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Recepción: 05 Julio 2021
Aprobación: 10 Abril 2023
DOI: https://doi.org/10.17058/redes.v28i1.16775
Resumo: Quando uma universidade de caráter comunitário possibilita a criação de processos de educação ambiental por meio de atividades colaborativas de educomunicação (com uso de imagens), que envolvem diversos grupos sociais, a fim de promover o acesso ao direito à comunicação a grupos sociais, questiona-se como a perspectiva comunicacional, que valoriza os saberes coletivos, pode apontar para uma possibilidade poética para o desenvolvimento comunitário? O objetivo do artigo é refletir sobre a contribuição da comunicação colaborativa para os processos de desenvolvimento. A pesquisa bibliográfica apoia as reflexões sobre a pesquisa-intervenção que gerou a experiência de co-criação de 28 filmes amadores. Tomam-se como referenciais teóricos as contribuições dos Estudos Culturais, da Comunicação Comunitária e da Educomunicação. Os processos construídos colaborativamente possibilitaram o desenvolvimento comunitário a partir do campo da Comunicação, explorando as possibilidades criativas que os audiovisuais oferecem, os quais refletiram-se em novos olhares sobre si e os usos das mídias, sobre o estar e o fazer em grupo e sobre o ambiente habitado.
Palavras-chave: Comunicação, Educação Ambiental, Intervenções, Imagens, Experiências colaborativas.
Abstract: When a community university enables the creation of environmental education processes through collaborative educommunication activities (with images) that involve several social groups in order to provide them with access to their right to communication, the question that arises is how can the communicational perspective, which values collective knowledge, point towards a poetic possibility for community development? The objective of this study is to reflect upon the contribution of collaborative communication to development processes. Bibliographical research provides support to the reflections upon the research-intervention that generated the co-creation 28 amateur films. The contributions of Cultural Studies, Community Communication, and Educommunication are used as theoretical references. The processes built collaboratively have enabled community development in the field of Communication, exploring the creative possibilities offered by audiovisual media, which led to new perspectives about the participants themselves and the use of media, about being and acting in groups, and about the environment we inhabit.
Keywords: Communication, Environmental education, Interventions, Images, Collaborative experiences.
Resumen: Cuando una universidad comunitaria posibilita la creación de procesos de educación ambiental a través de actividades colaborativas de educomunicación (utilizando imágenes), que involucran a diversos grupos sociales, con el fin de promover el acceso al derecho a la comunicación de los grupos sociales, la pregunta es ¿cómo la perspectiva comunicacional, que valora el conocimiento colectivo, puede apuntar a una posibilidad poética para el desarrollo comunitario? El objetivo del artículo es reflexionar sobre la contribución de la comunicación colaborativa a los procesos de desarrollo. La investigación bibliográfica apoya las reflexiones sobre la investigación-intervención que generó la experiencia de co-creación de 28 películas de aficionados. Las referencias teóricas se toman de los aportes de los Estudios Culturales, la Comunicación Comunitaria y la Educomunicación. Los procesos construidos colaborativamente posibilitaron el desarrollo comunitario desde el campo de la Comunicación, explorando las posibilidades creativas que ofrecen los audiovisuales, que se reflejaron en nuevas miradas sobre sí mismos y los usos de los medios, sobre el ser y el hacer en grupo y sobre el entorno habitado.
Palabras clave: Comunicación, Educación ambiental, Intervenciones, Imagenes, Experiencias colaborativas.
1 Introdução1
Trabalhamos a partir do pressuposto que a comunicação constitui-se em um recurso de construção da cidadania. Para democratizar discursivamente o espaço público é preciso democratizar o acesso à informação, o que se reflete nos processos de desenvolvimento pessoal e social. Esta afirmativa converge com o arcabouço teórico dos Estudos Culturais e da linha da Comunicação Comunitária, assim como da área denominada como Educomunicação. É por estes espaços de produção teórico-metodológica que circulamos nos nossos estudos, nas suas diferentes fases, desde quando o foco era compreender a produção de sentido de diferentes atores de campos sociais diversos sobre processos comunicacionais, até quando, como agora, interessa-nos investigar esses processos construídos colaborativamente entre pesquisadores e grupos sociais, quando estes são convidados a construírem suas próprias narrativas sobre temas ambientais, mediadas por uma prática experimental, livre, criativa, que explore tanto aspectos políticos quanto estéticos. Essa é a perspectiva que vem sendo aprofundada pelo grupo de pesquisa dos autores.
Portanto, o grupo de pesquisa ao qual os autores estão agregados, propõe-se a ser um espaço de construção do saber a partir da intervenção social com a apropriação dos meios de produção da informação para geração de processos de comunicação ambiental comunitária de caráter educomunicativo, articulando-se, desta forma, às mudanças sociais e paradigmáticas contemporâneas, especialmente por aproximar o campo da Comunicação ao da Educação Ambiental, buscando aí inspiração libertária para evadir dos estudos que centralizam a mídia.
Quando se possibilita a criação de processos de educação ambiental comunitária por meio de atividades colaborativas que se caracterizam como práticas de educomunicação (com uso de imagens), promovendo-se o acesso ao direito à comunicação a grupos sociais, questiona-se como este tipo de experiência teórico-metodológica pode trazer elementos mais poéticos ao campo da Comunicação e da Educação Ambiental? De outro modo, como a perspectiva comunicacional que valoriza os saberes coletivos pode apontar para uma possibilidade poética para o desenvolvimento comunitário? O objetivo do artigo é refletir sobre a contribuição da comunicação colaborativa para os processos de desenvolvimento. A pesquisa bibliográfica apoia as reflexões sobre a pesquisa-intervenção que gerou a produção dos filmes amadores.
O grupo de pesquisa Ecosofias, Paisagens Inventivas - anteriormente denominado Comunicação, Educação Ambiental e Intervenções (Ceami) - surgiu em 2007 na Universidade do Vale do Taquari - Univates. Após transitarmos pela comunicação ambiental em redes informais comunitárias e midiatizadas, nas relações interpessoais, na educação formal e midiatizada via campo jornalístico tradicional, seguimos em busca de evidências não recorrentes no estado da arte da comunicação ambiental por meio de novas pesquisas, desta vez problematizando as organizações governamentais e não governamentais e suas manifestações no ambiente virtual, assim como dos grupos informais constituídos no espaço aberto pelas redes sociais.
Como evolução do grupo de pesquisa, propusemo-nos a ser um espaço de construção do saber e de intervenção social por meio da apropriação das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) e de tecnologias sociais. Nessa fase do grupo de pesquisa, investimos nas intervenções para a produção de imagens por meio dos audiovisuais de forma colaborativa, considerando as contribuições da educomunicação para inspirar novas formas de ser cidadão: pensando-se como parte de um ambiente que passa a conhecer de forma coletiva, investigativa, divertida e dialógica.
2 Por uma comunicação ecosófica poético-política
Quando se analisam os pressupostos hegemônicos em educação ambiental a partir da análise de documentos oficiais brasileiros e de propostas de autores da área, identifica-se que hoje é hegemônica a construção social da educação ambiental a partir do paradigma político-emancipatório, que tem raízes nas contribuições marxistas. Referimo-nos à análise da Política Nacional de Educação Ambiental - PNEA (BRASIL, 1999); dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (BRASIL, 1997); do Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global (2014), e das contribuições de Lima (2002) e de Loureiro (2002). Uma análise do discurso realizada por nós sobre estes referenciais, evidencia a força de sentidos como conflito, apropriação, democracia, participação, dialogia, consciência crítica, resolução de problemas, ação para mudanças sociais-econômicas-culturais-políticas, responsabilização, integração entre organizações, intervenção, “agir na história”, compromisso social, continuidade, articulação entre cidadania-justiça, social-sustentabilidade, articulação entre cidadania-democracia-participação, formação de cidadãos conscientes, direitos e deveres do educando, meio ambiente como bem público, conquistar a cidadania, desenvolvimento de habilidades e de competências por meio de práticas e projetos que enfoquem necessidades-problemas-interesses, empoderamento, protagonismo, uso de diagnósticos e indicadores em planejamentos estratégicos, institucionalização da educação ambiental, ações intersetoriais, formação, capacitação, parcerias, banco de dados, uso de mídia e tecnologias como instrumentos.
Misturados a esses elementos considerados mais “duros” politicamente, emergem, à margem, discursos que incluem como elementos da educação ambiental intensidades relacionadas aos contatos entre humano e natureza de ordens “macias”, que atentam para o íntimo e para o sensível, abrindo brechas para o agir subjetivo e individual. Portanto, dos mesmos documentos e na obra de outros autores2, também uma análise do discurso evidencia outra tendência, de uma vertente denominada poética, que nos coloca diante de palavras como vivenciar, energia, afetividade, subjetividade, imaginário, vínculo, sensibilidade, emoção, arte, sensações, corpo, vontade de ser, expressar, compartilhar, vida, escuta poética, acaso, temporalidades humanas não lineares, derivas, ecologias menores, fragilidade, intuição, arriscar-se, mover-se sem mapa, escuta dos desejos, vontades, silêncios, conversação, viver solidário e amoroso, mergulho na natureza, contato direto, sem escudos, abrir-se à percepção, exercitar a fala, buscar o incerto e o curioso, reencontro com a dimensão sensível, afloramento de dimensões adormecidas, reconhecimento do lugar habitado, realocação do ser humano no mundo, ressignificar relações, passar do discurso para a experiência sensível, reavivamento dos sentidos, redescoberta do potencial criativo.
Esta proposta pretende apropriar-se e ir além da face hegemônica da educação ambiental, consagrada nas últimas quatro ou cinco décadas, promovendo uma articulação política-poética, coerente com pressupostos dos estudos culturais latino-americanos, para quem a comunicação e suas mediações ajudam a pensar a sociedade reconhecendo experiências coletivas. Maturana (1998) contribui com nossa concepção de comunicação ao afirmar que são parte do devir poético-político a vivência de palavras como solidariedade, cuidado, cooperação, igualdade e amor. Por serem valores não são ensinados, mas constituem-se como processos de aprendizagem segundo o autor. Guattari (1990), por sua vez, defende uma articulação ético-política entre três registros ecológicos - ambiente, relações sociais e subjetividade - que constituem para ele o conceito de ecosofia. Em uma proposta ecosófica, as pessoas tendem a se tornar mais solidárias e singulares, diz o autor.
Estas ideias permeiam nossa aproximação aos estudos em Comunicação, que, no nosso caso, tem se aprofundado nas perspectivas ambiental e comunitária, articulando-se com algumas políticas públicas, entre elas a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA) e o Programa de Educomunicação Socioambiental.
3 Atravessamentos da educomunicação socioambiental no desenvolvimento comunitário
A articulação entre os campos da Comunicação e da Educação para reflexão e ação voltadas para o desenvolvimento comunitário é um exercício que marca a trajetória de pensadores de forma mais marcante há cerca de cinco décadas, sendo os mais proeminentes aqueles que se caracterizam pelo pensamento crítico. Estes referenciais influenciaram a construção dos documentos norteadores da Educação Ambiental, nos quais se ressalta a relevância dos aspectos comunicacionais e a apropriação das tecnologias.
A Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA), Lei 9.795 de 1999 (BRASIL, 1999) e o Programa Nacional de Educação Ambiental (ProNEA) (PRONEA, 2014) são documentos nacionais ainda fundamentais, que contemplam esses aspectos educomunicacionais. O ProNEA contempla ações de educomunicação atreladas às questões socioambientais, como formas de gerar difusão de informações e também aprendizagens para o campo da educação ambiental. Internacionalmente, o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, a Carta da Terra e a Agenda 21 são as referências mais relevantes.
A articulação entre comunicação e educação ambiental é prevista em diversos eventos e documentos, os quais abordam a relação com foco na cidadania socioambiental. Decorrente da Rio-92, a Agenda 213, em seu capítulo 36, trata da promoção do ensino, da conscientização e do treinamento; e no capítulo 40, que tem como enfoque a informação para a tomada de decisões; cita de forma direta a educação ambiental e as políticas comunicacionais (BRASIL, 2008, p.17).
Paralelamente à Rio-92, a Conferência da Sociedade Civil sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também chamada de Fórum Global, propôs o envolvimento dos meios de comunicação com o tema ambiental. Ainda na Rio-92 surge o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, que prevê o uso educativo e a democratização dos meios de comunicação no Princípio 14 e na Ação 15 (BRASIL, 2008).
Em 1999, no Brasil, dentro do campo da EA, é instituída a PNEA pela Lei 9.795, que aborda a comunicação no processo educacional de forma direta em dois artigos, nos quais considera que todos têm o direito à Educação Ambiental, cabendo aos meios de comunicação de massa disseminar informações e práticas educativas ambientais. Do mesmo modo, a Carta da Terra, que foi promulgada na sede da UNESCO em 2000, traz na sua construção a proposta de intensificar o papel dos meios de comunicação para aumentar a sensibilização diante dos desafios ecológicos e sociais (BRASIL, 2020).
Enfim, a interface entre educação ambiental e comunicação está posta reiteradamente tanto em documentos legais quanto naqueles da sociedade civil brasileira e, por consequência, nos estados e municípios, assim como no âmbito internacional. Porém, Soares (2011) diz que não basta o “papel” se não existirem ações concretas em que se considerem seus princípios norteadores, os quais versam sobre aspectos relativos à dialogia, inclusão, valorização de diferentes saberes, compromisso com a interatividade e produção participativa, transparência, transversalidade, múltiplas mídias, democratização da comunicação e a acessibilidade à informação socioambiental, evidenciando-se a compreensão que a comunicação é um direito humano fundamental (BRASIL, 2008).
Os documentos nacionais norteadores desta área preveem seis dimensões para educomunicação: campo de conhecimento, para recepção crítica dos conteúdos da comunicação de massa; espaço educativo irradiador de processos de educomunicação; gestão participativa dos meios; processos formativos de habilidades comunicativas; e a dimensão da educação em relação aos meios de comunicação de massa (BRASIL, 2005 e 2008). Além disso, identificam-se seis áreas de intervenção educomunicativas: educação para comunicação (ambas entendidas a partir da perspectiva da interação social); mediação tecnológica (vinculada à presença de tecnologias no processo); gestão da comunicação no espaço educativo (envolve planejamento, execução e avaliação do processo); reflexão epistemológica (estudos, especialmente acadêmicos, na área), expressão comunicativa por meio das artes (capacidade criativa, exploração imagética) e a pedagogia da comunicação (intervenção, didática) (BRASIL, 2005 e 2008).
Os princípios, as dimensões e as áreas se misturam, algumas vezes de modo repetitivo, noutras, incompleto, constituindo os pressupostos fundamentais da área. Eles apontam para uma perspectiva crítica, participativa e libertária de comunicação que se volta para o desenvolvimento comunitário. Estes pressupostos são assumidos pelo grupo de pesquisa dos autores quando realiza suas intervenções, as quais caracterizam-se como educação para comunicação, porque é inerente o processo de interação social, que inclui tanto os grupos, como os grupos e os pesquisadores; e isto se dá por meio da mediação tecnológica, assumida como uma forma de expressão comunicativa por meio das narrativas visuais. As ações de intervenção são planejadas de modo a possibilitar a investigação das potências pedagógicas que emergem dos designs metodológicos da intervenção, sobre os quais se fazem exercícios de reflexão epistemológica.
Estes aspectos, que norteiam nossas intervenções e estão estabelecidos no Programa de Educomunicação Socioambiental, são reiterados em artigos diversos de autores que contribuem com a área. É o caso de Martín-Barbero (2011, p.123), para quem vivemos em uma sociedade em que o conhecimento e a informação têm um papel fundamental nos processos de desenvolvimento. Neste contexto, a democratização da produção midiática assume relevância não só pelo seu caráter político, como também estético, já que a educomunicação possibilita experimentação, autodesafio, cooperação, expressão, elevação da autoestima, espaço de sociabilidade, exercício do espírito crítico, repensar-se e repensar o mundo em que se vive, democratiza o conhecimento, promove o compartilhamento de ideias e abre espaço para um ecossistema colaborativo (SOARES, 2011; LEAL, 2012).
4 Audiovisuais como estratégia de exposição
É preciso reconhecer que as tecnologias de comunicação permanecem entre nós, fazem parte da cultura contemporânea, e hibridizam-se ao infinito, abrindo novos mundos possíveis de uso social. Dentre as tecnologias, o grupo de pesquisa assumiu as produtoras de audiovisuais como estratégia de intervenção. Segundo Orofino (2014), as tecnologias são onipresentes em nossas vidas, fazendo parte do nosso cotidiano e mediando em larga escala como nos comunicamos contemporaneamente. Vivemos em uma sociedade midiatizada, interconectada e informatizada. Nesse sentido, para além de possuir e acessar os meios tecnológicos e seus produtos, torna-se pertinente criar redes entre diferentes agentes, tempos e espaços, potencializando assim os usos das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) como forma de expressão (CANCLINI, 1999; MARTÍN-BARBERO, 1997).
Dentre as TICs, ganha notoriedade a linguagem audiovisual, cada vez mais presente nos diferentes espaços por onde circulamos e nos comunicamos. Tal fator gera leituras de mundo mediadas por telas e sons, que, ao serem engendradas em redes, possibilitam compartilhamentos múltiplos por meio de construções de narrativas, exposições de pontos de vista e entendimentos sobre o que se compartilha (MARQUES; MAZZARINO, 2018; FLUSSER, 2007).
Observa-se que há um fascínio para com os audiovisuais. Consumi-los é corriqueiro, porém a produção dos mesmos com fins pedagógicos não é tão comum. Esse consumo e mesmo a produção de audiovisuais (de diferentes formatos, linguagens e tamanhos) colocam desafios e incertezas, principalmente na área da educação, que, paradoxalmente, encontra-se cada vez mais influenciada por essa linguagem (CITELLI, 2011; CANCLINI, 1998; FLUSSER, 2007).
Quando tratamos e pensamos a produção de audiovisuais na educação nos aproximamos do cinema-educação, o qual, segundo Fresquet e Migliorin (2015), é potente por colocar em ação conjunta cinema, cinematógrafo e a escrita do movimento, compondo processos de construção de si e da comunidade. O cinema-educação e a produção de audiovisuais com fins pedagógicos podem explorar elementos poéticos e políticos, interligando atores e agentes na construção de novas percepções de si e do mundo (FRESQUET, 2007).
O cinema-educação, por meio da produção de audiovisuais locais e amadores, pode tornar o mundo pensável por colocar em relação objetos, discursos, narrativas e sujeitos. Produzir audiovisuais é um ato político, baseado na apropriação das TICs e das redes para agir no mundo, colocando quem produz filmes como o agente consciente e sensível. Para além de contar histórias, podemos, com os audiovisuais, fazê-las e transformá-las (CANCLINI, 1998; MARQUES, 2019).
A produção de audiovisuais provoca e incentiva aberturas para (re)invenções, que podem ganhar muito ao se alicerçam no campo educomunicativo, possibilitando inclusive reflexões sobre o mesmo. Pode-se dizer que os audiovisuais de caráter educomunicativo produzem histórias e as ressignificam, possibilitando exercícios de crítica, perceptiva, reprodução e imaginação, além de expressar desejos de construir outros territórios de exposição e debate midiatizado do que perpassa o ser (CASTELLS, 2006; MARQUES; MAZZARINO, 2018; MARQUES, 2019; FRESQUET e MIGLIORIN, 2015).
A produção de audiovisuais potencializa o pensamento e a ação, e é capaz de entrelaçar pessoas, espaços, imagens e sons na construção de histórias que problematizam e, também, sensibilizam para as problemáticas socioambientais. Ao adentrar no terreno das intensidades e dos sentidos, os audiovisuais oferecem-se como espaços para práticas cidadãs capazes de interligar pessoas, ambientes e tecnologias. Nesse sentido, a educomunicação que se utiliza dos audiovisuais abre possibilidades para as experimentações estéticas e políticas (MARQUES, 2019; CITELLI, 2011; FLUSSER, 2007).
Independente do gênero (documentário, material telejornalístico, etc.), do tamanho, ou da forma de veiculação dessas produções, o importante é que no processo de construção dos audiovisuais não se perca o foco educomunicativo, sintetizado nos seus princípios, quando se trabalha com temas socioambientais. As redes sociais, nesse sentido, são um espaço estratégico para desviar da tentativa de controle e dominação que os meios tradicionais impõem. No caso do grupo de pesquisa dos autores, a instituição de um canal de vídeos na plataforma YouTube possibilita a democratização do acesso aos audiovisuais, que somavam 28 experiências em agosto de 2020.
Estas quase três dezenas de audiovisuais produzidos de forma colaborativa com grupos sociais a partir de atividades de pesquisa-intervenção, articuladas a ações de extensão e de ensino (nas disciplinas de Oficina de Jornalismo em Comunidades e Educomunicação, dos cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Univates) expõe marcas culturais deste espaço-tempo histórico, das mediações e dos modos de fazer. Enquanto modo de fazer institucionais, em âmbito universitário, indicam coerência com a identidade da Univates, uma universidade comunitária.
Martín-Barbero (1997) propõe investigar os processos culturais a partir das mediações e dos sujeitos, das práticas de comunicação e dos movimentos sociais, em que intervêm as matrizes culturais, que para ele não se referem à evocação do arcaico, mas ao “residual”, “substrato da constituição dos sujeitos”, “veios de entrada para outras matrizes dominadas, porém ativas”.
Entendemos as matrizes culturais como marcas incrustadas na experiência social dos sujeitos, que são ativadas nas interações sociais, embaralham-se com as novas experiências e os novos movimentos. São fazeres na vida do sujeito, sejam estes individuais ou coletivos. Estas matrizes culturais atualizam-se no (des)encontro cultural da interação social – comunicacional e/ou midiatizada – é quando se modificam, desterritorializam-se para reterritorializarem-se. As matrizes culturais se constituem por via das mediações sociais, e, ao mesmo tempo, são elas mesmas mediações para os fazeres sociais e na construção de novas identidades (MAZZARINO, 2013, p. 96 e 97).
Para Martín-Barbero (1997), a comunicação se tornou um espaço estratégico para pensar a sociedade contemporânea, caracterizada pela transnacionalização e pela emergência de novos sujeitos sociais e identidades culturais, pela redescoberta do popular e pela revalorização das articulações e mediações da sociedade civil, com o reconhecimento de experiências coletivas para além das formas partidárias.
Segundo o autor, transforma-se a concepção que se tinha de sujeitos políticos a partir das batalhas travadas no campo econômico e no terreno simbólico, que para ele é o terreno a partir do qual os sujeitos e as identidades coletivas são interpelados e se constituem. Essa concepção do político, que emerge com os Estudos Culturais em sua vertente latino-americana, é valorizadora dos aspectos culturais e passa a ser pensada a partir de processos de comunicação, produtores de significações, caso das experiências de apropriação cultural das mídias empreendidos por meio das iniciativas de educomunicação. Nestes se podem observar os diferentes usos sociais da comunicação enquanto práticas políticas. O consumo, desta forma, é visto como produção de sentidos, modos de ser provenientes de competências culturais e não como prática passiva ou reprodutivista. Assim, “[...] pensar o popular a partir do massivo não significa, ao menos não automaticamente, alienação e manipulação, e sim novas condições de existência e luta, um novo modo de funcionamento da hegemonia” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p. 310).
Segundo Canclini (1999) os audiovisuais colocam-se como meio de comunicação potencializador para o exercício da cidadania e do desenvolvimento do público, pois desiludidos com os espaços estatais, suas instituições e suas burocracias, o público recorre à televisão para buscar serviços, justiça, reparações ou mesmo simples atenção. O autor se referia à mídia tradicional. Hoje sua contribuição pode ser apropriada para pensarmos a produção de vídeos amadores, que se valem da internet e de suas plataformas de vídeo, que possibilitam cada vez mais espaço para participação e exposição. Não é raro encontrar em qualquer rede social, críticas sobre administrações públicas, denúncias e desabafos sobre problemas pessoais e sociais.
As TICs, consideradas em sua diversidade, possibilitam encontros culturais que superam paradoxos históricos, segundo Canclini. Canclini (1998) há um bom tempo já afirmava que cultura subalterna e cultura hegemônica não se contrapõem, mas se hibridizam. A primeira necessariamente não tende a ser dominada passivamente pela outra. Para ele, nem toda assimilação do hegemônico pelo subalterno é submissão, assim como nem toda recusa é resistência. As contaminações culturais são mútuas. A cultura hegemônica cada vez dá mais mostras de assimilação do popular, que se massifica. Os espaços de cidadania, potencializadas pelas TICs abrem possibilidades para participações de diversos grupos e para a alavancagem de diferentes pautas, tecendo cruzamentos interinstitucionais entre sociedade civil organizada ou não organizada institucionalmente, com os temas públicos tendo visibilidade nos diferentes meios (CANCLINI, 1999). Trata-se de uma trama "estreita e contraditória na cultura de massa", como diz Martín-Barbero (1997, p. 107), que remete à constituição da história sociocultural latino-americana, à necessidade do reconhecimento de novas compreensões do político, à cotidianidade, à subjetivação, às solidariedades. Os modos de ser, fazer, usar, agir, ler, dizer expõem mestiçagens culturais que têm nos produtos da pesquisa-intervenção do grupo de pesquisa um lugar de exposição.
5 Das criações
O grupo de pesquisa busca construir, com a comunidade, saberes por meio da apropriação audiovisual, de modo a gerar processos de comunicação ambiental de caráter educomunicativo, que provocassem mudanças sociais no que tange à apropriação dos meios produtores de discursos midiáticos. Os 28 filmes amadores envolveram atores diversos e diferentes contextos de estudo e de intervenção, como mostram os quadros 1 e 24.
Estes processos de intervenção surgiram da Universidade - inseridos em ações de pesquisa, extensão e ensino - para a comunidade, tendo como princípio a valorização tanto de saberes científicos quanto dos populares, realizando, assim, a troca de saberes que a perspectiva interdisciplinar apregoa.
Os grupos sociais convidados a apropriarem-se das máquinas de filmar, foram alunos e professores de Ensino Fundamental e de Ensino Médio de escolas públicas, grupo de mulheres agroecologistas, jovens rurais que incluíram idosos da sua comunidade, malabaristas, migrantes, crianças de projetos sociais, mulheres vítimas de violência doméstica, universitários dos cursos da Univates e a comunidade circulante em espaços públicos.
As intervenções aconteceram no Vale do Taquari, região de atuação da Univates. Os grupos sociais participantes eram de Lajeado, Arroio do Meio, Cruzeiro do Sul, Estrela e Bom Retiro do Sul. Ao todo, cerca de 120 pessoas, incluindo os diferentes grupos sociais e os dinamizadores, estiveram envolvidas. Esses participantes interagiram com dezenas de outras pessoas nas suas comunidades para as produções audiovisuais, como entrevistados, gerando reflexão sobre os temas escolhidos nos ambientes onde circularam.
As intervenções foram dinamizadas por estudantes de Jornalismo, de Publicidade e Propaganda, de História, por mestrandos e doutorandos do Programa de Pós-Graduação Ambiente e Desenvolvimento (PPGAD) da Univates inseridos no grupo de pesquisa Ecosofias, Paisagens Inventivas. Contou-se com a parceria do projeto de extensão Interfaces e do Programa de Residência Pedagógica da Universidade.
As intervenções começavam com um convite feito pelos dinamizadores ao grupo social, para participar da produção de um filme sobre um assunto de seu interesse. A partir da definição coletiva do tema, uma formação básica sobre o uso das filmadoras e sobre o roteiro desencadearam as filmagens. A edição foi realizada pelos dinamizadores, a partir das definições do grupo social.
Estas experiências de intervenção na interface entre os campos da comunicação e da educação ambiental, evidenciaram uma variedade de processos de transformação social, possibilitado pela apropriação das mídias, o que expôs uma forma inovadora de pesquisa, de ser pesquisador, de ser sujeito e grupo social, assim como outra possibilidade da interação entre universidade e a comunidade.
Trabalhar a produção audiovisual com a comunidade, valorizando a troca de saberes, fez-nos perceber que o processo produz emoção e sensibilidade, tocando-nos das mais diferentes formas. Por meio de filmes amadores como esses, confrontamos a estética do que costumamos ver na tela. Um filme amador aproxima o espectador, o faz imaginar-se no papel de produtor.
Nesse sentido, ao ver um filme feito do ponto de vista de alguém que não tinha experiência com a produção de imagens, entre eles os pesquisadores, faz-se um convite à expressão por meio das artes. Conforme Leandro (2013, p. 50): “Filmar é adaptar o tempo todo o seu ponto de vista às mutações do real. Único ou múltiplo, fixo ou móvel, interno ou externo, o ponto de vista remete ao gesto fundador da arte cinematográfica, à sua ontologia”. Dessa forma, conduzir o olhar é uma inspiração para fazer e contar histórias.
Nesses encontros imagéticos, gerados por meio das intervenções do grupo de pesquisa, exploramos coletivamente os sentidos das experiências. Percebemos que quando o cinema toca o outro, ele explora camadas que, às vezes, nem quem está passando pela experiência esperaria chegar.
A proposta do colocar sujeitos sem experiência com a produção de imagem como seres ativos no processo de sua captação exige transpormos o nosso olhar para algo que será eternizado em uma imagem, essa imagem passará pelo olhar do outro. Fresquet et al. (2013) argumenta que a câmera conduz uma relação entre mim e o outro que atua como uma mola que ativa a tensão entre dois estados. Para a autora, a potência pedagógica do cinema movimenta a competência de “crer e duvidar”.
Poder eternizar uma imagem pode não ser nada para quem está acostumado a usar tecnologias e faz disso sua vida, seu trabalho, sua maneira de passar os momentos. Quanto a quem não está, é um desafio. É preciso deixar o outro olhar e falar, mostrar que é possível contar histórias da maneira que for, experimentar-se enquanto cineasta amador. Fresquet et al. (2013), apoiada em Bergala (2008), argumenta que “a arte não se ensina se experimenta” e que quando o conhecimento estiver sendo trocado com o aluno é preciso que todos os envolvidos experimentem. Dessa forma, um elo poderá ser formado pela intensidade que estará perpassando a experiência.
A possibilidade de contar histórias usando as imagens é o que moveu estas experiências do grupo de pesquisa. Alcançar as histórias pela imagem contada pelo outro, vivente da experiência, é o que buscamos. Bergala (2008) coloca que quando uma pessoa pega uma câmera pela primeira vez é como se estivesse experimentando a sensação que os irmãos Lumiére tiveram ao produzir os primeiros filmes minuto. Como uma criança experimentando uma brincadeira até então desconhecida. Em Brasil (2011) lemos que:
(...) a imagem parece abrigar uma experiência. Em outros termos, diríamos que ela é um lugar não apenas de representação, mas de performance; lugar no qual, não apenas se figuram, mas se efetuam processos de subjetivação. O momento será responsável pela captação do sentido, assim como pela imagem (BRASIL, 2011, texto digital).
Ao longo dos anos, o grupo de pesquisa construiu um modo de fazer e trabalhar com os sujeitos. Experimentou a produção de imagens explorando os espaços por meio de vivências com e na natureza para acessar as emoções dos participantes. Para Omelczuk, Fresquet e Santi (2015, p.388) “As imagens geram emoções e a atividade emocional também gera imagens”. Da mesma forma, Maturana (1998) diz que somos um entrelaçamento entre razão e emoção, onde necessariamente uma não vive sem a outra. Ao registrarmos o que nossos olhos veem, uma parte do que sentimos acaba sendo deslocada para a imagem.
Cada imagem captada pela primeira vez era um primeiro contato que se transformava em parte condutora do processo audiovisual e tornava a atividade propulsora de inúmeras sensações e emoções. Tornar-se roteirista, cinegrafista e editor(a) de algo que até então não se tinha conhecimento de como realizar, fez com que a experiência fosse carregada de afetos. Para Fresquet et al. (2013, p.15) “o cinema não pede nada, apenas se aconchega nas capacidades sensíveis dos sujeitos comuns”.
Cada um dos participantes pode, simultaneamente, inspirar-se e expressar-se para compor histórias como sonhos ou como escrituras do real. Conforme Migliorin (2013, p. 13) “O cinema é uma operação de escritura com imagens afetadas pelo real. Ou seja, por um lado ele é mundo, por outro ele é alteração. Em essência, o cinema é uma transformação contínua do que há”. De um modo ou de outro, “(...) as imagens são um espaço concreto de intervenção no mundo vivido: intervir na imagem significa intervir, mesmo que circunstancialmente, em uma coletividade, em suas formas de comunidade” (BRASIL, 2011, p.4).
6 A experiência como prática de aproximação
Quando as pesquisas do grupo lançam um novo olhar para a comunicação, a partir da interface com a educação ambiental, deixam de lado o olhar hegemônico. Busca-se compreender como a comunidade pode criar novas formas de se inserir como parte do lugar que vive a partir de um processo colaborativo. Estimulou-se a troca entre a academia e a comunidade, valorizando os saberes populares e sua junção aos saberes científicos, tendo como estratégia a produção artística por meio de documentários co-criados.
A educomunicação socioambiental é uma linha da educação ambiental cujo propósito é disseminar o conhecimento por meio da comunicação ambiental voltada para a sustentabilidade (BRASIL, 2008). A Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA) e o Programa Nacional de Educação Ambiental (ProNEA) são documentos que legitimam o trabalho da pesquisa na área da educomunicação socioambiental nacionalmente.
A comunicação é “parte” dos seres humanos e com as tecnologias de mídia, se alastra. Fazer uso dela é uma forma de se aproximar da sociedade onde ela tem circulado e se relacionado (BARROS, 2012). Assim, aparece como um mecanismo para entender essa sociedade, seus grupos, quem são e como vivem, ao que é inerente a dimensão ambiental.
Hoje, mais do que nunca, a imagem faz conviver com sua dimensão representacional, uma dimensão performativa: ali, se performam formas de vida. Seja na mídia, nas artes visuais ou no cinema, não são poucas as experiências em que as imagens parecem não apenas representar ou figurar – não apenas, ressaltemos logo – mas inventar, produzir formas de vida, estas que mantêm com a obra uma relação de continuidade (em certos aspectos) e descontinuidade (em outros) (BRASIL, 2011, p. 5).
Para Martín-Barbero (2011) os processos de desenvolvimento caracterizam-se também a partir dos modos de acesso e de participação em dinâmicas comunicacionais. A informação é importante para os cidadãos entenderem os problemas que acontecem e são noticiados ao redor do mundo, mas não pode permanecer como mera receptora. O que se propõe no grupo de pesquisa é a aproximação entre participantes e as mídias, para que eles possam falar sobre a comunidade que habitam, seu território de vida, a partir de sua perspectiva, sendo autores das próprias narrativas.
Trabalhar com filmes possibilita esse encontro comunicacional por meio da arte, a qual tem a potência de transformar modos de fazer e de viver. Para Ernest Fischer (1987) os humanos têm necessidade da arte, pois ela auxilia na compreensão da realidade, possibilitando a transformação dessa.
7 Ecosofia como perspectiva comunicacional
Não é difícil hoje encontrar evidências de um crescente desgaste, não só da natureza e dos recursos naturais, mas também das relações sociais, explicitada pelo aumento exponencial de indivíduos aderindo ao discurso de ideologias xenofóbicas, homofóbicas ou focadas em um individualismo que beira o doentio, além da crescente institucionalização de hábitos de consumo desenfreados. Além das degradações citadas, é importante atentar também para as doenças mentais, como, por exemplo, o crescimento alarmante do diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) em crianças, quando o problema se apresenta mais como de ordem social e institucional do que de ordem neurológica ou química (JERUSALINSKY, 2011). Claro que isto também se dá devido à interferência cada dia maior da medicina, sobretudo da psiquiatria, em diversas áreas que permeiam o cotidiano dos indivíduos, agindo não somente de forma individual, mas chegando a um ponto onde esta interferência se tornou institucionalizada, esperada e, muitas vezes, até requisitada por outras áreas do saber (FOUCAULT, 2000).
Portanto, é possível notar que as degradações ambiental, social e subjetiva intercambiam. Observa-se que a degradação ambiental evidente é acompanhada pelos crescentes casos de transtornos mentais e de violência social. Certamente são aspectos conectados. Neste sentido, Guattari (1990) questiona: como podemos entender e, consequentemente, trabalhar com tais degradações tão preocupantes? O autor adota uma perspectiva transdisciplinar para entender que estes três campos (ambiente, relações sociais e subjetividade) são sistemas interdependentes, denominados por ele como três registros ecológicos, três ecossistemas intimamente conectados, que influenciam e são influenciados um pelo outro numa relação de interdependência indissolúvel que se refere, evidentemente, a três dimensões da comunicação.
Guattari propõe uma articulação ético-política entre os três registros ecológicos que denomina de ecosofia. Tanto as formações políticas quanto as instâncias executivas não apresentam soluções eficientes ou convincentes para a crise das três ecologias, portanto caberia não só um entendimento de que estes campos estão passando por uma crise, mas uma mudança em inúmeros fatores no estilo de vida hegemônico, iniciando por uma mudança de valores. Cabe salientar aqui que por mudança de valores não se busca uma retomada de ideias e valores antigos, pois segundo o próprio autor: “[...] seria inconcebível pretender retornar a fórmulas anteriores, correspondentes a períodos nos quais, ao mesmo tempo, a densidade demográfica era mais fraca e a densidade das relações sociais mais forte que hoje” (GUATTARI, 1990, p. 16).
O que a ecosofia nos mostra é que temos muito trabalho pela frente, pois precisamos repensar formas de ser e de estar na família, na escola, entre amigos, no ambiente, conosco, enfim. Se esta mudança de pensamento e de valores não ocorrer, podemos nos encaminhar para uma crise mais profunda nos três registros ecológicos. Cabe também à ciência, em sua totalidade, se reinventar, proposta de Guattari que foi aceita pelo grupo de pesquisa. Precisamos nos livrar das amarras metodológicas e metáforas científicas para aceitar uma nova articulação, desta vez ético-estética, permitindo que a arte seja vista como mecanismo importante na ciência, como diz Guattari.
[...] as melhores cartografias da psique ou, se quisermos, as melhores psicanálises não foram elas à maneira de Goethe, Proust, Joyce, Artaud e Becket, mais do que de Freud, Jung, Lacan? A parte literária na obra desses últimos constitui, de resto, o que de melhor subsiste (GUATTARI, 1990, p. 18).
Portanto, por meio da estética educomunicativa, que tem matriz nos estudos culturais, se busca, no grupo de pesquisa, adotar uma perspectiva ecosófica, a fim de forjar novos paradigmas de inspiração ético-estéticos-políticos, romper com a repetição mortífera e reinventar maneiras de ser e de ser em grupo, de relação do sujeito com o corpo e com o tempo que passa, como propõe Guattari (1990). Para o autor, é preciso adotar a via ecológica, que não busca resolver contrários, mas valoriza novas derivas, o incidente criativo, possibilitando o sujeito se reassumir como humanidade, reapropriar-se dos universos de valores, reconquistar a autonomia criativa, encontrar consistências por meio de processos contínuos de singularização baseados na heterogênese (com respeito às diferenças), que possam se opor a falta de graça e à passividade. Neste sentido, Mazzarino propõe a Ecosofia NAT.
Propomos uma metodologia de intervenção em comunicação ambiental que mescle tecnologias de mídia, tecnologias sociais colaborativas, metodologias vivenciais de contato com a natureza e experiências artísticas. Trata-se de uma práxis inventiva e sensível por meio da tríade natureza, arte e tecnologia, a fim de criarmos experiências em comunicação ecosófica. Podemos denominá-la temporariamente de Ecosofia NAT (MAZZARINO, 2021, p. 43).
A ecosofia NAT provoca a escuta das ecologias menores ao convidar para a abertura do participante das intervenções ao reencontro com algumas de suas dimensões adormecidas, a fim de que reconheça o lugar que habita por meio da sua realocação no mundo, ressignificando relações e sentidos, que podem levar à redescoberta do potencial criativo. Para isso, a produção de imagens é explorada, seja em forma de audiovisuais, fotografias ou desenhos, entre outras possibilidades de expressão para a narração de si no espaço-tempo vivido aqui e agora.
Segundo Mazzarino (2021, p. 78) "os acoplamentos entre a Natureza, a Arte e as Tecnologias são criadoras de corpografias que integram o ser ao mundo por meio da criação de uma paisagem biopsicosocioambientalespiritual em si mesmo, que possibilita o ser transbordar para ser com." Como as intervenções em ecosofia NAT exploram as três dimensões da ecosofia (subjetiva/social/ambiental), sua proposta refere-se a um design em comunicação ambiental que vai além da perspectiva ecológica.
8 Considerações finais
A radicalização de processos de educomunicação socioambiental explorando a interface com a educação ambiental por meio da linguagem audiovisual em documentários ainda é algo que pode ser mais explorado pelo campo científico. Cada processo relatado aprimorou as maneiras de lidar com os sujeitos, com as tecnologias, com o grupo de pesquisa, com nossos sonhos pessoais. Cada um dos pesquisadores envolvidos trouxe a sua história para contribuir com a do grupo de pesquisa. Podemos dizer que as produções audiovisuais foram experimentações compartilhadas.
Ainda há muito a ser feito, mas cada vez mais percebemos que o trabalho de pesquisar faz a diferença quando saímos das nossas salas e nos deixamos ser atravessados pela experiência de fazer com o outro.
Poder inspirar pessoas a contarem suas histórias nos mostrou que a produção de um filme pode integrar as três ecologias que Guattari propõe. Relatar para uma lente o que eu faço ou o que eu já vivi, inspira. O filme carrega a potência da expressão através das lentes e faz aquele que capta as imagens se ver de outro modo. Ao final dos filmes não somos mais os mesmos: nem produtores comunitários, nem pesquisadores e tampouco receptores quando conhecem o processo.
Na nossa experiência, os filmes e documentários amadores produzidos transpassaram a vida da maneira mais autêntica que o olhar mediado pela câmera pode produzir. Com o uso das mídias, foi e está sendo possível alcançar as pessoas no que lhes é singular. Elas contam suas histórias e produzem memórias sobre o mundo com outros. Genuinamente, a tríade ecosófica age de modo interdependente. E o audiovisual constitui-se como um pretexto para a experiência do encontro com o outro, capaz de possibilitar reflexão sobre o mundo em nós. Por fim, conclui-se que os processos construídos colaborativamente possibilitam o desenvolvimento comunitário a partir do campo da Comunicação, quando se exploram suas possibilidades criativas com o uso de imagens.
A valorização dos saberes coletivos, explorando as possibilidades poéticas que os audiovisuais amadores possibilitaram, provocou, nos participantes e nos dinamizadores dos processos, novos olhares sobre si e sobre os usos autônomos das mídias, sobre o estar e o fazer em grupo e sobre o ambiente habitado, contribuindo para o desenvolvimento comunitário em uma perspectiva ecosófica. A dimensão colaborativa explorada na pesquisa-intervenção gerou uma parada para um ato reflexivo sobre o tema escolhido e como ele se relacionava com a vida de cada um. Este envolvimento social, a partir de uma proposta escolhida coletivamente, possibilita uma decisão sobre com o que se envolver, sobre o que conversar, coisas que cada vez mais são estimuladas de fora, pelas mídias e outras instâncias institucionalizadoras de discursos. Poder escolher gera desenvolvimento humano. Sem isso não há desenvolvimento regional. Não há como medir impactos, mas pode-se relatar que gerar encontros de comunicação, tendo como motivo um convite para criarmos algo juntos, provoca novas e mais profundas observações sobre a vida nas comunidades. Parece pouco, mas às vezes parece raro.
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Notas