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A Sucessão Rural: o olhar do jovem agricultor
Rural Succession: the young farmer’s view
Sucesión Rural: la perspectiva del joven agricultor
A Sucessão Rural: o olhar do jovem agricultor
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 28, 2023
Universidade de Santa Cruz do Sul
Recepción: 05 Mayo 2023
Aprobación: 25 Octubre 2023
Resumo: O êxodo rural foi fator relevante na transformação da agricultura brasileira a partir dos anos 1950/60. Neste cenário Abramovay et al (1998) identificaram um processo de envelhecimento motivado pela ausência de jovem do meio rural. Mais tarde, Spanevello (2008) relata que o esvaziamento do meio rural ocorre pela falta de sucessores para proceder com as atividades do estabelecimento familiar. Para compreender melhor o que incentiva a permanência do jovem no meio rural, esta pesquisa fez frente ao seguinte problema: quais são os fatores que influenciam a tomada de decisão do jovem agricultor em permanecer ou não no meio rural? O objetivo foi analisar os fatores que influenciam no processo de sucessão a partir da percepção do jovem agricultor. Realizou-se uma pesquisa exploratória e entrevistas semiestruturadas em 32 propriedades familiares rurais da Região das Missões-RS. Concluiu-se que os jovens permanecem no estabelecimento familiar principalmente por influência da trajetória familiar, incentivo da família, buscando desenvolver com os familiares alternativas para manterem uma qualidade de vida satisfatória ao grupo familiar. Os que não permanecem são influenciados pela deficiência do grupo familiar em deliberar autonomia e não demonstrar uma segurança financeira satisfatória para todos os integrantes.
Palavras-chave: Agricultura familiar, Agroindústria familiar, Sucessão familiar, Desenvolvimento rural.
Abstract: The rural exodus was a relevant factor in the transformation of Brazilian agriculture from the 1950s/60s. Abramovay et al (1998) identified an aging process motivated by the absence of young people from rural areas. Spanevello (2008) reports that the emptying of the rural environment occurs due to the lack of successors to proceed with the activities of the family establishment. In order to better understand what encourages young people to stay in rural areas, this research faced the following problem: what are the factors that influence young farmers' decision-making to remain or not in rural areas? The objective was to analyze the factors that influence the succession process from the young farmer's perception. Exploratory research and semi-structured interviews were carried out in 32 rural family farms in the Region of the Missions-RS. It was concluded that young people remain in the family establishment mainly due to the influence of the family trajectory, encouragement of the family, seeking to develop alternatives with family members to maintain a satisfactory quality of life for the family group. Those who do not remain are influenced by the family group's deficiency in deliberating autonomy and failing to demonstrate satisfactory financial security for all members.
Keywords: Family farming, Family agribusiness, Family succession, Rural development.
Resumen: El éxodo rural fue un factor relevante en la transformación de la agricultura brasileña a partir de las décadas de 1950 y 1960. En este escenario, Abramovay et al (1998) identificaron un proceso de envejecimiento motivado por la ausencia de jóvenes de las zonas rurales. Posteriormente, Spanevello (2008) refiere que el vaciamiento del medio rural se produce por la falta de sucesores para proceder con las actividades del establecimiento familiar. Con el fin de comprender mejor qué es lo que motiva a los jóvenes a permanecer en las zonas rurales, esta investigación abordó el siguiente problema: ¿cuáles son los factores que influyen en la toma de decisiones de los jóvenes agricultores sobre permanecer o no en las zonas rurales? El objetivo fue analizar los factores que influyen en el proceso de sucesión desde la perspectiva del joven agricultor. Se realizó una investigación exploratoria y entrevistas semiestructuradas en 32 propiedades rurales de familias en la Región de Missões-RS. Se concluyó que los jóvenes permanecen en el establecimiento familiar principalmente por la influencia de la trayectoria familiar, el estímulo familiar, buscando desarrollar alternativas con los familiares para mantener una calidad de vida satisfactoria para el grupo familiar. Los que no se quedan están influenciados por la deficiencia del grupo familiar en deliberar sobre la autonomía y no demostrar una seguridad económica satisfactoria para todos los miembros.
Palabras clave: Agricultura familiar, Agroindustria familiar, Sucesión familiar, Desarrollo rural.
1 Introdução
A Região das Missões, na primeira metade do século XX, sofre uma alteração em seu território, devido à presença dos imigrantes europeus, que constituem um novo cenário, o qual passa a se identificar como meio rural de pequenas propriedades, caracterizando uma economia de base familiar (WESZ JUNIOR; TRENTIN, 2005). A partir dos anos 1940, os produtores são incentivados a participar de um processo de integração, relacionando-se aos grandes conglomerados industriais e cooperativos, assim, a modernização incentivada pelo Estado e pelo capital externo levou à exclusão dos agricultores que produziam individualmente. Nesse contexto, a participação nos mercados locais e regionais, por parte dos agricultores não integrados, torna-se mais difícil e complexa, inviabilizando, de certa forma, a permanência no campo e, por consequência, incentivando o êxodo rural desses pequenos agricultores.
Na tentativa de permanecerem no campo, esses agricultores foram alterando suas atividades, passando da produção de suínos para a cadeia do gado leiteiro e, mais tarde, para o processo de agroindustrialização em pequena escala, com uma diversificação dos produtos industrializados. Essa agregação de valor na transformação da matéria-prima produzida no interior da propriedade é que vai caracterizá-la como propriedade de agroindústria familiar, trazendo o conceito de uma região agroindustrial.
Com uma identidade de pequenas propriedades, em média com 12,5 hectares e economicamente dependentes do setor agrícola, as agroindústrias possuem uma intervenção relevante no desenvolvimento regional, sendo apoiadas e incentivadas a se desenvolverem pelos governos municipal e estadual, assim como por entidades como o APL das Missões, a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural / Associação Sulina de Crédito e Assistência Rural do Rio Grande do Sul (Emater/Ascar -RS) e sindicatos.
De acordo com a Fundação de Economia e Estatística (FEE) do Estado do Rio Grande do Sul - RS (2013), a Região das Missões, localizada no noroeste do RS, em 2010, possuía uma população total de 248.016 habitantes; destes, 175.877 residiam no meio urbano e 72.139 residiam no meio rural. No Censo Agropecuário de 2017, foi identificado que o número de estabelecimentos da agricultura familiar sofreu uma redução de 23,33%, ou seja, passou a ser de 16.728, já na agricultura não familiar houve um aumento, chegando a 3.754 estabelecimentos.
Dessa forma, investigar a sucessão familiar e os fatores que influencia na permanência ou não do jovem agricultor torna-se relevante nessa região que possui uma característica de agricultura familiar agroindustrial.
Para a realização desse estudo se utilizou do método fenomenológico, que permite construir um diálogo entre sucessão e agroindústria familiar, enfatizando a relação familiar presente nesses empreendimentos rurais, caracterizando-se como uma pesquisa exploratória, utilizando uma abordagem quanti-qualitativa. Quanto à coleta de dados, a investigação desta pesquisa ocorreu em três municípios da Região das Missões: Entre-Ijuís, Giruá e Santo Antônio das Missões. Como instrumento de coleta de dados foi utilizado um questionário fechado para o levantamento dos dados socioeconômicos das famílias das 32 agroindústrias. Posteriormente a este levantamento e buscando as respostas sobre a trajetória e a sucessão familiar, aplicou-se uma entrevista semiestruturada em profundidade em três agroindústrias de cada município.
Esse estudo está dividido inicialmente por uma Introdução, seguida pela seção 2 que aborda o processo de sucessão familiar e também a juventude e a responsabilidade do estabelecimento familiar. A seção 3 trata da caracterização da Região das Missões/RS no século XXI; na seção 4 se descrevem os fatores que influenciam na permanência ou não do jovem no estabelecimento rural, finalizando com as conclusões do estudo.
2 O processo de sucessão familiar
O meio rural brasileiro tem apresentado, ao longo dos anos, diminuição na sua população, demonstrando que o êxodo rural é um fator relevante na transformação social da agricultura brasileira. Nas últimas décadas, porém, em especial a partir dos anos 1980, foram intensificadas as políticas públicas para atender às demandas vindas do meio rural, no intuito de manter os indivíduos nesse ambiente.
Vale referir que a saída em excesso do meio rural levou Abramovay et al (1998) a identificarem que a masculinização e o envelhecimento do campo estavam crescendo e que as moças saíam do campo muito mais que os rapazes, pela precária perspectiva de assumirem a propriedade – se permanecessem, provavelmente teriam o papel de subalternas. Com o intuito de descobrir outras verdades, outros autores buscaram identificar quais eram os fatos que vinham ocorrendo, a fim de compreender essa intensa dinâmica da saída da população do meio rural.
Assim, a partir de pesquisas realizadas por Stropasolas (2006, 2010) e Aguiar e Stropasolas (2010) no Oeste Catarinense, localizado na Região Sul do país, constatou-se que a masculinização e o envelhecimento vinham ocorrendo pela baixa natalidade no meio rural e pelo processo de exclusão da filha na possível transferência do estabelecimento rural, provocando, assim, o seu deslocamento para o meio urbano em busca de novas oportunidades.
Além dos autores já citados, Sacco dos Anjos e Caldas (2006), Costa (2010) e Spanevello (2008) apontam que o rural do Rio Grande do Sul também apresenta uma característica masculinizada e envelhecida. Spanevello (2008, p. 19), em sua pesquisa, afirma que:
As implicações do esvaziamento demográfico do meio rural, especialmente pela saída da população jovem, são a falta de sucessores para dar continuidade aos estabelecimentos familiares, além do aumento progressivo do envelhecimento da população rural.
Stropasolas (2014), por sua vez, declara que o número de filhos por família vem diminuindo, intensificando núcleos familiares menores, impulsionando um “envelhecimento pela base”, como é chamado pelo autor, o que significa que a população idosa vem se sobrepondo à população jovem. Por consequência, em poucos anos, tende a ocorrer uma mudança no “perfil e características das demandas por políticas públicas nas comunidades rurais” (RENK; DORIGON, 2014, p. 142).
Devido a essas características é que a preocupação com a sobrevivência do rural de pequena escala tem sido palco de discussão para compreender o seu comportamento com as mudanças ocorridas. Diversos autores têm realizado investigações sobre o processo de sucessão, levando em consideração os fatores que instigam o jovem a permanecer ou não no estabelecimento familiar. Assim, Brumer e Spanevello (2008) detalham que as moças acreditam mais que os rapazes que ninguém da família ficará no estabelecimento familiar como possível sucessor.
Nesse sentido, convém citar novamente Stropasolas (2010, p. 26-27), quando ele afirma que os jovens, principalmente as moças, têm se indagado a respeito de sua “[...] condição social marcada pela falta de autonomia e de oportunidades de renda”, recusando-se a dar continuidade à profissão dos pais como agricultores e achando melhor residir no meio urbano. Por consequência, comprometem “[...] a continuidade e o papel que os empreendimentos familiares exercem no desenvolvimento econômico e social da grande maioria dos municípios” (STROPASOLAS, 2010, p. 27).
Esse comportamento destaca-se uma vez que os jovens apresentam um posicionamento de interesses e de projetos diferentes do que é visualizado pela geração que está na gestão do estabelecimento, provocando conflitos e desconforto no convívio familiar. Conforme exposto por autores como Abramovay (1998, 2000), Stropasolas (2006, 2010), Aguiar e Stropasolas (2010), os conflitos entre as gerações residentes na propriedade rural ocorrem pela forma como a gestão é realizada pelo pai. A esse respeito, vale mencionar a intransigência dos pais em não corroborar as ideias dadas pelos filhos, não deixando implementar novos projetos e desenvolver atividades produtivas que poderiam trazer benefícios; assim, os filhos se sentem excluídos da tomada de decisões e não possuem renda satisfatória pelas atividades executadas na propriedade.
Pode-se dizer que essas relações de conflito estão conectadas à internalidade do relacionamento familiar. Woortmann (1995) descreve que a saída do jovem do meio rural está envolvida na “dinâmica de funcionamento do meio rural e do tecido social local”, porque existe a relação de parentesco e de vizinhança, identificando que a família não está isolada, mas construindo ao longo da vida relações de trabalho e reciprocidade (SPANEVELLO, 2008). Nessa direção, Silvestro et al (2001) julgam agravante a diminuição da população do meio rural, onde as localidades rurais se caracterizam pela agricultura familiar, provocando uma alteração na característica social, cultural, demográfica e econômica.
A próxima seção visa explorar a temática para ajudar a compreender tais as questões e os dilemas dos jovens rurais em relação ao processo de sucessão no estabelecimento rural.
2.1 A juventude e a responsabilidade do estabelecimento rural familiar
Pode-se dizer que agricultura familiar é uma categoria social que busca, por meio do processo de sucessão geracional, garantir a manutenção do estabelecimento familiar sem provocar uma distorção da característica social, cultural, demográfica e econômica. Como expresso pela autora Spanevello (2008, p. 22), “a lógica da sucessão baseia-se na necessidade de manter o patrimônio familiar representado pela terra”. Essa lógica ganha forma no momento em que o patriarca encontra um sucessor e consegue estabelecer a transmissão do patrimônio, determinando as condições econômicas e sociais ofertadas aos filhos, podendo ser efetivo ou não.
Considerando essa lógica, é fundamental fazer uma interlocução com uma passagem de Stropasolas (2014), em que afirma que o patriarca se vê dividido entre duas escolhas que definem a trajetória familiar: de um lado, ele tem o desejo de ver um dos filhos como sucessor, na finalidade de manter a tradição familiar; por outro, o filho busca novas oportunidades no meio urbano, como forma de criar possibilidades de ter uma autonomia financeira (RENK; DORIGON, 2014).
Acompanhando esse raciocínio, Abramovay et al (1998, p. 27) descrevem que:
Além de alimentos e matérias-primas, os agricultores do Sul do Brasil produziam, até o final dos anos 60, algo para eles ainda mais importante: novas unidades de produção familiar, seja ali mesmo onde viviam – por meio da repartição de suas terras – seja pela permanente tentativa de “colocar os filhos”.
Muitas famílias acreditavam que os objetivos do estabelecimento produtivo e as aspirações dos indivíduos do núcleo familiar estavam fundidos. Algumas vezes, porém, esses objetivos não eram colocados em prática e, esporadicamente, um dos membros familiares tinha objetivo pessoal que não ia ao encontro do planejado. Abramovay et al (1998) afirmam que a sucessão familiar aparece na agricultura quando desaparece essa relação mútua dos objetivos no estabelecimento familiar. A integridade do domínio paterno e a instalação de outros filhos, configurando um duplo objetivo por parte do estabelecimento familiar, consegue ser idealizado até o início dos anos 1970, como exposto por Abramovay et al (1998, p. 28):
Pela instituição do minorato (também chamado de ultimogenitura) pela qual a terra paterna é transmitida ao filho mais novo que, em contrapartida, responsabiliza-se por cuidar dos pais durante a velhice;
Pelo esforço permanente de dotar os filhos mais velhos dos meios que permitam a reprodução de sua condição de agricultor;
Pela valorização da atividade agrícola como forma de realização na vida adulta;
Pela grande mobilidade espacial e um mercado de terras particularmente dinâmico entre os agricultores.
A partir desse apontamento de Abramovay, é salutar expressar também a visão de Spanevello (2008, p. 51), segundo a qual “[...] a alocação dos filhos na agricultura era amplamente favorecida pela abertura do mercado de terras disponíveis, tanto dentro dos estabelecimentos, como nos municípios, regiões ou outros estados”. Dessa forma, o patriarca conseguia fazer com que o filho se mantivesse no meio rural com a identidade de agricultor. Para Gasson e Errinton (1993), como uma tradição, a passagem do estabelecimento familiar ocorria de uma geração para outra, tendo o patriarca como desejo passar suas terras para a próxima geração, sendo assim firmada a tradição da família (SPANEVELLO, 2008).
Dos anos 2010 em diante, instituições regionais, como a Emater/Ascar-RS, a REMAF, entre outros, passam a identificar que a forma tradicional, reconhecida como minorato, no processo de sucessão, apresenta-se de forma diferente. O que tem se apresentado é que o filho mais velho possui mais chances de permanecer na propriedade do que o filho mais novo. Esse fato ocorre porque o filho mais novo possui um incentivo maior para estudar do que o filho mais velho.
Claramente, o processo de sucessão familiar dialoga com uma gama de perspectivas que provocam uma leitura muito ampla do que pode interferir positivamente ou negativamente para a efetividade da passagem do estabelecimento familiar. Spanevello (2008, p. 53) relata que “a disposição ou a predisposição em ser agricultor é adquirida pelos filhos como parte de um processo de atuação de toda a família”. Indo além, ainda complementa que:
As práticas como a socialização no trabalho e demais orientações, como os financiamentos dos estudos, a compra de outras áreas de terras para a instalação dos demais acabam tendo como objetivo garantir a continuidade do estabelecimento (SPANEVELLO, 2008, p. 53).
Como expresso pela autora, é fundamental que a família tenha uma participação ativa no processo de sucessão e que as relações desenvolvidas tenham o cunho de manter as tradições da família. Nesse diálogo, a partir de pesquisas realizadas por Aguiar e Stropasolas (2010) e Silvestro et al (2001), serão apresentadas outras relações para a sucessão.
O filho, com clareza de que será o sucessor da propriedade familiar, é conscientizado de que a gestão por completo só ocorrerá quando o patriarca acreditar que é chegada a hora de se afastar das atividades e da responsabilidade ou de se aposentar. Quando o jovem integrante do núcleo familiar, sendo ou não o sucessor, tem autonomia para fazer inserções e compartilhar interesses a respeito da propriedade e da atividade familiar (como geralmente ocorre com o filho que é definido como sucessor), demonstra um envolvimento mais intenso. Já aquele filho que não quer assumir, demonstra o seu desinteresse. Pode haver ainda aquele filho que possui interesse em continuar na agricultura, mas, pela pouca quantidade de terra que a família possui e pela falta de capital para efetivar a aquisição de outros lotes, desloca-se para o meio urbano (RENK; DORIGON, 2014). Pensando na reprodução do estabelecimento familiar, a migração para o meio urbano, algumas vezes, não é somente uma decisão de sair, mas uma opção de encontrar uma atividade que proporcione a estrutura necessária para a reprodução social.
Indo ao encontro do que foi exposto anteriormente, quando se abordava a percepção dos atores regionais, vale mencionar que os jovens sabem que alguém vai ter que assumir a sucessão, tendo a responsabilidade de cuidar dos pais na velhice. Claro que a demora na definição de um sucessor faz com que o jovem tenha uma visão horizontal da profissão que pode ter no futuro, dificultando o diálogo sobre como tudo pode ocorrer na propriedade familiar. Nesse viés, a formalização de políticas públicas colabora com as famílias na condução da passagem do patrimônio entre as gerações. Igualmente, destaca-se o desenvolvimento de mecanismos para acesso à terra pelo jovem que venha a se tornar agricultor (RENK; DORIGON, 2014).
Nesse sentido, vale citar ainda Morelo (2018, p. 117), que afirmam que o governo da França prioriza a recuperação da propriedade familiar para aqueles jovens que possuem interesse de permanecer no meio rural e não expandir as propriedades existentes, apoiando no longo prazo projetos que julguem serem viáveis. Ainda como apoio aos jovens, o sindicato nacional dos jovens agricultores auxilia-os na formalização dos projetos. É relatado ainda pelos autores que na França e se estendendo para toda a comunidade europeia, há um apelo para que o jovem permaneça no meio rural, como uma estratégia de segurança alimentar. Para esse apoio, como política pública que visa incentivar o jovem a permanecer, o governo francês analisa se o jovem possui perfil, qualificação técnica e estrutura mínima para que possa desenvolver as atividades agropecuárias, proporcionando um grau maior de acerto nas estratégias de investimento.
Quanto a isso, as pesquisas dos autores já citados demonstram que os jovens definidos como sucessores nas propriedades do Sul do Brasil possuem um acompanhamento pelo patriarca na prática das atividades desenvolvidas no dia a dia na propriedade. Não há uma preparação determinada para assumir a gestão e as atividades da propriedade. Percebe-se também que, no meio rural, há poucos jovens na busca por qualificação profissional e muitos com baixo nível de escolaridade (RENK; DORIGON, 2014).
É evidente que o meio rural está numa mudança constante ao longo das últimas décadas. Goodman et al (1990) destacam que outros processos introduzidos, como a modernização da agricultura, provocaram mudanças na reprodução social dos agricultores familiares, com a lógica de expansão de mercado pelo incentivo ao aumento significativo da produção e da produtividade em escala industrial. Marsden (1989) complementa que essa modernização vem acompanhada pela inserção da tecnologia na lógica capitalista de produção, ocorrendo uma ressignificação produtiva, com foco nos mercados globais. Essa situação força os agricultores a implementarem processos formais que até então eram feitos de acordo com a sua educação familiar, levando-os a desenvolver uma gestão profissional do estabelecimento, com qualificação e aumento da produção. Para isso são utilizados produtos químicos e artificiais (adubos, sementes geneticamente transformadas, agrotóxicos); adquiridos bens e insumos industriais; além disso, trabalha-se com políticas comerciais com base nos valores internacionais, baseados na bolsa de valores (SPANEVELLO, 2008).
Silva (1982) salienta que as mudanças ocorridas na agricultura são relevantes no contexto social, econômico e ambiental, provocando, dessa forma:
A saída ou o êxodo da população do meio rural, a individualização do trabalho agrícola, devido ao uso de tecnologias poupadoras de mão-de-obra, redução da agricultura de subsistência e desgaste dos recursos naturais, esgotamento do mercado de terras locais, concentração fundiária e o empobrecimento dos agricultores que não conseguiram adentrar na lógica produtivista. (SPANEVELLO, 2008, p. 54)
São as transformações ocorridas no meio rural, de acordo com Silvestro et al (2001) e Champagne (2002), que tornam evidente que o processo de sucessão tem sofrido diretamente os impactos dessas alterações, pelo fato de carregar consigo as indefinições e as incertezas geradas, porque as regras e os padrões estabelecidos em anos anteriores estão sendo mitigados, sem perspectiva de surgimento de novos padrões sucessórios, gerando dúvidas e interrogações (SPANEVELLO, 2008).
Procurando compreender a teoria da sucessão no meio rural e mesclando as percepções que discutem a lógica desenvolvimentista no meio rural, apresenta-se, na próxima seção, a Região das Missões como o território desta pesquisa.
3 A caracterização da Região das Missões/RS no século XXI
Para a caracterização da Região das Missões são usados dados que manifestam a realidade regional, com base em estudos governamentais, acadêmicos e de instituições de pesquisa como a FEE, o IBGE e o Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul. Além destes, vale ainda citar o material denominado Perfil Socioeconômico COREDE Missões-RS, construído pela Secretaria de Planejamento, Mobilidade e Desenvolvimento Regional (SEPLAN) do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, o qual traz excelentes contribuições a respeito do território em estudo.
A Região das Missões está localizada geograficamente a 450 quilômetros de distância da capital, Porto Alegre. Demarcando a sua geografia, no oeste a fronteira é feita com a Argentina, com a qual não possui uma ligação econômica mais firme, por não contar com uma infraestrutura rodoviária ágil1. Como há a separação pelo Rio Uruguai, o elo é firmado pelo transporte hidroviário (travessia por balsa), provocando um custo elevado para as transações comerciais. A Região das Missões faz divisas com COREDES pertencentes à mesma Região Funcional2, assim como com COREDES de outras Regiões Funcionais. Localizado ao norte da Região das Missões está o COREDE Fronteira Noroeste; ao Sul, o COREDE Vale do Jaguari; ao Leste, o COREDE Noroeste Colonial; e, para fechar a referência geográfica, ao Sudeste encontra-se o COREDE Fronteira Oeste.
Conforme a divisão estabelecida pelo Conselho Regional de Desenvolvimento (COREDE), criado em 1991, a Região das Missões é constituída por vinte e cinco municípios3, conforme mostra a Figura 1.
A base econômica da Região das Missões é sustentada pela agricultura e pela pecuária, tendo baixa incidência de indústrias. De acordo com o Perfil Socioeconômico COREDE Missões (2015), a agropecuária na Região das Missões destaca-se na criação de bovinos e de suínos, sendo também relevante o cultivo de commodities como milho e trigo, bem como as lavouras de mandioca. A indústria não é muito significativa na região, sendo mais explorada no processamento de produtos primários, como a agroindustrialização nas propriedades rurais familiares.
O Perfil Socioeconômico COREDE Missões (SEPLAN, 2015, p. 8) destaca que:
Nos indicadores sociais, a saúde e a geração e apropriação de renda se encontram em níveis preocupantes. A educação se encontra em posição melhor, embora detenha importante percentual de população adulta com Ensino Fundamental incompleto.
A infraestrutura de transporte apresenta deficiências no modal rodoviário, com cinco municípios ainda sem acesso asfáltico. O modal hidroviário é subaproveitado, pois possui potencialidades, especialmente no Rio Uruguai. A infraestrutura de saneamento também apresenta deficiências, principalmente no número de banheiros ou sanitários ligados à rede geral ou fossa séptica.
A infraestrutura de transporte apresenta deficiências no modal rodoviário, com cinco municípios ainda sem acesso asfáltico. O modal hidroviário é subaproveitado, pois possui potencialidades, especialmente no Rio Uruguai. A infraestrutura de saneamento também apresenta deficiências, principalmente no número de banheiros ou sanitários ligados à rede geral ou fossa séptica.
Nesse cenário apresentado sobre a Região das Missões, pode-se destacar, em relação à caracterização demográfica, que a população dos municípios tem diminuído, provocando um olhar diferenciado ao movimento do território. O IBGE, no Censo Demográfico de 2010, indicou que a população dessa região era de 248.016 habitantes, distribuídos da seguinte forma: 71% residia na zona urbana e 29% residia na zona rural. Em dez anos, esse número sofreu algumas oscilações, pois, entre 2000 e 2010, a população cresceu 5% no meio urbano e despencou 24% no meio rural.
Conforme o Perfil Socioeconômico COREDE Missões (SEPLAN, 2015, p. 10), no território gaúcho, algumas regiões, como a “fronteira norte, noroeste e parte do sul”, expressam maior movimentação da população para outras regiões, principalmente da população rural. Essa movimentação direciona-se em maior concentração para o leste do Estado do Rio Grande do Sul (RS), para os arredores da Região Metropolitana de Porto Alegre e para a Região do Litoral Gaúcho.
Esse movimento migratório da população implica que algumas regiões apresentem crescimento demográfico negativo no período entre 2000 e 2010. Com elevada perda populacional, na casa de 6% no mesmo período, pode-se perceber que internamente a Região das Missões possui alguns municípios que tem crescimento populacional no meio urbano e outros que verificam decréscimo no meio rural.
Os municípios de Eugênio de Castro (+35%), Salvador das Missões (+29%) e Sete de Setembro (+28%), são os que apresentam o maior crescimento demográfico urbano, enquanto os municípios que mais perderam população no meio rural são Santo Ângelo (-62%), Caibaté (-49%) e Eugênio de Castro (-41%).
De acordo com o Perfil Socioeconômico COREDE Missões (2015), alguns municípios, como Bossoroca, Garruchos, Caibaté, Pirapó, Dezesseis de Novembro, São Nicolau, Guarani das Missões e Santo Antônio das Missões apresentam uma estagnação ou perda populacional urbana e rural no mesmo período.
Essa redução da população na Região das Missões se manifesta pela baixa oferta de emprego e renda, reduzida taxa de fecundidade e baixa expectativa de vida. Os dados da Fundação de Economia e Estatística do RS (2013) mostram que a Região das Missões teve, no período de 10 anos, uma queda significativa de população na faixa etária de 0 a 4 anos de vida: em 2010, constatou-se uma diminuição de 34% em relação a 2000. Como contraponto, a faixa etária de 65 a mais de 80 anos cresceu 30%, demonstrando que, em 10 anos, a população da Região das Missões envelheceu, pela baixa taxa de fecundidade.
Para possibilitar uma melhor compreensão sobre porque a Região das Missões apresenta dados na contramão do desenvolvimento do território e porque é uma das regiões do Estado do RS que mais perde população, estudou-se o desenvolvimento socioeconômico dos municípios em relação às três áreas básicas para o desenvolvimento humano.
Conforme o Índice FIRJAN de Desenvolvimento Municipal (2018)4, a Região das Missões, no ano de 2016, alcançou um nível moderado no desenvolvimento humano, com 0,7156, ficando muito próximo do nível estadual, mas superando o índice nacional, que foi de 0,6678. Dos 25 municípios da Região das Missões, Ubiretama, Vitória das Missões e Roque Gonzales são os municípios que apresentam o menor IFDM.
No que se refere ao índice de emprego e renda, ele é regular, podendo ser um dos fatores que contribuem para a migração da população em busca de regiões que oferecem melhores condições nesse quesito. Ainda observando esse cenário, percebe-se que 17 municípios estão no nível regular – pontuação de 0,4 a 0,6 – e somente três municípios enquadram-se no nível moderado, entre 0,6 e 0,8 – sendo que dois deles são considerados cidades estratégicas na Região. Nos critérios educação e saúde, os municípios da Região das Missões já se enquadram nos níveis moderado e alto, variando entre 0,6 a 0,8 e 0,8 a 1,0.
Ao observar a movimentação da Região das Missões, pode-se perceber, pela categoria homem e mulher, apresentada no Gráfico 1, que no mesmo período de dez anos, a Região das Missões teve uma redução de 6% dos homens e de 4% das mulheres. Essa redução pode estar relacionada à migração da população para outras regiões, à mortalidade e à baixa natalidade. Nesse cenário, os três municípios que se destacam devido à redução da população são Caibaté (32% menos mulheres e 31% menos homens), Dezesseis de Novembro (16% menos mulheres e 18% menos homens) e Pirapó (16% menos mulheres e 20% menos homens). Nessa análise, constata-se também que os municípios que mantiveram ou aumentaram seus índices foram Cerro Largo (3% a mais de mulheres e 7% a mais de homens), Salvador das Missões (2% a mais de homens) e São Pedro do Butiá (1% a mais de mulheres).
Outro ponto a ser considerado é a densidade demográfica do território. Nesse sentido, três municípios se destacam por apresentarem a maior densidade demográfica: Santo Ângelo, com 112,5 habitantes/km²; Cerro Largo, com 75,6 habitantes/km²; e Porto Xavier, com 37,1 habitantes/Km². Vale referir também os três municípios com a menor densidade demográfica; são eles: Garruchos, com 3,9 habitantes/Km²; Bossoroca, com 4,2 habitantes/Km²; e São Miguel das Missões, com 6,1 habitantes/Km².
Nas análises feitas no território, pode-se constatar que os movimentos em relação aos estabelecimentos rurais apresentam a transformação que vem ocorrendo ao longo dos anos. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2017), os estabelecimentos pertencentes à agricultura não familiar cresceram 0,16% do Censo Agropecuário de 2006 para o Censo Agropecuário Preliminar de 2017. Por outro lado, destaca-se que os estabelecimentos da agricultura familiar, definidos de acordo com a Lei n. 11.326, sofreram um decréscimo de 23,33% no mesmo período. O total de estabelecimentos do território das Missões, no ano de 2006, era de 25.565 e decresceu para 20.482 estabelecimentos no ano de 2017, identificando-se, portanto, uma redução de 19,88% em uma década.
A Região das Missões caracteriza-se como um território de pequenas propriedades. De acordo com a Lei n. 11.326, as propriedades da agricultura familiar têm em sua estrutura fundiária um total de até 4 módulos fiscais, o que representa no máximo 80 hectares. Conforme os dados do Censo Agropecuário de 2006, na época, havia 21.817 estabelecimentos da agricultura familiar e 3.748 estabelecimentos da agricultura não familiar. Embora o número de estabelecimentos da agricultura familiar tenha diminuído, de acordo com o Censo Agropecuário 2017, por outro lado, houve um pequeno aumento na agricultura não familiar.
Conforme Ortiz (2019), o Censo Agropecuário 2017 demonstra uma diminuição na participação da agricultura familiar, sendo perceptível que as estratégias de promoção territorial para a Região das Missões devem entrar em um sistema de planejamento pautado pela necessidade de uma reprodução social e econômica que contribua para a manutenção da agricultura familiar na região. Assim, torna-se fundamental destacar os fatores que influenciam o jovem rural referente à permanência ou não nas propriedades com agroindústria familiar rural na Região das Missões, o que é exposto no próximo capítulo.
4 Fatores que influenciam na permanência ou não do jovem no estabelecimento rural
Diversos autores já pesquisaram os fatores que influenciam na permanência do jovem rural ou no êxodo, ou seja, que podem ou não levar o jovem a tomar a decisão de permanecer no meio rural. A esse respeito, Brumer (2001) destaca que a fixação do jovem no meio rural está ligada à garantia de ter uma renda mensal, a partir dos ganhos das atividades agrícolas realizadas na propriedade familiar. Outros, como Abramovay et al (1998) e Carneiro (2001; 2007), destacam que, para ocorrer o processo de sucessão familiar, é preciso trabalhar alguns elementos que atendam às necessidades dos jovens, como a renda, as relações familiares, políticas públicas inclusivas, comunicação digital e formação educacional. Esses pontos podem ser percebidos através de uma leitura geral da propriedade caracterizada como de agricultura familiar.
Troian e Breitenbach (2018, p. 798) destacam autores como Spanevello, Drebes e Lago (2011), Abramovay et al (1998), entre outros, pontuando que os jovens são estimulados a permanecer no campo por fatores como: instituições de caráter técnico voltadas para a promoção da extensão rural, com programas de extensão rural geradores de oportunidades de trabalho aos jovens; cooperativas de agricultores atuando como fornecedoras de crédito, assistência técnica, aperfeiçoamento produtivo e informacional e fomento social; fortalecimento de grupos locais e das organizações de agricultores; iniciativas e atividades voltadas para o lazer, através de encontros que propiciem trocas de experiências, jogos recreativos, entre outros; tecnologia, modernização do campo, máquinas e equipamentos que facilitem a realização das atividades agrícolas, com redução da penosidade do trabalho; valorização dos espaços rurais e reconhecimento da importância da agricultura; além disso, as políticas voltadas para a juventude rural não podem ser limitadas somente à agricultura, devendo incluir, por exemplo, uma educação de qualidade, com estímulo ao desenvolvimento de projetos inovadores, que façam do meio rural uma opção de vida.
Com base nessas leituras, esta pesquisa procurou identificar se as propriedades com agroindústria familiar rural apresentam fatores diferentes para definir a permanência ou não do jovem no estabelecimento rural. Foram entrevistadas 32 propriedades da agricultura familiar com agroindústrias, sendo realizado um questionário com os pais e filhos, com o objetivo de compreender os fatores que influenciam os jovens a permanecerem ou não no estabelecimento familiar rural, sendo que algumas dessas propriedades já sofreram o processo de sucessão, mas os pais ainda permanecem na propriedade.
Questionando os pesquisados sobre o que influencia a decisão do jovem de permanecer ou sair da propriedade familiar, obteve-se como resposta que o jovem não permanece pelo fato de que boa parte das propriedades, mesmo com agroindústria, estão focadas em produzir grãos como soja, milho e trigo. Essas propriedades, em geral, têm fluxo de dinheiro no momento da venda desses produtos, inviabilizando ao jovem ter uma renda mensal, o que não lhe permite ter uma liberdade financeira, obrigando-o, assim, a pedir ao patriarca todas as vezes que necessita.
Não só a renda mensal, mas também os benefícios que um assalariado recebe no meio urbano, como 13° salário e férias, constituem atrativos para o jovem do meio rural. Outro ponto que se destaca é que a cultura de grãos para a comercialização in natura, com a intensificação na qualidade e na quantidade produzida, exige que as propriedades se modernizem tecnologicamente, o que se torna inviável, devido ao tamanho da área produtiva que as famílias possuem. Isso faz com que não consigam investir em equipamentos e máquinas com muita tecnologia, como é o caso de tratores com ar-condicionado e GPS, por exemplo.
Por consequência, o jovem prefere ir para o meio urbano ou até mesmo outra propriedade maior, com mais recursos, que ofereça comodidades, não exigindo que fique exposto ao sol ou ao frio para realizar o trabalho. Essa constatação vai ao encontro da perspectiva de Marsden (1989) e Goodman et al (1990), quando relatam que a modernização da agricultura está ligada à introdução da tecnologia para o aumento da produtividade em uma escala industrial, com a intencionalidade de atender à necessidade dos mercados globais.
Outro fator a ser mencionado é que o jovem começa a trabalhar desde muito cedo com o pai e, nessa trajetória, vai adquirindo conhecimento, habilidade e experiência, mas o patriarca não demonstra aceitar a opinião do filho no desenvolvimento das atividades, o que gera desânimo. Outro detalhe constatado é a frustação de safra, quando todo o trabalho que foi realizado ao longo de um período não gera um rendimento satisfatório5.
Acredita-se também que os jovens, a partir dos anos 1990, passaram a ter mais interesse nos estudos, inclusive para possibilitar o desenvolvimento da propriedade, vendo que é viável dar continuidade ao trabalho dos pais, mas deixando evidente que precisam estudar para conseguir manter a propriedade e não ter de sair (Entrevistado 31). Nesse sentido, transparece a debilidade das escolas rurais, uma vez que diversas localidades não possuem mais escolas e outras lecionam as primeiras séries do ensino fundamental, do 1º ao 5º ano e depois as crianças e jovens precisam se deslocar para uma escola no centro urbano. Alguns pais acreditam que um dos interesses dos filhos, ao irem para o meio urbano, é a relação que este possui com a escola urbana, ou seja, o jovem do meio rural sofre com a necessidade de deslocamento para estudar e vivenciar as experiências urbanas.
Outro ponto observado na pesquisa diz respeito à capacidade de gerenciamento, pois não basta saber produzir, é preciso saber como comercializar o produto produzido, saber fazer o comercial de uma agroindústria, conquistar novos mercados, etc.
O pensamento dos patriarcas vai ao encontro das quatro características básicas de um sucessor na visão de Vidigal (1996): conhecimento do mercado, das leis; conhecimento da produção; competência para liderar, comandar as atividades que precisam ser realizadas pelos outros integrantes da família; e capacidade de identificar as suas forças e fraquezas, denominado autoconhecimento.
Outro aspecto mencionado como negativo para a permanência é a burocracia que existe para a liberação das agroindústrias. Como afirmado pelo Entrevistado 8, “o jovem quer uma renda mensal e não ficar dependente de uma pequena renda anual, com o plantio da soja, em uma pequena área”. Complementando, expõe que a agroindústria é uma alternativa para que o jovem tenha uma renda mensal. Mas as exigências na qualidade do produto desenvolvido pela agroindústria têm forçado as famílias a realizarem investimentos em estruturas físicas e equipamentos caros, sendo este outro ponto que desestimula o jovem a ficar. Por não conhecer todos os processos desenvolvidos, ele não consegue identificar a viabilidade desse investimento para se manter no meio rural.
A dificuldade do escoamento da produção é outro entrave; devido à precariedade das estradas, a trafegabilidade fica comprometida em dias de chuva, deixando muitas localidades em isolamento, dependendo das condições climáticas. Vale ainda referir, como aspecto que interfere na decisão do jovem, o tipo de produto produzido na agroindústria e o grau de envolvimento exigido. Como relatado pela Entrevistada 11, o trabalho diário na agroindústria inicia às 5 horas e finaliza às 22 horas. Essa alta exigência, aliada à desvalorização dos produtos no momento da venda, faz com que o jovem não queira permanecer nessa atividade. A esses fatores ainda se agrega a fiscalização intensa sobre as propriedades que possuem agroindústrias, pois precisam prestar conta de tudo que é produzido.
Como contraponto, acredita-se que a permanência dos jovens está relacionada ao gosto pela atividade rural, pelo desejo de seguir a mesma atividade dos pais. Outro destaque está relacionado ao apoio por parte de políticas públicas, com incentivos financeiros. Uma forma de o governo apoiar o jovem a permanecer no meio rural e desenvolver as suas atividades é ter como exemplo a política de sucessão das propriedades francesas. Como descrito por David Morelo6, o governo francês tem como foco principal a recuperação das propriedades, em vez priorizar a expansão das propriedades existentes. O governo também apoia projetos desenvolvidos pelos jovens que apresentem uma rentabilidade/viabilidade a longo prazo.
Outro aspecto a considerar é que o jovem precisa visualizar o resultado financeiro que a agroindústria entrega ao núcleo familiar. Nesse ponto, as Entrevistadas 5 e 28 registraram que o rendimento da agroindústria cobre todos os custos de produção, administrativo, familiar e da propriedade nas suas diversas atividades. A flexibilidade de horário e a autonomia de poder fazer o que se gosta são outros pontos levantados pelos entrevistados como positivos para a permanência do jovem no meio rural. O campo oferece uma tranquilidade e uma qualidade de vida diferente da cidade.
Na visão tanto dos pais quanto dos filhos, como ponto positivo para a permanência do jovem, refere-se a continuidade da trajetória da família, quando é sustentável o investimento realizado para a formalização da agroindústria. Vale referir que muitos acabam ficando na informalidade por causa da indecisão de quem dará continuidade. Os entrevistados percebem a importância que a sua produção tem em relação ao contexto econômico, social e cultural do território a que pertencem. Na visão da família, como atrativos para o jovem ficar, em síntese, destacam-se os seguintes pontos: trabalhar em casa com a família; não precisar sair para buscar outra renda; algo rentável; vender o produto para o cliente com liberdade; ter uma renda mensal; desenvolvimento familiar; produzir corretamente, atendendo às exigências sanitárias; contato com o mundo; conhecer pessoas; colocar em prática os estudos; ter o seu próprio negócio.
Esses fatores interagem com o que os pais e os filhos percebem ao longo do tempo, que se registra como um ditado popular: “o caminho está feito”. O que quer dizer que a parte mais difícil já foi construída pelos pais, que é a criação, a formalização e a comercialização (rede de clientes). O filho terá tudo organizado para dar continuidade ao que foi construído pelos patriarcas.
O acesso aos estudos e à tecnologia são pontos que se percebem como importantes para o jovem conseguir permanecer no estabelecimento familiar, devido ao campo se encontrar num processo de transformação contínuo. Com a inserção da tecnologia, exige-se que os jovens tenham estudo para continuar desenvolvendo as atividades da propriedade. Na visão dos entrevistados, o jovem que não buscar conhecimento não terá um futuro próspero na agricultura.
Esses fatores descritos podem ser analisados no quadro 1, no qual é destacado o incentivo ao jovem a permanecer ou não no campo.
FICAR no Estabelecimento rural | NÃO FICAR no estabelecimento rural |
· Desejo de seguir a mesma atividade dos pais - continuidade da trajetória da família; · Apoio por parte de políticas públicas, com incentivos financeiros. · Visualizar o resultado financeiro que a agroindústria entrega ao núcleo familiar; · A flexibilidade de horário e a autonomia de poder fazer o que se gosta; · Tranquilidade e uma qualidade de vida diferente da cidade; · Colocar em prática os estudos - ter o seu próprio negócio. | · Focadas em produzir grãos como soja, milho e trigo - inviabilizando ao jovem ter uma renda mensal - os benefícios que um assalariado recebe no meio urbano, como 13° salário e férias; · A modernização tecnológica - exposição ao sol ou ao frio para realizar o trabalho; · Aceitar a opinião do filho no desenvolvimento das atividades; · Falta das escolas rurais - precariedade das estradas; · É preciso saber como comercializar o produto produzido, saber fazer o comercial de uma agroindústria, conquistar novos mercados, etc; · A burocracia que existe para a liberação das agroindústrias - exigências na qualidade do produto; · O tipo de produto produzido na agroindústria e o grau de envolvimento exigido. |
No quadro 1 observa-se que não é somente um fator interveniente na decisão do jovem permanecer no estabelecimento familiar, mas um conjunto de fatores que vão além das fronteiras das políticas públicas.
Conclusões
Esse estudo teve como objetivo analisar os fatores que influenciam no processo de sucessão a partir da percepção do jovem agricultor nas propriedades familiares rurais com agroindústrias na Região das Missões do Estado do Rio Grande do Sul/Brasil. Dessa forma, as 32 propriedades familiares entrevistadas deixam claro que não é somente um fator que influencia na decisão do jovem permanecer no estabelecimento familiar, mas um conjunto de fatores que vão além das fronteiras das políticas públicas de incentivo e apoio à categoria social em que o jovem pertence. Esses fatores estão muito mais intrínsecos com a trajetória de vida, o modo em que é conduzido o desenvolvimento familiar. podendo assim destacar que os jovens acabam por não permanecer devido ao baixo retorno financeiro que é proporcionado pela matriz produtora da propriedade, sendo tratada a agroindústria como um complemento de renda e não uma fonte principal, não sendo perceptível pelo jovem uma garantia de renda mensal, 13º salário.
A ineficiência em tecnologia também é um ponto negativo. Mas outro ponto que se destaca muito é o comportamento do jovem rural em relação à conduta comercial, pois muitos não se sentem confortáveis em relação à venda e cobrança de valores. Um ponto a ser explorado em possíveis estudos futuros é a questão do comportamento e perfil do jovem agricultor. Outra agenda que se destaca para estudos futuros é a especialização do jovem agricultor na área de atuação da propriedade familiar, pois os jovens que demonstram interesse em permanecer relatam que pretendem estudar e voltar para a propriedade, até mesmo por acreditar que é possível ter melhor qualidade de vida. Dessa forma, pode-se perceber que os estudos sobre sucessão familiar na agricultura familiar possuem um campo a ser explorado.
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Notas