Resumo: Tendo por objetivo trazer um outro olhar para a discussão teórico-metodológica acerca do território, valorizando as subjetividades presentes nas formas como ele se transforma e se constitui na contemporaneidade, propomos, neste artigo, pensar o território a partir da espiritualidade da Nova Era. Assim, demonstrando que através da materialidade, há um movimento sobremaneira invisível que ocorre no campo das ideias, fazendo do território, inegavelmente, (i)materialidade. O campo empírico foi pautado em entrevistas semiestruturadas para a qual foi definido o município de Santa Cruz do Sul (RS) como o espaço/tempo em que as experiências espirituais foram objeto do respectivo estudo. Na análise dos dados percebeu-se que a territorialização na Nova Era afeta indivíduos que não somente os buscadores espirituais, o que nos indica que o território das espiritualidades não é somente aquela paisagem que está aparente aos nossos olhos, mas ele necessariamente presume imaterialidades, outras subjetividades, e também, ainda outros sujeitos, produtores de outros territórios: uma nova dinâmica ao movimento da totalidade; logo, uma Nova Era de territórios.
Palavras-chave: Abordagem territorial, Nova Era, Religiosidades, Subjetividades, Territorialidades.
Abstract: Aiming to bring another look at the theoretical-methodological discussion about the territory, valuing the subjectivities present in the ways in which it is transformed and constituted in contemporaneity, we propose, in this article, to think about the territory from the spirituality of the New Age. Thus, demonstrating that through materiality, there is a highly invisible movement that occurs in the field of ideas, making the territory, undeniably, (i)materiality. The empirical field was based on semi-structured interviews for which the city of Santa Cruz do Sul (RS) was defined as the space/time in which spiritual experiences were the object of the respective study. In the data analysis it was noticed that territorialization in the New Age affects individuals other than just spiritual seekers, which indicates that the territory of spiritualities is not only the landscape that is apparent to our eyes, but it necessarily assumes immaterialities, other subjectivities, and also, still other subjects, producers of other territories: a new dynamic to the movement of totality; therefore, a New Era of territories.
Keywords: Territorial approach, New Age, Religiosities, Subjectivities, Territorialities.
Resumen: Teniendo por objetivo traer una otra mirada para la discusión teórico metodológica acerca del territorio, valorando las subjetividades presentes en las formas como él se transforma y se constituye en la contemporaneidad, proponemos, en este artículo, pensar el territorio a partir de la espiritualidad de la Nova Era. Así, demostrando que a través de la materialidad, hay un movimiento sobremanera invisible que ocurre en el campo de las ideas, haciendo del territorio, innegablemente, (in) materialidad. El campo empírico fue pautado en entrevistas semiestructuradas para la cual fue definida la municipalidad de Santa Cruz do Sul (RS) como el espacio/tiempo en que las experiencias espirituales fueron objeto del respectivo estudio. En el análisis de los datos se percibió que la territorialización en la Nova Era afecta individuos que no son solo los buscadores espirituales, lo que nos indica que el territorio de las espiritualidades no es solo aquel paisaje que está aparente a nuestros ojos, pero él necesariamente presume inmaterialidades, otras subjetividades, y también, aún otros sujetos, productores de otros territorios: una nueva dinámica al movimiento de la totalidad; luego, una Nova Era de territorios.
Palabras clave: Abordaje territorial, Nova Era, Religiosidades, Subjetividades, Territorialidades.
Artigos
Território das espiritualidades: um olhar para as subjetividades presentes nas transformações territoriais contemporâneas
Territory of spiritualities: a look at the subjectivities present in contemporary territorial transformations
Territorio de las espiritualidades: una mirada para las subjetividades presentes en las transformaciones territoriales contemporáneas
Recepción: 26 Mayo 2022
Aprobación: 28 Marzo 2023
A discussão teórico-metodológica desenvolvida neste artigo pretende trazer um olhar particular para o território, valorizando as subjetividades presentes nas formas como ele se transforma e se constitui na contemporaneidade. Assim, propomos pensar o território a partir da espiritualidade da Nova Era, demonstrando que, através da materialidade, há um movimento sobremaneira invisível e que ocorre no campo das ideias, fazendo do território, inegavelmente, (i)materialidade.
Esta temática se inscreve numa condição de transformação do campo religioso no Brasil, onde, há algumas décadas, se observa o declínio da tradição religiosa vinculada ao catolicismo, em contrapartida da diversificação de outras expressões. Se, de um lado temos um movimento mais conservador, com a proeminência das experiências cristãs neopentecostais, de outro a liberdade no trânsito religioso, a multiplicidade dos caminhos e o sincretismo de crenças parecem instaurar os mais distintos repertórios de religiões, religiosidades e espiritualidades. Dentre um campo de flexibilizações, de desarticulações e cruzamentos multivariados é que se localiza a Nova Era.
Parece haver um consenso entre os pesquisadores da área sobre que a Nova Era se delineou no Brasil a partir dos anos 1960, dentre diversos movimentos de “contracultura” que se difundiram à época em questionamento ao panorama político e cultural deste país. Para além dessa definição, destaca-se que nas tessituras científicas iremos encontrar variados posicionamentos, perspectivas conceituais e outras denominações para a Nova Era. Com a intenção de fazer caber em si as mais amplas definições e olhares ao longo da investigação realizada, utilizamos a denominação Nova Era sem enquadramentos conceituais apriorísticos. É no sentido de construção da própria subjetividade que fazemos referência à Nova Era; um sistema simbólico que visualmente vem compondo o cotidiano de sociedades a partir de novas formas de construção (i)material (e social) dos espaços.
Dados esses esclarecimentos, nos cabe registrar que não é possível identificar a presença da Nova Era nas estatísticas oficiais do IBGE e, embora sem localização bem definida nos campos da vida social dos indivíduos contemporâneos, percebemos no caminhar cotidiano a visibilidade deste “fenômeno” que se cristaliza na multiplicação de espaços de mediação de conhecimentos espirituais; onde, cada vez mais, pessoas do ciclo social nos apresentam formas diferentes de buscar a cura ou a solução para algum problema; de santos e crucifixos nos estabelecimentos comerciais e residenciais, vemos, também, filtro dos sonhos, olho grego, elefantes, pedras; o dito “Graças a Deus” tem cedido espaço para “Gratidão”; pessoas têm circulado pelos lugares com vestimentas mais leves e despojadas, sem vender marcas e corriqueiramente com alguma mensagem impressa, seja motivacional, seja antipreconceito; a procura por refúgios em meio à natureza está evidente nos sites de hospedagem, com propostas que oferecem simplicidade na vivência do turismo, contato com a natureza e imersão na “lida do campo”; as fases da lua, que tiveram sua “popularidade em baixa”, tornaram a ocupar lugar de destaque na vida de muitas pessoas; o consumo de alimentos mais naturais, o vegetarianismo e seus afins. Possivelmente, nem tudo seja mediado pela religiosidade, mas com toda a certeza há, ali, espiritualidade, transformando as relações dos indivíduos no território.
Frente a esta argumentação, destaca-se que o presente trabalho foi elaborado a partir de uma tese de doutorado intitulada “Território das espiritualidades: quando as experiências espirituais condicionam as relações sociais no território”, para a qual foi definido o município de Santa Cruz do Sul (RS) como o espaço/tempo em que as experiências espirituais foram objeto do respectivo estudo.
Com a intenção de ouvir os relatos das experiências dos indivíduos que ingressaram em um caminho de busca espiritual, o levantamento de dados foi pautado em entrevistas semiestruturadas, acompanhadas pelas áudio-gravações das falas. Um total de 11 buscadores espirituais contribuíram com a pesquisa empírica, conferindo-lhe significado a partir de suas narrativas. Chegamos até eles a partir de sua presença/trânsito em espaços destinados à busca de conhecimentos e vivências da Nova Era, todos espaços localizados em Santa Cruz do Sul (RS).
Na tentativa de evitar despessoalizar as falas para provocar maior aproximação com as narrativas e, ainda assim, preservar as identidades das pessoas que nos conectamos para a realização do campo empírico, utilizamos pseudônimos inspirados em nomes de cristais, tendo em vista a forte relação energética que está presente nas buscas espirituais.
Neste caminho, organizamos o artigo em mais 3 partes, onde iniciamos aproximando o leitor da compreensão do conceito de território que ampara as nossas discussões; um território de (i)materialidades. Na sequência, adentramos nas construções empíricas que a temática da espiritualidade nos coloca para pensar o território. Buscamos compreender a relação entre o sujeito e as suas experiências espirituais, nas transformações que acontecem no campo das ideias, nas reconfigurações cognitivas e na legitimação de uma nova verdade. Dada essa transformação na forma como os buscadores compreendem a si, a vida e o mundo, as suas práticas cotidianas também são transformadas, ressignificadas, implicando assim em novas relações no território e no movimento de sua totalidade. Finalmente, na terceira parte, o trabalho conclui apontando que essa espiritualidade da contemporaneidade parece estar nos anunciando uma Nova Era de sujeitos; logo, uma Nova Era de territórios.
Uma vez que os interesses pela temática da Nova Era nascem no interior de uma área de concentração em desenvolvimento regional, nos cabe, obviamente, trilhar um caminho distinto daqueles percorridos pela Antropologia, Sociologia e Ciência da Religião, ainda que, atravessando-os em diversos momentos. Neste sentido, pretendemos compreender a espiritualidade a partir das transformações que condiciona no território, do campo de tensões que excita, da entropia, das novas relações que aparecem. Para tanto, definimos a abordagem territorial como sustentáculo da investigação.
Aos familiarizados com os debates que orbitam o termo território, não é novidade a arena polissêmica de conceitos que dele configura-se, trazendo consigo uma amplitude de caminhos conceituais e metodológicos para amparar os projetos e pesquisas científicas. Dentre as diversas opções, buscávamos um conceito que nos permitisse olhar e valorizar as subjetividades presentes nas formas e nos modos de constituir-se um território. Em tempo, encontramos nas “formas de apropriação simbólicas e materiais do espaço” (SAQUET, 2009, p. 89), uma perspectiva para conduzir a nossa investigação.
Ao assim propormos investigar a espiritualidade da Nova Era reconhecemos que o território também efetiva-se no pensamento, compreendido enquanto uma dimensão imaterial, subjetiva. Ou seja, o movimento do/no território também ocorre no campo das ideias (SAQUET, 2013). Neste sentido, nada é tão-somente material, mas sempre há uma relação material-imaterial, para a qual o Saquet (2013) denomina por (i)material.
O território, assim, efetiva-se da mediação das “relações diárias, momentâneas, que os homens mantêm entre si, com sua natureza interior e com sua natureza inorgânica, para sobreviverem biológica e socialmente” (SAQUET, 2013, p. 129). Isso quer dizer que nós, seres humanos:
Temos atos biológicos e sociais fundamentais para a nossa reprodução que é, a um só tempo, biológica, social, temporal, espacial e territorial. Ao se relacionar com a natureza exterior, o homem relaciona-se com sua extensão, tanto objetiva como subjetivamente. É uma relação natural e social, material e imaterial (SAQUET, 2009, p. 87).
À essa mediação denominaremos territorialidades. Elas são “simultaneamente, resultado, condicionantes e caracterizadoras da territorialização e do território” (SAQUET, 2013, p. 127). Em síntese, o território e as territorialidades são tanto condição quanto resultado do movimento constante da vida cotidiana dos indivíduos, colocando em interação as diversas subjetividades e se movimentando em decorrência delas. Movimento através do qual presenciamos transformações das relações, da apropriação da natureza, da economia, da política, da cultura, da natureza. Movimento este que é,
[...] produto de determinações (i)materiais, de forças econômicas, políticas e culturais em unidade e em saltos quanti-qualitativos na dinâmica socioespacial. Movimento que é relacional, processual e condição da (i)materialidade da nossa vida cotidiana. A matéria e a ideia estão em movimento constante, no qual, há superações, articulações territoriais, internas e externas a cada território, des-continuidades, fluidez e identidade (SAQUET, 2013, p. 22).
Isso nos implica reconhecer que a subjetividade dos indivíduos é produzida por algo de natureza coletiva e exterior ao sujeito, que nega a sua individualidade (FOUCAULT, 1985). O indivíduo, em seu contínuo processo de constituição enquanto sujeito, é, assim, percorrido por elementos que lhe são externos, mas, ao mesmo tempo, são extensões e composições de si próprios. No Brasil, este processo de construção das subjetividades é marcadamente um campo ativo de forças fundado em desigualdades e diversidades, segundo nos explicou Bacelar (2009).
Se, assim como as territorialidades, o território é tanto condição como resultado do movimento constante da vida cotidiana dos indivíduos (SAQUET, 2009), colocando em interação as diversas subjetividades e se movimentando em decorrência delas, quer dizer que nós, sujeitos humanos, efetivamos diversos territórios “concomitantes e sobrepostos” (SAQUET, 2009, p. 85). Territórios que “podem ser temporários ou mais permanentes e se efetivarem em diferentes escalas” (SAQUET, 2013, p. 128).
Assim, tal como o território das espiritualidades no recorte de Santa Cruz do Sul (RS), também podemos falar de diversos outros territórios das espiritualidades, uma vez que, qualquer que seja o objeto, também precisa ser compreendido a partir de elementos específicos a cada lugar e região. No exemplo da Nova Era, vemos um fenômeno que está presente em todo o mundo, mas que, entretanto, apresenta dissensos em seu interior. Isso porque suas qualidades também estão condicionadas espacialmente (e sempre localizadas no tempo).
A territorialização é (i)material, seja no Brasil, na Inglaterra, nos EUA, na Itália, na Indonésia etc., com aspectos gerais ligados ao movimento de reprodução da sociedade e da natureza e com elementos específicos de cada lugar, grupo social, etnia, período, momento. Há uma (i)materialidade das formas e relações sociais: uma está na outra; as obras estão nos conteúdos, nas territorialidades e estas nas obras; não consigo imaginar que existam formas sem relações e relações sem formas. A (i)materialidade ocorre na relação E-P-C-N [economia – política – cultura – natureza], no território, na territorialidade, na vida (SAQUET, 2013, p. 160, grifo nosso).
Nos termos mencionados, um território nunca será, por excelência, uno, mas uma apreensão que contém em si outras dimensões e escalas; que, concomitantemente, está em relação e na relação com outras escalas e dimensões: sempre um espaço-tempo-território.
Note que a Nova Era está presente nos sem religião, nos espíritas, no multipertencimento religioso, nos católicos. Não há, necessariamente, uma incompatibilidade entre a filiação com alguma religião e as práticas e experiências espiritual novaeristas. O que significa, efetivamente, que muitos buscadores se reconhecem em alguma religião, ou não-religião, ou mesmo dentro da categoria de multipertencimentos que agrega diferentes pertenças. Em não sendo uma religião, não aparecem nas estatísticas do Censo do IBGE. E, não restritas à religião, transitam por diversos campos. Há, aí, um movimento que é histórico. Queremos dizer que, em cada localização temporal, estará contida em si um acúmulo de tempos que não é linear: trata-se de tempos que coexistem (ou ritmos) em uma unidade (SAQUET, 2009). Logo, a historicidade circunscreve-se no espaço. Em outros termos, estas desigualdades (ritmos – lentos e rápidos) nos indicam que o tempo encontra-se espacialmente articulado, fazendo do território um “espaço-tempo-território” (SAQUET, 2009, p. 83).
Isso quer dizer que a espiritualidade da Nova Era não emergiu no acaso, solta no tempo e no espaço, assim como as implicações de sua existência não estão limitadas ao recorte da investigação. Além disso, a sua emergência neste recorte ou em qualquer outro circunscreve-se em uma história que acolhe múltiplas dimensões e escalas, que coexistem e também se sobrepõem e onde, em cada tempo e espaço, teremos uma resultante distinta. Isso faz com que enxerguemos o sujeito enquanto centralidade (SAQUET, 2009).
Quando olhamos a Nova Era por estas lentes territoriais, podemos afirmar que a efetivação do território das espiritualidades será resultado (mas também condição) da transformação dos sujeitos, buscadores espirituais. Mas afinal, o que faz o indivíduo iniciar uma caminhada espiritual?
Provocados a refletir sobre suas próprias motivações, cada um dos entrevistados demonstrou um esforço em responder ao enunciado da forma mais clara e pontual possível. Alguns indivíduos tiveram uma iniciação “forçada” por situações de tensão, resultando em momentos de entropia em suas vidas. Sem embargo, outros indivíduos, durante as entrevistas, deram maior destaque para as predisposições – mas isso não quer dizer que as tensões necessariamente estiveram ausentes.
E, embora ambas as situações pareçam demarcar um momento certeiro de iniciação do indivíduo em um caminho da espiritualidade, na realidade há, por detrás desta pontualidade, um extenso (e intenso) processo marcado por tentativas de desterritorialização e reterritorialização, uma vez que “não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte” (DELEUZE, 1988, p. 4). E o seu inverso também é verdadeiro.
Assim sendo, a desterritorialização necessita de uma certa assimetria no campo de tensões para incitá-la, enquanto a reterritorialização pressupõe predisposições (subjetivas e/ou estruturais) para se efetivar. Ora, são as predisposições que condicionam o “lugar”, a direção do movimento.
À luz da tese de Deleuze e Guattari (1995), Saquet (2013, p. 110) nos explica que a desterritorialização faz referência à “mudança, transformação, separação, desligamento”, mas sempre a partir de “uma preocupação com o vivido”. Temos aqui um aspecto fundamental de compreensão do indivíduo humano (e do território); o sujeito enquanto experiência.
Dentre tensões e predisposições, nos pareceu que as experiências de vida dos entrevistados convergiam para um genuíno sentimento de não pertencimento com relação aos modos de subjetivação da sociedade ou ao estatuto de verdades legitimado. Na narrativa de Ágata (2020) evidenciamos não somente a predisposição por buscar novas respostas, mas, também, a cultura do medo frente ao diferente (e, ainda, a sua ousadia perante ao desconhecido):
Eu sempre tava buscando, acho que com 20 anos mais ou menos foi a primeira vez que eu fui num Centro Espírita. [...] e eu fui com medo do que ia acontecer lá porque era uma coisa diferente e eu gostei muito porque falava dessa questão de que a vida não é uma só, né, e aquilo pelo menos me fez assim ... nossa, então tá! Então não é isso de nasceu, viveu, morreu, acabou. Isso sempre me angustiou muito de que tinha que viver essa vidinha, sabe, de tu trabalhar, levantar, tomar banho, tomar café e trabalhar, voltar para casa, dormir, no outro dia ir trabalhar... tinha que ter alguma coisa mais (Ágata, 2020).
E afirmativas similares apareceram durante as entrevistas: “Eu sempre fui a diferente, sabe...”, alegou Safira (2020); “já mostrava a minha rebeldia” falou Vivian (2020). Ainda que os indivíduos tivessem essa percepção, precisaram de um percurso existencial (cada um a seu ritmo) para descobrirem o real significado deste conflito.
A este respeito, cabe destacar que todo indivíduo já nasce imerso em uma cultura nas mais variadas formas, seja família, religião, etc.; tudo isso junto. Por isso Rubia (2020) garante que a vida “são padrões mentais”, sendo que os padrões hegemônicos da cultura no mundo condicionam os seres humanos a “prisões mentais”. Estas prisões Deleuze e Guattari (1995, s/p) denominam por estratos:
Os estratos substancializam as matérias diagramáticas, separam um plano formado de conteúdo e um plano formado de expressão. Tomam as expressões e os conteúdos, cada um por sua vez substancializado e formalizado, nas pinças de dupla articulação que asseguram sua independência ou sua distinção real, e fazem reinar um dualismo que não cessa de se reproduzir ou de se redividir. Interrompem os continuums de intensidade, introduzindo rupturas de um estrato a outro, e no interior de cada estrato. Impedem as conjunções de linha de fuga, esmagam os picos de desterritorialização, seja operando as reterritorializações que irão tornar esses movimentos completamente relativos, seja atribuindo a algumas dessas linhas um valor somente negativo, seja segmentarizando-a, barrando-a, obstruindo-a, precipitando-a em um tipo de buraco negro.
Um exemplo claro encontramos na percepção de Celeste (2020):
[...] chegou um momento que eu [...] tava vivendo uma vida que a maioria da sociedade considera como normal, anulando a minha essência para poder ser aceita pelas pessoas, tentando ser diferente do que eu era, do que eu sou em essência para poder agradar a sociedade, para poder ser aceita nos meus grupos, na escola, em outros lugares que eu frequentava e aí, então desde então, eu comecei a tomar antidepressivo. Eu fiquei tomando por 15 anos antidepressivo para preencher esse buraco, esse vazio existencial que nada mais era que eu tava anulando a minha essência e criando máscaras, tentando ser uma pessoa que eu não era... (grifo nosso).
Esses diálogos se repetem entre os entrevistados, tal como na fala de Turmalina (2020):
Eu sentia nessa época que eu tinha vivido uma vida inteira cumprindo padrões e pré-requisitos e esse cumprimento de padrões e me encaixando né nessas caixinhas me levaram a um lugar em que eu tava infeliz, eu tava amargurada, em que eu tava pesada, em que eu tava reclamona e eu não tava me sentindo completa.
Com diversos embates, nenhum dos entrevistados se manteve na religião sacramentada por seus pais durante a infância, dentre os quais 91% vieram de famílias católicas. A demarcação de rupturas com o catolicismo é significativa, mas não se limita a ela, de modo que ao mesmo tempo em que existem os confrontos com “ideologias” religiosas, percebemos que a reterritorialização dos buscadores espirituais também se legitima na esfera da religião.
Portanto, é evidente que há uma dialética presente na relação dos buscadores espirituais com a esfera da religião, mas também, há um campo mais amplo de tensões que, inclusive, encontrar-se-ão de forma oculta em outras relações. Aspecto este que nos leva a supor que, em verdade, as tensões (e entropia) remetem à esfera do poder; se constituem em um processo engendrado por relações assimétricas de poder (FOUCAULT, 2006). Desta maneira, ainda que a resposta mais objetiva dos entrevistados indique um momento mais ou menos claro de mudança do sujeito, as histórias de vida mostram que a desterritorialização/reterritorialização dos indivíduos é, em verdade, não um momento de transição, mas um processo. Processo este, longo e difuso, complexo e “invisível” porque implica, essencialmente, um movimento subjetivo.
Ao trazemos a investigação para o campo das ideias, ultrapassamos os delineamentos que nos restringem às origens ou mesmo aos movimentos geográfico-culturais. Neste sentido, a territorialidade da Nova Era não pode ser desterritorializada quando ela responde a uma reterritorialização no sentido de saída de um tipo de apropriação simbólico-material para outro. Ou seja, é, antes, o pensamento que desterritorializa-se e reterritorializa-se (DELEUZE; GUATTARI, 1992). Assim sendo, o “território também significa pensamento, relações sociais e mesmo cósmicas, naturais e psicossociais; desterritorialização e reterritorialização, especialmente no nível do pensamento” (SAQUET, 2013, p. 111).
Definimos trabalhar com a espiritualidade enquanto sendo “o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência, etc., que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito [...]” (FOUCAULT, 2006, p. 19).
Para desenvolver sua tese sobre o cuidado de si (Epiméleia heautou), Foucault recupera a noção que foi introduzida na filosofia antiga por Platão, criando um diálogo entre Alcebíades e Sócrates (FOUCAULT, 2006, p. 4). Essa ideia do cuidado de si “acompanhou, enquadrou, fundou a necessidade de conhecer-se a si mesmo” (FOUCAULT, 2006, p. 11) para se ter acesso à verdade, uma vez que “Não se pode bem governar os outros, não se pode transformar os próprios privilégios em ação política sobre os outros, em ação racional, se não se está ocupado consigo mesmo” (FOUCAULT, 2006, p. 48).
Enquanto filosofia e espiritualidade configuravam, em unicidade, a construção do pensamento Antigo, vale mencionar que a ideia do cuidado de si foi desqualificada na filosofia moderna de maneira que o conhecimento legitimou-se como o caminho válido para acesso à verdade; não um conhecimento de si no mesmo sentido que tinha para os gregos e romanos, mas um conhecimento científico cujo método se legitimou como caminho para a verdade (FOUCAULT, 2006). À vista do mencionado, provocamos refletir sobre de que maneira a espiritualidade experienciada na contemporaneidade possibilita um deslocamento no campo das ideias?
Ora, a iniciação em um caminho de buscas espirituais possibilita aos indivíduos, buscadores espirituais, o acesso a novos tipos de conhecimentos que pode ocorrer, por exemplo, por meio de leituras, de intersubjetividades, de experiências espirituais, de consultas astrológicas. Trata-se de uma relação transformadora do sujeito configurada na busca em conhecer-se a si próprio, no sentido do que expôs Turmalina (2020):
Costumo dizer que parece outra vida, sabe, depois que eu despertei para esse mundo porque tudo mudou para mim e eu me sinto uma pessoa completamente diferente. Então a existência da espiritualidade na minha vida ela me fez olhar para tudo através de outra perspectiva. Então, assim, mudou, transformou toda, toda minha maneira de existir, de lidar com tudo.
Quando o sujeito descobre que existe um outro sistema de verdades para se (re)construir enquanto sujeito, reconhecendo-se naquele espaço, mais e mais ele se movimenta nesta busca. Dessa maneira, o desaprisionamento ao “velho mundo” perpassa, primeiramente, a transformação absoluta de si próprio, de como aquele sujeito se insere no mundo e se relaciona nele.
Por isso que, frequentemente, encontramos nas publicações científicas da Nova Era referências à busca ao autoconhecimento, um conhecimento de si no sentido Antigo do termo. Nesta perspectiva que Ágata (2020) prefere chamar por busca da verdade, e, nas palavras de Celeste (2020), seria um resgate da essência, uma vez que a dinâmica das buscas possibilita ao indivíduo se conhecer a partir daquilo que ele é em essência, rompendo uma relação sobremaneira de assujeitamento com a governamentalidade: “é tanta coisa [...], mas eu fiz diversos cursos e acho que cada um deles me ajudou muito no meu caminho de... dessa busca por autoconhecimento, dessa busca para o resgate da minha essência, para o resgate de saber quem eu era de verdade para daí me apropriar disso” (Celeste, 2020).
Ao encontro desses relatos, Foucault (2006, p. 20) explica que, “quando efetivamente aberto, o acesso à verdade produz efeitos que seguramente são consequências do procedimento espiritual realizado para atingi-la, mas que, ao mesmo tempo, são outra coisa e bem mais: efeitos que chamarei ‘de retorno’ da verdade sobre o sujeito”.
Diversas são as possibilidades, formas e maneiras de estabelecer uma relação com a espiritualidade, com a transformação de si. Algumas mais autônomas e outras sobremaneira mediadas. Contudo, é necessário que exista algo mais na relação do indivíduo com sua experiência, uma conexão, uma afinidade. Ou seja, a ressonância dos espaços de mediação, a popularização do conteúdo em mídias sociais, livros, cursos; um “festival” de elementos espraiados dentre as sociedades contemporâneas não são o bastante para provocar mudanças na esfera do pensamento, como percebemos no relato de Numi (2020).
Eu lembro que eu tinha comprado alguns livros há uns anos atrás [...]. Eu tinha comprado alguns livros que, na época, não fizeram sentido nenhum para mim. Eu comecei a ler e pensei: meu Deus, não entendi nada! E eu deixei eles, larguei de mão. Deixei no meu escritório e, nessa época que eu tava nessa insatisfação, nessa inquietação, eu fui buscar esses livros e aí realmente, assim, as coisas começaram fazer um pouco mais de sentido e eu entendi que eu poderia buscar, ir atrás. E aí na época a gente já estava com diversos cursos disponíveis na internet, o mundo digital tava fervilhando e eu tava com esse gás, e essa busca, e essa curiosidade de ir atrás. Então eu acabei comprando meu primeiro curso, né, que tinha o viés mais espiritual mesmo, nesse período aí, de 2009.
Quando falamos em espaços de mediação de espiritualidades, conhecimentos novaeristas ou componentes de subjetivação, precisamos ter a clara percepção de que são um importante meio para introjeção e legitimação de novas verdades nos territórios, todavia, precisam fazer sentido para os sujeitos. Enquanto não forem introjetados (processo individual) os conhecimentos acessados, seja por experiências espirituais, seja em leituras ou qualquer outro meio, não serão o bastante para provocar mudanças no campo das ideias, tal como nos explica Foucault (2006, p. 19-20) ao falar sobre a espiritualidade:
[...] a verdade jamais é dada ao sujeito por um simples ato de conhecimento, ato que seria fundamentado e legitimado por ser ele o sujeito e por ter tal e qual estrutura de sujeito. Postula a necessidade de que o sujeito se modifique, se transforme, se desloque, tome-se, em certa medida e até certo ponto, outro que não ele mesmo, para ter direito a [o] acesso à verdade. A verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito. Pois, tal como ele é, não é capaz de verdade. Acho que esta é a fórmula mais simples porém mais fundamental para definir a espiritualidade. Isto acarreta, como conseqüência, que deste ponto de vista não pode haver verdade sem uma conversão ou sem uma transformação do sujeito. Esta conversão, esta transformação [...] pode fazer-se sob diferentes formas. Digamos muito grosseiramente (trata-se aqui também de um sobrevôo muito esquemático) que esta conversão pode ser feita sob a forma de um movimento que arranca o sujeito de seu status e de sua condição atual (movimento de ascensão do próprio sujeito; movimento pelo qual, ao contrário, a verdade vem até ele e o ilumina). Chamemos este movimento, também muito convencionalmente, em qualquer que seja seu sentido, de movimento do éros (amor). Além desta, outra grande forma pela qual o sujeito pode e deve transformar-se para ter acesso à verdade é um trabalho. Trabalho de si para consigo, elaboração de si para consigo, transformação progressiva de si para consigo em que se é o próprio responsável por um longo labor que é o da ascese (áskesis). Éros e áskesis são, creio, as duas grandes formas com que, na espiritualidade ocidental, concebemos as modalidades segundo as quais o sujeito deve ser transformado para, finalmente, tomar-se sujeito capaz de verdade.
Neste sentido que a reterritorialização, no contexto desta pesquisa, se efetiva a partir de um processo dentre o qual é necessário um campo de tensões para provocar o deslocamento dos sujeitos, mas também precisam estar presentes algumas predisposições que podem ser de cunho institucional e/ou subjetivo. Aquelas que denominamos institucionais seriam os componentes de subjetivação, relevantes no processo de colocar o conhecimento novaerista em proximidade e ciência dos indivíduos, em circulação no corpo social. Mas são as predisposições subjetivas, ou seja, aquelas características essencialmente inerentes ao indivíduo, tais como conexão, sensibilização, sensibilidade, rebeldia e outras vocações dessa natureza, que são definidoras na introjeção de uma nova apreensão da verdade.
O significado das experiências é vivido de forma muito particular e está diretamente relacionado a quem o sujeito é, naquele momento. Possui relação com a maneira com que o buscador sente e está aberto a sua experiência, uma relação que extrapola a capacidade (racional) de explicação.
É nesse caminho amplo de busca ao autoconhecimento, entre saberes e experiências, que os buscadores espirituais vão transformando o seu modo de olhar, compreender e se inserir no mundo, ressignificando suas relações. A transformação do indivíduo, dessa maneira, é antes uma transformação na perspectiva do seu olhar.
Para além da relação mais particular de individuação dos buscadores espirituais, há uma intersecção a partir da qual as suas ideias convergem. Elas estão essencialmente articuladas à ressignificação de si próprio, como nos explicou Turmalina (2020):
Eu sinto muito e acredito muito que nós somos como se fosse um fractal do Divino, como se existisse uma consciência única que se fragmentou e essa fragmentação é porque essa consciência única ela quer viver diferentes experiências, então por isso que ela se fragmenta para ela poder ter essa gama maior de infinidade de experiências que ela precisa viver. Então acredito que todos nós somos um fragmento dessa consciência maior que a gente vai chamar de criador, de Deus, de Divino enfim... e que a gente tá experienciando essa vida como parte dessa consciência, né, e eu acredito que toda essa relação da gente, do humano, eu acredito que essa forma humana ela é só mais uma experiência, ela é só mais uma experiência para nos levar ao aprendizado e ao desenvolvimento mas que, em essência, a gente é esse fractal de Deus, a gente é essa alma, esse Divino. Acredito que Ele habita em nós e que nós somos esse pedacinho do divino habitando um corpo físico para experienciar, para crescer, para evoluir, né. Dito isso eu acredito também que por essa experiência humana ela ser só uma carcaça, ser só uma experiência, a nossa interação com o Divino, com o transcendental ela tá acontecendo o tempo todo e eu acredito que a medida que a gente vai evoluindo enquanto alma e aí quanto mais a gente vai se conectando e despertando essa parte do divino que está dentro de nós, mais a gente consegue perceber essas interações com aquilo que a gente não enxerga. E eu acredito que a gente tá nesse corpo físico numa experiência limitadora, a gente não tem todos os nossos sentidos e todo o nosso potencial desperto, né, nessa carcaça. Então, quanto mais a gente vai se desenvolvendo, mais a gente consegue despertar esses potenciais e consegue perceber as influências daquilo que a gente não enxerga. Isso é algo que eu acredito muito tá.
Em outras palavras, Numi (2020) compartilhou sua percepção:
Entendo aqui a gente estando nessa experiência física, mundana, com várias questões assim a serem trabalhadas, lidadas, né, mas com uma essência que não é palpável né, com uma essência que é a nossa alma e a nossa alma já vem de outras vivências e outras experiências, né. Então, nosso corpo, no meu entendimento, é como um veículo, assim, para estarmos aqui cumprindo a nossa missão, né, e assim, a partir dessa percepção, né, então entender os problemas que aparecem para nós como desafios e como melhorias constantes, né, de forma individual e também no coletivo, mas como algo assim relativamente pequeno diante de tudo que a nossa alma já passou. Então esse espaço-tempo é um espaço de escola mesmo assim, né, de aprendizagem, porque depois do nosso desencarne, né, depois da nossa morte, a minha vivência, até mesmo, né, das regressões, é de que realmente vamos para um outro plano, né, pensando em termos de alma, de espírito. E enfim, devemos aprender o que deve ser aprendido lá, alguns logo voltam, alguns ficam por mais tempo lá e alguns nunca mais voltam, né, enquanto alma.
Dessa maneira, o corpo humano é um veículo (Numi, 2020), uma carcaça (Turmalina, 2020), ou mesmo um Avatar (Celeste, 2020), nos indicando que, muito além de um corpo físico, nós somos imaterialidade pura, parte conexa de um todo maior. Portanto, Blenda (2020) alerta que precisamos enxergar a existência dessa imaterialidade em todas as relações:
O funcionamento do nosso corpo, né, não é somente o físico, né. A gente é uma engrenagem e a principal coisa que regra tudo isso é a nossa energia vital e acima disso, ainda, tá o espiritual. Então, tentar de alguma forma incluir isso nas nossas avaliações diárias nos amplia essa visão. Essa amplitude para enxergar as coisas... como na área da saúde, que é minha área, né, enfim... a gente enxergar aquela dor de cólica renal somente como uma cólica renal como é o que se faz tradicionalmente né... não! A primeira coisa, quem tem essa cólica renal, como é que funciona toda essa engrenagem, todo esse organismo, né. Como é que tá essa energia vital... e acima disso ainda o espiritual, né. Então acho que tudo isso nos dá uma amplitude para as vivências, para forma de enxergar as coisas que nos rodeiam né. E também assim, para mim me deu assim uma tranquilidade maior, uma aceitação maior... até na forma de lidar com as pessoas né, do não julgar... nos dá até uma paz interior, né, assim, tipo da forma que tu entende e que se relaciona com tudo né (Blenda, 2020).
Ao ser questionada sobre o que seria essa energia vital, Blenda (2020) explicou:
Energia vital é uma força, uma força não material que mantém a vida, que mantém o organismo vivo. É um processo dinâmico, o contrário do que a gente pensa do nosso organismo, que estuda, né. A gente estuda cada órgão com suas funções e a sua forma de funcionar. A gente estuda dessa forma né?! Mas o que une todos eles para juntos fazem esse trabalho em harmonia? Cada um com a sua função mas de forma integrada? Então para mim e dentro da homeopatia, que é o que eu mais estudo, essa energia significa um equilíbrio dinâmico e as alterações dessa energia que vão causar um desequilíbrio no organismo, que, então, é a verdadeira causa das doenças, das enfermidades... ela se adapta da forma que consegue, né, com as alterações, com aquilo que cada organismo traz consigo, as alterações, os estímulos externos. É essa força que integra todo o organismo.
Percebemos que há uma desconstrução da ideia de corpo físico / organismo versus mente / psique e uma construção da ideia de “corpos imateriais”, energia pura e plenamente conectada à totalidade. Ressignifica-se a relação com o corpo, com o cuidado do corpo, inclusive a relação “material” que se estabelece com o “corpo físico”, o Avatar. Ao encontro do reconhecimento de uma (i)materialidade dos corpos, Rubia (2020) enfatiza que “a gente precisa colocar coisas boas, físicas, também, para dentro da gente”.
E o cuidado com o corpo presume também um cuidado com os corpos, com o todo. Um movimento conjunto por um propósito de evoluir e ascencionar. Neste sentido, os corpos se distinguem apenas pela intensidade de sua vibração e pelo movimento dos seus fluxos.
Compreender o corpo como um fractal energético também desfaz aquela referência de existência encarnada versus vida após a morte. Tudo está em unidade, em existência simultânea, inclusive os tempos e os espaços. “Mas só tem um universo?”, provoca Safira (2020). “Não, tem muitos universos”, ela responde. “E tem outras dimensões”, acrescenta. Desta maneira, o tempo é um mito, uma invenção do homem, como explica Turmalina (2020):
O tempo ele é uma convenção dessa nossa consciência limitada dentro desse corpo físico, né, enquanto seres humanos. Então foi algo convencionado e muito baseado em conceitos racionais que são limitadores, né. Então eu acredito que o tempo na verdade é uma grande ilusão e que a gente não sabe como é viver uma perspectiva de não-tempo. Eu acredito em multiverso, em múltiplas realidades, eu acredito que não tem essa coisa de vida passada, vida futura... que isso tudo tá acontecendo ao mesmo tempo, eu acredito muito em realidades paralelas e eu acho que a gente tá conectando com essas realidades o tempo inteiro só que a gente não percebe. E à medida que a gente vai avançando e à medida que a gente vai expandindo a nossa consciência a gente vai se tornando mais preparado para ter cada vez mais consciência disso e eu acredito que existe aí num futuro... vamos chamar de futuro, numa outra realidade, um super-humano que ele já consegue compreender... talvez não no formato de humano que a gente conhece mas que ele já consegue compreender que ele pode ter uma correlação de uma realidade paralela, de passado e futuro... não sei se me fiz entender tá, esse é um assunto bastante complexo, muita loucura mas que eu acredito muito que é real então eu acredito que à medida que a gente vai se desenvolvendo e evoluindo a gente vai quebrando esses padrões e essas coisas que a gente sempre teve como certas, a gente vai começando a questionar isso e isso se refere a nossa noção de tempo, a nossa noção de espaço, a nossa noção de realidades e de universo, então eu acredito que em resumo, que o tempo aqui da forma como a gente vive nessa linearidade é uma grande ilusão e que às vezes ele muito mais nos prende mas ele é necessário né agora para o nosso processo de evolução então na experiência que a gente tá aqui, de carne e osso, a gente precisa do tempo linear para crescer mas eu acredito que ele é uma grande ilusão e que tudo está acontecendo ao mesmo tempo e que essa interação da gente, humano, carne e osso, com aquilo que a gente não enxerga seja energia, seja outros espíritos, seja influências né transcendentais... tá acontecendo o tempo todo.
Essa ideia de unidade também desconstrói a referência de que a vida se encerra com o evento da morte, essencial para a legitimação de engajamentos por um mundo melhor. Não se trata de pensar exatamente sobre o mundo que deixaremos para os nossos netos, mas o mundo que deixaremos para nós mesmos e, ainda, as informações que estaremos registrando no Livro da Vida para o próximo Avatar.
A partir dessas novas compreensões é que os buscadores espirituais reestabelecem suas relações e o seu novo modo de inserção no mundo, criando diversos agenciamentos que condicionarão a contaminação cognitiva de muitos indivíduos que não necessariamente passaram por um processo mais profundo de transformação.
Ora, podemos compreender que os indivíduos não buscam, no princípio, uma transformação radical do sujeito; buscam respostas ou soluções mais específicas, de modo que as transformações que ocorrem na esfera da própria subjetividade são resultado do trânsito espiritual que se inicia e se perpetua na busca ao autoconhecimento; uma construção eterna de si. Aí que o novo sistema de modelização da subjetividade é criado. Neste caminho, podemos dizer que o engajamento dos distintos indivíduos em suas particulares buscas ao autoconhecimento cria novas demarcações cognitivas, legitimando, assim, um novo sistema de verdades: um movimento conjunto no campo das ideias!
A busca ao autoconhecimento é um importante meio de transformação do sujeito no campo das ideias, contudo, não é o bastante para consolidar um novo modo de subjetivação; um exemplo disso aparece no diálogo de Esmeralda (2020):
Tu te modifica sim, fica até chata aos olhos de alguns... não tem muitas pessoas que tiveram coragem de assumir essa vida mais espiritual, eu conheço, assim, uma meia dúzia que eu posso dizer, assim, que realmente estão assumindo porque fica muito difícil no dia a dia tu conseguir ter uma vida separada, diferenciada.
A maior dificuldade encontrada pelos buscadores possivelmente seja o rompimento com vínculos mais diretos do sistema capitalístico. Relembrando a fala de Jade (2020): “tinha toda essa ânsia disso tudo, de querer isso tudo [uma vida espiritualizada], só que a civilização, o dia a dia, o ao redor, a família... isso trazia de volta aquela realidade de trabalhar, ganhar dinheiro e ter carro, casa né...” (grifo nosso). Ora, “não basta afirmar que o sujeito é constituído num sistema simbólico. Não é somente no jogo dos símbolos que o sujeito é constituído. Ele é constituído em práticas verdadeiras [...]. Há uma tecnologia da constituição de si que perpassa os sistemas simbólicos ao utilizá-los” (FOUCAULT, 1995, p. 275).
Neste sentido que também precisamos compreender como o sujeito se insere no mundo e age a partir daquilo que ele se transformou, ou seja, no conjunto de suas novas “formas de apropriação simbólicas e materiais do espaço” (SAQUET, 2009, p. 89, grifo nosso). Logo, a territorialidade da Nova Era é resultado, mas também condição sine qua non deste novo tipo de subjetividade.
Partindo desse pressuposto, registramos que os primeiros espaços que se estabeleceram em Santa Cruz do Sul para mediação da espiritualidade simbolizam uma das mais relevantes territorialidades da Nova Era. Isto porque permitiu aos buscadores viverem, na prática, as verdades introjetadas por suas experiências espirituais.
Quando Safira, Numi, Blenda, Jade, Turmalina, Esmeralda, Ágata e Ônix (e possivelmente diversos outros sujeitos que não foram abordados nesta investigação) decidiram fazer da espiritualidade a sua profissão, eles desterritorializaram seus corpos da condição de submissão ao trabalho capitalista assalariado. Refuncionalizaram a sua força de trabalho, desalienando-a ao se afirmarem donos do seu tempo e da sua própria vida, em acordo ao que relata Turmalina (2020): “A minha rotina ela também é uma rotina muito mutável, eu não tenho uma rotina constante”. Embora se estabeleçam alguns hábitos, percebemos que há, em certa medida, uma inconstância que demonstra que o tempo do não-trabalho não é estruturado em torno do seu devir, conforme continua:
Uma das coisas que eu sempre tento manter independente do momento de vida que eu estou vivendo é ter um pedaço das manhãs para mim então assim... acordar antes, bem antes de qualquer coisa que eu precise fazer... acordar, levantar com calma, me espreguiçar, respirar de manhã, fazer um café com calma porque eu amo tomar café da manhã então eu considero muito esse um momento meu... então eu preparar um café gostoso, com coisas que eu goste de comer, que eu sinto que me nutram, que vão me fazer bem, poder fazer isso com bastante calma, com bastante presença, estar ali prestando atenção, desfrutando da minha comida e aí eu gosto de ter no mínimo uma hora inteirinha de manhã só para mim. Então nessa uma hora às vezes eu vou assistir uma coisa que me faz bem, às vezes eu vou escutar uma música que me faz bem, às vezes eu vou ler um livro que me faz bem... Então depende muito tá... minha rotina, como eu te falei, é muito inconstante mas esse é um momento sagrado assim todas as manhãs que eu preciso e que eu sinto que muda completamente meu dia porque eu gosto de ir despertando aos pouquinhos e de ter tempo para mim de manhã (Turmalina, 2020).
“Um tempo para si pela manhã”; a expressão evidencia essa nova relação que o buscador espiritual estabelece com o trabalho, embora remunerado. Nessa perspectiva, a mídia foi apontada, durante as entrevistas, como grande manipuladora da promoção e manipulação desses padrões de verdade, assim como de uma cultura do consumismo, aparecendo de forma muito imponente nos relatos de Celeste e Numi. Esta última nos explicou:
São tudo questões que a mídia coloca pra gente ser aceito, né. E essa é uma forma de manipulação para que a gente trabalhe incessantemente para produzir, para poder consumir mais e produzir mais. Aquela loucura de trabalho, trabalho, trabalho, onde não sobra mais tempo para si (Numi, 2020).
Assim sendo, as novas relações com o trabalho presumem, concomitantemente, uma ressignificação na esfera do consumo, na relação com o dinheiro, como explica Esmeralda (2020):
Tu não vê mais no dinheiro a tua fonte de felicidade e daí tu acaba não correndo atrás como todo mundo corre, porque tu não precisa daquilo. Tu precisa para comprar as coisas para viver, mas tu não precisa desesperadamente daquilo. Daí geralmente tu não consegue chegar em altos padrões porque não é o foco... é o teu foco que muda.
A narrativa de Celeste (2020) complementa:
Também foi uma das coisas que mudou bastante porque hoje em dia eu dou muito mais prioridade para o meu tempo, para um sono de qualidade e para uma alimentação de qualidade, para ter o tempo para mim, mesmo que eu não tenha tanto recurso financeiro, assim, mas eu não preciso ter porque eu não preciso mais consumir exageradamente como eu fazia antes, porque eu não sigo mais esse padrões sociais né, não tanto né. Claro que eu consumo, que eu compro roupa, eu gosto de me arrumar, eu sou vaidosa mas não é aquela loucura. [...] eu não preciso tá me exibindo para ser aceita, eu me aceito como eu sou, isso é mais importante para mim... eu me aceitar como eu sou e sou feliz do jeito que eu sou.
Com essas narrativas percebemos que, mesmo com a introjeção de verdades novaeristas, a consolidação de um novo modo de subjetivação estaria limitado caso os indivíduos não tivessem estabelecido uma ruptura com a sua anterior forma social de trabalho. Em outros termos, esse rompimento parece ser um elemento fundamental para que diversas outras formas de apropriação do espaço tenham se ressignificado na Nova Era, uma vez que o trabalho alienado condiciona a rotina e os hábitos dos indivíduos. Das novas relações com o trabalho e com o consumo (e a mídia), outras territorialidades são possíveis, tais como a configuração de uma nova relação com o alimento: “Sabe, eu faço minha comida, como a minha comida...”, relata Jade (2020); “estou procurando fazer em casa, com produtos que eu conheço, então eu vou na feira orgânica toda semana, a gente tem horta em casa, tem pomar” (Blenda, 2020). Celeste (2020) acrescenta que devemos “cuidar muito o que a gente passa na pele”. Ela explica que “a nossa pele é como se fosse a nossa boca, tudo que a gente passa ela absorve como se tivesse comendo”. Neste sentido, percebemos uma tendência, dentre alguns buscadores, de “deixar de passar esses óleos e cremes perfumados” (Celeste, 2020), que são comercializados pela indústria de perfumarias, e passar a produzir seus próprios cosméticos com ingredientes retirados da natureza, ou mesmo adquiri-los de produções artesanais. Esta relação fortalece ainda mais os discursos de preservação das florestas, uma vez que é nela onde se encontram diversos elementos de uso no cuidado com o corpo e como matéria-prima das produções artesanais.
Neste sentido, a medicina, agora, parece primar pela prevenção. E, ainda, substitui sobremaneira o uso de medicamentos fabricados pela indústria farmacêutica, assim como a busca por atendimentos médicos e terapêuticos convencionais, tal como confirmou Turmalina (2020): “hoje eu não consigo mais fazer terapia convencional”. Dessa maneira, a medicina aparece sob forma de PICs, alimentos, plantas, homeopatias, florais, cristais, contato com a natureza; trabalhos menos estressantes e relações sociais mais saudáveis:
Então hoje eu me percebo muito mais consciente assim das minhas emoções, sentimentos né... percebo muito mais consciente das energias... tanto minha, como a do outro, como a dos espaços... e eu realmente evito de conviver e de permanecer em lugares que eu percebo que tem uma baixa vibração de energia... coisa que realmente antes eu não tinha nenhuma atenção para isso e nem o conhecimento também, né, para isso (Numi, 2020).
Há, portanto, um maior respeito por si próprio, evitando manter um comportamento que a sociedade espera, evitando espaços e convívio com pessoas que não lhes fazem bem, só para agradar os outros. Sintetizando, há uma desconstrução com relação às imposições externas, que se reconstrói no respeito e no cuidado de si, como aparece na fala de Numi (2020):
Ao se reconhecer enquanto fractal, o buscador passa a compreender que não deve viver a vida que os outros querem, trazendo o foco para si, mas um “si” que é parte de um todo maior. Dessa maneira, o cuidado de si é, também, um cuidar do todo; logo, presume a autorresponsabilidade do agir.
Sempre tive talvez uma grande influência do que a família achava correto, do que a família entendia como sendo o melhor ou o bom para mim. Sempre foi algo que eu valorizei muito e eu acho que com essa busca mais espiritual eu entendi que eu tenho todas as respostas dentro de mim e que basicamente eu preciso me respeitar porque nem sempre o que eu quero para a minha vida é o que a minha família acha melhor e acho que é quase como assumir as rédeas da sua vida e entender que as decisões e as escolhas e o caminho que eu for seguir vai impactar na minha vida então eu procuro sempre me conectar comigo mesma, com a minha verdade.
Também percebemos territorialidades legitimadas sob o discurso do sagrado feminino, corroborando com aquela percepção do corpo enquanto fractal integrado a um todo maior. Dentre elas, aparece o relato de Safira (2020): “Deixei de usar absorventes descartáveis, uso de pano, deixando de produzir lixo e, ao lavar, devolvo meu sangue na terra onde pertence, e não no lixo”.
A preocupação com o cuidado ao meio ambiente e a busca por uma maior conexão com a natureza implicou mudanças inclusive no mercado imobiliário, ainda que tímidas se observadas em relação a alguns dos produtos culturalmente consolidados, como o avanço dos loteamentos, a disseminação de geminados e edificações verticais, estratégias de otimização da acumulação do capital imobiliário. Neste sentido, observamos uma real busca por residências em espaços urbanos que disponham de grandes pátios, tal como nos contou Ágata (2020):
Nesse processo [...] a gente se mudou em 2019 para uma casa onde tem bastante natureza, embora esteja dentro da cidade. E eu virei a louca das plantas porque eu tô plantando muita coisa. A gente tem horta e tô criando uma horta de chás para trazer pássaros, para trazer borboletas, para criar uma harmonia.
Safira (2020) também destacou que sua casa, embora localizada em área urbana, possui um amplo pátio, repleto de árvores, assim como Jade (2020): “Esse ano eu tô aqui numa chacrinha dentro da cidade, então tenho horta, eu tenho pomar, eu tenho mato”. A residência, assim, também se constitui como um espaço de produção do alimento, de plantas medicinais, de reestabelecimento do equilíbrio da fauna, de construção de um microclima particular. Esmeralda (2020) destacou: “já coloquei o apartamento à venda [...], vou voltar para uma casa e de preferência no meio de uma florestinha, eu preciso do mato”. Um movimento similar, porém mais tímido, também é percebido na busca por moradias rurais.
À vista do diálogo que viemos construindo até este momento, destacamos que as espiritividades, ao mesmo tempo em que efetivam um território, também criam agenciamentos de enunciação, implicando na ressonância e fortalecimento do território das espiritualidades. Sob essa lógica, contagiam-se, inclusive, aqueles indivíduos que decidiram não se “arriscar” em transformadoras experiências espirituais.
Desta maneira, a mobilização oculta, a visibilidade do fenômeno, e um terceiro movimento de contaminação cognitiva dos indivíduos que não são buscadores espirituais (ou, em certa medida, são estranhos ao universo da espiritualidade) compõem o processo de territorialização da Nova Era em Santa Cruz do Sul (RS). E diríamos mais, a força de sua disseminação e dos seus enunciados tem se legitimado de tal forma a provocar transformações inclusive em elementos do território que se afirmam no próprio capitalismo, condicionando modificações em algumas de suas configurações capitalísticas.
Para exemplificar, podemos dizer que, no seio daquele mesmo “mercado” criado pelos buscadores espirituais que se transformaram em mediadores de experiências espirituais, os mais distintos indivíduos da sociedade, sem se darem por conta, refuncionalizam a indústria farmacêutica/química e a medicina moderna (medicina, psiquiatria, psicologia, nutrição) ao adquirirem terapias alternativas, consultas astrológicas, cristais, florais, aulas de ioga, de meditação, etc. Dito de outra maneira, a consolidação dos espaços de mediação (inclusive aqueles de suporte e fornecimento) compõem parte do processo de territorialização da Nova Era e, enquanto tal, também possuem sua parcela de atuação na ressignificação de algumas relações (ainda que pressuponham a financeirização de seus produtos e serviços).
Além desses espaços estabelecidos por buscadores espirituais, com um genuíno propósito espiritual, encontraremos outros espaços que muito possivelmente não foram criados com alguma ligação direta na espiritualidade, mas ainda assim, condicionam territorialidades da Nova Era. Eles se encontram disseminados por todo o município de Santa Cruz do Sul, incitando novos modos de subjetivação. Podemos citar a popularização das feiras de produtos orgânicos; as clínicas de saúde que promovem vendas de terapias em sites de compras coletivas; as instituições tradicionais de ensino que passam a ofertar cursos no universo das PICs (Práticas Integrativas e Complementares) e da homeoterapia; as academias de ginástica que oferecem aulas de meditação e ioga.
Desta maneira, ainda que a alimentação livre de agrotóxicos, a ioga, a meditação, as terapias e afins sejam procuradas por modismos, os seus benefícios, além de condicionar um novo hábito à vida do indivíduo, contribuirão para que se evite, em algum momento, recorrer à indústria farmacêutica, por exemplo.
Ora, o território não é apenas um receptáculo geográfico neutro onde empresas, coletividades e indivíduos atuam, mas ele assume o papel de ator nos processos socioeconômico-culturais (BEDUSCHI FILHO; ABRAMOVAY, 2003). “Portanto, há complexidade e heterogeneidade nos/dos territórios, internamente e entre eles, substantivadas a partir das relações natureza-sociedade” (SAQUET, 2018, p. 483).
Percebemos, assim, uma relação viva, do movimento, da intersubjetividade, do material-imaterial. De não somente ser construído, mas de ser ele, o território, um construtor. Um espaço no qual se produzem modos de ser e de agir, formas de compartilhamento de referências existenciais, o que torna possível a existência paralela de múltiplos territórios (e em múltiplas escalas de relações): territórios articulados, sobrepostos, superpostos, coexistentes, em combinação.
A espiritualidade da Nova Era atravessa múltiplas dimensões da vida cotidiana de sujeitos; em alguns, mais ativamente, em outros, dissimuladamente. Excita um campo de tensões bem variado; em qualquer das situações, produzem-se subjetividades. Logo, a territorialização na Nova Era afeta indivíduos que não somente os buscadores espirituais – seja ao excitar um campo de tensões, seja ao propulsionar uma contaminação cognitiva, seja por instaurar novas ordens às relações e, mesmo, reconfigurar elementos do próprio capitalismo. O que nos indica que o território das espiritualidades não é somente aquela paisagem que está aparente aos nossos olhos, mas ele necessariamente presume imaterialidades, outras subjetividades, e também, ainda, outros sujeitos, produtores de outros territórios: uma nova dinâmica ao movimento da totalidade.
Seria, desta maneira, algo mais do que o território das espiritualidades? Acreditamos que possa ser uma Nova Era de territórios. Não necessariamente construídos por sujeitos assumidamente buscadores espirituais, mas também, por outros sujeitos que, em um ou outro aspecto de sua vida, estejam ressignificando algumas de suas relações, apropriados em enunciados da Nova Era.
Nestes termos, cabe destacar que há em configuração um mercado que se apropria dos enunciados novaeristas para se reproduzir em bases capitalísticas e um clientelismo estimulado pelo marketing; sem embargo, a resultante desse processo não é de toda negativa. Se, por um lado, serve-se ao capitalismo, por outro, condicionam-se transformações a alguns modos de subjetivação daquela sociedade avessa às “loucuras das experiências espirituais”. Não limitados a isso, incita-se, ainda, outras transformações na mesma esfera do capitalismo. Por exemplo, suponhamos que, aproveitando-se do modismo dos alimentos “veg” (vegetarianismos, veganismos e afins), um indivíduo empreenda no comércio desses alimentos. Com certeza, muitos de seus consumidores não foram tocados na profundidade de uma experiência espiritual sobre a essência da relação do alimento com o corpo, um todo energético. Outros tantos estarão simplesmente buscando alimentos sem glúten e/ou sem lactose. Porém, todos (empreendedores e consumidores) estarão contribuindo com o não fomento da pecuária intensiva que impacta não somente o meio ambiente, mas as próprias bases de acumulação primitiva desta cadeia. Obviamente que esse movimento não terá forças para afetar um mercado nacional que está focado na exportação, mas, ainda assim, a existência de distintos e “desconexos” movimentos “veg” dispersos pelo mundo fortalecem as expressões enunciativas em nível mundial, condicionando transformações a longo prazo, em uma Próxima Era, talvez.
De forma similar, a legitimação e o fortalecimento de enunciados que vão ao encontro de uma alimentação saudável, mais natural e responsável também provoca transformações nas relações comerciais, por exemplo, dos restaurantes com seus fornecedores, substituindo a aquisição de alimentos em grandes redes por produtores regionais. Essa mudança não somente valoriza o capital social regional, mas condiciona toda uma relação positiva que resulta do encurtamento desta cadeia de fornecimento.
Como não poderia ser diferente, a mídia é um elemento importante nesse processo de legitimação dos enunciados, especialmente por encontrarmo-nos em um período altamente tecnológico-comunicacional da história. A sua perversa função não somente é subvertida pelo buscador espiritual, como vimos anteriormente, mas nos parece que ela própria tem sido “enganada” pelos enunciados novaeristas.
Nessa perspectiva, podemos afirmar que a existência do território das espiritualidades não torna exclusividade (e mesmo “prisão”) dos buscadores espirituais, mas antes, a sua efetivação resulta na construção de uma nova base para a produção de subjetividades. Ao criar novos enunciados, a territorialização dos indivíduos na Nova Era também coloca esses enunciados em circulação dentre outros territórios, condicionando uma nova dinâmica ao movimento da totalidade. Dito de outra maneira com uma “linguagem novaerista”, estamos falando de uma cartografia composta por ritmos singulares. Se tivéssemos um mecanismo de fotografar o Planeta Terra por um satélite com monitoramento “energético”, acredito que estaríamos visualizando a alteração de sua vibração. Obviamente que não conseguimos presumir o que isso implica em termos de conectividade com o todo, (re)conectividade no universo, mas parece estar nos anunciando uma Nova Era. De sujeitos. De territórios.