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Migração, raça e a questão regional no Brasil: uma leitura da contribuição de Giralda Seyferth
Luciana Butzke; Ivo Marcos Theis; Nelson Afonso Garcia Santos
Luciana Butzke; Ivo Marcos Theis; Nelson Afonso Garcia Santos
Migração, raça e a questão regional no Brasil: uma leitura da contribuição de Giralda Seyferth
Migration, race and the regional question in Brazil: a reading of Giralda Seyferth’s contribution
Migración, raza y la cuestión regional en Brasil: una lectura de la contribución de Giralda Seyferth
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 27, 2022
Universidade de Santa Cruz do Sul
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Resumo: O objetivo desse artigo é analisar a atualidade da contribuição de Giralda Seyferth aos estudos sobre migração e raça em sua relação com a questão regional no Brasil. Giralda Seyferth (1943-2017) foi historiadora e antropóloga e se dedicou aos estudos sobre colonização, campesinato, imigração, nacionalismo e racismo. Quanto ao método, recorremos à pesquisa bibliográfica, com uma análise das publicações da autora sobre os temas migração, raça e desenvolvimento regional. Na leitura de sua obra é possível identificar, na construção das regiões Norte e Sul do Brasil, no século XIX, a diferenciação entre os nacionais e os alienígenas, e o racismo intrínseco ao processo migratório estimulado na região Sul. Na formação do Brasil, é possível constatar como a produção das diferenças regionais se deu a partir dos diversos ciclos do capitalismo periférico brasileiro e da funcionalidade da escravização de africanos e africanas e da imigração alemã ao capital. Na obra de Giralda Seyferth transparece a incorporação da raça e do racismo, o seu uso na construção da Nação e a sua presença na fragmentação do território em regiões.

Palavras-chave: Migração, Raça, Região, Giralda Seyferth, Brasil.

Abstract: The purpose of this article is to analyze the timeliness of Giralda Seyferth’s contribution to the studies on migration and race in their relation to the regional question in Brazil. Giralda Seyferth (1943-2017) was a historian and anthropologist who devoted herself to studies on colonization, peasantry, immigration, nationalism and racism. As for the method, we used to bibliographic research, with an analysis of the author's publications on the themes of migration, race and regional development. In reading her work, it is possible to identify, in the construction of the North and South regions of Brazil, in the 19th century, the differentiation between nationals and aliens, and the racism intrinsic to the migratory process stimulated in the South region. In the formation of Brazil, it is possible to see how the production of regional differences occurred from the various cycles of Brazilian peripheral capitalism and from the functionality of Africans’ enslavement and of German immigration to capital. In Giralda Seyferth’s work, the incorporation of race and racism, its use in the construction of the Nation and its presence in the fragmentation of the territory into regions is made evident.

Keywords: Migration, Race, Region, Giralda Seyferth, Brazil.

Resumen: El objetivo de este artículo es analizar la actualidad de la contribución de Giralda Seyferth a los estudios sobre migración y raza en su relación con la cuestión regional en Brasil. Giralda Seyferth (1943-2017) fue una historiadora y antropóloga que se dedicó a los estudios sobre colonización, campesinado, inmigración, nacionalismo y racismo. En cuanto al método, recurrimos a la investigación bibliográfica, con un análisis de las publicaciones del autor sobre los temas de migración, raza y desarrollo regional. Al leer su obra, es posible identificar, en la construcción de las regiones Norte y Sur de Brasil, en el siglo XIX, la diferenciación entre nacionales y extranjeros, y el racismo intrínseco al proceso migratorio estimulado en la región Sur. En la formación de Brasil, es posible ver cómo la producción de las diferencias regionales se dio a partir de los diversos ciclos del capitalismo periférico brasileño y de la funcionalidad de la esclavización de africanos y africanas y de la inmigración alemana al capital. En la obra de Giralda Seyferth se pone de manifiesto la incorporación de la raza y el racismo, su uso en la construcción de la Nación y su presencia en la fragmentación del territorio en regiones.

Palabras clave: Migración, Raza, Región, Giralda Seyferth, Brasil.

Carátula del artículo

Migrações contemporâneas: desafios para os territórios e os direitos humanos

Migração, raça e a questão regional no Brasil: uma leitura da contribuição de Giralda Seyferth

Migration, race and the regional question in Brazil: a reading of Giralda Seyferth’s contribution

Migración, raza y la cuestión regional en Brasil: una lectura de la contribución de Giralda Seyferth

Luciana Butzke
Universidade Regional de Blumenau, Brasil
Ivo Marcos Theis
Universidade Regional de Blumenau, Brasil
Nelson Afonso Garcia Santos
Universidade Regional de Blumenau, Brasil
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 27, 2022
Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 15 Marzo 2022

Aprobación: 14 Septiembre 2022

1 Introdução

A imigração cresceu em 24,4% no Brasil nos últimos dez anos, sendo venezuelanos, haitianos e colombianos os principais responsáveis por esse aumento. Nos fluxos migratórios predominam os imigrantes negros, com um crescimento de sua presença no mercado de trabalho de São Paulo e da região Sul (OBMIGRA, 2020). Nas migrações internas, os dados sobre as macrorregiões do Brasil até 2015 informam que o Sudeste deixa de ser um espaço de atração em favor das regiões Centro-Oeste e Sul (DOTA; QUEIROZ, 2020).

Em 2017 foi aprovada uma Nova Lei de Migração, alterando o discurso e a prática da segurança nacional, do imigrante como ameaça à segurança interna do país, para incorporar a referência mais ampla dos direitos humanos (COSTA; SOUZA; BARROS, 2019). Passados apenas dois anos, em 2019, em surpreendente contradição com os termos da Nova Lei de Migração, o atual presidente da República decidiu que o Brasil não seria mais signatário do Pacto Global da Migração, com a justificativa de que com este gesto estaria defendendo a soberania do país (SPOSATO; LAGE, 2020).

Em 24 de janeiro de 2022, Moїse Kabagambe, refugiado africano, foi agredido e morto, com golpes de um artefato de madeira, em um quiosque na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro (DURAN; ARAÚJO, 2022). Evidencia-se aí a existência, em pleno século XXI, de preconceito violento contra imigrantes negros/as. Em 7 de fevereiro, durante uma entrevista com a deputada Tabata Amaral e o deputado Kim Kataguiri, Bruno Aiub (conhecido como Monark), do Flow Podcast, defendeu a livre organização de um partido nazista no Brasil (ALECRIM; MOLITERNO; TORTELLA, 2022), com isso expressando sua identificação ideológica com a supremacia branca.

Em face desta conjuntura, considerando o aumento da imigração e da migração interna (e sua desigual distribuição entre as regiões brasileiras), o avanço na legislação da migração (e seu recente retrocesso), o preconceito e a violência contra migrantes negros/as, e manifestações públicas em defesa do nazismo, cabe buscar compreender a continuidade e descontinuidade histórica dos processos migratórios, bem como seus desdobramentos no espaço geográfico, em especial, na escala regional. No cerne dessa tarefa científica, cumpre também identificar brechas que podem apontar para mudanças de caráter prático-político.

Giralda Seyferth (1943-2017) foi pioneira nos estudos sobre o racismo presente nas políticas imigratórias no Brasil (BLANCHETTE, 2019). Ela, historiadora e antropóloga, tratou de temas específicos – colonização, campesinato, imigração alemã, nacionalismo e racismo... – em um recorte espaço-temporal definido: o Vale do Itajaí, no estado de Santa Catarina, no período que vai da segunda metade do século XIX à primeira metade do século XX. Seus estudos trazem contribuições significativas sobre como raça e migrações se relacionam com a escala regional no Brasil.

O objetivo desse artigo consiste, precisamente, em analisar a atualidade da obra de Giralda Seyferth, considerando as relações entre migração, raça e a questão regional. Entre os objetivos específicos elegemos: (a) identificar a presença de migração e raça na construção das regiões; (b) analisar as relações entre migração e raça na formação do capitalismo; (c) enfatizar aspectos da obra de Giralda Seyferth que nos auxiliem a refletir sobre as singularidades da migração no sul do Brasil.

Giralda Seyferth utilizou em sua obra o termo imigração e imigrante, dado o recorte que fez em suas pesquisas. Todavia, quando nos referimos ao tema mais abrangente, utilizamos migração, entendendo que esse termo designa tanto o deslocamento dentro do próprio país quanto o deslocamento internacional (DMDH, MIGRAMUNDO; FICAS, 2019). Para esse artigo selecionamos publicações da autora sobre os temas presentes no título (migração, raça e desenvolvimento regional). As referências teóricas com as quais Giralda Seyferth trabalha são bastante diversas. Contudo, a ênfase neste artigo recai sobre os resultados de suas pesquisas, em especial, sobre migração e raça no Brasil. Portanto, não se pretendeu organizar suas ideias, obras e investigações de forma cronológica. Daí que, aqui, seus achados foram reunidos em quatro temas principais: a invenção das regiões; os nacionais; os alienígenas na formação do capitalismo brasileiro; e o empresariado étnico como expressão da singularidade da migração no sul do Brasil. Esses temas têm origem em diferentes artigos e livros, escritos em períodos distintos, ora colocados em diálogo.

Na leitura de sua obra é possível identificar, na construção das regiões Norte e Sul do Brasil, no século XIX, a diferenciação entre os nacionais e os alienígenas, e o racismo intrínseco ao processo migratório estimulado na região Sul. Na formação do Brasil, é possível constatar como a produção das diferenças regionais se deu a partir dos diversos ciclos do capitalismo periférico brasileiro e da funcionalidade da escravização de africanos e africanas e da imigração alemã ao capital. Na obra de Giralda Seyferth transparece a incorporação da raça e do racismo, o seu uso na construção da Nação e a sua presença na fragmentação do território em regiões.

O artigo está dividido em seis partes. Em seguida a esta introdução, na segunda parte (A invenção do Norte e do Sul do Brasil) examina-se a relação histórica entre desequilíbrio regional, raça e migração. A terceira parte (Os nacionais na contramão do capitalismo) é dedicada ao caráter racial do capitalismo periférico brasileiro. A quarta parte (Os alienígenas e o capitalismo à brasileira) aborda o uso da lógica familiar e moral como base para a relação capital e a consolidação do empresariado étnico. Na quinta parte (Uma nova pátria dentro do Brasil? O curioso exemplo do empresariado étnico) debruçamo-nos sobre a nacionalização forçada dos alienígenas, buscando mostrar que, mesmo diante do “perigo alemão”, dita campanha não atrapalhou os negócios. Por fim, nas considerações finais, apresentamos uma síntese em relação às principais contribuições da autora para o tema e algumas digressões sobre sua atualidade.

2 A invenção do Norte e do Sul do Brasil

Desde o século XVI, com a exploração/dominação portuguesa, ao Brasil tem sido conferidas tarefas subalternas. Desde essa época, seu território vem sendo fragmentado e reproduzindo desigualdades. Nesse percurso contou-se, no Norte (atual Nordeste), com a extração do pau-brasil e a produção de açúcar; depois, no Centro-Sul, com a extração de ouro e diamantes, o cultivo do café e, a partir dos anos 1930, a industrialização. Nesses ciclos, o capital explorou os espaços e as gentes para se valorizar/reproduzir (THEIS, 2020).

Nos tempos do Brasil Colônia, o espaço foi, inicialmente, fragmentado em capitanias hereditárias (1530) e, em seguida, dividido em dois estados (1621): o do Grão-Pará e o estado do Brasil (KAHN, 1972). Nesse período, o Brasil era uma extensão do estado português. Em 1580, com a União Ibérica, o Brasil passaria a ser Colônia hispânica. São, de um lado, a perda de mercado da cana-de-açúcar e, de outro, o descobrimento de jazidas de ouro e diamantes que levarão à ascensão do Centro-Sul do país como importante espaço econômico (MORAES, 2001; THEIS, 2020). Foi esse deslocamento geográfico que tornou possível a invenção do Norte e do Sul ao longo do século XIX.

Em seus estudos, Giralda Seyferth utilizou os termos Norte e Sul para abordar as duas regiões e suas gentes (nacionais . alienígenas)1, como se formaram e de que forma foram consideradas nas políticas imigratórias. Ela mostrou evidências do quanto os modos de ser e viver dessas populações que se deslocaram trouxeram mudanças, do quanto se modificaram em contato com o espaço geográfico que passaram a ocupar. Tais modos de ser e viver foram atravessados pelas atividades econômicas e contribuíram para as regionalizações que tiveram lugar no Brasil, tanto as empreendidas pelo Estado central quanto as levadas a efeito a partir das próprias regiões.

Nesse processo, o discurso e a prática das elites políticas e intelectuais adotaram a tese da miscigenação e, a partir de 1850, uniram-se ao discurso e à prática nacionalista, visando a formação da nação. O branqueamento da população e a constituição de uma futura raça histórica brasileira, juntamente com a ocupação do território, faziam parte das políticas imigratórias (SEYFERTH, 1996). Nesse sentido,

(...) as diferenças regionais eram tomadas como indício de desigualdade (ora atribuída a peculiaridades climáticas e geográficas, ora a problemas de natureza racial) – levando alguns nacionalistas mais exaltados a externar suas preocupações com o ‘desequilíbrio’ Norte-Sul, que, segundo interpretação corrente no início da República, seria resolvido com uma distribuição equitativa de imigrantes europeus por todo o território nacional. (SEYFERTH, 2000, p. 82).

Todavia, a expectativa do Estado em relação à colonização, à assimilação e ao caldeamento se frustrou, na medida em que a diversidade cultural resultante do processo migratório foi distinta de um projeto de identidade nacional. “A nação imaginada pelo nacionalismo racializado, portanto, não tinha espaço para negros nem mesmo para os indígenas e os mestiços que, na hierarquia biológica dos esquemas classificatórios fenotípicos, estavam mais próximos das raças bárbaras.” (SEYFERTH, 2002b, p. 36).

A década de 1880 marca o início de um período histórico de forte movimento imigratório para o Brasil. Neste contexto mais amplo, expandiram-se o colonialismo e o capitalismo. É, pois, na República Velha que se constituiu, a partir das distinções regionais, a oposição entre o Sul branco e capitalista e o Norte mestiço e atrasado. Os desequilíbrios regionais passaram a ser associados ao critério racial (SEYFERTH, 2011; 2000; 1996). Nesse período houve várias revoltas (Canudos, Contestado, Revolta da Vacina, Revolta da Chibata...) que aumentaram a tensão entre grupos sociais subalternos, elites regionais e o Estado.

As primeiras décadas do século XX foram marcadas pela emergência de movimentos e literaturas regionais, bem como pela criação de Institutos Históricos e Geográficos (ALBUQUERQUE JR., 2011). Logo ficou evidente a necessidade de uma divisão regional que se tornasse base para acomodar regionalismos políticos e culturais, assim como para o facilitar o controle e o planejamento estatal. A primeira regionalização oficial do Brasil data de 1942 (BALBIM; CONTEL, 2013).

No período de 1937 a 1945, parte da população brasileira foi afetada pela “campanha de nacionalização”, que tinha como objetivo o caldeamento dos alienígenas em nome da nação. A política imigratória da República Velha foi criticada por ter permitido a fixação de colônias homogêneas no Sul, descuidando do equilíbrio regional. Interessante observar que os nacionalistas do Estado Novo consideravam o Nordeste, por este ter ficado de fora do processo imigratório, como lócus de brasilidade. Nesse cenário, o objetivo mais urgente era “nacionalizar” o Sul (SEYFERTH, 1997).

Giralda Seyferth inovou ao relacionar migração e raça como importantes processos referidos à fragmentação do Brasil em regiões no século XIX. Ela mostrou que a localização das atividades econômicas e a atuação do Estado nas políticas migratórias contribuiu para a invenção do Norte e do Sul. Embora não tenha tratado propriamente das regionalizações do século XX, ela certamente contribuiu, juntamente com outros/as autores/as (ALBUQUERQUE JR., 2011; BALBIM; CONTEL, 2013; CARDOSO, 2020; THEIS, 2019), para desvelar a atuação do Estado na construção tanto da identidade nacional brasileira quanto das identidades regionais – por exemplo, a partir da “campanha de nacionalização” e das regionalizações oficiais.

3 Os nacionais na contramão do capitalismo

No século XIX, o discurso sobre o “progresso” utilizava referências do determinismo racial e ambiental, muito disseminado na Europa. Tanto as elites políticas quanto as elites intelectuais tinham a compreensão de que a desigualdade econômica e os diferentes costumes resultavam de suposta desigualdade racial resultante da mestiçagem. Era preciso transformar o Brasil em um país economicamente pujante. Mas, com a escravidão e os escravos, isso seria impossível. No discurso imigrantista brasileiro, a escravidão seria uma forma arcaica de exploração econômica. Era preciso trazer imigrantes que pudessem ser assalariados para fazer do Brasil um país capitalista (SEYFERTH, 2016; 2015).

Tanto as elites políticas quanto as políticas de imigração receberam a atenção de Giralda Seyferth. Mas, ela também procuraria mostrar como as elites intelectuais tratavam a relação entre raça e migração. Para isso, ela recorreu aos intérpretes do pensamento social brasileiro do período escravista até o início das pesquisas sobre relações raciais, em meados de 19502. A ideia de raça e migração atravessa as interpretações do Brasil. Sua historicidade é fundamental para compreender como o determinismo racial/ambiental e a eugenia se manifestam no debate público da época (BAHIA; ZANINI; MENASCHE, 2015). “De fato, a Giralda [Seyferth] era implacável em sua análise de como as políticas brasileiras sobre a imigração eram atreladas ao sistema escravocrata e, mais tarde, a propostas eugênicas e racistas.” (BLANCHETTE, 2019, p. 59).

Cumpre lembrar que a “ciência das raças” foi gestada no Brasil desde 1860, tendo como base a hierarquia das raças, na qual a branca despontava como superior. A desqualificação dos não brancos se fazia pela suposta incapacidade destes ao trabalho livre, sem que se discutisse o fim da escravidão. A escravização e o trabalho escravo eram naturalizados, não se cogitando nem a abolição nem a substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre. “É como se os descendentes de africanos estivessem simplesmente destinados ao desaparecimento no contexto de uma civilização não escravista”. (SEYFERTH, 1996, p. 5).

As primeiras tentativas de colonização de imigrantes europeus se deram em 1818, no que hoje chamamos de Nordeste e no estado do Rio de Janeiro. No Nordeste, o fracasso da colonização europeia foi justificado pelo clima tropical. Após a Independência, em 1824, a imigração foi retomada devido a disputas territoriais com Argentina e Uruguai. A colonização serviria para proteger as fronteiras e povoar terras com baixa densidade populacional. Como não houve resultados satisfatórios, a colonização foi interrompida em 1830 e retomada em 1846. No período entre 1818 e 1850 o Brasil recebeu 20 mil europeus, dos quais seis mil alemães foram encaminhados para o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e o Paraná. A partir de 1850, com a abolição do tráfico de escravos, a política imigratória se tornou mais consistente, favorecida pela Lei 601, que regulamentou a concessão de terras públicas e propiciou a expedição de títulos de propriedade a estrangeiros (SEYFERTH, 1996).

A noção de terra pública e devoluta, base para o início das imigrações no Brasil, não considerou a presença de posseiros e/ou nacionais. A exclusão é reflexo do racismo vigente no aparelho de Estado desde o século XIX, aparecendo na República com a tese do branqueamento (GUIMARÃES, 2011) – o que explica o recurso à imigração europeia.

No discurso das elites (inclusive da área acadêmica), quando se trata da imigração, o brasileiro comum, mestiço, índio ou negro, foi condenado à inferioridade racial, apesar da mestiçagem ter sido imaginada enquanto processo depurador de um povo branco com o concurso do imigrante. (SEYFERTH, 2005, p. 5).

A miscigenação e a assimilação dos alienígenas na República estavam presentes nas discussões sobre a política imigratória. Havia, como referido, uma forte influência das teorias raciais, especialmente aquelas relacionadas à eugenia. “A crença na superioridade racial dos brancos continuou produzindo a desqualificação biológica e cultural de asiáticos e negros e, às vezes, dos chamados ‘povos semíticos’ (incluindo árabes e judeus).” (SEYFERTH, 2005, p. 9).

Giralda Seyferth nos obriga a pensar na formação do povo brasileiro e na desconsideração dos nacionais (indígenas, negros e mestiços), bem como na constituição do Estado e no surgimento do pensamento social brasileiro a partir de referências europeias. Essas referências foram inspiradas, como é sabido, no determinismo racial e na eugenia, funcionais tanto para a exploração de indígenas e africanos quanto para a atração de europeus brancos através das políticas imigratórias. Giralda Seyferth estava atenta à localização geográfica das atividades econômicas e aos seus ciclos, mas, nesse processo, destacou os aspectos raciais e os movimentos imigratórios.

No caso dos brasileiros de origem africana, a etnicidade se constituiu em uma forma de mobilização política. Giralda Seyferth analisou a Frente Negra Brasileira, da década de 1930, e a proposta dos intelectuais e negros, dos anos 1970, que adotaram a etnicidade afro-brasileira como estratégia de mobilização. A sua recuperação da contribuição africana na formação do Brasil justificava-se “não apenas pelo que representaram os escravos no plano da economia, mas por toda a contribuição africana à cultura e à sociedade brasileira.” (SEYFERTH, 1983, p. 12).

4 Os alienígenas e o capitalismo à brasileira

Giralda Seyferth se utilizou das categorias colono, imigrante, estrangeiro e alienígena. Lá pelos idos de 1818, na documentação de Nova Friburgo (RJ), não havia referência a imigrantes. O termo utilizado era colono. No período inicial da colonização alemã, de 1818 a 1830, o termo colono é utilizado nos decretos e outros documentos. Passaram a se referir a estrangeiro a partir de 1830, quando se possibilitou a naturalização e algumas condições de cidadania para os imigrantes (SEYFERTH, 2008).

Depois de algumas tentativas no início do século XIX, já referidas, a colonização enquanto projeto foi retomada em 1824, após a independência do Brasil. O intuito era estimular a exploração agrícola baseada na pequena propriedade rural. Também havia razões econômicas (abastecimento das cidades) e razões geopolíticas (consolidação das fronteiras internacionais e ocupação de áreas de baixa densidade populacional) (SEYFERTH, 2016). Leo Waibel – citado por Seyferth (2016) – afirmou que o colono criou uma nova paisagem cultural, mas lamentou o fato de que mesmo tendo acesso a tecnologias mais avançadas, adotou-se sistema mais primitivo nas colônias: derrubar, queimar e plantar sem arado (WAIBEL, 1949).

O fluxo imigratório foi bem intenso entre os anos de 1880 e 1920. Apenas no ano de 1890 ingressaram no Brasil mais de um milhão e duzentos mil indivíduos de origem europeia. Eram as políticas imigratórias a serviço da “imaginada nação branca do futuro” (SEYFERTH, 1996, p. 11). A imigração no período Imperial havia sido criticada por basear-se em colônias homogêneas. Não deve surpreender que nada tenha mudado, substancialmente, com o advento da República.

No processo de colonização do Sul, a família foi considerada uma unidade produtiva. O camponês tinha dificuldade de calcular o valor de sua força de trabalho. Em geral, o trabalho feminino e infantil era considerado como “ajuda”. Nos trabalhos de Giralda Seyferth, os camponeses “embora se autoexplorando, com rotinas de trabalho exaustivas, sentem que trabalham para si e para a família, na geração de uma mais valia ‘em casa’ e para a casa (família), para os seus.” (ZANINI, 2019, p. 82).

Com o desenvolvimento das forças produtivas, o colono daria lugar ao colono-operário, aquele que, por um lado, é dono dos meios de produção, mas, por outro, vende sua força de trabalho como assalariado.

Como ressalta Seyferth, a lógica do camponês que é trabalhador e patrão ao mesmo tempo dilui a sensação de exploração, tornando-a um ‘mal necessário’. Nessa diluição, o que se observa é a prevalência de uma lógica familiar e moral sobre uma racionalidade econômica capitalista pura. (ZANINI, 2019, p. 85).

Com o passar do tempo, os colonos foram se distinguindo das pessoas que viviam na área urbana. Nesse processo, o surgimento de alguns comércios contribuiu para o estabelecimento da polaridade rural-urbana. Os imigrantes que possuíam algum recurso puderam iniciar algum negócio. Para Giralda Seyferth (2016), na análise de publicações e estudos sobre a imigração alemã no Vale do Itajaí, pode se verificar que os empresários e o espírito empreendedor eram enaltecidos, enquanto a classe operária, que cresceu com a industrialização, permaneceu desconhecida. Em muitos dos materiais que analisou, os camponeses e operários aparecem como beneficiários dos empresários capitalistas, essas pessoas que, supostamente, tinham grandes preocupações sociais. Na realidade, há uma parte dessa história de bondade e altruísmo que precisa ser elucidada.

Vejamos: no caso referido do Vale do Itajaí, o processo de industrialização compreende três momentos: (i) a implantação da indústria têxtil (fins do século XIX), (ii) a afirmação das indústrias têxteis e a predominância do colono-operário; e (iii) o desenvolvimento econômico a partir da Segunda Guerra Mundial, que marcou a expansão das indústrias têxteis e o aumento do número de empregos nas fábricas, momento em que o colono-operário se converteu em operário (SEYFERTH, 1974). No período de 1925 a 1945, as duas maiores empresas de Santa Catarina eram a Fábrica de Tecidos Carlos Renaux, localizada no município de Brusque, e a Indústria Têxtil Cia. Hering, localizada no município de Blumenau (GOULARTI FILHO, 2002). Teriam elas tido algum prejuízo nessa época?

A burguesia industrial que se desenvolveu no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, chamada por Giralda Seyferth de empresariado étnico (ver a próxima seção), teve sua origem na atividade comercial, envolvendo importação e exportação de bens com a Alemanha. Com o advento da República emergiram lideranças políticas teuto-brasileiras, ligadas a esse empresariado étnico. Destaque-se que essa elite econômica esteve representada na maioria dos governos estaduais e no Senado durante a República Velha. A germanidade econômica foi levada ao campo político em um contexto de nacionalismos divergentes (no caso, o brasileiro e o alemão) (SEYFERTH, 2011).

A imigração no Brasil configuraria uma pluralidade cultural conflitante com o nacionalismo que passaria a predominar com o governo Getúlio Vargas (SEYFERTH, 2005). Isso se refletiria na “campanha de nacionalização”, a partir de 1937. O entendimento passou a ser de que as políticas de imigração anteriores a 1930 levaram a uma grande concentração de estrangeiros em uma região específica do país. Por isso, na “campanha de nacionalização”, a “assimilação tornou-se o qualificador essencial da cidadania e nacionalidade.” (SEYFERTH, 2005, p. 11).

A expansão da industrialização no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, após a Segunda Guerra Mundial, que requereu o trabalho dos operários teuto-brasileiros e a contratação de operários “brasileiros”, sugere que – à luz do desempenho da Fábrica de Tecidos Carlos Renaux e da Indústria Têxtil Cia. Hering nesse período – os negócios experimentaram inequívoco êxito. De maneira que, da parte do empresariado étnico, não apenas houve ganhos econômicos, como é próprio a empreendimentos capitalistas, mas também reconhecimento por sua alegada generosidade. Da parte dos operários, considerados tanto os operários teuto-brasileiros quanto os operários “brasileiros”, se bem a sua convivência não tenha apagado a diferenciação racial, ela pelo menos instilou-lhes uma incipiente consciência de classe, que acabaria levando à primeira greve em Santa Catarina, com duração de quase 30 dias, no início da década de 1950 (SEYFERTH, 1981).

A partir da obra de Giralda Seyferth sobre a imigração alemã no Sul do Brasil é possível acompanhar a constituição isolada das colônias e do colono, assim como a combinação da família e da moral com a forma capitalista. Essa primeira combinação se transpõe para o colono-operário, da qual se aproveitaram os empresários étnicos. Estes se valeram da oposição entre nacionais e alienígenas para reforçar os laços de solidariedade entre os etnicamente iguais, evocando o compromisso com o trabalho e com a empresa como forma de reforçar a característica de “povo trabalhador” – assim mascarando a exploração dos trabalhadores e trabalhadoras, não importando sua etnia de origem.

5 Uma nova pátria dentro do Brasil? O curioso exemplo do empresariado étnico

A Alemanha enquanto Estado nacional unificado não existia quando os imigrantes alemães chegaram ao Brasil, nas primeiras décadas do Século XIX. Cumpre lembrar que a Alemanha se unificou em fins do século XIX e, em decorrência de seu rápido desenvolvimento econômico, logo envolveu-se na disputa inter-imperialista, com o seu conhecido corolário de interesses econômicos sobrepostos. Nesse contexto, a etnicidade ajudou a fomentar um discurso nacionalista anti-germânico (BAHIA, 2019; SEYFERTH, 2011).

Para compreender esse movimento é importante recuperar parte de sua história. Com este propósito, Giralda Seyferth investigou a imigração alemã como um todo, mas utilizando como caso de estudo o já mencionado Vale do Itajaí, em Santa Catarina.

O que torna a imigração alemã importante como fenômeno sociológico e histórico é o fato de ter se constituído, principalmente como colonização – isto é, muitos dos imigrantes estabeleceram-se como colonos em áreas pioneiras, construindo uma sociedade inteiramente diversa da nacional. (SEYFERTH, 2016, p. 17).

Cabe lembrar que a colonização em terras consideradas devolutas fez com que fossem colonizadas áreas de floresta, sem vias de comunicação terrestre. Logo, a primeira e a segunda gerações de imigrantes praticamente não tiveram contato com a sociedade brasileira. Tal fato acabou levando a uma característica da formação comunitária étnica: a região como Heimat (casa). Essa formação manteve muito da cultura simbólica de origem, mas também incorporou muito da cultura material de destino, facilitando a adaptação ao meio ambiente (SEYFERTH, 2011).

Na constituição da identidade teuto-brasileira destacaram-se os empresários étnicos mencionados na seção anterior. De posse de casas comerciais, que eram locais de sociabilidade e de venda de jornais e revistas em língua alemã, os empresários levaram até os colonos o discurso de pertencimento étnico. Nesses espaços circulava a noção de Deutschtum, que se referia

(...) ao progresso das colônias como produto do ‘trabalho alemão’, e principal contribuição de cidadãos exemplares ao país de acolhida; e étnico, com ênfase na origem alemã e no ‘direito’ de ser cidadão legítimo como língua e cultura distintas, num país que devia assumir sua pluralidade cultural. (SEYFERTH, 2011, p. 58).

A í, então, se destacaria o uso da etnicidade na política, como estratégia de consolidação da pequena burguesia local. Tratava-se de negar a assimilação e de propor um duplo pertencimento: a uma identidade teuto-brasileira e ao Brasil, combinando etnicidade e cidadania. O objetivo era manter a origem alemã e obter a cidadania brasileira (SEYFERTH, 1999; 2011). “A definição de identidade teuto-brasileira, porém, sugere não só uma reivindicação ao pluralismo cultural, mas, igualmente, a pertença a outro povo ou raça, com cultura e costumes próprios.” (SEYFERTH, 2005, p. 12).

Os discursos e as práticas das elites políticas e intelectuais brasileiras no já referido período de nacionalização oscilaram entre o enaltecimento da colonização alemã e o “perigo alemão”:

A imigração sempre suscitou posicionamentos contraditórios, em qualquer época: considerada necessária e até mesmo instrumento de civilização na consolidação do Estado, pode ser convertida em problema ou perigo nos períodos de crise, ou produzir sentimentos de xenofobia quando referenciada à nação. (SEYFERTH, 2008, p. 12).

No período de 1937 a 1945, parte considerável da população brasileira havia sido afetada pela mencionada “campanha de nacionalização”, que tinha como objetivo o caldeamento dos alienígenas em nome da nação. “A campanha foi concebida como 'guerra' para erradicação de ideias alienígenas, com o objetivo de impor o 'espírito nacional' aos patrícios que formavam 'quistos étnicos' erroneamente tolerados pelo liberalismo da República Velha.” (SEYFERTH, 1997, p. 95). Nesse período não apenas foram proibidos a circulação de publicações estrangeiras e o ensino e uso de línguas estrangeiras em público, mas também se obrigou as escolas a adotarem o currículo oficial e a demitirem professores/as que não eram brasileiros/as natos/as.

A campanha de nacionalização se intensificou após 1942, quando o Brasil declarou guerra à Alemanha. Cabe enfatizar que, àquela altura, o nazismo foi um elemento desagregador – por exemplo, entre os teuto-brasileiros do município catarinense de Brusque, no Vale do Itajaí. Com efeito, aí se deu uma identificação maior com o Partido Integralista do que com o nazismo. É importante lembrar que a propaganda nazista foi permitida até o ano de 1938. Portanto, com o Estado Novo ela seria proibida. É curioso que a responsabilidade pela campanha de nacionalização foi atribuída a Nereu Ramos, que, na época, era interventor de Santa Catarina. De sua parte, Getúlio Vargas aparecia como benfeitor da classe operária (SEYFERTH, 1981; DEMIER, 2013). Neste ponto convém recuperar uma afirmação da seção anterior: as indústrias têxteis do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, experimentaram grande crescimento no período da “campanha de nacionalização” e no Pós-Segunda Guerra Mundial. Definitivamente, o “perigo alemão” não atrapalhou os negócios.

Em síntese: a política de aumentar a oferta interna de mão de obra com o recurso à imigração acabaria prevalecendo, embora fosse contraditória em relação ao nacionalismo e à construção da identidade nacional (cultura, língua, raça, etnia e/ou civilização) (SEYFERTH, 2008). A este propósito, pode ser lembrado que as críticas dirigidas aos alemães se referiam, sobretudo, ao seu “orgulho nacional responsável pela sua tendência a permanecer alemão, sem amalgamar-se aos brasileiros – o que traria riscos à integridade da Nação brasileira.” (SEYFERTH, 2016, p. 30). Contudo, o fato de que a política voltada à ampliação da força de trabalho tenha prevalecido parece sugerir não apenas que aspectos identitários, relativos à construção da nacionalidade, tinham, no fim das contas, menor significação; mas, na realidade, indica que o avanço das forças produtivas do capital requeria o aporte de mais mulheres e homens que pudessem ser mobilizados para a criação de valor.

6 Considerações finais: o passado ainda presente

Iniciamos o artigo, mencionando o aumento da migração no Brasil, o deslocamento dos fluxos migratórios para as regiões Centro-Oeste e Sul, a mudança na lei de migração (que considerava o/a migrante uma ameaça por ver nele/a um/a detentor/a de direitos humanos), a violência contra migrantes negros/as, e recentes manifestações públicas em defesa do nazismo. Que relações podemos estabelecer entre esses fatos e os estudos de Giralda Seyferth? Que conexões há entre esses dados da realidade e o tema aqui tratado: migração, raça e a questão regional?

A inovação de Giralda Seyferth foi a de compreender migração e raça como processos que repercutem em termos de fragmentação do território em regiões no século XIX, ao demonstrar que tais processos contribuíram, naqueles tempos, para a invenção do Norte e do Sul do Brasil. Em sua análise sobre a imigração alemã no Sul do Brasil, Giralda Seyferth leva a compreender a regionalização do Norte e do Sul em perspectiva histórica, a captar a região como processo e não como espaço natural ou espaço dado. Apesar do peso da atuação do Estado e das atividades econômicas nos processos de regionalização, ela propõe observar o movimento das populações nas migrações como relação: as pessoas fazem a região, tanto no momento de sua saída (a região de origem) quanto no momento de sua chegada (a região de destino). As pessoas se movimentam e, assim, se modifica; dialeticamente, o espaço no qual se movimentam também se modifica.

As leis e políticas migratórias podem estimular e orientar as migrações, mas não as controlam completamente. Recuperando as inferências da autora, podemos perceber que, ao longo do século XIX, o propósito era povoar e branquear a população; e do final do século XIX até metade do século XX, o intuito passou a ser a criação de uma identidade nacional. Apesar das políticas encetadas pelo Estado brasileiro, as colônias isoladas fugiram à finalidade inicialmente esboçada. Se nos reportarmos novamente à posição do atual governo brasileiro (de sair do Pacto de Migração), dispomos de (novas) evidências, com base no trabalho de Giralda Seyferth, de que a atuação do Estado tem tido, ao longo da história, uma forte presença de racismo, autoritarismo e nacionalismo. Dependendo dos governantes de plantão, e dos interesses que representam, essas referências (de racismo, autoritarismo e nacionalismo) podem voltar a ser veiculadas e a conduzir a novos retrocessos – como podem, dialeticamente, também desencadear resistências por parte dos migrantes. Afinal as políticas migratórias não podem controlar as migrações por completo.

Outro ponto a considerar é que tanto na constituição do Estado quando na elaboração do pensamento social brasileiro sobressaíram referências europeias, daí resultando que, na formação do povo brasileiro, os nacionais foram discriminados. Giralda Seyferth conferiu destaque às referências que inspiraram essas malformações: o determinismo ambiental e racial e a eugenia. Elas justificaram tanto a escravização e exploração de indígenas e africanos quanto a atração dos europeus brancos através das políticas migratórias. Aqui, a grande contribuição de Giralda Seyferth foi incluir o componente racial nos estudos sobre migração. Através de suas investigações, podemos identificar a formação do racismo estrutural, que já no século XIX excluía os nacionais da concessão de terras públicas e devolutas. Na República Velha, este racismo estava presente na tese do branqueamento. Nesses tempos miseráveis, ele se manifesta nas múltiplas práticas discriminatórias do Estado, de indivíduos e de grupos sociais.

Já no que se refere aos nacionais . alienígenas, abrem-se possibilidades de reconhecer as dificuldades vividas por esses grupos sociais e de sua mobilização política. No caso dos nacionais, as elites políticas e intelectuais de outrora acreditavam que o Brasil precisava ser um país capitalista – o que, com a escravidão e escravos seria impossível. Com a exclusão dos nacionais da posse da terra e do trabalho assalariado, há uma trajetória histórica de luta por reconhecimento, bem como de recuperação da contribuição africana na construção do Brasil. Os alienígenas, por sua vez, foram incorporados ao capitalismo à brasileira: primeiro como colonos, depois como colonos-operários e, finalmente, como operários. No insuflamento da ideia de povo trabalhador, foi se construindo a oposição entre os teuto-brasileiros e os nacionais – e se mascarando a exploração do trabalho e de trabalhadores e trabalhadoras. A novidade que Giralda Seyferth ofereceu a este debate foi a de que os teuto-brasileiros e os nacionais se encontraram no chão de fábrica e produziram, por incipiente que tivesse sido, alguma identidade de classe.

Cabe questionar se, atualmente, o contato entre etnias em uma situação de trabalho, também poderia favorecer a consciência de classe. Na relação entre os empresários étnicos e os/as trabalhadores/as, Giralda Seyferth mostrou que, tanto na etapa da colonização quanto no período recente, os primeiros são enaltecidos e vistos como portadores de grandes preocupações sociais, enquanto a classe operária permanece ocultada, vista apenas como “colaboradora”.

Considerando que o capital em escala global, o Estado em escala nacional e o empresariado em nível local/regional contribuem, às vezes, estimulando, outras vezes, impondo deslocamentos populacionais, cabe-nos considerar as implicações do aumento dos fluxos migratórios em termos sociopolíticos, étnico-culturais e espaciotemporais. No que respeita ao tema aqui tratado – migração, raça e a questão regional – a obra de Giralda Seyferth serve não apenas de inspiração para questionar o altruísmo dos empresários étnicos, as regionalizações induzidas pelo movimento do capital e pelas políticas do Estado, e a subalternização dos migrantes; mas também para formular estratégias de ação que contemplem as necessidades dos grupos compelidos a se deslocar e os grupos constrangidos a permanecer na região. Talvez a etnia possa constituir instrumento de mobilização política – no desigual embate contra o capital em escala global, o Estado em escala nacional e o empresariado em nível local/regional – para articular os direitos dos migrantes à dignidade.

Material suplementario
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
1 Em razão das etnicidades e das culturas diferenciadas, entende-se como nacionais os brasileiros comuns, mestiços, índios e negros; e como alienígenas os alemães (considerados os mais alienígenas), italianos e poloneses (SEYFERTH, 1997).
2 Alguns intérpretes analisados por Giralda: Perdigão Malheiro, Joaquim Nabuco, João Batista de Lacerda, Sílvio Romero, Oliveira Viana, Manuel Bomfim, Edgar Roquete-Pinto, Gilberto Freyre, Fernando de Azevedo, Emilio Willems, Florestan Fernandes, Oracy Nogueira, Roger Bastide e Thales Azevedo (BAHIA; MENASCHE; ZANINI, 2015).
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