator a serem considerados na prestação aos serviços de saúde para imigrantes. Acreditamos que a construção de políticas públicas específicas para essa comunidade, constitui-se num importante papel para diminuir as desigualdades na prestação dos serviços e a discriminação em torno das práticas culturais de imigrantes no sistema de saúde.
Palavras-chave: Política pública, Atenção Primária em Saúde, Imigração internacional, Equidade em Saúde, Cultura, Sistema Único de Saúde.
Abstract: This article refers to some sections of a larger study in the field of Regional Development, conducted in the city of Lajeado/RS in 2021. Two of the healthcare service units that serve the largest number of immigrants in the city were selected, namely the São José Praia Family Health Strategy (ESF) and the Moinhos Basic Health Unit (UBS), and, additionally, the 16th Regional Health Coordination (CRS), which is in charge of the services in the region. Based on the selection of healthcare service units, an investigation using a qualitative approach was carried out, with semi-structured interviews with a total of 13 subjects, including 8 health professionals, 4 Haitian immigrants, and 1 manager, who was the regional coordinator of Primary Health Care Policy. The objective of this study was to contextualize the challenges in accessing services provided to immigrants in the Brazilian Universal Healthcare Program (SUS — Single Healthcare System). Based on the research results, the need for specific public policies to be created in SUS for immigrants was identified, as it was found that the planning of health actions should take into account the cultural influence of these subjects, therefore, there is a need for public policies that meet the specificities arising from cultural factors to be created. In addition, among the main results of this research, the language barrier, and religious and health rites were pointed out as challenges to be taken into account in the provision of healthcare services to immigrants in terms of PHC in Lajeado/RS. It was found that the formulation of specific public policies for this community is important to reduce inequalities in the provision of services and discrimination in relation to the cultural practices of immigrants in the health system.
Keywords: Public policy, Primary Health Care, International immigration, Equity in Health, Culture, Health Unic System.
Resumen: Este artículo presenta el corte de una investigación en el campo del Desarrollo Regional, realizada en la ciudad de Lajeado/RS en el año 2021. Fueron seleccionados dos servicios de salud que atienden al mayor número de inmigrantes en la ciudad, la Estrategia Salud de la Familia (ESF) São José Praia y la Unidad Básica de Salud (UBS) Moinhos, y, además de éstas, la 16ª Coordinación Regional de Salud (CRS), responsable por los servicios en la región. A partir de la elección de los servicios de salud, se realizó un abordaje cualitativo, con entrevistas semiestructuradas con un total de 13 sujetos, entre ellos ocho profesionales de la salud, cuatro inmigrantes haitianos y un gerente, coordinador regional de la Política de Atención Primaria en Salud. El objetivo de este estudio fue contextualizar los desafíos en el acceso a los servicios prestados a los inmigrantes en el Sistema Único de Salud (SUS). Con base en los resultados de la investigación, identificamos la necesidad de crear políticas públicas específicas para los inmigrantes en el SUS, ya que creemos que la planificación de acciones de salud debe tener en cuenta la influencia cultural de estos sujetos, y para eso, es necesario pensar políticas públicas que respondan a las especificidades derivadas de los factores culturales. También, entre los principales resultados de esta investigación, señalamos la barrera del idioma, los ritos religiosos y de salud como un factor a ser considerado en la prestación de servicios de salud a los inmigrantes como desafíos en la atención de la APS en Lajeado/RS. Creemos que la construcción de políticas públicas específicas para esta comunidad constituye un papel importante para reducir las desigualdades en la prestación de servicios y la discriminación en torno a las prácticas culturales de los inmigrantes en el sistema de salud.
Palabras clave: Política pública, Primeros auxilios, Inmigración internacional, Equidad en Salud, Cultura, Sistema Único de Salud.
1 Introdução
A partir do Relatório Anual do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra, 2020), atualmente, no Brasil, observa-se o acréscimo de imigrantes provenientes do Sul Global (senegaleses, congoleses, angolanos, haitianos e venezuelanos, entre outros). O crescimento das migrações internacionais segue rápido e contínuo no país. Entre 2011 e 2020 foram registrados no Brasil, aproximadamente 1,3 milhões de imigrantes. (OBMigra, 2021). Nos últimos 10 anos, dentre as nacionalidades de maior representação, estão os haitianos e os venezuelanos.
Os estados brasileiros que passaram a ser contemplados pela atual migração internacional são os estados do “Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, especialmente por conta dos haitianos, levando a uma reconfiguração dos fluxos migratórios que abriu novas frentes para a localização da força de trabalho no território nacional.” (OBMigra, 2021, p.128). Para Spinelli, Braga e Scheibe (2018) o estado do Rio Grande do Sul é um dos estados brasileiros que mais receberam imigrantes haitianos nos últimos anos. Entre1 2018 e 2020 o RS contou com 29.357 imigrantes, e os haitianos2 são 45% no estado, seguido dos uruguaios que são 12% e dos venezuelanos que contabilizam 8%.
O mercado de trabalho tem se apresentado como um dos principais motivos de atração de imigrantes ao país. Segundo Oliveira et al. (2019), a chegada de haitianos no mercado de trabalho é o maior destaque da atualidade, sendo que a representação destes é caracterizada predominantemente por jovens, com idade ativa para o trabalho. Gonçalves (2009) ainda relata que cada vez mais países serão impactados pela imigração, algumas regiões por conta da grande oferta de emprego para essa população, o que acaba que essas regiões tornam-se bastante atrativas para esses sujeitos. No Brasil, no ano de 2011 haviam 62.423 trabalhadores imigrantes, já no ano de 2020 esse total aumenta para 181.384 no país. Em 2020 foram gerados 23.945 novos postos de trabalho para imigrantes no mercado formal brasileiro. Entre as principais nacionalidades, destacaram-se haitianos e venezuelanos que se beneficiaram com mais de 13 mil vagas disponíveis. Os haitianos no ano de 2020 ocupavam a 1ª posição no mercado de trabalho formal. (OBMigra, 2021).
No Rio Grande do Sul no ano de 2011 haviam 3.612 trabalhadores imigrantes e em 2020 esse número passa para 20.459 no estado. (OBMigra, 2021). Segundo dados do Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS), em 2018 os setores de frigoríficos e abate de carne estavam entre os espaços de trabalho mais ocupados pelos imigrantes. Os haitianos são a imensa maioria entre os estrangeiros que trabalham no setor frigorífico. Para Bosi (2019) a disponibilidade de vagas nestes espaços acontece porque as atividades desenvolvidas são precarizadas, assim como as condições sociais e de saúde.
Sendo assim, a partir dos dados apresentados repara-se que a vinda de imigrantes no país vem crescendo de forma expressiva, e diante deste cenário, é de se esperar que o modelo de atenção em saúde brasileiro deva abranger as demandas dessa população. Devido à complexidade desse fenômeno, faz-se necessário a inclusão da temática migratória no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
A imigração internacional é um tema que exige uma interpretação interdisciplinar. Isso decorre, a medida que as migrações “expressam particularidades de classe, gênero, etnia e religião e estão inscritas nas alterações da geopolítica mundial.” (CFESS, 2017, p. 8). Assim, as características atuais do fluxo migratório internacional, apresentam novos desafios igualmente para as políticas públicas de saúde e para os serviços e trabalhadores do SUS.
Os serviços de saúde que atendem a população imigrante tem enfrentado diversos obstáculos nos atendimentos oferecidos, tais como: a falta de informação dos profissionais de saúde frente à diversidade cultural, assim como a falta de informações dos imigrantes sobre o funcionamento do Sistema Único de Saúde; Dificuldades de acesso com qualidade por conta da barreira linguística; As diferentes percepção de saúde e autocuidado; A pouca ou nenhuma qualificação profissional para atender demandas culturais, dentre outros. Os desafios vivenciados pelos trabalhadores do SUS e pelos usuários imigrantes, está, na maioria das vezes, intrínseco a questões de manifestação cultural. Para Faqueti, Grisotti e Risson (2020) a temática que envolve imigração e saúde é complexa e está relacionada diretamente à fatores sociais, preconceito, discriminação, iniquidades no acesso aos serviços de saúde, trabalho, moradia, educação e as manifestações culturais.
Diante da movimentação de populações de diferentes origens vindas para o Brasil, é importante discutir como estes são observados pelos serviços do SUS, pois relacionar-se com outras identidades culturais pode acarretar importantes desafios tanto para o imigrante, quanto para os profissionais de saúde que atendem essas pessoas.
Desse modo, o presente estudo é um recorte de uma pesquisa de mestrado realizada no campo do Desenvolvimento Regional, sobre o acesso de imigrantes aos serviços da rede de Atenção Primária em Saúde no município de Lajeado, localizado no Vale do Taquari, no estado do Rio Grande do Sul. O objetivo deste artigo é contextualizar os desafios da imigração internacional no SUS, que diante de fatores ligados a questões culturais, a Política Nacional de Promoção da Equidade em Saúde (PNPES) apresenta-se como potencial na condução dos atendimentos desses sujeitos pelos serviços de saúde.
Além disso, esta pesquisa problematiza a importância da construção de políticas públicas específicas para os imigrantes no âmbito do SUS, considerando que essa comunidade enfrenta dificuldades na aderência aos tratamentos de saúde devido às suas representações culturais. Portanto, acredita-se que o planejamento das ações de saúde dentro do SUS deve considerar a influência da cultura expressa nas demandas em saúde desses usuários, pois adotar os mesmos tratamentos, o mesmo formato de atendimento, sem reconhecer a equidade como direito para uma população culturalmente diferente implica, sobretudo, a violação de direitos humanos.
2 Metodologia
A pesquisa do tipo qualitativa, estruturou-se no método de abordagem materialismo histórico e dialético, a partir de três categorias centrais de análise: a categoria da historicidade, da contradição e da totalidade. A coleta de dados consistiu em um modelo de entrevista semiestruturada em três serviços de saúde do município de Lajeado/RS. Entre eles, a Estratégia de Saúde da Família (ESF) São José Praia, a Unidade Básica de Saúde (UBS) Moinhos e a 16ª Coordenadoria Regional de Saúde (CRS). Estes serviços foram selecionados, devido ao fato de que das 16 ESFs e das 3 UBSs da cidade, a ESF São José Praia e a UBS Moinhos são os dois serviços de saúde que mais atendem imigrantes na região. Desse modo, foram sujeitos deste estudo, um total de treze pessoas, sendo eles, dois enfermeiros chefes de unidade, dois técnicos de enfermagem, dois médicos, dois recepcionistas, quatro imigrantes haitianos e uma enfermeira da 16ª CRS.
As entrevistas foram conduzidas a partir de um roteiro semiestruturado distinto para cada grupo de sujeitos da pesquisa, que foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra para posterior análise. A coleta de dados ocorreu no mês de novembro de 2021 e foram realizadas nas próprias unidades de saúde, mediante agendamento prévio. Após as transcrições, os dados foram submetidos à análise de conteúdo, através de leituras sistematizadas, interpretação para a constituição das categorias e discutidos com a literatura. O anonimato dos participantes foi garantido, sendo os mesmos identificados por nomes fictícios escolhidos pelas autoras.
Cabe destacar que para esse artigo foram utilizados apenas os relatos dos profissionais de saúde, pois as entrevistas com os trabalhadores da APS trouxeram importantes elementos sobre a realidade local onde se obteve informações mais relevantes para a construção deste trabalho. Além da equipe da Atenção Primária em Saúde, foram utilizados neste estudo os relatos da enfermeira que é Coordenadora Regional da Política de Atenção Primária em Saúde da 16ª CRS, que contribuiu para o debate da construção de políticas públicas específicas para os imigrantes em âmbito estadual.
3 Imigração laboral e serviços da Atenção Primária em Saúde (APS) em Lajeado/RS
A escolha do município de Lajeado/RS como território de análise se deu por sua realidade local, a partir da expressiva manifestação do fenômeno migratório internacional na cidade. Dos 36 municípios que integram a região do Vale do Taquari, são quatro os que aglomeram 85% dos imigrantes internacionais recentes: Lajeado, Encantado, Estrela e Arroio do Meio (CAZAROTTO, et al. 2019). Lajeado também é o 8º3 município que mais recebeu imigrantes nos últimos anos.
Para Spinelli, Braga e Scheibe (2018) Lajeado tornou-se destino de imigrantes haitianos no Rio Grande do Sul pela oferta de empregos em indústria frigorífica, visto que a chegada de imigrantes é facilitada devido ao interesse da mão de obra desses setores. Dessa forma, entende-se que os fatores ligados ao trabalho “foi um dos desencadeadores da vinda de mão de obra de outras regiões do país, assim como indivíduos de outros países, principalmente provenientes das migrações haitiana, senegalesa e indiana.”(DIEHL, 2017, p. 112).
Das 59 diferentes4 nacionalidades existentes no município, é possível encontrar pessoas vindas do Haiti, Senegal, Nigéria, Índia e Bangladesh. Com o total de 85.033 habitantes (IBGE CIDADES, 2020), o município conta com o contingente de 2.133 imigrantes internacionais e, a maior representação é a de haitianos, contabilizando 1.161 no município de Lajeado.
Lajeado5/RS possui características empreendedora, com grandes empresas, sendo um polo comercial e industrial com excelente infraestrutura. O município carrega uma grande importância econômica para o desenvolvimento do estado do Rio Grande do Sul, sendo que são cinco as cidades do Vale do Taquari que integram o ranking das 100 maiores economias do estado. Lajeado/RS assume a 17ª posição, está à frente de municípios como Alvorada, Bagé, Sapucaia do Sul, Uruguaiana e Viamão.
O PIB do município6 é de cerca de R $4,2 bilhões, sendo que 62,5% do valor adicionado advém dos serviços da indústria (25,7%) e da administração pública (11,4%), enquanto a agropecuária (0,4%) tem a menor participação na economia da cidade. O município possui 38,6 mil empregos com carteira assinada, a ocupação predominante destes trabalhadores é a de auxiliar de escritório (2.288), seguido de magarefe (1.960) e de abatedor (1.836). As três atividades que mais empregam são: abate de aves (5.070), administração pública em geral (2.106) e construção de edifícios (1534).
Destaca-se o setor de abatimento de aves, serviço este, que tem dado oportunidades de emprego e renda para muitos haitianos em Lajeado/RS. Cazarotto e Sindelar (2020) afirmam que por falta de oportunidades, os imigrantes ocupam vagas que os nacionais não querem ocupar, como por exemplo, as vagas em frigoríficos de carne, devido às condições precárias de trabalho neste setor.
As condições de trabalho das indústrias frigoríficas são de extrema precariedade, como a jornada exaustiva, a exposição a instrumentos cortantes, realização de movimentos repetitivos, condições que podem gerar importantes patologias e uma grande pressão psicológica nos trabalhadores desse setor. No Brasil, as indústrias de alimentos “se encontram em condições de trabalho precárias, aos quais se submetem trabalhadores que não tem outra alternativa além de aceitar condições desumanas de emprego e de salário que permitam sua sobrevivência.” (GRANADA, et al. 2021, p. 214).
Diante desses fatores, vê-se que a imigração internacional envolve questões econômicas, políticas, sociais, trabalhistas e de saúde. Em Lajeado/RS, os haitianos têm a possibilidade de acesso ao mercado de trabalho formal e às políticas públicas como saúde e assistência social. A mobilidade humana é bem significativa na região, pois o município apresenta importantes dados e oportunidades de emprego e renda para a população migrante. Por consequência, infere-se, a importância de se pensarem ações que facilitem o acesso dos imigrantes ao mercado de trabalho, à políticas públicas e à saúde sem qualquer tipo de discriminação ou preconceito, e que em todos esses setores, os mesmos sejam reconhecidos como sujeitos de direitos.
Com a criação do Sistema Único de Saúde, toda população brasileira, inclusive os estrangeiros, indocumentados ou não, passaram a ter acesso universal aos serviços públicos de saúde. A nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017) trata o acesso à serviços públicos de saúde pelos imigrantes como um direito a ser garantido sem discriminação em razão da nacionalidade ou da condição migratória como um dos princípios da política migratória brasileira.
Assim, entende-se que para todo e qualquer ser humano usufruir de uma melhor qualidade de vida, é indispensável que este tenha acesso à saúde, que é entendido não apenas como o acesso físico aos estabelecimentos do SUS, mas esse fator engloba questões como, o conhecimento do usuário sobre suas próprias necessidades e percepções de cuidado. A acessibilidade dos imigrantes aos serviços de saúde implica a capacidade de oferta de serviços que possam responder às necessidades em saúde dos mesmos. Assim, a acessibilidade “refere-se às características dos serviços e dos recursos de saúde que facilitam ou limitam seu uso por potenciais usuários.” (SANCHEZ; CICONELLI, 2012, p. 191).
O atual modelo do Sistema Único de Saúde é organizado de forma regionalizada e hierarquizada. A regionalização refere-se ao fato de que os serviços devem estar organizados em uma área delimitada, facilitando o acesso à população. Enquanto a hierarquização do SUS procede a divisão de níveis de atenção em saúde, oferecendo atendimentos de acordo com a complexidade das necessidades em saúde de seus usuários. A atenção em saúde no Brasil é dividida em três diferentes níveis: a atenção primária, a atenção secundária e a atenção terciária, onde cada nível responde a demandas de baixa, média e alta complexidade.
Mendes (2011) entende que a necessidade de se mudarem os sistemas de atenção à saúde se deve ao interesse do SUS em responder com efetividade, eficiência e segurança às situações de saúde da população. Para isso, a Atenção Primária em Saúde (APS) que é composta por Estratégias de Saúde da Família (ESF) e Unidades Básicas de Saúde (UBS), atende demandas de baixa complexidade, tendo como principais objetivos a prevenção de doenças e a promoção da saúde das pessoas. A APS é o nível de atenção em saúde que atende demandas curativas e também preventivas, além disso, estes serviços oferecem atendimento acessível e baseado na realidade da região de abrangência.
Através dos serviços da rede de Atenção Primária em Saúde, são realizados encaminhamentos para serviços especializados. As UBSs e ESFs são os espaços que fornecem uma indicação clínica a partir das demandas em saúde de cada usuário, assim, os usuários que não apresentam demandas de média ou alta complexidade, ou seja, aqueles que não têm necessidade clínica para um atendimento especializado, são manejados na APS.
Os serviços da rede de APS de Lajeado/RS, seguem esse mesmo propósito de hierarquização e territorialização, o que facilita um diagnóstico de saúde da população de abrangência das ESFs e das UBSs no município. A repartição do território em áreas político-administrativas, tem por objetivo auxiliar os serviços da Atenção Básica (AB) na compreensão da realidade dos territórios, monitorando como a vida daquele lugar acontece e como os processos sociais cotidianos se desenvolvem.
No município há um total de 19 unidades de saúde que compõem a rede de Atenção Primária em saúde no território, sendo 16 ESFs e três UBSs. Dentre esses estabelecimentos, dois deles são os serviços que mais atendem imigrantes, e isso se deve a localização dessas unidades. Dois importantes frigoríficos de Lajeado/RS, a companhia de alimentos Minuano e a BRF-Brasil Foods, situam-se nos bairros dos dois estabelecimentos de saúde pesquisados. A ESF São José Praia está localizada no bairro centro, onde localiza-se a BRF-Brasil Foods, enquanto no bairro Moinhos, onde encontra-se a UBS Moinhos, está fixada a companhia de alimentos Minuano.
Além disso, estes dois bairros, também são os bairros que possuem maior concentração de imigrantes em Lajeado/RS, devido à proximidade das indústrias frigoríficas. No bairro centro são 629 estrangeiros e no bairro Moinhos são 415. Cabe destacar que dos dois frigoríficos citados anteriormente, na companhia de alimentos Minuano foi possível acessar a informação7 de que no setor de aviário são 467 trabalhadores estrangeiros, sendo que 438 são haitianos. Braun (2020), afirma que os imigrantes haitianos concentram-se principalmente nas cidades onde há plantas frigoríficas, pois nesses espaços essa população têm a possibilidade de acesso ao mercado de trabalho formal. Essa nacionalidade, representa a maioria dos imigrantes que trabalham neste setor.
Assim, devido ao número de haitianos na região, a Prefeitura Municipal de Lajeado/RS, realizou a contratação de uma tradutora de nacionalidade haitiana na ESF São José Praia e na UBS Moinhos, sendo ela a responsável pela mediação entre os imigrantes haitianos usuários do SUS e as equipes de saúde da APS. Esta contratação configura-se como uma importante ação de promoção da equidade em saúde para o migrantes haitianos no município.
4 A importância da Política Nacional de Promoção da Equidade em Saúde (PNPES) para os imigrantes
Ao longo dos seus 31 anos, o Sistema Único de Saúde (SUS) sofreu importantes avanços históricos e sociais, como resultado de uma importante conquista da sociedade brasileira. Desde então, o SUS busca garantir acesso à saúde a toda população, promovendo melhor qualidade de vida aos seus usuários. Porém, no período anterior à Constituição Federal de 1988, o sistema público de saúde prestava assistência apenas aos trabalhadores vinculados à Previdência Social, enquanto milhões de pessoas sofriam sem acesso à saúde, e os que não tinham dinheiro, dependiam da caridade e da filantropia.
Antes da criação do SUS, o acesso aos serviços médicos curativos não era um direito de toda população, eram apenas os trabalhadores com carteira registrada que faziam uso dos serviços públicos de saúde. Foi após anos de luta, em outubro de 1988 com a promulgação da nova Constituição Federal, que a saúde passou a ser um direito de cidadania, dando origem ao processo de criação de um sistema público, universal e descentralizado de saúde.
A universalidade, a integralidade e a equidade, são os princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde, inteiramente interligados aos direitos humanos e a garantia de acesso a todas as pessoas em território nacional. Porém, ainda que o SUS seja responsável pela concretização desses princípios em todos os seus serviços, certos fatores ainda dificultam o acesso aos serviços públicos de saúde pelos imigrantes, como o despreparo de profissionais de saúde referente ao atendimento intercultural frequente em meio aos novos fluxos migratórios internacionais no Brasil.
A universalidade como um dos princípios fundamentais do SUS determina que todos os cidadãos em território nacional têm direito no acesso a todos os serviços públicos de saúde. Esse princípio representa uma grande conquista democrática, que transformou a saúde como um direito de todos e dever do Estado. Neste sentido, a universalidade “abrange a cobertura, o acesso e o atendimento nos serviços do SUS e exprime a ideia de que o Estado tem o dever de prestar esse atendimento à toda população brasileira” (PONTES, et al. 2009, p. 501), inclusive imigrantes residentes no país.
Tendo em vista este princípio, as dificuldades no acesso aos serviços de saúde relacionadas ao fenômeno da imigração podem interferir na saúde da pessoa imigrante, pois “a dinâmica do atendimento em saúde, somada às dúvidas das equipes de saúde, dificultam o atendimento à pessoa imigrantes, e as ações em política pública de saúde não demonstram preparo efetivo para atender à demanda intercultural'' (SANTOS; MEDEIROS, 2017, p. 9). Então, quando não observada as questões culturais no âmbito do SUS como um direito, coloca-se em conflito o princípio da universalidade e, consequentemente, afeta-se os direitos humanos.
O princípio da integralidade busca garantir ao indivíduo uma assistência à saúde que ultrapasse a prática curativa, contemplando o usuário em todos os níveis de atenção e considerando o sujeito inserido em seu contexto social, familiar e cultural. O cotidiano, os conhecimentos, a cultura e toda a experiência de vida fomenta o desenvolvimento da consciência e do comportamento das pessoas. No âmbito do SUS, através dos Determinantes Sociais da Saúde (DSS) a integralidade do usuário é compreendida a partir de fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais, fatores estes que influenciam na ocorrência de problemas de saúde da população.
Para os autores Pontes et al. (2009) o princípio da equidade tem por objetivo diminuir desigualdades, mas isso não significa que a equidade seja sinônimo de igualdade. Apesar de todos terem direito aos serviços públicos de saúde, as pessoas não são iguais e, por isso, têm necessidades diferentes. Como um princípio da justiça social, a equidade trata de forma desigual os desiguais, ela evidencia o atendimento aos indivíduos a partir das necessidades de cada um, investindo mais onde a carência é maior.
Assim, em conformidade com Brasil (2018), por ser a principal porta de entrada do SUS, cabe à Atenção Primária em Saúde, ser espaço de fomento à implementação de políticas e ações intersetoriais de promoção da equidade em saúde, acolhendo e articulando as demandas de grupos em situação de iniquidade.
A Política Nacional de Promoção da Equidade em Saúde (PNPES) é formada por um conjunto de programas e ações governamentais de saúde, pensados para promover o respeito às necessidades, diversidades e especificidades de cada cidadão ou grupo social e garantir o atendimento integral a populações em situação de vulnerabilidade e desigualdade social. O princípio da equidade inclui o reconhecimento de determinantes sociais, como as diferentes condições de vida, que envolvem habitação, trabalho, renda, acesso à educação, lazer, entre outros que impactam diretamente na saúde dos sujeitos. (BRASIL, 2018).
Atualmente, no Brasil, os imigrantes não estão efetivamente incluídos na PNPES, diante desse contexto, é importante problematizar a relevância da equidade na condução dos atendimentos aos imigrantes nas políticas públicas de Saúde. É necessário verificar quais estratégias e políticas as organizações estão adotando em relação a essa realidade multicultural, pois na existência de fatores culturais, como a língua e as percepções de cuidado, é importante refletir como essas identidades estão sendo observadas dentro do SUS.
A efetivação da inclusão dos imigrantes na Política Nacional de Promoção da Equidade em Saúde auxilia as equipes da APS a se basearem nas especificidades da realidade dos imigrantes, no comprometimento de desenvolver estratégias para melhorar o acesso aos serviços de saúde, reduzindo desigualdades de acesso.
5 Política pública para imigrantes e os desafios no acesso à saúde
Os imigrantes carregam consigo diversas situações de vulnerabilidade e desigualdade em relação aos nacionais. A história de vida desses sujeitos e as condições precárias de trabalho influenciam muito na situação de sua saúde. De acordo com Delamuta et al. (2020) mais do que conhecer a cultura dos pacientes é necessário saber sobre a sua história de vida e o contexto em que ela se insere.
Os imigrantes demandam atendimentos influenciados por sua cultura de origem, pois os modos de vida e as concepções sobre adoecimento, são demandas particulares dessa comunidade. De acordo com Hall (2003) com o multiculturalismo, existe a demanda pelo reconhecimento da diferença cultural.
Para dar conta desta problemática, há a necessidade da construção de políticas públicas específicas para essa população, pois a vulnerabilidade que marca a condição social dos imigrantes faz com que eles sejam afetados de forma desproporcional aos nacionais. Diante disso, entende-se a necessidade de uma política pública de saúde que atenda as especificidades dessas pessoas.
Segundo o “Protocolo de Assistência a Migrantes em Situação de Vulnerabilidade” (2018) o que intensifica a vulnerabilidade dessa população é o fato de que muitas vezes os imigrantes são menos assistidos e beneficiados pelos serviços de proteção. Desse modo, entende-se a importância da participação do Estado na implementação de políticas e serviços de proteção social para essas pessoas que vivem em situação de extrema vulnerabilidade.
Para que os imigrantes tenham acesso com eficiência aos serviços do SUS é necessário que as políticas públicas estejam integradas e suas equipes de saúde devidamente capacitadas e instrumentalizadas para atender essas pessoas. Muitos profissionais não possuem informações mínimas sobre a cultura dessa população. O grande desafio desses trabalhadores é o de prestarem assistência aos imigrantes transitando no espaço da diversidade cultural, sendo esta expressa através dos diferentes costumes. As questões nesse encontro cultural entre profissionais de saúde e imigrantes, “vão se estreitando em níveis cada vez mais profundos, especialmente quando se trata do entendimento da origem das doenças, suas multicausalidades e a visão não fragmentada desses povos.” (SILVA; ALVARENGA; OLIVEIRA, 2013, p. 8).
Quando se pensa em diferentes culturas, onde cada cultura possui sua sabedoria e conhecimento, começa-se a dimensionar a intensidade dos desafios da imigração internacional para a saúde pública, pois, “comunicar, interpretar os diferentes códigos – do processo saúde/doença e suas multicausalidades – é o cenário de atuação destes profissionais.” (SILVA; ALVARENGA; OLIVEIRA, 2013, p.27).
Os desafios dos fluxos migratórios internacionais no Brasil, para o SUS, está relacionado a precariedade na qualidade dos atendimentos dos serviços de saúde, a falta de qualificação dos trabalhadores do SUS que atendem essas pessoas, e a necessidade de fornecerem cuidados que não são centrados apenas a cuidados médicos, mas no atendimento que considere as necessidades particulares do sujeito. Para isso, “é necessária a busca constante de novas formas de atuação, criação de ações, estratégias e políticas que prevejam a igualdade, a não discriminação e reforcem o cumprimento do direito humano à saúde.” (GUERRA; VENTURA, 2017, p. 128).
O SUS e seus trabalhadores têm muita dificuldade e limitações diante do fenômeno migratório internacional, a falta de informação, de compreensão e de entendimento sobre essa realidade, explica o desafio da inserção social e na qualidade do atendimento dos serviços públicos de saúde para essa população, pois entende-se que, quanto mais habituados à cultura, aos costumes e ao idioma do estrangeiro, mais positivos serão os atendimentos realizados no âmbito do SUS.
A identidade social e cultural de imigrantes no Brasil vem sendo percebida pelas equipes de saúde como um desafio, em função da distante interlocução com estrangeiro, seja devido as barreiras linguísticas e a falta de percepções diante das diferenças culturais. A Atenção Primária em Saúde deve ser orientada pelos princípios da acessibilidade, do vínculo, da continuidade e do cuidado. As normativas atuais convergem para seu papel fundamental de porta de entrada principal, facilitando o acesso da população aos outros serviços públicos de saúde.
Sendo assim, esforços se tornam cada vez mais necessários para pensar a cultura na saúde, facilitando o acesso e a inclusão de imigrantes no SUS. E, desse modo, reforça-se a importância da construção de políticas públicas específicas para essas pessoas, pois muitos são os desafios enfrentados pelos profissionais de saúde e pelos imigrantes nos serviços da APS. A presença de pessoas despreparadas e incapacitadas para atender demandas interculturais, a falta de humanização nos atendimentos, a falta de capacitação e especialização para os profissionais de saúde, a barreira linguística, diferentes concepções culturais sobre saúde e doenças, são fatores que influenciam na qualidade dos atendimentos oferecidos no SUS.
6 Desafios da imigração no SUS: Relatos dos profissionais da APS de Lajeado/RS
O crescimento do fluxo migratório internacional traz à luz o debate do acesso dos imigrantes aos serviços públicos de saúde. Pode-se dizer que entre as barreiras que os imigrantes podem encontrar para acessar os serviços da rede de Atenção Primária em Saúde, está vinculado ao fato de que muitos não falam o idioma português, a falta de qualidade no atendimento que recebem, atendimento este, não compatível com sua cultura e com as condições de saúde de seu país de origem.
O Sistema de Saúde Pública do Haiti é considerado deficiente, pois Motisuki et al. (2019) alegam que a situação de saúde da população haitiana apresenta indicadores de desnutrição nas crianças, altas taxas de mortalidade infantil e a maior taxa de tuberculose do continente americano. Para os autores supracitados, esse quadro sanitário complexo associa-se ao fato de que aproximadamente metade da população não tem acesso à saúde.
Percebe-se, na fala de Maria, da ESF São José Praia, a complexidade na inspeção da conduta profissional quando a mesma desconhece o histórico de saúde de seu paciente. Além disso, os imigrantes, muitas vezes, não sabem expressar suas necessidades em saúde, o que dificulta a efetivação do acesso de qualidade.
Coisa que a gente sente também, é como eles chegam aqui para a gente, em relação a saúde parece que eles não tinham atendimento adequado lá, vem um pouco muito cru assim, sem nenhum histórico, sem saber falar nada de doenças, de exames, e ai as vezes a gente encontra muitos problemas por conta que eles não tem esse atendimento adequado anterior, então é desafiador por isso. (Maria APS/ESF São José Praia).
Além desta questão, com um total de treze entrevistados, sendo nove profissionais da saúde e quatro imigrantes, o fator idioma foi considerado uma elmento dificultador de acesso. Para os quatro haitianos entrevistados, três deles relatam não existir dificuldades para acessar a saúde, nem mesmo em relação ao idioma, pois, de acordo com dois, desses três haitianos, não sentem dificuldades na fala. Ambos tiveram auxílio de algum familiar que reside no Brasil e que já dominam a língua portuguesa.
A dificuldade que a gente encontra é a comunicação, porque a gente não entende muito bem eles, e aí tu chega num momento que tu fica assim, um pouco nervosa porque tu quer ajudar mas não consegue entender o que eles estão falando, ai vai mais por mímica ou tu vai deduzindo alguma coisa para eles. As vezes tem a tradutora, nem sempre, a maioria das vezes não tem tradutora, então a gente tem que se virar conforme a gente pode. Eu avalio assim, uma dificuldade que está sendo, mas nós estamos pegando o jeitinho deles com o dia a dia, então a gente vai adaptando, né. (Rosa APS/ESF São José Praia).
Compreende-se que as questões do idioma como uma questão que dificulte o acesso é mais observado pelos profissionais de saúde do que pelos imigrantes entrevistados. Para Granada et al. (2017) os problemas relacionados com a imigração, a qualidade de vida e o acesso à saúde aumentam com: as dificuldades comunicacionais, linguísticas e de adaptação no país de acolhimento, as condições precárias de trabalho e moradia, os processos de aculturação, dentre outros, são fatores que tornam essa população mais vulnerável do que a população nacional.
Através dos relatos dos profissionais de saúde de Lajeado/RS, constatou-se um quadro crescente de patologias associadas às precárias condições de vida e de trabalho dos imigrantes haitianos. No caso dessa população, sua grande maioria, trabalham em frigoríficos de carne, onde condições de precariedade desses espaços de trabalho contribuem para o adoecimento dessa população, como alega o João da UBS Moinhos.
As demandas em saúde, principalmente dores crônicas, às vezes por conta dos trabalhos. Os trabalhos que normalmente eles conseguem aqui no Brasil são de mão-de-obra física, de baixa especialidade, então eles vem bastante com dor crônica, bastante gravidez não planejada, basicamente mais isso. E problemas tipo crônicas mal resolvidas, às vezes no país. (João APS/UBS Moinhos).
A religiosidade também é percebida nos atendimentos, intrínsecas com o modelo de Atenção em Saúde do Haiti, que também possui representação de curandeiros tradicionais. De acordo com Plancher (2018, p. 38) “este setor ocupa um lugar importante dentro do sistema de saúde haitiano porque é consultado com mais frequência como primeiro recurso da população, independentemente da sua filiação social e seu grau de fortuna ou nível de educação.”). Ainda para o autor, os atendimentos oferecidos pelos curandeiros são os atendimentos que oferecem maior acessibilidade geográfica e cultural no país.
E ainda eles têm um problema, que nós temos com eles, eles são de uma religião, não sei te dizer, que muitos deles vão na igreja e acreditam que deus vai curar eles. Então há poucos dias nós tivemos um óbito de soropositivo, que não aceitou se tratar porque tinha que ser conforme a vontade de deus. Nós temos esse problema também, não aceitam usar anticoncepcional, porque é sempre dá vontade de deus, é complicado. (Amanda APS/UBS Moinhos).
Para dar conta destas questões culturais na saúde, acredita-se que a qualificação dos profissionais dos SUS é um dos caminhos para auxiliar a compreensão desses trabalhadores sobre as diferentes demandas em saúde dos usuários imigrantes. Investir na qualificação desses trabalhadores é uma maneira de melhorar a qualidade e a potencialidade desses profissionais, de modo que os trabalhadores da APS terão conhecimento e condições favoráveis para elaborar, atender e acolher a população de acordo com as suas reais necessidades em saúde.
No entanto, fragilidades são observadas no amparo da gestão municipal as equipes de APS de Lajeado/RS. Num contexto de diversidade cultural, considerando que crenças e costumes influenciam os cuidados em saúde do sujeito, é imprescindível que a Secretaria Municipal de Saúde forneça capacitações para esses trabalhadores, pois esses profissionais que atendem populações advindas de outros países, possuem um papel importante, como fonte transformadora dos sujeitos sociais.
Não tivemos ainda nada parecido. Eu acharia interessante principalmente por causa desses problemas que eu acho que é muito uma questão cultural, que eu acho que tem que ter uma abordagem diferenciada em relação a isso, né. Deles entenderem que a nutrição do bebê é importante, que os cuidados com os bebês é importante, fazer teste rápido é importante, fazer o uso de preservativos é importante, e eles não vem com essa cultura, então é claro que a gente dos serviços de saúde, a gente tem esse papel na educação deles também, mas tem que atuar também não só na área da saúde, mas na área da educação, na área da assistência social, para ter essa educação em relação a comunidade deles, para ter esse entendimento, porque a gente chega aqui e fala, por exemplo, da alimentação das crianças, entra por um ouvido e sai pelo outro, porque não é da cultura deles, porque eles acham que dar farinha com água é o ideal, foi assim que eles aprenderam. (Maria APS/ESF São José Praia).
A partir disso, pode-se dizer que o principal causador da precariedade no acesso aos serviços de saúde se dá pela baixa capacitação dos servidores públicos para atender esses sujeitos, uma vez que diferentes grupos de pessoas apresentam demandas bastante particulares. Para resolver esse problema, é necessário um maior engajamento do poder público na criação de políticas de capacitação para esses profissionais
Diante dessas problematizações apresentadas, vê-se que entender a consequência do fluxo migratório internacional para a saúde demanda compreender os processos políticos, econômicos, sociais e culturais que se manifestam. Desta forma, é necessário que se aponte como prioridade endereçar alternativas para superação desses fatores. Para isso, é preciso a construção de políticas públicas específicas para os imigrantes, e essa discussão exige agilidade.
Diante desses fatores, a equidade em saúde propõe o respeito às necessidades, diversidades e especificidades de cada grupo social, possibilitando a procura de estratégias de intervenção apropriadas às necessidades particulares desses sujeitos. Para a enfermeira da 16ª CRS, a inclusão dessas pessoas na Política de Promoção da Equidade em Saúde, impede a violação de direitos a essa população, pois entende-se que a construção de políticas públicas para a comunidade imigrante promove o respeito à diversidade cultural, efetivando assim, seus direitos.
É de fundamental importância essa inclusão, pois as ações devem ser implementadas a nível nacional. É necessário avançar nas discussões de políticas que busquem acolher, atender e encaminhar esta população garantindo seus direitos. (Enfermeira da 16ª CRS/Departamento de APS).
A discussão a nível de coordenadoria especificamente sobre este tema é bastante recente já que no Estado esta política ainda está em estruturação. Penso que a partir de agora teremos mais subsídios para implementar ações junto aos municípios pensando em propostas que envolvam capacitação de profissionais da APS e gestores. (Enfermeira da 16ª CRS/Departamento de APS).
Ainda que o sistema de assistência à saúde no Brasil para os imigrantes seja considerado defasado e distante do ideal, existem alguns avanços importantes no SUS em âmbito estadual. Recentemente constataram-se importantes movimentos por parte da Secretaria Estadual de Saúde, como a Portaria SES nº 512/2020 que aprova a nova Política Estadual de Promoção da Equidade em Saúde, onde os migrantes, refugiados e apátridas são considerados como população específica dessa política de saúde. Além disso, a Portaria 635/2021 define os critérios de habilitação e a forma de distribuição do recurso financeiro do Programa Estadual de incentivos para a Atenção Primária em Saúde (PIAPS), onde serão distribuídos recursos com base na população de migrantes internacionais.
Diante dessa realidade, entende-se que diversas questões podem ser relacionadas às especificidades da condição do migrante e os desafios sofridos por essa população no acesso à saúde. Assim, reforça-se a importância da construção de políticas públicas específicas para os imigrantes, de modo que essas pessoas possam ser inseridas na comunidade, auxiliando-os na integração com a sociedade, diminuindo as desigualdades de acesso, a exploração e a discriminação contra essa população que é tão rica em cultura.
7 Considerações finais
Através dessa pesquisa, é possível concluir que, com o aumento significativo do fluxo migratório internacional para o Brasil, para os estados e para os municípios que recebem esses sujeitos, as discussões sobre essa realidade precisam ser cada vez mais inseridas no âmbito do Sistema Único de Saúde, de modo que as políticas públicas de saúde sejam reformuladas, e que suas ações se adaptem a esse novo contexto cultural em seus serviços, com atendimentos mais equitativos, inclusivos e acessíveis a todas as pessoas.
A falta de políticas públicas que atendam as especificidades dos imigrantes dificulta a construção de estratégias de intervenção para as questões que envolvem o processo de integração do imigrante aos serviços de saúde. Para atuar frente a esses conflitos, a Política Nacional e Estadual de Promoção da Equidade em Saúde, como princípio doutrinário do SUS e como uma política de justiça social, contribui para uma atenção à saúde mais eficiente às particularidades dos imigrantes, pois sem políticas públicas específicas, imigrantes sobrevivem da solidariedade das pessoas, contudo, essa população também possuem direitos como qualquer outra, e assim, merecem viver não apenas de caridade, mas como protagonistas de suas vidas.
Ainda neste estudo, concluiu-se que os desafios da imigração no SUS estão principalmente relacionados aos aspectos culturais dos imigrantes, sendo que estes são alguns fatores que influenciam nas condições de saúde desses sujeitos, e que a relação entre cultura e saúde constitui um campo amplo e complexo, onde exige a participação não só das equipes de saúde para conduzir com efetividade esse fenômeno no SUS, e sim, da gestão municipal no exercício da competência desses trabalhadores que atuam na promoção da saúde dessas pessoas.
Infere-se também que o movimento de capacitações dos trabalhadores de saúde, é considerada, sem dúvida, um elemento muito importante para conhecer a realidade e as diferentes demandas em saúde dos imigrantes, contribuindo para que os serviços de saúde sejam capazes de fornecer um atendimento compatível com as particularidades culturais e sociais desses sujeitos.
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