Migrações contemporâneas: desafios para os territórios e os direitos humanos
Movimentos sociais e a Lei de Migração (Lei n° 13.445/2017) na sociedade complexa: caminhos para a legitimação democrática de políticas migratórias contrahegemônicas no ordenamento jurídico brasileiro
Social movements and the migration law (Law n° 13.445/2017) in complex society: pathways for the democratic legitimation of counter hegemonic migratory policies in the brazilian legal order
Los movimientos sociales y la ley de migración (Ley n.° 13.445/2017) en la Sociedad conpleja: vías para la legitimación democrática de las políticas migratorias contrahegemónicas en el orden jurídico brasileño
Movimentos sociais e a Lei de Migração (Lei n° 13.445/2017) na sociedade complexa: caminhos para a legitimação democrática de políticas migratórias contrahegemônicas no ordenamento jurídico brasileiro
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 27, 2022
Universidade de Santa Cruz do Sul
Recepción: 11 Marzo 2022
Aprobación: 22 Septiembre 2022
Resumo: Este artigo analisa a importância dos movimentos sociais na construção de um novo arcabouço de políticas migratórias no Estado brasileiro. Pergunta-se pela participação dos movimentos sociais na elaboração da Lei nº 13.445/2017, enquanto diploma legal fundado numa lógica contra-hegemônica de direitos humanos e legitimamente democrático. O texto é construído a partir da abordagem dialética, utilizando como procedimentos metodológicos a pesquisa bibliográfica (produção teórica atinente ao tema) e documental (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Estatuto do Estrangeiro e Lei de Migração), submetidos à técnica da análise de conteúdo. Parte-se do contexto de complexificação das migrações internacionais e da elaboração de políticas migratórias a partir da funcionalidade. Destaca-se a importância dos movimentos sociais na reivindicação e construção de novos direitos, na busca da emancipação dos migrantes enquanto grupo minoritário na sociedade complexa e no processo de repactuação do contrato social. Considerando o cenário de políticas migratórias no Estado brasileiro e os modelos estabelecidos pelo Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/1980) e pela Lei de Migração, (Lei nº 13.445/2017), entende-se que o último diploma legal marca um quadro de políticas migratórias pautadas em uma lógica contra-hegemônica de direitos humanos, estabelecendo direitos e garantias que viabilizam a emancipação dos migrantes enquanto sujeitos de direito. A Lei de Migração, enquanto fruto de trabalho conjunto de especialistas na temática e dos grupos e movimentos sociais defensores dos direitos dos migrantes, garante um processo de legitimação democrática, gestando, também, a possibilidade de participação dos migrantes na repactuação e reelaboração das políticas migratórias.
Palavras-chave: Migrações, Movimentos sociais, Políticas Migratórias, Direitos humanos, Legitimação democrática.
Abstract: This paper analyzes the importance of social movements in the construction of a new framework for migratory policies in the Brazilian State. It asks about the participation of social movements in the elaboration of Law nº 13.445/2017, as a legal diploma based on a counter-hegemonic logic of human rights and legitimately democratic. The text is constructed from the dialectical approach, using as methodological procedures the bibliographical (theoretical production related to the theme) and documental research (Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988, the Foreigner Statute and Migration Law), submitted to the technique of analysis of content. It starts from the context of complexification of international migrations and the elaboration of migratory policies based on functionality. The importance of social movements in the claim and construction of new rights is highlighted, in the search for the emancipation of migrants as a minority group in a complex society and in the process of renegotiating the social contract. Considering the scenario of migratory policies in the Brazilian State and the models stablished by the Foreigner Statute (Law nº 6.815/2017) and the Migration Law (Law nº 13.445/2017), it is understood that the last legal diploma marks a framework of migratory policies based on a counter-hegemonic logic of human rights, establishing rights and guarantees that enable the emancipation of migrants as subjects of law. The Migration Law, as a result of the joint work of the specialists on the subjects and of groups and social movements that defend the rights of migrants, guarantees a process of democratic legitimation, also generating the possibility of migrants’ participation in the renegotiation and elaboration of migratory policies.
Keywords: Migrations, Social movements, Migration policies, Human rights, Democratic legitimation.
Resumen: Este artículo analiza la importancia de los movimientos sociales en la construcción de un nuevo marco para las políticas migratorias en el Estado brasileño. Se pregunta por la participación de los movimientos sociales en la elaboración de la Ley nº 13.445/2017, como diplomado jurídico contrahegemónico de los derechos humanos y legítimamente democrático. El texto está construido a partir del enfoque dialéctico, utilizando como procedimientos metodológicos la investigación bibliográfica (producción teórica relacionada com el tema) y documental (Constitución de la República Federativa de Brasil de 1988, Estatuto del Extranjero y Ley de Migración), sometido a la técnica de análisis de contenido. Se parte del contexto de la complejización de las migraciones internacionales y la elaboración de políticas migratorias basadas en la funcionalidad. Se destaca la importancia de los movimientos sociales en la reivindicación y construcción de nuevos derechos, en la búsqueda de la emancipación de los migrantes como grupo minoritario en uma Sociedad compleja y en el proceso de renegociación del contrato social. Considerando el scenario de las políticas migratorias en el Estado brasileño y los modelos establecidos por el Estatuto del Extranjero (Ley nº 6.815/1980) y por la Ley de Migración (Ley nº 13.445/2017), se entiende que el último diploma legal marca un contexto de politicas migratorias basadas en una lógica contrahegemónica de derechos humanos, estableciendo derechos y garantías que permitan la emancipación de los migrantes como sujetos de derecho. La Ley de Migración, como resultado del trabajo conjunto de especialistas en el tema y de grupos y movimientos sociales que defienden los derechos de los migrantes, garantiza un proceso de legitimación democrática, generando además la posibilidad de participación de los migrantes en la renegociación y reelaboración de políticas migratorias.
Palabras clave: Migraciones, Movimientos sociales, Políticas migratorias, Derechos humanos, Legitimación democrática.
1 Introdução
A relação das pessoas com a mobilidade, a ocupação do espaço e o pertencimento constituem uma gama de fenômenos biológicos, sociais e políticos intimamente conectados à condição, à historicidade e ao desenvolvimento da civilização humana. O constante movimento em busca do novo, do inexplorado e, principalmente, de melhores condições de vida, povoa uma constelação de registros orais, escritos e artísticos em diferentes mídias e culturas, bem como obras acadêmicas e literárias.
Também constitui dinâmica condicionante da organização política da sociedade humana, influenciando as formas de ocupação e relação com o território. Atravessando a predominante lógica sedentária – com um relação fechada e delimitada dos indivíduos com seus respectivos territórios – bem como os modelos nômade/semi-nômade – com uma relação territorialmente mais aberta – , a discussão sobre a mobilidade humana é essencial para a delimitação e compreensão do(s) momento(s) de estabelecimento dos pactos fundantes (inicialmente da sociedade e depois do Estado), até a posterior instituição e governamentalização das fronteiras e do fluxo de pessoas entre os corpos políticos.
Em sua configuração contemporânea, o processo migratório internacional é amplamente complexo e está em constante complexificação. Diante de sua relação com o livre trânsito de mercadorias, capital, ideias, serviços e pessoas (dinâmicas características da globalização); da relação com os desastres naturais (inclusive aqueles resultantes de uma exploração capitalista exacerbada), com os constantes conflitos armados e politicos, bem como com as crises econômicas e atos de terrorismo, o processo migratório é refletido e cria novas demandas das pessoas migrantes em todas as estruturas da sociedade complexa.
Soma-se, ainda, às interrogações provocadas pela mobilidade internacional de pessoas, o atual cenário global que totemiza o migrante a partir de sua funcionalidade à sociedade, projetando incertezas, inseguranças e manifestações de ódio e medo em relação ao outro. O sofrimento resultante dessa convivência com o sujeito não pertencente à comunidade e a funcionalidade que lhe é atribuída desencadeiam uma dinâmica de criação de muros, de barreiras físicas e legais no acolhimento e integração das pessoas migrantes em novos espaços e sociedades.
Pensando esse contexto de exclusão do outro, do não pertencente, os movimentos sociais colocam-se como espaços de ação coletiva de suma importância para a reivindicação e materialização de novos direitos, alinhando o próprio Estado enquanto um grande movimento social em resposta às novas demandas de grupos minoritários.
Nesse sentido, considerando as novas dinâmicas do fluxos migratórios que chegam ao Brasil e, consequentemente, as novas demandas e desafios à integração e proteção das pessoas migrantes, pergunta-se: qual a importância dos movimentos sociais na construção de um novo arcabouço de políticas migratórias contra-hegemônicas e legitimanente democráticas no Estado brasileiro?
Objetivando percorrer a cartografia do cenário brevemente narrado na introdução, bem como apresentar respostas ao problema de pesquisa, o presente artigo é realizado com aporte no método dialético. Referido método de abordagem foi empregado diante da necessidade de análise das dimensões da historicidade, da totalidade, da interação dos fenômenos, dos conflitos de interesse/jogo de opostos, das contradições e transformações presentes na vida em sociedade, possibilitando uma interpretação contextualizada com maior dinamicidade da realidade social (ARENHART et al, 2021).
Considerando a classificação proposta por Livio Osvaldo Arenhart et al (2021), no tocante aos procedimentos metodológicos, enquanto ações que “pretendem dar conta da obtenção e da elaboração das informações pertinentes ao problema de pesquisa”, foram empregados: a) a pesquisa bibliográfica, com o aporte de referenciais teóricos pertinentes aos temas de migrações, movimentos sociais, políticas migratórias, direitos humanos e legitimação democrática; e b) a pesquisa documental, com a análise da legislação brasileira (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o revogado Estatuto do Estrangeiro, e a Lei de Migração).
Seguindo a construção teórica de Laurence Bardin (1979), tais procedimentos foram explorados a partir da técnica da análise de conteúdo, com a organização do material colhido (pré-análise), o estudo dos referenciais teóricos colhidos (descrição analítica) e a relação do material referencial com as variáveis, totalidade e contexto dos temas analisados (interpretação referencial).
Para trabalhar o problema apresentado e responder o objetivo de pesquisa destacado, o trabalho está organizado em dois capítulos.
Em um primeiro momento, contextualiza-se a mobilidade internacional de pessoas enquanto fenômeno em constante complexificação (na sociedade complexa), a ser tratado, na concepção de Stephen Castles, Hein de Haas e Mark J. Miller (2020), como um processo migratório. Tal fenômeno é gerido por políticas migratórias que, de acordo com Lelio Mármora (2004), são pautadas na funcionalidade das migrações e dos migrantes às sociedades de recepção. A funcionalidade atribui aos migrantes um espaço de instabilidade de (materialização dos) direitos, geralmente recaindo em tratamentos de exclusão a partir de uma ordem de securitização das migrações. Nesse sentido, de acordo com Alberto Melucci (2001) e Maria da Glória Gohn (1997 e 2018), discorre-se sobre a importância dos movimentos sociais enquanto atores e espaços na busca da reivindicação, ampliação e materialização de novos direitos de grupos minoritários como os migrantes, e eventuais potencializadores, conforme elaboração de Boaventura de Sousa Santos (1999), das dinâmicas de repactuação do contrato social do Estado, com a inserção de novas demandas de grupos sociais.
Em uma segunda etapa, considerando o histórico de normatização das políticas migratórias no Estado brasileiro e, mais precisamente, a contraposição entre os paradigmas materializados pelo extinto Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/1980) e aqueles inaugurados pela Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), verifica-se a possível inserção da nova legislação migratória em uma lógica contra-hegemônica de direitos humanos, conforme proposta teórica de Boaventura de Sousa Santos e Marilena Chauí (2017). Ainda, partindo dos referenciais teóricos de Jürgen Habermas (1989, 1992, 1995, 1999 e 2020), considerando os movimentos e agentes sociais envolvidos no contexto do processo legislativo, analisa-se a ocorrência da legitimação democrática na elaboração da Lei de Migração, com a abertura da possibilidade de participação dos migrantes no processo de rediscussão e reelaboração das políticas migratórias pelas quais são atingidos. Por fim, considerando o cenário pós-Lei de Migração, discutem-se as potencialidades e possibilidades de proteção dos migrantes enquanto sujeitos de direito devidamente integrados no corpo politico da sociedade brasileira, nos moldes da cidadania arendtiana.
2 Movimentos sociais, ação coletiva e luta por novos direitos na sociedade complexa: esperança de superação da lógica de funcionalidade do migrante na elaboração das políticas migratórias?
Enquanto importante dinâmica no desenvolvimento da civilização humana, as migrações adquirem maior relevância à discussão acadêmica a partir da passagem1 dos modelos itinerantes/nômades/semi-nômades (caçadores-coletores) de relação com o espaço aos modelos agrários, com a predominância de uma relação sedentária e fechada com a territorialidade (DELEUZE e GUATARRI, 2005; CASTLES, DE HAAS e MILLER, 2020) – balizada em propriedades, muros e fronteiras. É esta relação sedentária que “constrói, ao longo da história da civilização humana, as principais formas de organizações, como a cidade, o feudo, o estado” (ROTTA, 2018, p. 29) e que insere as migrações internacionais enquanto tema de fundamental discussão e interesse para as estruturas de normatização da sociedade internacional.
Isso porque, com a Paz de Vestfália, em 1648, que institui o Estado-nação soberano como principal ator político nas relações internacionais, a dinâmica migratória (antes dependente dos acordos, alianças e condições financeiras pessoais) adentra um cenário de “imposição de mecanismos políticos de controle migratórios, enquanto exercício do poder de soberania de cada estado” (MOSES, 2013; ROTTA, 2018, p. 11).
A partir da Primeira e da Segunda Guerra Mundiais (1914-1918 e 1939-1945) o fenômeno migratório ganhou novas e peculiares características. De um lado, visualizou-se um crescente número de pessoas em situação de deslocamento forçado ou voluntário fugindo da devastação provocada pela guerra ou da perda de conexão com seus respectivos Estados-nação (e consequentemente dos seus direitos). De outro, desenvolveu-se uma estrutura de limitação da mobilidade humana, a partir da securitização das políticas migratórias (ROTTA, 2018).
Como resultado dessa nova dinâmica, o cenário das migrações passa por uma etapa de complexificação, emergindo contingentes expressivos de pessoas refugiadas e apátridas (ROTTA, 2018). Sem destino certo ou em busca de melhores condições de vida, tais pessoas passam a gravitar entre as fronteiras dos estados, sem a efetiva possibilidade de serem integradas em qualquer corpo politico. Ficaram, assim, relegadas a um estado de natureza.
Paradoxalmente, mesmo após a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, e o compromisso moral solidificado em uma estrutura de proteção internacional dos direitos humanos – com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, seguida por outros tratados internacionais, bem como pela materialização de tribunais penais e cortes regionais para a punição de crimes atentatórios e lesivos aos direitos humanos –, o cenário de exclusão dos “estrangeiros” e securitização da mobilidade humana ainda se manteve. O medo do estrangeiro, do outro enquanto causa de insegurança e sofrimento (FREUD, 2021) permanece.
Como herança das duas grandes guerras e da polarização ideológica, a Guerra Fria marca nova etapa de políticas de controle de migrações. Essas passam a ser pautadas num esquema de segurança nacional e proteção ideológica, considerando os “estrangeiros” como seres subversivos à integridade política e interesses nacionais dos Estados-nação. (ROTTA, 2018, p. 12).
Com o final da Guerra Fria, em 1991, a reestruturação política, sobretudo da antiga União Soviética e das Alemanhas Oriental e Ocidental, inaugura a possibilidade de fuga dos regimes totalitários. Tem-se, assim, uma nova etapa de complexificação da mobilidade internacional, com um novo e massivo fluxo de migrantes, refugiados e apátridas (ROTTA, 2018).
A transição do Século XX para o Século XXI, por sua vez, assiste a mais um momento de complexificação das migrações. A migração internacional adquire um caráter global, constituindo-se em dinâmica intrínseca dos processos de globalização, estando em infinita complexificação a partir do surgimento de novas tendências: a) a “globalização das migrações”; b) a “mudança de direção dos fluxos migratórios dominantes”; c) a “diferenciação da migração” (heterogeneidade e simultaneidade nas razões da mobilidade humana); d) a “proliferação da transição migratórias”; e) a “feminização das migrações”; e f) a crescente politização e securitização das migrações (CASTLES, DE HAAS e MILLER, 2020, p. 09-11, tradução nossa).
Enquanto um resultado direto dessas novas tendências, tem-se a “intercessão e coabitação de pessoas de diferentes contextos culturais” (CASTLES, DE HAAS e MILLER, 2020, p. 365, tradução nossa) e a criação de uma “superdiversidade” (VERTOVEC apud SANTOS e LUCAS, 2019). A sociedade agora apresenta um conjunto de diferentes atravessamentos culturais, ou choques interculturais, promovidos pelas novas tecnologias de comunicação e de movimentação e, logicamente, pelo próprio cruzamento das fronteiras do Estado-nação.
Tamanha é a complexidade da mobilidade humana internacional em suas atuais facetas que, diante da necessidade de novas abordagens teóricas para a sua compreensão, Stephen Castles, Hein de Haas e Mark J. Miller (2020) desenvolvem o conceito de processo migratório. Referido conceito retrata o complexo conjunto de fenômenos não isolados, “de fatores e interações que levam à migração e influenciam seu curso”, com variação no tempo e espaço, que acompanham toda a vida do migrante (e das gerações futuras), bem como das pessoas à sua volta (CASTLES, DE HAAS e MILLER, 2020, p. 42-45, tradução nossa). É uma experiência, uma ação coletiva originada na mudança social e que também afeta toda a sociedade, por um período indeterminado de tempo, seja nos espaços de saída de pessoas ou nos locais que recepcionam os migrantes (CASTLES, DE HAAS e MILLER, 2020).
Tal compreensão do processo migratório enquanto complexo conjunto de fenômenos é factível dentro da lógica de visualizar a sociedade a partir das lentes de sua complexidade ou, mais precisamente, de pensá-la enquanto sociedade complexa.
Nesse sentido, partindo da concepção moderna de sociedade, Regina Cele de Andrade Bodstein (2000, p. 63-77) ilustra a sociedade complexa como aquela em que, a partir do contexto europeu ocidental entre os Séculos XVII e XVIII, passa a apresentar: a) na ordem econômica ou num “acelerado processo de industrialização”, a sociedade complexa se expressa em uma “crescente divisão do trabalho”, com novas técnicas de produção, divisão e especialização do mesmo, bem como um acentuado crescimento da produção, do próprio mercado e do consumo; e b) em um campo de “valores culturais e simbólicos”, passa a ser representada pelo “aparecimento de um conjunto de valores ideológicos e simbólicos que transforma o indivíduo, em sua singularidade, no centro desta sociedade”. Cada ser singular é um sujeito igual em direitos (mas também apto a exercer sua diferenciação a partir da demanda de novos direitos no combate à sua exclusão, campo esse importante para a ampliação dos direitos Humanos e dos direitos fundamentais), livre (trabalhadores livres das amarras da ordem feudal, das crenças religiosas, hiearquias e valores tradicionais) e soberano, apto a conquistar e ampliar o seu espaço público de participação no Estado. Esse sujeito assume novas posições e deveres e passa a demandar novos direitos e modelos de exercício de sua cidadania.
Essas novas dinâmicas da ordem econômica estão intrinsecamente ligadas à mobilidade laboral internacional enquanto dinâmica da globalização econômica e, no campo de valores culturais e simbólicos, às demandas de novos direitos (e materialização dos mesmos) a partir da proteção, inclusão e participação dos migrantes nos corpos politicos estatais das sociedades que os recebem.
A par das dinâmicas de complexidade do movimento (voluntário ou forçado) de pessoas através das fronteiras dos Estados-nação, dos interesses políticos e da reação popular estruturam-se as políticas migratórias. Tais conteúdos normativos compreendem formas de “administrar as migrações” (MÁRMORA, 2004, p. 17, tradução nossa), sendo um “conjunto de medidas adotadas por determinado Estado para controlar o fluxo de pessoas através de suas fronteiras, bem como a permanência dos estrangeiros” (MORAES, 2016, p. 24) e são estruturadas por cada corpo político a partir de suas prerrogativas de soberania2.
Debruçar-se em análise das políticas migratórias e dos projetos de poder de determinado Estado permite perceber a funcionalidade empregada ou construída pelos grupos de poder em determinado corpo político sobre o contexto das migrações e, de forma mais direta, sobre os próprios migrantes.
De acordo com Lélio Mármora (2004, p. 49), o processo de “demonização” dos migrantes “é funcional para os grupúsculos fundamentalistas que necessitam corporizar seus ódios”3. Em alguns espaços o “fantasma” dos migrantes, cumpre um papel duplo de “inimigo externo” – valendo-se da lógica de sofrimento perante a convivência com o Outro, com o desconhecido ou diferente (FREUD, 2021) – perante o qual os membros de um grupo ou de uma nação deveriam se unir (juntar forças para a proteção) e, ao mesmo tempo, um “bode emissário” das desgraças internas que não podem ser resolvidas (MÁRMORA, 2004, p. 49, tradução nossa).
Mesmo que se tenha presente que tanto as visões estritamente otimistas quanto as visões puramente pessimistas sobre migração e desenvolvimento (principalmente no caso de migrações motivadas pela busca de empregos, a partir das remessas de dinheiro aos países de origem) possam ser perigosas (CASTLES, DE HAAS e MILLER, 2020), sustenta-se que a demonização da figura do migrante, visualizada na funcionalidade das migrações (MÁRMORA, 2004), deve ser vigorosamente combatida. Nesse sentido, importa destacar que a convergência entre as temáticas de migrações e desenvolvimento, “seja como fundamento de políticas internacionais, estratégia de ocupação territorial ou instrumento para o aprovisionamento de mão de obra” não é tendência nova ou pouco explorada nos estudos migratórios4 (MÁRMORA, 2004, p. 119, tradução nossa).
Conforme Mármora (2004, p. 119), tal relação geralmente não concede soluções ou práticas positivas para todas as partes envolvidas: migrantes (que geralmente são as partes negativamente afetadas), país receptor ou expulsor e seguimentos sociais desses. Enquanto respostas negativas, a funcionalidade das políticas migratórias comumente acaba guiando-se pelo tratamento de exclusão e combate à presença de migrantes diante das já apresentadas posições xenofóbicas (MÁRMORA, 2004). Ainda, dependendo da matriz teórica utilizada, posições não favoráveis quanto às migrações internacionais e o desenvolvimento são ofertadas por críticos pessimistas, apontando para o esvaziamento dos recursos humanos e financeiros dos países de origem (CASTLES, DE HAAS e MILLER, 2020, p. 331).
Por sua vez, na convergência com o pensar o desenvolvimento, enquanto importantes etapas de um compromisso global com a pactuação de respostas positivas à situação das pessoas migrantes, registre-se: a) a adoção do Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular (aprovado pelos Estados-membros da ONU em Assembleia Geral de julho de 2018 e adotado em dezembro do mesmo ano), para melhor enfrentar os desafios da migração internacional e “fortelecer os direitos dos migrantes, contribuindo para o desenvolvimento sustentável” (ONU NEWS, 2018); e b) Os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU, que visam buscar uma melhor análise da convergência entre migrações e desenvolvimento, reconhecendo a necessidade de redução das desigualdades entre os países, a implementação de uma governança de políticas migratórias cooperatovas, para a migração segura, ordenada e regular, firmando a contribuição positiva dos migrantes no desenvolvimento inclusivo e sustentável (IOM, 2018).
Contudo, observa-se um processo de massificação da propaganda estatal ou de discursos apaixonantes de lideranças políticas populistas em que formas preconceituosas e excludentes de “finalidade” dos migrantes (e implementação de politicas migratórias excludentes) convergem para a manutenção e popularização de plataformas políticas de governo que desviam a atenção das demais desgraças e inseguranças da modernidade para a eleição de um inimigo comum: o migrante (MÁRMORA, 2004; BAUMAN, 2017a e 2017b).
São rompidos abruptamente os sonhos de integração e cosmopolitismo. O tratamento humanitário do processo migratório internacional e dos migrantes é altamente prejudicado diante da retomada de uma nostalgia delirante, de um retorno à segurança do útero, ao primeiro amor do Estado-nação fortificado e fechado, chamada por Zygmunt Bauman de retrotopia (BAUMAN, 2017b). Os Estados-nação retornam às ideias de comunidades fechadas em si mesmo, que colocam o migrante enquanto inimigo a ser combatido.
São esses devaneios típicos de um círculo vicioso visualizado em formas de administração securitária5 do processo migratório e de retomada da popularidade de políticas populistas e conservadoras, que institucionalizam o medo ao estrangeiro. Ainda, realizam o último papel de união de todos – em uma paixão coletiva e delirante à figura carismática de um líder populista (LACLAU, 2013) – , a partir da materialização do ódio, exclusão e violência sobre as minorias, sobre os não pertencentes.
Nesse solo arenoso, em um clima desprovido de esperança de fartas chuvas, os movimentos sociais, a partir de ações coletivas ou sociais, colocam-se como os poucos entes ou atores aptos a lançar as sementes e cultivar as possibilidades de novos direitos em prol da proteção de grupos minoritários como os migrantes.
A partir da retomada de clássicos da ciência social, Melucci entende a ação social como um conjunto de práticas que envolve, ao mesmo tempo, um certo número de indivíduos ou grupos com “características morfológicas similares em contiguidade de tempo e espaço, implicando um campo de relacionamentos sociais” e a capacidade de dar sentido ao que estão fazendo (GOHN, 1997, p. 153-163). Dá, portanto, ênfase na identidade coletiva, a partir de um enfoque psicossocial (GOHN, 1997, p. 153-163).
De acordo com Alberto Melucci (2001, p. 33-36), o surgimento de ações coletivas está historicamente associado à crises no sistema ou em algum de seus aspectos, sendo encarado como uma patologia social. Uma ação coletiva é típica de um espaço de desequilíbrio, de um desconforto. É o que se observa no cenário internacional no tocante ao tratamento do migrante, onde os movimentos pró.migrantes são encarados com desdém.
Uma ação coletiva resulta de “objetivos, recursos e limites”, de uma “orientação finalizada que se constrói por meio de relações sociais no interior de um campo de oportunidades e vínculos” (MELUCCI, 2001, p. 46). Tal ação coletiva combina ordens de ação em três vetores interdependentes e tensionados entre si: a) com relação aos fins da ação (“o sentido que a ação tem para o ator”); b) aos meios (“possibilidades e aos limites da ação”); e c) “às relações com o ambiente” (“campo no qual a ação se realiza”) (MELUCCI, 2001, p. 46)6.
Para Melucci (2001, p 33-36), quando a ação coletiva mobiliza um “ator coletivo, definido por uma solidariedade específica, que luta contra um adversário para a apropriação e o controle de recursos valorizados por ambos”, tem-se um movimento social7. Esse é manifestado pela “ruptura dos limites de compatibilidade do sistema dentro da qual a ação mesma se situa”8 (MELUCCI, 2001, p 33-36).
A partir dos conceitos elaborados por Alberto Melucci (2001, p. 41-42), analisando as condutas apresentadas nos movimentos sociais encabeçados por migrantes, bem como aqueles pró-migrantes, protagonizados pela sociedade civil (como os que vieram a conduzir à elaboração da Lei de Migração, o que será analisado no próximo capítulo), pode-se dizer que estes são movimentos reivindicativos. Isso porque o “conflito e a ruptura das regras ocorrem no interior de um sistema organizativo, caracterizado por papéis e funções”, mais precisamente no interior dos ordenamentos jurídicos dos Estados-nação. Ainda, são movimentos políticos, eis que exprimem uma necessidade de ruptura dos limites do sistema político vigente, uma luta pela ampliação da possibilidade de os migrantes participarem das tomadas de decisões da sociedade, chocando-se “contra o desequilíbrio do jogo político que privilegia sempre certos interesses sobre outros” (MELUCCI, 2001, p. 41-42)9.
A partir da ação coletiva e dos espaços de luta e reivindicação dos movimentos sociais, faz-se imperioso repensar o Estado, com a consequente transformação do contrato social. Em um compromisso que antecede a estruturação de uma dinâmica contra-hegemônica de direitos humanos – refletida diretamente nos projetos de emancipação das pessoas e construção da cidadania – analisada posteriormente, não se busca necessariamente, a idealização de uma “concepção transnacional ou que requeira a completa desistência do estado” (ROTTA, 2018, p. 119).
Almeja-se, antes, a reelaboração dos votos do contrato social, colonizado por uma “contratualização liberal individualista, moldada na ideia do contrato de direito civil entre indivíduos, e não na ideia do contrato social entre agregações coletivas de interesses sociais divergentes” (SANTOS, 1999, p. 44). Essa “nova forma de contrato” não apresenta o conflito e a luta enquanto elementos estruturais e impõe a passividade dos contratantes à “condições supostamente universais” (SANTOS, 1999, p. 44).
A “crise da contratualização” é observada na “predominância estrutural dos processos de exclusão sobre os processos de inclusão”, a partir de formas contraditórias, quais sejam: a) o pós-contratualismo, “processo pelo qual grupos e interesses sociais até agora incluídos no contrato social são dele excluídos sem qualquer perspectiva de regresso”; e b) o pré-contratualismo, que consiste no “bloqueamento do acesso à cidadania por parte de grupos sociais que anteriormente se consideravam candidatos à cidadania e tinham expectativa fundada de a ela aceder” (SANTOS, 1999, p. 45).
Dentro da análise da “ilusão do antiestatismo”, os professores Boaventura de Sousa Santos e Marilena Chauí (2017) convidam à reflexão da própria estrutura estatal enquanto agente de atuação positiva e não simplesmente negativa, bem como de instância fiscalizadora do pacto social entabulado. Isso porque, a partir do momento em que os interesses privados se sobrepõem aos públicos, utilizando-se da máquina estatal e de suas prerrogativas soberanas para massificar, homogeneizar as novas demandas sociais surgidas a partir da diferença, das minorias (impedindo a própria renovação), há a necessidade de que a reconstrução do pacto social seja colocada como ordem do dia.
Essa é uma das dinâmicas de luta e reivindicação observadas nos novos movimentos sociais na era das redes sociais de internet. Mesmo não necessariamente se convertendo em partidos políticos, propriamente ditos, nascem, de forma autônoma, nas redes simultaneamente locais e globais, ocupando os espaços públicos a partir da indignação com a putrefação das democracias nos Estados nacionais e a superlativação de interesses privados ou de grandes grupos econômicos (CASTELLS, 2017).
Nesse sentido, dentro da concepção de “ilusão do antiestatismo”, o estado deve ser repensado como “novíssimo movimento social” (SANTOS, 1999, p. 66-74), possibilitando a inclusão das novas demandas apresentadas pelas minorias sociais, dentre as quais situa-se as demandas dos estrangeiros, dos migrantes. Entende-se que dita dinâmica resta apta a potencializar e ampliar o espectro de inclusão cidadã nos moldes defendidos por Hannah Arendt (2012), enquanto um grande direito a ter direitos a partir da inclusão um determinado corpo político.
3 A lei de migração enquanto instrumento contra-hegemônico de direitos humanos: em busca da legitimação democrática das políticas migratórias brasileiras
O processo de construção e formação do Estado brasileiro “enquanto país ‘descoberto’ e colonizado, possui enraizada em sua história e constituição da população a participação de diferentes fluxos migratórios de ‘estrangeiros’”, com ingressos ora expressivos, ora incipientes de pessoas migrantes na integração de seu corpo político (ROTTA, 2018, p. 122).
As mudanças de interesses nacionais e visões políticas dos grupos dominantes, bem como a respectiva alteração de modelos diversos de administração do fenômeno migratório (em consonância com o cenário internacional) apresentam fases de: a) colonização, “com a criação de políticas e programas de incentivo à entrada e ocupação de território pelos migrantes (forçados e ‘livres’)”; b) restrição, “com fortes tendências eugênicas, da entrada de pessoas visando a construção de uma república dotada de uma nação culturalmente homogênea”, que mais tarde é combinada com os interesses nacionais de “políticas de segurança (Doutrina de Segurança Nacional), tratando o fenômeno e a pessoa migrante dentro do espectro criminal”; e c) “após um período de redemocratização do Estado brasileiro (CRFB/1988) e mantença de um desalinhamento da legislação migratória com os preceitos daquele”, os esforços de mobilização social e governamental “vertem na criação de um diploma legal alinhado ao novo contexto migratório e pautado na estrutura de direitos humanos vigente (Lei de Migração)” (ROTTA e NUNES, 2019: 169-170).
Rompendo com o tratamento crimigratório das migrações (MORAES, 2016), a sanção, em 24 de maio de 2017, da Lei nº 13.445 (Lei de Migração) inaugura “um novo modelo de ‘funcionalidade’ aos migrantes, moldando a administração do fenômeno migratório a partir da lógica da estrutura internacional de direitos humanos e do Estado Democrático de Direito” (ROTTA, 2018; ROTTA; ROTTA e SANTOS, 2019, p.11).
O tratamento securitário antes estabelecido pela Lei n° 6.815/1980 é formalmente desbancado. O Artigo 1º, o Artigo 2º e o Artigo 3º do Estatuto do Estrangeiro determinavam que, mesmo em tempos de paz, a entrada e permanência do estrangeiro no Brasil (bem como a concessão, prorrogação e transformação do visto) eram condicionadas à legislação e ao resguardo dos interesses nacionais, com a necessária atenção à “segurança nacional, à organização institucional, aos interesses politicos, sócio-econômicos e culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador”. Ao seu passo, a Lei de Migração, em seu Artigo 3º, inciso III e VI, estabelece enquanto princípios e diretrizes da política migratória brasileira a “não criminalização da migração” e a “acolhida humanitária”.
O termo “estrangeiro”, nomenclatura legal adotada no Estatuto do Estrangeiro, é subsituído pelas figuras legais de “imigrante”, “emigrante”, “residente fronteiriço”, “visitante” e “apátrida” (Artigo 1º, incisos II, III, IV, V e VI da Lei de Migração), não prejudicando a aplicação de normas internas e internacionais sobre “refugiados, asilados, agentes e pessoal diplomático ou consular, funcionários de organização internacional e seus familiares” (Artigo 2º da Lei de Migração).
Destaque-se, ainda que, ao contrário da legislação revogada, a Lei de Migração estabelece uma série de princípios e direitos à administração das migrações (Artigo 3º e incisos) e um conjunto de direitos e garantias às pessoas migrantes (Artigo 4º) (ROTTA, 2018; ROTTA; ROTTA E SANTOS, 2019, p.11). Para fins de ilustração, destacam-se: as disposições principiológicas da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e outras formas de discriminação, a não criminalização da migração, a acolhida humanitária, igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e aos seus familiares, e o acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas, benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social (Artigo 3º, incisos I, II, III, VI, IX e XI) e a garantia, no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, da inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como os direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos e a liberdade de circulação em território nacional, a serem exercidos em observância às disposições constitucionais, independentemente da situação migratória (Artigo 4º, caput e incisos I e II e § 1º).
Referida carga de princípios e diretrizes, objetivos, direitos e garantias da Lei de Migração promove o alinhamento da legislação e da política migratória brasileira ao conteúdo normativo estabelecido na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Ainda, harmoniza a nova legislação aos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, cumprindo o objetivo implementado pela Comissão de Especialistas responsável pela elaboração do Anteprojeto de lei.
Entende-se que referido panorama de integração e garantia de direitos reflete a concepção de cidadania formulada por Hannah Arendt (2012). Para a autora, a cidadania é o “único” ou “o grande direito”, visto que é a partir do pertencimento/integração ao pacto social em determinado espaço, comunidade ou estrutura política que a pessoa humana terá a possibilidade de gozo dos direitos legalmente fixados e estendidos aos pactuantes. Assim, restaria afastado o constante estado de exceção, de anomia jurídica, característico da Lei nº 6.815/1980 (Estatuto do Estrangeiro).
Adicionalmente, entende-se que a Lei de Migração atende à uma lógica pós-abissal, contra-hegemônica dos direitos humanos.
Pode-se afirmar que a lógica do estado liberal, que guiou a Revolução Francesa e que permeia o paradigma de Direitos Humanos, formou “uma estrutura que buscou a independência de alguns, mas não a igualdade de uma totalidade de pessoas” (ROTTA, 2018, p. 116). Nesse sentido, Hannah Arendt (1965) sustenta que, com o desmantelamento do poder soberano absolutista na Revolução Francesa, o Estado-nação calçou os sapatos do monarca, restando o pacto social focado unicamente na libertação da insurgente classe burguesa, não tendo sido dado atenção à criação de uma estrutura de igualdade de todos perante a lei.
Apesar de constituir-se como “momento inicial para a etapa de internacionalização dos direitos humanos”, a instauração da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, também mantém firme a “lógica hegemônica de direitos baseados numa igualdade e individualização liberal, homogeneizadora das diferenças” ROTTA, 2018, p. 115-116).
Para Santos e Chauí (2014), referida declaração demonstra a ambivalência e diferença de tratamento ao falar de direitos do homem, apresentado: a) em um nível mais amplo (do qual advém a ideia de direitos humanos), uma coletividade mais inclusiva à humanidade, mas que garante apenas um mínimo possível; e b) diante da erosão dos direitos e de sua efetividade na situação anterior, um nível mais restrito, localizado e interno, uma coletividade mais densa de cidadãos de um determinado Estado, aos quais são atribuídos determinado conjunto de direitos. No mesmo sentido, Seyla Benhabib (2005, p 674, tradução nossa), sustenta que a DUDH é omissa no que diz respeito “às obrigações dos estados em garantir a entrada de imigrantes, conceder asilo e permitir a cidadania a ‘estrangeiros’ residentes e não cidadãos”, mantendo ainda forte grau de discricionariedade ao Estado-nação a partir do uso de sua soberania.
Ao mesmo tempo que esse modelo de direitos humanos fixou na sociedade internacional o modelo de cidadania, criando, assim, um “ser humano, sujeito de direitos”, também perpetuou “uma sub-humanidade, o sujeito sem direito, que se espelha no Estado-nação na figura do subcidadão/não cidadão/‘denizen’/alien/‘estrangeiro’” (ROTTA, 2018, p. 116). Tal sujeito é despido de toda e qualquer proteção jurídica ou pertencimento ou relegado ao nível mais amplo, que se encontra em completa erosão e inefetividade.
Assim, “o próprio sistema de direitos e, consequentemente, de direitos humanos garantem a continuidade de exclusões radicais”, já que projetados “unicamente para vigorar no lado da ‘linha abissal’ ocupado pelas sociedades metropolitanas” e seus respectivos cidadãos (ROTTA, 2018, p. 116).
Tendo presente a imperiosidade de analisar e (re)pensar a hegemonia dos direitos humanos a partir de uma “hermenêutica de suspeita”, Santos e Chaui (2014, pos. 42-53) sustentam que a análise crítica do paradigma dos direitos humanos, a partir de uma concepção “contra-hegemônica”, pode ser construída mediante o vencimento do senso comum. Esse estado de pensamento a ser rompido é fundado em cinco ilusões: a) a “ilusão teleológica”, que somente observa a parte incondicionalmente boa dos direitos humanos, bloqueando a análise das contingências espaço-temporais, haja vista que “as mesmas ações que, vistas da perspectiva de outras concepções de dignidade humana, eram ações de opressão ou dominação, foram reconfiguradas como ações emancipatórias e libertadoras” quando levadas sob a bandeira dos direitos humanos; b) o “triunfalismo”, sustentado pela ilusão anterior, e que traz a ideia de que a “vitória dos direitos humanos é um bem humano incondicional” e que “todas as outras gramáticas de dignidade humana que competiram com a dos direitos humanos eram inerentemente inferiores em termos éticos e políticos”, numa verdadeira lógica de darwinismo social; c) a “descontextualização”, ilusão a partir da qual se esquece que, por muitas vezes, os direitos humanos foram usados “como discurso e como arma política, em contextos muito distintos e com objetivos contraditórios”, tendo sido “subsumidos no direito do Estado”, incorporados pelas instituições, perdendo, assim, o caráter revolucionário original, razão pela qual não se sabe se “têm por detrás de si uma energia revolucionária de emancipação ou uma energia contrarrevolucionária”; d) como quarta ilusão o “monolitismo”, a partir da qual se negam ou se minimizam as tensões e as contradições internas das teorias dos direitos humanos; e e) a ilusão do “antiestatismo”, a partir da qual, mesmo tendo os direitos humanos sido um projeto de insurgência ante os poderes, os autores advogam a necessidade de permanência do Estado no centro, enquanto sujeito prestador (atividade positiva enquanto tradução dos direitos dos cidadãos) – mas devidamente reconfigurado e protegido do poder econômico, dos grandes detentores de capitais, que diluem o poder político do Estado e compõem projetos de massiva destruição e violação de direitos humanos.
Além da identificação de referidas ilusões, etapa fundamental para a construção de uma concepção e prática contra-hegemônica de direitos humanos se dá a partir do trabalho politico de “movimentos e organizações sociais que lutam por uma sociedade mais justa e mais digna”, de modo a definir, com maior êxito, uma gramática de direitos humanos alicerçada em uma construção alternativa, que elimine as ainda existentes ambiguidades sustentadoras da hegemonia a partir do sendo comum (SANTOS e CHAUI, 2014, p. 49).
Nesse sentido, sustenta-se que a Lei de Migração estabelece uma estrutura normativa enraizada em uma “hermenêutica de suspeita”, impondo críticas sobre sua materialização, resgatando a humanidade como elemento identificador e a emancipação das pessoas (migrantes, refugiados, asilados e apátridas) como fator basilar (SANTOS e CHAUÍ, 2017; SANTOS, 1999).
Garante-se, assim, na esteira da discussão já apresentada ao final do subcapítulo anterior, potência para discutir e repensar o próprio pacto social a partir das transformações necessárias nos direitos humanos, da imperiosa atenção a ser concedida às novas demandas apresentadas pelas minorias sociais (SANTOS e CHAUÍ, 2017; SANTOS, 1999).
A partir do alinhamento da legislação migratória brasileira ao posicionamento anti-hegemônico/contra-hegemônico, resta viabilizada a passagem dos migrantes enquanto “subumanos”, simples “objetos de discursos de direitos humanos”, para sujeitos de direitos, aptos à integração enquanto cidadãos em um determinado corpo político (SANTOS e CHAUÍ, 2017; ARENDT, 2012).
Além do caráter contra-hegemônico, entende-se que a Lei de Migração goza de um processo de legitimação democrática (que poderia inclusive ser entendido como uma duplo processo), tanto no conjunto de atos de sua elaboração quanto na sua implantação e sua possível rediscussão/reelaboração (por parte dos próprios migrantes enquanto sujeitos atingidos) no ordenamento jurídico.
Quem fornece pistas para tal compreensão é o pensador alemão Jürgen Habermas (1997), que apresenta uma nova forma de compreender o estado de direito e suas relações democráticas em uma sociedade contemporânea complexa. Tomando elementos das concepções liberais e republicanas de democracia e direito, a teoria do discurso realiza uma integração conceitual na ideia de um “procedimento ideal de deliberação e de tomada de decisões” (HABERMAS, 1995).
Nesse modelo teórico, o direito representa a estrutura médium (meio) entre o “mundo dos fatos/mundo da vida” e o “mundo dos sistemas”, devendo regulamentar e controlar as expectativas das relações de poder e manter a ordem social, a partir de um conjunto normativo gestado em um espaço de democracia pautada no agir comunicativo (HABERMAS, 1997).
O agir comunicativo, “orientado para o entendimento mútuo” é marcado pelos seguintes aspectos: a) “orientação para o entendimento mútuo”, em que os “atores tratam de harmonizar internamente seus planos de ação e de só perseguir suas respectivas metas sob a condição de um acordo existente ou a se negociar sobre a situação e as consequências esperadas”; b) “o entendimento mútuo enquanto mecanismo da coordenação de ações”, a partir do qual “os atos do entendimento mútuo, que vincular os planos de ação dos diferentes participantes e reúnem as ações dirigidas para objetivos numa conexão interativa, não precisam de sua parte ser reduzidos ao agir teleológico; c) existência de uma “situação de ação e situação de fala”, em que, a partir do agir comunicativo, “os agentes assumem alternadamente os papéis comunicacionais de falantes, destinatários e pessoas presentes”; d) o agir comunicativo é um processo circular em que o mundo da vida fornece o contexto e os recursos para o entendimento mútuo e é por ele transformado, sendo o agente iniciador e produto dessa dinâmica; e) possibilita o “processo de entendimento mútuo entre o mundo e o mundo da vida”; e f) os atos de fala são marcados por enunciados presumivelmente verdadeiros, corretos e sinceros; e g) a relação e interação entre diferentes papéis comunicacionais e perspectivas de falantes nos processo de escolha em face do mundo objetivo, social e subjetivo (HABERMAS, 1989, p. 164-172).
A teoria do agir comunicativo, enquanto dimensão ou materialização da democracia, aplicada à produção e reprodução do direito, busca assimilar as tensões entre a facticidade e a validade, sendo que tão somente mediante a união dos participantes/cidadãos em torno de suas ações de fala, da constatação de dissensos e da realização de um processo de negociação dos interesses envolvidos (em uma espécie de “autodeterminação organizada”) são incorporadas as dimensões de racionalidade e moralidade que garantem legitimidade ao direito produzido (HABERMAS, 1997, p. 25, 36, 54, 191, 208). É a “ação orientada para o entendimento, e, em última instância, portanto, da própria estrutura da comunicação linguística” que fundamenta a validade do conteúdo normativo produzido (HABERMAS, 1995, p. 46).
Mediante o agir comunicativo, a democracia coloca-se como um mecanismo que irá produzir o direito legítimo, um “núcleo de um sistema de direitos”, sendo, ao mesmo tempo, em um processo circular, constituidor do direito legítimo (e dos direitos fundamentais em seu código de direito) e também do próprio princípio da democracia (HABERMAS, 2020). Por essa razão, o próprio processo legislativo, o processo de constituição do direito, para ser legítimo, torna imprescindível o agir comunicativo, a participação dialógica equitativa entre as partes interessadas e atingidas pela norma para que, a partir de entendimento e negociação, cheguem, a partir da ponderação e discernimento de fins coletivos, a um “consenso não-coercitivo” (HABERMAS, 2020).
A legitimação democrática do direito garante estágio superior, indo além da simples legitimação alcançada pelo processo legislativo previsto nos Artigos 59 a 69 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diante da participação dialógica, da negociação consensual dos entre os interessados e interesses envolvidos, há possibilidade de manutenção de um ambiente com menor nível de frustrações e maior aceitação e, consequentemente, de maior purificação e/ou diminuição da complexidade no subsistema do Direito.
Em primeira instância, evidencia-se a legitimação democrática da nova legislação migratória no seu processo legislativo, com a oitiva e representação dos interesses da sociedade e, mesmo que indiretamente, dos próprios migrantes, sujeitos à legislação migratória. Nesse sentido, um ponto de grande importância para a discussão do referido Projeto de Lei foi a realização, entre 30 de maio e 1º de junho de 2014, da 1ª Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio (COMIGRAR), que contou com a troca de conhecimentos e proposições de membros da sociedade civil e ONGs em grupos de pesquisa e estudos, posteriormente reconhecidas pela Comissão de Especialistas (SCHWINN e COSTA, 2015, p. 11). Ainda cabe destacar o “Fórum Social Mundial das Migrações (FSMM) e o I Diálogo de Participação Social realizado pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg), eventos esses que, em sua totalidade, “destacaram a importância de uma legislação sobre migrações que mantivesse sintonia com o direito internacional dos Direitos Humanos” (WERMUTH, 2020, p. 103).
Enquanto Projeto de Lei n.º 288/2013 (Senado Federal) e Projeto de Lei nº 2.516/2015 (Câmara dos Deputados), tem-se a formação de uma Comissão de Especialistas para a elaboração do “Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil” (integrada por professores universitários, membros do Ministério Público, juristas, cientistas políticos, e especialistas em direitos humanos, direito constitucional e direito internacional) que realizou estudos da legislação migratória pátria, de outros países e de tratados internacionais, bem como a escuta de outros especialistas, de órgãos governamentais e da sociedade civil.
Apesar da realização de uma série de alterações no texto do anteprojeto, a partir das discussões no processo legislativo e nos vetos presidenciais, a elaboração da Lei de Migração forneceu o espaço para a realização de uma série de audiências públicas com órgãos e servidores públicos que tratam diretamente do fenômeno, acadêmicos e pesquisadores de áreas relacionadas ao processo migratório e às políticas migratórias e, sobretudo, com instituições da sociedade civil militantes dos direitos das pessoas migrantes (MORAES, 2016, p. 303).
Cabe aqui a ressalva de que todo processo de elaboração de espaços de discussão, análise crítica e militância dos direitos dos migrantes é realizado, a nível internacional por instituições como: o UNHCR (United Nations High Comissioner ofr Human Rights), responsável pela realização de campanhas de conscientização dos direitos de migrantes e refugiados nas redes sociais; a Congregazione delle Suore Missionarie di S. Carlo Borromeo Scalabriniane (Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo Scalabriniane), “fundada em 25 de outubro de 1895 (atualmente sediada em Roma/Itália)” e “que realiza atividade missionária em vinte e seis países, em quatro continentes diferentes (dentre os quais se insere o Brasil)”; “a NGO Commitee on Migration (Organização não governamental/ONG Comitê sobre Migração), que constitui um comitê de cinquenta ONGs de apoio a migrantes, refugiados, apátridas, deslocados internos e vítimas de tráfico de pessoas”; “a Amnesty International (Anistia Internacional), reconhecida pela luta/militância na construção/defesa dos Direitos Humanos”; a Migrants Rights International (MRI), “ONG que possui status de consultora especial no Conselho Econômico e Social das Nações Unidas” (ROTTA, 2018, p. 100-101). E, no contexto brasileiro, a Cáritas Brasileira, “que faz parte da Rede Caritas Internationalis, e se constitui num organismo da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) com atuação na defesa dos direitos humanos”; e o Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC), “organização que tem como objetivos ‘promover, organizar, realizar e articular ações’ para a construção de uma política migratória alinhada aos direitos humanos” (ROTTA, 2018, p. 100-101).
Em um segundo grau, com a revogação do Estatuto do Estrangeiro, deixa de vigorar a norma que vedava ao migrante admitido no território nacional a participação em eventos ou instituições e o exercício de atividades de cunho político, e também obstava o então chamado “estrangeiro” de tomar parte, direta ou indiretamente, nos negócios públicos do Brasil (Art. 107, caput e incisos e Art. 125, inciso XI, ambos da Lei nº 6.815/1980).
Consequentemente, diante da aplicação do princípio da legalidade, instaurado no Art. 5º, incisos II e XXXIX da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e no Art. 1º do Decreto–Lei nº 2.848/1940 (Código Penal), em não sendo reproduzido o dispositivo que tipificava a conduta mencionada anteriormente, a atividade política por parte do migrante é despenalizada, passando esse a ter o direito de integrar e tomar parte nos espaços públicos de diálogo e decisão. Ainda, a partir do referido processo de despenalização, deu-se o alcance do direito constitucional de reunião e associação aos migrantes, desde que para fins lícitos (Art. 4º, incisos VI e VII, da Lei nº 13.445/2017), dentro das mesmas condições ofertadas aos brasileiros de nacionalidade originária (Art. 5º, inciso XVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988). Anteriormente, eventual associação de migrantes era limitada às atividades tidas como “não proibidas” (Art. 108 do Estatuto do Estrangeiro).
Apesar de não ter sido concebido o direito à participação direta no sistema político democrático brasileiro (exercício da cidadania ativa ou passiva, nos moldes do Art. 14, caput, incisos e parágrafos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988), é inaugurada a possibilidade de qualificação política da pessoa migrante enquanto sujeito apto à participação ativa nos espaços públicos de discussão, promovendo o diálogo social na formulação na execução e na avaliação de políticas migratórias e a participação cidadã do migrante (Art. 3º, inciso XIII, da Lei de Migração) seja mediante a realização ou participação em eventos e instituições de cunho político, a partir da constituição de reuniões ou associações entre seus pares.
Considerando a natureza sociável do ser humano, que o “arrasta” às estruturas de associação política (ARISTÓTELES), a participação dos migrantes nos espaços públicos de discussão e decisão dialógica, nos espaços de trabalho e ação, bem como de (re)formulação do pacto social, desnudando-se e formatando sua identidade perante o reconhecimento de suas atividades pelos seus pares, perfaz a condição humana da vita activa (ARENDT, 1997) e contribui ao processo de legitimação das políticas migratórias estabelecidas pelo governo ante a sua pessoa.
É esse cenário de estabelecimento de uma carga maior de direitos e garantias aos migrantes, com o alcance ou abertura da possibilidade de participação, de efetiva agência do migrante a partir da integração enquanto sujeito de direitos (e capaz de atuar nas decisões da sociedade) em um determinado corpo político que confirma o caráter contra-hegemônico da Lei de Migração. Ao mesmo tempo, oportuniza o processo de legitimação das políticas migratórias, inserindo o migrante enquanto ator na própria dinâmica dos movimentos sociais, de renovação e rediscussão das políticas migratórias e do contrato social das sociedades de recepção.
Contudo, especialmente a partir de 2018, “os avanços conquistados nas políticas migratórias e no arcabouço legal decorrente, passam a ser colocados em risco a partir da ascensão”, ao governo federal brasileiro, de uma “aliança de forças identificadas com o ideário neoconservador” (ROTTA; ROTTA E SANTOS, 2019, p.11). A partir de tal momento, uma série de manifestações dos membros do governo e de suas estruturas sinaliza o rompimento com a busca de proteção dos direitos humanos das minorias, inclusive dos migrantes, diante da retirada brasileira do Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular (“Global Compact for safe, orderly and regular migration”) (ROTTA; ROTTA E SANTOS, 2019, p.11).
Registre-se que esse novo arranjo conservador é composto por uma aliança de grupos (grupos religiosos conservadores, setores da segurança pública, setores do capital financeiro, a “nova direita” em frações da classe media, e conservadores tradicionais) que, mesmo heterogêneos, operam de forma uníssona a partir de valores tradicionais (ROTTA; ROTTA e LAGO, 2020).
Dentre tais ideais, saliente-se a securitização do Estado e o nacionalismo, que geram políticas de ódio ao diferente, o “que se traduz na ojeriza aos migrantes e refugiados” (ROTTA; ROTTA e LAGO, 2020, p. 13). Consequentemente, as próprias políticas migratórias nascidas em um cenário pós-redemocratização colocam-se como empecilhos, obstáculos a serem derrubados, dando ênfase à retomada de pensamentos e políticas de viés “crimigratório” (ROTTA; ROTTA e LAGO, 2020).
Enquanto consequência prática ou ação direta dos desafios de ordem política e social retratados acima, registre-se que as pulsões de materialização da Lei de Migração e implementação de um novo modelo de políticas migratórias restam prejudicadas. Evidenciam-se interesses conflituosos ou de rompimento das proposições e lutas originárias dos grupos e movimentos sociais pró-migrantes (no cenário de redemocratização) desde o processo de sancionamento da Lei de Migração, com a atribuição de vetos pelo então president (ROTTA, 2018); passando pelo posterior Decreto Regulamentador nº 9.199/2017, que apresenta dispositivos que evidenciam a “continuidade de uma perspectiva autoritária na gestão dos fluxos migratórios” (WERMUTH, 2020, p. 111), até a manutenção da Polícia Federal como principal ator de regulamentação e gestão das políticas migratórias (VILLEN e QUINTANILHA, 2020).
4 Conclusão
Portanto, em um palco internacional de incertezas e inseguranças, bem como de retomada dos fundamentalismos e tribalismos nacionalistas retrotópicos, a administração do processo migratório e a condição da pessoa em situação de migração encontram-se presos à terrível e extremamente volátil dinâmica de tratamento funcionalista das políticas migratórias dos Estados-nação soberanos.
Almejando seja a civilização pautada pelo resgate e manutenção da humanidade e do tratamento humano das pessoas migrantes, os movimentos sociais colocam-se como importante estrutura de ação coletiva, reflexão, e reestruturação dos pactos sociais dos Estados-nação soberanos para a reivindicação e materialização de novos direitos de grupos minoritários tipicamente excluídos dos corpos políticos.
Compreende-se que é justamente esse processo de reflexão e reestruturação, potencializado pelos movimentos sociais, que viabilizou a criação da Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017). Partindo de um modelo contra-hegemônico de direitos humanos, referido diploma legal garante potência no processo de emancipação do migrante, a partir da sua inserção enquanto sujeito de direitos em um determinado corpo politico. Ainda, gestada em um processo de legitimação democrática, a Lei de Migração também inaugura possibilidades de participação das pessoas migrantes no processo de legitimação, discussão e reelaboração das políticas migratórias que os afetam e governam.
Por fim, destaque-se que a materialização ou efetivação da Lei de Migração ainda oferece inúmeros desafios à concretização de tais potencialidades e possibilidades, diante do vislumbre de interesses contraditórios em sua aplicação e no estabelecimento de uma nova ordem de políticas migratórias, alimentos pela recente guinada política neoconservadora no cenário brasileiro.
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Notas