Artigos

A Condição Latino-Americana Periférica-Dependente e seus Espaços

The Condition Of Latin American Peripheral-Dependency and its Spaces

La Condición Latinoamericana Periférica-Dependiente y sus Espacios

Carlos Brandão
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

A Condição Latino-Americana Periférica-Dependente e seus Espaços

Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 28, 2023

Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 14 Abril 2023

Aprobación: 17 Abril 2023

Resumo: Parte-se da perspectiva de que a América Latina – espaço de enormes contrastes, contradições, heterogeneidades estruturais e de combinação de formas atrasadas e modernas – foi e continua sendo um lócus privilegiado de enunciação científica e política, de elaboração de um original e rigoroso campo de reflexão e de um método autêntico de pesquisa histórico-estrutural. Assim, se constitui em um espaço mundial ímpar para a exposição das problemáticas específicas e para a formulação teórica das relações contraditórias desenvolvimento-subdesenvolvimento, centro-periferia e de dependência estrutural. Procura-se discutir, a partir desse lugar diferenciado, os movimentos sistêmicos na escala mundial neste século XXI e seus impactos no continente. São apresentados alguns dos contornos principais para a construção de uma agenda coletiva de reflexões sobre desenvolvimento dependente e espaço, com inspiração nesse potente pensamento crítico elaborado neste continente que, defende-se, deve ser retomado e renovado frente àqueles movimentos estruturais e conjunturais do capitalismo contemporâneo. São apontadas algumas das tendências de mudança geopolíticas e geoeconômica em curso no capitalismo mundial, a fim de se avançar em uma reflexão das especificidades das disputas pela produção social do espaço na América Latina.

Palavras-chave: Pensamento Crítico Latino-americano, Capitalismo periférico e dependente, Produção Social do Espaço, Capitalismo Século XXI, América Latina.

Abstract: The standpoint of this article is that Latin America – a space with huge contrasts, contradictions, structural heterogeneities plus a combination of both backward and modern forms – has always been a privileged locus for scientific and political pronouncements, and for creating an original, exhaustive field of reflection and an innovative method of historical-structural research. It therefore constitutes a unique world space for exposing specific problems and for a theoretical formulation of the contradictory relationships of development and underdevelopment, center and periphery and structural dependence. Thus, based on this differentiated place, it seeks to discuss the systemic movements on a world scale during the twenty-first century and the impacts they have had on the continent. Some of the main contours are presented in order to construct a collective agenda of reflections on dependent development and space, inspired by the potent critical thinking, which has been developed on this continent and which, it is argued, should be re-established and restored vis-á-vis the structural and conjunctural movements of contemporary capitalism. Emphasis is given to some of the trends of geopolitical and geoeconomic change, currently underway in world capitalism, in order to promote a reflection regarding the specificities of the disputes for the social production of space in Latin America.

Keywords: Latin American Critical Thought, Peripheral and Dependent Capitalism, Social Production of Space, Capitalism in the Twenty-First Century, Latin America.

Resumen: Partimos de la perspectiva de que América Latina - un espacio de enormes contrastes, contradicciones, heterogeneidades estructurales y combinación de formas atrasadas y modernas - fue y sigue siendo un locus privilegiado de enunciación científica y política, de elaboración de un campo de reflexión original y riguroso y de un método genuino de investigación histórico-estructural. Así, constituye un espacio global único para la exposición de problemas específicos y para la formulación teórica de las relaciones contradictorias desarrollo-subdesarrollo, centro-periferia y dependencia estructural. El objetivo es discutir, desde este lugar diferenciado, los movimientos sistémicos a escala mundial en el siglo XXI y su impacto en el continente. Se presentan algunos de los principales contornos para la construcción de una agenda colectiva de reflexiones sobre el desarrollo dependiente y el espacio, con inspiración en el poderoso pensamiento crítico desarrollado en este continente que, según argumentamos, debe ser retomado y renovado frente a los movimientos estructurales y coyunturales del capitalismo contemporáneo. Se señalan algunas de las tendencias de cambio geopolítico y geoeconómico del capitalismo mundial en curso, con el fin de avanzar hacia una reflexión de las especificidades y disputas por la producción social del espacio en América Latina.

Palabras clave: Pensamiento crítico latinoamericano, Capitalismo Periférico y Dependiente, Producción Social del Espacio, Capitalismo Siglo XXI, América Latina.

1 Introdução

A América Latina pode ser considerada a maior e mais contrastante porção territorial de desenvolvimento desigual (e combinado) do planeta. Lugar de extremos e paradoxos, de heterogeneidades estruturais, de discrepâncias e distanciamentos salientes entre desenvolvimento das forças produtivas capitalistas e precarizações, riqueza e pobreza, e de recombinações ativas e passivas entre formas retrógradas e contemporâneas. Terreno concreto de temporalidades e espacialidades diversas e de múltiplas contradições em processo.

Não é por acaso que aí tenha se desenvolvido uma reflexão original e potente sobre subdesenvolvimento, dependência e posicionalidade-relacional periférica no contexto do capitalismo mundial. Foram aí elaborados e consolidados um rigoroso campo de reflexão, um lócus privilegiado de enunciação científica e política e um método original de pesquisa.

A América Latina concebeu e acumulou, por sete décadas, desde o final da década de 1940, um original patrimônio acadêmico para pensar as especificidades do processo de desenvolvimento na condição periférica, desvelou contradições silenciadas e lançou luz nas limitações e parcialidades dos enfoques elaborados nos países centrais.

Pena que o ambiente acadêmico eurocêntrico e anglo-saxão, com seus julgamentos pré-concebidos, não tenha absorvido adequadamente seus ensinamentos e perguntas. Este fato deixa claro que alguns pensamentos têm maiores possibilidades e outros maiores dificuldades no deslocamento, na mobilidade e em viajar transnacionalmente (Zusman, 2015).

Neste continente se pôde debruçar sobre uma realidade muito concreta e específica: a conformação estrutural da escala nacional subdesenvolvida e sua inserção, no contexto contraditório, de disputas e arranjos hierárquicos mundiais, a partir de uma condição periférica.

Um criativo prisma de análise e um aparato metodológico foram desenvolvidos no continente para buscar apreender esta condição específica, como uma malformação estrutural (Furtado), como estruturas em movimento truncado, resultado de duráveis processos de acúmulo de atrasos, de anacronismos e travamentos estruturais, no curso da longa história do capitalismo mundial.

Não há dúvida que esta potente reflexão sobre a situada (histórica e geograficamente) condição periférica e subdesenvolvida-dependente precisa ser retomada e renovada, frente às profundas e abrangentes transformações capitalistas do Século XXI.

América Latina são várias e plurais. Na marcha da sua evolução histórica se coloca o interrogante das razões como um vasto e diverso continente pode - com tantas riquezas naturais e humanas (água, sol, terra, recursos materiais e simbólicos etc.), massa populacional e mercado consumidor extensivos e de porte, patrimônio natural e social vibrantes, forças produtivas modernas potentes - embora muito concentradas em alguns pontos seletivos do seu espaço - manter, reproduzir e legitimar tanto atraso.

Seria preciso, em um projeto coletivo de reflexão se debruçar sobre algumas das principais dimensões sistêmicas - tanto daquelas transformações mais gerais, de todo e qualquer capitalismo, quanto daquelas mais específicas, dos capitalismos dependentes e periféricos. Analisar a multifacetada e complexa realidade da dinâmica estrutural-conjuntural desse modo de produção, em geral e, mais especificamente, em suas expressões e movimentos particularizados, na América Latina. Dever-se-ia ainda lançar luz sobre o desenrolar concreto e disputado da produção de seu espaço.

Neste contexto, a partir de um lugar privilegiado para se pensar os movimentos sistêmicos na escala mundial, procuraremos alinhavar neste artigo alguns contornos principais para uma agenda de reflexões - que precisa ser coletiva e engajada - sobre desenvolvimento dependente e espaço frente às novas geografias da economia política na América Latina. Inspirados pela tradição do pensamento crítico elaborado neste continente, procuraremos apontar algumas das principais mudanças geopolíticas, geoeconômicas e geoculturais em curso no capitalismo neste início de terceira década do século XXI, a fim de se avançar em uma Economia Política do Território na (e partir da) América Latina.

2 Panorâmica das metamorfoses sistêmicas do capitalismo nesta terceira década do século XXI para se pensar a inserção dependente da América Latina

Neste século, abrangentes mutações geoeconômicas, geopolíticas e geoculturais profundas e pervasivas ocorreram ou estão em processo. Mudanças incrementais, que vinham se realizando e adicionando, estão dando lugar a mudanças mais radicais e multiplicadas. Há uma aceleração e aprofundamento das mutações. Variadas dimensões destas transformações requerem exame rigoroso e tentativas coletivas de se construir uma visão multifacetada e de conjunto, com destaque para os processos de: financeirização; renovado e contraditório papel do Estado; mudanças no mundo do trabalho, precarizações e inseguranças diversas; fraturas, fragmentações e rupturas no tecido social; ação imperativa das grandes empresas conglomeradas multinacionais e suas redes; expansão da plataformização empresarial; constrangimentos enormes nas capacidades estatais de resposta por meio de estratégias nacionais de desenvolvimento; tensões entre os mundos do capitalismo Central Atlântico e do capitalismo do Global South do Leste Asiático-Pacífico; disputas hegemônicas entre os EUA e a China; crescimento da Rússia no tabuleiro geopolítico; crises energética, alimentar e ambiental generalizadas, dentre outras frentes estruturais e estratégicas. Não resta dúvida que estes e outros processos sistêmicos foram potencializados e acelerados com a pandemia global do Covid-19 e a Guerra da Ucrânia. Continentes com inserção periférica nas grandes dinâmicas do capitalismo central, como a América Latina, são impactados de forma complexa e contraditória.

A agenda acadêmica e política de entendimento daquelas mutações sistêmicas, para ser consistente e vigorosa, deve interpelar recorrentemente as realidades históricas-geográficas concretas, a fim de elucidar as questões e as problemáticas mais estruturais e permanentes, colocando-as frente-a-frente com as mais conjunturais do sistema capitalista. É preciso avançar na elucidação: da lógica intrínseca-imanente vis-à-vis as expressões mais fenomênicas, ordinárias e cotidianas do capitalismo; da sua reprodução social, que se processa pela luta permanente das facções de classes sociais e seus interesses distintos; dos processos de criação, desestabilização e dissolução dos mercados realmente existentes e da função central do processo de mercadejação extremada; da permanente exacerbação das pressões da coerção concorrencial, interempresarial e interestatal, nos mais variados espaços, e das contendas inter-territoriais em múltiplas escalas; do papel estratégico da Grande Empresa; da natureza constitutiva e contraditória do Estado “retornando” no contexto do state capitalismo atual; da dominância congênita da órbitas monetárias e financeiras etc., dentre muitos outros desafios de análise da realidade presente.

Essas são algumas das mais destacadas mediações teóricas e históricas a serem construídas para o entendimento de quaisquer das questões estruturais e conjunturais de nossa realidade, incluindo as articulações entre espaço e sociedade. Certamente não será possível, no escopo e no espaço restrito deste artigo, tratar em pormenor dessas questões tão distintas e complexas.

O que não resta a menor dúvida que estamos imersos em um crucial momento de condensação histórica e de verdadeiras erupções geopolíticas, geoeconômicas e geoculturais na escala mundial. O acirramento dessas rivalidades, com a exacerbação do embate competitivo entre os sistemas interestatais e entre os sistemas interempresariais na terceira década do século XXI requerem análises transdisciplinares.

Ainda entendemos pouco do papel ímpar da China nas metamorfoses geoeconômicas, geopolíticas e geoculturais em curso na atual quadra histórica. A experiência chinesa não pode ser enquadrável em qualquer teorização generalizante. Caso singular de enfrentamento das limitações periféricas por uma inédita concentração, centralização e direcionamento de forças políticas, estatais e econômicas. Uma acumulação de riqueza e poder muito particular, difícil de entender por uma perspectiva ocidentalizada, que engendra uma inédita formação socioeconômica.

Como uma máquina expansiva que se projeta no futuro, sem se curvar ao poder do dólar e ao poder financeiro dos EUA, como afirma Carlos Eduardo Martins (2022, p. 4)

ao contrário, por meio de um processo de hibridização, a China conserva sua soberania interna e mostra que o domínio científico e tecnológico é uma das fontes estratégicas de poder mundial. Impulsionando uma nova onda de crescimento econômico mundial, arranha a ilusão de totalidade do capital fictício, atravessando o seu espelho com a força dos valores de uso, aos quais o mundo da mercadoria está indissoluvelmente ligado. Elemento chave nesse processo é a reinvenção do Estado, que em vez de se orientar para um processo de acumulação independente do mundo do trabalho – caminho aventureiro trilhado pelo eixo de poder anglo-saxão –, lidera a mais vasta erradicação da pobreza da história da humanidade. Além disso, uma imensa reorganização empresarial e um vasto desenvolvimento de capacidades de amplas massas lançam os pilares de uma potência territorial de escala muito superior à das potências marítimas ocidentais que lideraram por séculos a civilização capitalista.

No Leste Asiático está em curso uma disputa hegemônica entre grandes potencias mundial (China, Rússia e Estados Unidos) que deve marcar as disputas pelo poder global durante todo este século (Fiori, 2018).

Estamos diante da exacerbação das pressões competitivas interestatais, mas também das interempresariais em variados espaços. A coerção concorrencial dos grandes capitais conglomerados e sua ação através de poderosas cadeias globais de valor e como agente de poder marcam a conjuntura mundial. Grupos econômicos transnacionais, sob a forma plataforma, dominam produtos, serviços e informações centrais na nova lógica e rodadas dos poderosos circuitos capitalistas. Sofistica-se a a lógica das deslocalizações produtivas dos gigantescos conglomerados industriais. O papel estratégico econômico, político da grande empresa, que sempre foi importante, se aprofunda. Novas formas de organização empresarial coordenam o comando estratégico de possibilidades de valorização de capitais diversos, com a concentração de propriedade e controle e com uma lógica presidida pela gestão de portfólio financeirizado e voltado à valorização acionária, sendo capaz de controlar os principais circuitos de produção, distribuição, tecnologia, fontes de fornecimento etc.

O capitalismo se vê conduzido e orientado pela consolidação do regime de acumulação sob dominância da valorização financeira, fictícia e patrimonial. Prevalece na condução dos negócios prevalência congênita das órbitas monetárias e financeiras, sob o domínio da capitalização de rendas existentes e esperadas. Os territórios nacionais se veem vulnerabilizados por esta lógica (Arroyo, 2016).

A lógica da capitalização de qualquer fluxo de rendimentos a determinada taxa de juros (e cambio) se torna o princípio orientador do cálculo avaliativo e da valorização dos vários capitais e invade todos os espaços. A extração de rendas (fundiárias, minerárias, monetárias, monopolistas etc.), com a capitalização de seus fluxos futuros de rendimentos esperados, se se tem a garantia dos direitos de propriedade privada e a riqueza patrimonial consolida o movimento sistêmico de valorização do valor.

Os territórios jazem imersos na mercadejação ou marquetização radical e na voracidade caótica da crise multidimensional contemporânea. O processo de neoliberalização, de restauração cíclica e de recomposição das forças mercadejantes não apresenta apenas uma agenda negativa e destruidora (de “ir contra” o Estado). Ele também é criativo, resiliente, plástico, recondicionante e “construtivo”, ou seja, promove uma agenda “positiva”, no sentido de ativar, de montar e remontar novas instituições, e não apenas destruir as existentes, como talvez seja o senso comum ou a maioria dos discursos políticos antineoliberalização.

Um ponto central da agenda de pesquisas contemporânea seria esmiuçar a natureza constitutiva e contraditória do Estado, que agora se em novas formas e frentes e com novos instrumentos, uma vez “retornado” no contexto do state capitalism.

Novas variedades de capitalismo de Estado, na direção de formas mais híbridas de participação governamental: Estado como empreendedor (proprietário e gestor), como investidor majoritário, como investidor minoritário etc. (Musacchio e Lazzarini, 2015). O certo é que temos a volta do Estado planejador (Maringoni, 2022) e outras formas de ação pública orientadas por objetivos estratégicos (Mazzucato, 2022).

Em suma, profundas metamorfoses do capitalismo contemporâneo estão abalando as estruturas materiais, simbólicas e societárias, em um ambiente de baixo ou nenhum crescimento econômico, desempregos, exclusões, restrições e desafios às formas democráticas, regressão civilizatória, intolerâncias, violências e brutalidades. Um regime de expropriações (Döre, 2022) está entranhado e se reproduzindo e fortalecendo nas várias escalas espaciais.

Tais metamorfoses sistêmicas estão aceleradas e veem se emaranhando e se rearticulando dinâmica e contraditoriamente no presente momento de aceleração do tempo histórico em que estamos vivendo. Assim, um ponto fundamental da agenda crítica e coletiva atual é saber se há (e a sua natureza e dinâmica) especificidades e diferenças de natureza nos processos de mercadejação, capitalismo de plataforma, capitalização e expropriação, dentre outras dimensões do capitalismo do século XXI, nas situações do subdesenvolvimento.

3 O acúmulo teórico as especificidades da condição periférica, subdesenvolvida, dependente e imperializada

Muito esforço teórico e analítico foi despendido para a interpretação profunda da natureza do processo de desenvolvimento-subdesenvolvimento, na América Latina, tratando-o como uma unidade contraditória, híbrida, sistêmica (dialética), em movimento. Ou seja, como uma unidade dialética, resultante de uma mesma e única dinâmica expansiva, simultaneamente “unificada” e “ramificada” em distintas vias e trajetórias geográficas e históricas. Dinâmica expansiva compulsiva que opera a reprodução global do sistema capitalista em seu conjunto e, ao mesmo tempo, que se processa e especifica ao longo do tempo e em diferentes espaços. Um mesmo processo histórico expansivo (centrífugo) teria configurado duas formações sociais, bifurcadas em duas entidades que coevoluíram (fruto de relações recíprocas) em processo variegado e divergente. Duas realidades muito diversas e heterogêneas, embora marcadas pela mesma dinâmica histórica. Em suma, o subdesenvolvimento seria a contraface, interface e outra face do processo de desenvolvimento.

A partir de uma muito peculiar perspectiva analítica, que buscava uma visão sistêmica, compreensiva e historicamente determinada das relações assimétricas de poder na escala mundial, a interpretação histórico-estruturalista buscou apreender: o conjunto de vulnerabilidades sistêmicas no continente; um compósito de disparidades e iniquidades (sociais, econômicas e políticas) condicionadas; e uma dinâmica de reprodução, transformação e perenização, que vão aprofundando e complexificando, no curso do andamento histórico, o processo de subdesenvolvimento, vincando variadas espacialidades e temporalidades. Dessa forma se buscava examinar, de forma minuciosa, as particularidades da natureza, feições e variadas facetas do capitalismo periférico.

O exame rigoroso da condição periférica e do subdesenvolvimento, vistos como um processo complexo, como uma malformação estrutural, como a define Celso Furtado, foi assim realizado, de maneira muito ousada e original, pelos intelectuais críticos latino-americanos. O subdesenvolvimento entendido como estruturas heterogêneas e em movimento truncado, seria o resultado de processos de acúmulo de atrasos, de cristalização de anacronismos, enrijecimentos e travamentos estruturais no curso do processo conjunto e evolutivo da história do capitalismo mundial.

Em uma abordagem que mirava o movimento histórico, dinâmico e contraditório do capitalismo mundial a fim de analisar a inserção particular da socioeconomia latino-americana, foi-se capaz de revelar e denunciar as vulnerabilidades estruturais vigorosas e múltiplas que o funcionamento mundializado do sistema impunha ao continente. Essa abordagem propugnava que diversas as formas de dependência (financeira, tecnológica e cultural) foram, ao longo do tempo e do espaço, se instalando e reproduzindo. Demonstrou ainda como um deficiente padrão de financiamento de longo prazo, um aparelho precariamente desenvolvido de ciência tecnologia e inovação e uma escala nacional marcada pelo mimetismo da indústria cultural americana foram se cristalizando. Assim, os dispositivos e mecanismos da dependência foram se sobrepondo, mantendo e se aperfeiçoando.

Os pensadores latino-americanos compreendiam que o movimento da socioeconomia latino-americana é relacional e sobretudo condicionado. É atravessado por complexas conexões, articulações e interdependências em um jogo de determinantes internos-externos. Ou seja, o espaço continental comporta-se como uma estrutura dinâmica vinculada ao sistema capitalista mundial, porém seus estímulos (e restrições) se encontram exogeneizados, isto é, constrangidos e delimitados desde fora.

Assim, estes autores avançaram no entendimento do processo de dependência nacional, que se manifesta, tanto pela introjeção internalizada e mais direta de poderes hegemônicos domésticos, quanto por forças externas, que se infiltram e expressam indiretamente pelos veículos das forças políticas internas.

São várias as facetas, dimensões e modos de operação da dependência. Temos a dimensão econômica, que se reforça pelas carências congênitas das estruturas institucionais de crédito de largo horizonte temporal e dos mecanismos de sancionamento de decisões empresariais de risco, além de aparelhos de exação e formação de fundos públicos deficientes (e apropriados por castas privadas) e debilitados sistemas de aprendizado e inovação. Temos a dependência produtiva e comercial da exploração dos recursos naturais, em que se revela uma incontornável volatilidade da demanda e dos preços dos mercados de commodities controlado em escala mundial, que impõe um estreitamento inato e uma externalização das cadeias produtivas e de circulação, explicitando nossas dificuldades para avançar na indústria 4.0.

Theotônio dos Santos (2000) realizou um balanço das interpretações da dependência frente às transformações do capitalismo

Contudo, como previmos, a expansão industrial da América Latina não resultou na sua passagem para o campo dos países industriais desenvolvidos. Ao contrário, tem aumentado a distância com os países centrais colocados na ponta da revolução pós-industrial, enquanto as indústrias obsoletas e poluentes se concentram nos países de desenvolvimento médio. O mais grave, contudo, começou a ocorrer na década de 1980 pois, conforme havíamos previsto, a adoção crescente da automação diminuiu drasticamente o emprego industrial. Cada vez mais afastados dos centros de produção científica, tecnológica, e cultural, os países em desenvolvimento se inserem na armadilha do crescimento econômico sem emprego, não vendo expandir por outro lado o emprego em educação, saúde, cultura, lazer e outras atividades típicas da revolução científico-técnica (Dos Santos, 2000, p. 31).

A partir dos anos 1980, tanto Theotônio, quanto Celso Furtado vão falar da natureza da “nova dependência”, destacando as transformações no sistema mundial, o poder dos grandes conglomerados transnacionais, o caráter do Estado, a ampliação da marginalização e da exclusão social, dentre outros aprofundadores e modificadores do caráter das relações de dependência

Mais do que nunca a problemática do subdesenvolvimento e do desenvolvimento tem de ser analisada no processo de evolução do sistema econômico mundial. Nele, persiste a divisão entre um centro econômico, tecnológico e cultural, uma periferia subordinada e dependente e formas de semiperiferia... (DOS SANTOS, 2000, p. 35)

Para continuar fiel a esse promissor método será preciso estudar hoje a unidade contraditória desenvolvimento-subdesenvolvimento de um prisma relacional e situado, na posicionalidade concreta da América Latina, buscando apreender em todas suas dimensões e escalas espaciais, no contexto do Capitalismo do Século XXI. Trata-se de um programa de pesquisas que deve ultrapassar as contenções disciplinares e os individualismos acadêmicos.

Não obstante, não se pode diminuir ou negligenciar o verdadeiro patrimônio intelectual que representa o pensamento social crítico latino-americano. Ele buscou interpretar as especificidades do processo de desenvolvimento na condição periférica subdesenvolvida dependente, colocando a ênfase nas assimetrias entre o centro e a periferia do sistema no que diz respeito às suas estruturas produtivas, sociais e espaciais altamente heterogêneas e à inserção internacional vulnerável na hierárquica e contraditória escala mundial em transformação.

O pensamento crítico histórico-estruturalista latino-americano, embora detenha variados planos de análise e perspectivas disciplinares, poderia ser sintetizado como uma abordagem em busca de uma economia política e sociológica do processo de desenvolvimento/subdesenvolvimento. Procurou tratar e articular as especificidades periféricas dos modos e regimes de crescimento, as estruturas produtivas e distributivas e, em alguma medida, as estruturas de poder.

4 Desafios para a investigação e a transformação sociopolítica na América Latina

Apesar da sua ousadia, abrangência e originalidade, o pensamento crítico latino-americano apresenta algumas lacunas e insuficiências. Talvez a mais patente e decisiva seja ter, em certa medida, negligenciado as relações entre riqueza e poder, com destaque para a dinâmica da competição interestatal1 e, desse modo, por vezes, ter incorrido em algum nacionalismo metodológico.

A contradição posta e irremediável para as investigações críticas é que a escala nacional continua decisiva (e se ampliando) e que, ao mesmo tempo, precisamos romper com o nacionalismo metodológico nas análises dos processos socioespaciais2.

A escala nacional na América Latina apresenta uma excêntrica natureza, pois definida no interior de um espaço fronteirizado “nacionalmente”. Porém periférico, sem autonomia de decisões - sem moeda conversível, sem padrão de financiamento de longo prazo endógeno e sem sistemas de inovação - com Estados dependente-associados, atravessado por sistemas decisionais externalizados e em posição subordinada no concerto das relações e das divisões inter-nacionais/inter-estatais.

Simultaneamente devemos superar dialeticamente o nacionalismo metodológico reificador, para compreender a complexidade das relações assimétricas entre a variegação de capitalismos subdesenvolvidos e desenvolvidos, sobretudo para tentar capturar a complexidade multiescalar do capitalismo atual. Buscar apreender e aprofundar o caráter dinâmico e relacional das vinculações endógenas-exógenas. Por exemplo, tanto nas análises histórico-estruturalistas, das relações centro e periferia, quando nas discussões marxistas de imperialismo, pouco se rompeu com certa bi-escalaridade (nacional e mundial) algo rígida. No estruturalismo quando se analisava . núcleo versus a periferia acabava se caindo na análise apenas das formas unidirecionais do engate (passivo) desta última no espaço capitalista cêntrico. Em muitas elaborações sobre o imperialismo, acabava dando apenas destaque às imposições ativas dos países hegemônicos sobre os países subordinados, vistos como meros receptores passivos das determinações externas.

Assim, nessas análises clássicas pode se perder parte das relações horizontais e das relações verticais relacionais, das diacronias, das coevoluções contraditórias e das coexistências complexas e combinadas no contexto dos sistemas interestatais. Portanto, estamos desafiados a retomar, superar (dialeticamente, conservando), e avançar nas análises do real-concreto.

Mas, para além de certo nacionalismo metodológico, o rico pensamento que estamos tratando neste artigo enfrentou de forma parcial e insuficiente a problemática dos interesses das frações de classe e a natureza específica do Estado na América Latina.

Uma temática clássica nos debates sobre o passado, o presente e o futuro do capitalismo na América Latina é a omissão dos agentes burgueses internos. Conformou-se histórico-estruturalmente um empresariado acomodado, omisso, pouco interessado em disputar espaços competitivos mais sistêmicos. Com pouco interesse para penetrar e consolidar posições nos mercados internacionais. Com presença marginal nos setores dinâmicos e uma enorme precariedade de vocação industrial. São incapazes de desenvolver potencialidades criadoras. Elegeram, além da especulação fundiária e financeira, os ramos bancários, da construção civil, da extração mineral e dos agronegócios como espaços preferenciais de exploração empresarial. Buscam o amparo, as garantias e os subsídios do Estado e são avessos ao risco. Dessa forma as similitudes histórias latino-americanas com o processo de industrialização experimentado nos países centrais são apenas formais. Além disso, é bom lembrar que o Estado e os capitais privados nacionais possibilitaram e negociaram os loci de presença preferencial das empresas transnacionais nas cadeias produtivas e de valor, que controlam os setores e os circuitos mais dinâmicos (Fajnzylber, 1983).

Em um processo de longa duração, colonialismo, escravismo e estruturas de propriedade arcaicas deram lugar ao rentismo, ao controle da terra rural e urbana e a um ambiente empresarial avesso ao risco e às inovações mais radicais. Ao mesmo tempo, ser forjaram variadas frações burguesas e pequeno-burguesas antipopulares, antinacionais e antidemocráticas, que vem se fortalecendo recentemente.

Nos diversos países latino-americanos, o papel hegemônico das frações mercantis, agrárias, extrativas, fundiárias financeiras e fictícias de capital e sua hegemonia no bloco no poder é inconteste. Essas facções sempre logram articular, ao longo da história de grande duração, acumulação de capitais e acumulação de poderes, muitas vezes pela via pouco democrática, a violência e a dominação cultural. Controlam e comandam a riqueza patrimonial e monetária e as lógicas de extração e capitalização de rendas e arquitetam nas mais variadas instâncias de poder suas estratégias de dominação política e cultural.

São oligarquias mercantis-fundiárias-extrativistas e rentistas-financeiras com enorme poder para fazer valer seus interesses e para vetar e conspirar contra os anseios de transformação social.

Os espaços (econômicos e políticos) ocupados por estas facções de classe comandam e encadeiam as decisões cruciais do poder, da terra e do dinheiro, com marcantes impactos ao longo do vasto território nacional - que vai tomando a forma de uma mera plataforma de exploração, expropriação, extorsão e extração. Na verdade, essas elites conspiram contra a escala nacional e se protegem em uma escala internacionalizada de poder.

Lançando mão de uma citação de Diaz-Alejandro, ainda do ano de 1984, Griffith-Jones e Sunkel (1990, p. 119) discutem como

as famílias internacionalizadas conseguem transpor as incertezas do subdesenvolvimento e do governo instável (...) Cada vez mais, o sistema internacional oferece às classes média e alta latino-americanas amplas possibilidades de mandar para fora seu capital e de emigrar, diminuindo os incentivos que as fariam interessar-se pelos assuntos locais, solapando sua lealdade ao Estado, que não obstante deve arrecadar impostos e proporcionar um ambiente adequado ao investimento, ao comércio e ao exercício de poder.

Assim, é importante nos debruçarmos sobre as características fundantes dos peculiares negócios privados das frações ligadas à terra e ao dinheiro, que apresentam desdobramentos cruciais (inclusive espacialmente) para pensarmos histórica, dinâmica e contraditoriamente a gênese e a trajetória das destituições, desigualdades e impasses sociopolíticos latino-americanos.

Também é crucial se entender o papel do Estado, enquanto uma condensação de correlações de forças sociopolíticas nos processos de desenvolvimento dependente na América Latina.

Nesse continente, o Estado sempre ampara e protege as “iniciativas privadas” com incentivos e favorecimentos fiscais e creditícios, promovendo a validação de estoques de riqueza acumulada e sancionando a valorização especulativa. Não se logra redesenhar os aparelhos financeiro, fiscal e de ciência, tecnologia e inovação no sentido da modernização capitalista. Não se avança na montagem dos sistemas creditício, de exação e de aprendizado, tríade básica dos capitalismos avançados.

Assim, neste contexto, deve-se discutir o papel retrógrado e o poder das formas e lógicas arcaicas dos polimórficos capitais mercantis (especulativas, usurárias, imobiliárias etc.) que, na maioria das vezes, são recombinados, reajustados, reconciliados e realinhados com os modos de funcionamento, as formas e as estratégias dos capitais mais “modernos” e fictícios-financeiros (geralmente ancorados em títulos da dívida pública). Uma função destacada neste ambiente é desempenhada pela mídia corporativa que sanciona as narrativas em benefício do agronegócio, do mercado financeiro e da extração mineral.

A história latino-americana demonstra o passado mercantil-agrário e especulativo no seu longo curso. Se o resultado da operação do capital mercantil era um fluxo monetários (resultando, ao final do período, numa massa de dinheiro em sua mais forma líquida, geral e abstrata), a lógica fictícia de valorização veio capitalizar estes fluxos de rendimentos, “fazendo-os dialogar” (realizando a mediação) a partir de determinada taxa de juros (e de câmbio), enquanto parâmetro geral do enriquecimento privado.

Lembremos aqui, como exemplos, das estratosféricas taxas de juros praticadas no Brasil pelo sistema bancário e das elites argentinas que ancoram pervertidamente suas riquezas em dólares e conspiram contra a economia e a moeda nacionais.

Amparado em negócios realizados em ramos diversos, seus agentes garantem a manutenção e expansão de sua riqueza patrimonial (ancorando-se na terra-propriedade) e mercantil (intercâmbio e circulação de capitais, mercadorias e dinheiro e sua capitalização) e o controle político de importantes espaços econômicos e geográficos.

O “jogo das trocas”, totalmente articulado ao “jogo político”, lhe proporciona acúmulo de capital-dinheiro líquido e poder, que poderá ser capitalizado e abrir espaço para uma unidade ou relação estreita entre o rentismo e o patrimonialismo, mais ou menos parasitário, a depender das opções de retenção (e aplicação) eleitas na composição de seu portfólio e da sua ação política em determinado espaço. Parte de seu dinheiro provavelmente também será retida na forma de decisões especulativas da terra improdutiva rural e da terra ociosa e em reserva de enormes glebas urbanas, fechando sua equação econômica e política de acumulação de terra, dinheiro e poder.

Garante-se a retenção e a expansão de massas de dinheiro enquanto mercadoria universal-total acumulada, com a consolidação da taxa de juro como o padrão geral de remuneração do capital e da taxa de câmbio como a medida da comparabilidade com a moeda forte internacional. Assim, busca da acumulação (infinita) de símbolos gerais (formas universais) de riqueza, que fica orientada (depois dirigida) pelos sinais dos juros e do câmbio. Ocorre a invasão e a prevalência da lógica patrimonial, especulativa e fictícia de valorização e seu poder de orientar a avaliação e a gestão geral sobre todas as outras frações de capitais. Há o encurtamento dos horizontes temporais, com a busca de lucros rápidos no curto prazo e a fuga dos riscos, geralmente sob amparo do Estado.

A autonomização do capital-dinheiro sob a forma de capital a juros e a preponderância da forma fictícia sobre as outras formas de riqueza é um dos temas centrais do capitalismo em geral e na experiência concreta do capitalismo na América Latina. Uma agenda coletiva fundamental de pesquisas, seria tentar desvendar as complexas relações entre os capitais mercantis, rentistas e os imobiliários-fundiários que dominam os espaços urbanos no continente. É preciso investigar a lógica da unidade contraditória mobiliário/imobiliário, que ganha centralidade no funcionamento do capitalismo urbanizado, extrator de rendimentos diversos, recrudescido pela força da propriedade privada e pela restituição violenta do poder de classe. Crescentes massas de capital líquido (existentes sob a forma de direito a reclamar um mais-valor) buscam garantir a preservação e, se possível, a expansão facilitadas e de pouco risco. Sendo caracterizados pela sua temporalidade restrita (curtoprazista), encontram-se impossibilitados os planos empresariais mais ousados e as estratégias mais duradouras e inovadoras, o que demarca um pelo tempo conjuntural com a aparência de continuidade. Esta lógica, que passa a presidir as decisões de aplicação de capital, tem papel central na organização dos interesses privados e na articulação de alianças e pactos de dominação latino-americano. Ao longo de sua história, sempre se estabelece de forma concertada a recomposição e a permissividade especulativa patrimonial-mercantil em novas recombinações e articulações econômicas e políticas entre as formas e forças “mais contemporâneas” e as mais retrógradas e reacionárias. As formas arcaicas e contemporâneas se combinam em assimétricas correlações de força, influências recíprocas e (inter e intra) conexões do diferenciado e do heterogêneo. Cristaliza-se, assim, um arco de alianças híbrido e polimórfico entre as frações mercantis, usurárias e fundiárias. Forja-se e consolida-se um amplo e heterogêneo arco de alianças conservadoras que soldam o pacto de dominação no continente.

Em 2023 estamos completando meio século do início da permissão da flutuação das taxas de câmbio (marcando o fim de Bretton Woods), um dos elementos que delimitam o avanço da chamada globalização. Na América Latina temos, no momento, a efeméride dos quarenta anos da chamada crise da dívida externa. São marcos fundamentais para pensar os nossos constrangimentos estruturais e nossos vínculos de subordinação.

Cabe lembrar que, no início da década de 1980, os capitais especulativos internacionais impuseram o custo do pesado ajuste sistêmico e toda sorte de sacrifícios ao povo latino-americano. Escrevendo em 1986 Osvaldo Sunkel já afirmava

o mundo financeiro nacional e internacional dá a impressão de um campo minado onde estão penetrando os principais protagonistas - bancos instituições financeiras internacionais, governos - com uma bagagem de experiências e dispositivos para detectarem e desativarem temporariamente as minas e para atenderem os feridos quadro tropeçam em alguma delas. Mas não se percebe nenhum esforço substancial para montar uma operação sistemática de limpeza do terreno. A atenção está colocada no curtíssimo prazo (SUNKEL, 1986, p. 59).

Como enfrentar hoje estas estruturas externos e internos de dominação e a correlação de forças conservadores e reacionárias em nossos países, tendo uma base social e política que se revela uma massa de destituídos de justiça, riqueza e direitos?

Uma imensa maioria da população se encontra desenraizada da vivência social digna, estão submetidas a formas de violência aberta e a ambientes de sociabilidade estreita, com a corrosão das bases da esfera pública, dentre outros fenômenos. Muitos os espaços urbano-regionais e rurais latino-americanos vão cristalizando uma sociedade cindida entre uma grande maioria que se localiza subordinadamente na sociedade, configurando uma verdadeira massa de não-cidadãos e uma pequena minoria privilegiada que goza de direitos civis e garantias sociais plenos. Trabalho autônomo, independente, instáveis, não registrados, mal remunerados, de baixa qualificação e sem proteção social são apenas algumas formas destes modos de pertencer e permanecer à margem.

O programa de pesquisas crítico e engajado que estamos discutindo tinha um espaço privilegiado reservado para sobre a chamada massa marginal e se perguntava pelas perspectivas da transformação social. Esse programa definia o que chamava de processo de marginalidade como a dificuldade de incorporação, com estabilidade e consistência, na estrutura de papéis e posições em um mercado urbano estruturado e moderno, que era muito heterogêneo e restritivo (QUIJANO, 1968, p. 49). Ou seja, estavam discutindo, muito antes da discussão contemporânea sobre precarização e precariado, a problemática na América Latina de uma geração persistente de uma “massa marginal não absorvível pelo setor hegemônico da economia” (NUN, 1969). Afirmavam que uma parcela da mão-de-obra não absorvida pelo núcleo hegemônico se refugiaria no “amplo e deprimido polo marginal da economia”, pouco relevante e “afuncional” para o processo de acumulação de capital. Ressaltavam que era muito diverso o modo de pertencimento desta massa de mão-de-obra redundante, destes excedentes de “população não-funcionais” nos processos econômicos, sociais e políticos (CARDOSO, 1969 e 1970).

Esse programa de pesquisa precisa ser reatualizado, pois no século XXI assistimos a toda sorte de precarização, informalização, exclusão e marginalização, com o agravante de que agora conta-se com o fim da legitimidade da proteção social (e da participação democrática) e várias facções de classe (dos “de cima” e dos “de baixo”) ingressam nas esferas subterrâneas da economia ou mesmo na acumulação ilícita.

Em um contexto em que as oportunidades ocupacionais minguaram, em que se tem não a geração, mas a destruição de postos de trabalho (sobretudo os estáveis e seguros), em que, geralmente quando surgem as ocupações essas são precárias e mal remuneradas, tornados “mão-de-obra supérflua”, cresce ainda mais a sempre enorme massa de não-cidadãos, destituídos de dignidade, segurança, proteção e status. No continente latino-americano, as marcas do trabalho excessivo e da superexploração da força de trabalho são uma constante (MARINI, 1973).

Por outro lado, auspiciosamente, há que se lembrar (e investigar cientificamente) que renovadas formas de resistências, contrapontos de representação, modalidades de organização sociopolítica, espaços de esperança e estratégias de luta etc. vão sendo experimentados na América Latina no momento.

Subfrações subalternas de classe empreendem combates reivindicativos, insurgentes e com alto potencial emancipatório. Há uma canalização das energias dispersas, e forjadas na escala da vida cotidiana, de insatisfação e inconformismo, buscando rearticulá-las pela via das intersubjetividades e interseccionalidades. São tentativas de aglutinação política e de formação de coalizões dos sem direitos e sem voz. A mobilização das forças democráticas busca unificação e justiça socioespacial.

María Laura Silveira resume primorosamente os principais desafios neste momento decisivo e tenso de nosso tempo estrutural-conjuntural

A real coexistência de temporalidades é a base da tolerância, cuja manifestação mais primorosa é o consumo de bens políticos e culturais, que não se acaba no próprio ato, mas alimenta o processo e reconstrói a dignidade dos homens. Mais liberdade, mais diálogo, mais democracia, mais cidadania, mais arte e cultura, mais solidariedade, mais proteção para os fracos. A sociedade da tolerância preocupar-se-ia com a liberdade, mas não apenas com os conteúdos da democracia liberal, mas com as bases de uma sociedade mais justa e igualitária. Não poderíamos pensar uma geografia que fosse capaz de discutir essas questões? (SILVEIRA, 2006, p. 99).

Considerações Finais

Os desafios para se pensar criticamente, com ousadia e independência, as transformações profundas e abrangentes que estamos vivendo neste início de terceira década do século XXI, no mundo e a partir da América Latina, são instigantes. Um feixe multifacetado e pluridimensional de mediações teóricas e históricas são requeridas a fim de se avançar em uma Economia Política do Território na América Latina frente às transformações geopolíticas, geoeconômicas e geoculturais do capitalismo contemporâneo.

Em uma dinâmica planetária que acelerou suas tendências, tensões e contradições, sob os impactos da pandemia do Covid-19 e da Guerra na Ucrânia, presenciamos a refundação do sistema interestatal, na direção de um mundo mais asiático, multipolarizado e multicultural, enquanto no continente latino-americano estamos diante de um frágil pêndulo sociopolítico movimentando para a centro-esquerda.

Como em outros grandes ciclos históricos, o capitalismo é desafiado a lidar conjuntural e simultaneamente com suas contradições internas (inerentes) e externas (circunstanciais e contingenciais). Os esforços por contornar momentaneamente tais contradições evoluem através de complexos processos de estabilização, reregulação e legitimação, que geralmente atravessam o Estado e contestam as coalizões sociopolíticas instituídas.

Como estabilizar um mundo com bifurcamentos extremados? De um lado, geometrias variáveis de poder, formas de dominação abstrata, lógicas de extração e capitalização de rendas e concentração de forças. De outro, todo tipo de precariedades, informalidades, exclusões, destituições, desclassificações, acúmulo descomunal de massas marginalizadas, deslocamento de refugiados, “mundos de trabalho” precarizados etc.

Na América Latina todo este estado de contradições capitalistas opera em meio a heterogeneidades estruturais e recombinações relacionais e contingenciais (e com convivências contraditórias de temporalidades e espacialidades múltiplas), em que formas atrasadas-retrógradas estão em (re)articulação constante com formas modernas-contemporâneas.

Frente a tamanhas transformações, em tão variadas dimensões, seria importante questionar como se apresenta hoje a unidade contraditória desenvolvimento-subdesenvolvimento e como as relações centro-periferia continuam a ser reprodutoras das condições do subdesenvolvimento e da dependência estrutural, porém apresentam outra natureza, que requerem mais profundas investigações com perspectiva espaço-temporal, que busquem radicalmente a multiplicidade e a possibilidades de múltiplas coexistências e trajetórias, como sugerido metodologicamente por Doreen Massey.

Em um ambiente mutante e desafiador a única certeza que resta é que a luta por entender e transformar este estado de coisas deve ser multiescalar, multidimensional e em variados campos de disputas, além de permanente.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Mónica. A vulnerabilidade dos territórios nacionais latino-americanos: o papel das finanças. In: LEMOS, Amalia Inés G., SILVEIRA, María Laura e ARROYO, Mónica (Orgs.). Questões territoriais na América Latina. Buenos Aires: CLACSO; São Paulo: USP, 2006.

BÉRTOLA, Luis; OCAMPO, José A. O desenvolvimento econômico da América Latina desde a independência. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2015.

CARDOSO, Fernando H. [1969]. Participação e marginalidade: notas para uma discussão teórica. In: CARDOSO, Fernando H. O Modelo Político Brasileiro. Rio de Janeiro, Difel, 1977.

CARDOSO, Fernando H. [1970]. Comentários sobre os conceitos de superpopulação relativa e marginalidade. In: CARDOSO, Fernando H. O Modelo Político Brasileiro. Rio de Janeiro, Difel, 1977.

CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina. Zahar Editores. Rio de Janeiro. 1970.

DOS SANTOS, Theotônio. A teoria da dependência: balanço e perspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

DÖRRE, Klaus. Teorema da expropriação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2022.

FAJNZYLBER, Fernando. La industrialización trunca de América Latina. México: Editorial Nova Imagem, 1983.

FERNÁNDEZ, V. R. La trilogía del erizo-zorro: redes globales, trayectorias nacionales y dinámicas regionales desde la periferia. Buenos Aires and Santa Fe: Editorial Anthropos and Ediciones de la Universidad Nacional del Litoral, 2017.

FIORI, José Luís. Estado e desenvolvimento na América Latina. In: MARINGONI, Gilberto (org.). A volta do Estado planejador: neoliberalismo em xeque. São Paulo: Contracorrente, 2022.

FIORI, José Luís. História, estratégia e desenvolvimento: para uma geopolítica do capitalismo. São Paulo, Boitempo, 2014.

FIORI, José Luís. A síndrome de Babel e a disputa do poder global. Petrópolis: Editora Vozes, 2018.

GAGO, Verónica. La razón neoliberal: economías barrocas y pragmática popular. Buenos Aires: Tinta Limón, 2014.

GRIFFITH-JONES, Stephany; SUNKEL, Osvaldo. O fim de uma ilusão: as crises da dívida e do desenvolvimento na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1990.

MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade: Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 2015.

MARINGONI, Gilberto (org.). A volta do Estado planejador: neoliberalismo em xeque. São Paulo: Contracorrente, 2022.

MARINI, Ruy Mauro [1973]. Dialética da Dependência. Petrópolis: Vozes, 2000.

MARTINS, Carlos Eduardo. Sobre China: o socialismo do século XXI. In: JABBOUR, Elias e GABRIELE, Alberto. China: o socialismo do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2021.

MAZZUCATO, Mariana. Missão economia: um guia inovador para mudar o capitalismo. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2022.

MUSACCHIO, Aldo; LAZZARINI, Sergio G. Reinventando o capitalismo de estado: o Leviatã nos negócios: Brasil e outros países. São Paulo: Portfolio/Penguin, 2015.

NUN, José. Superpoblación relativa, ejército industrial de reserva y masa marginal. Revista Latinoamericana de Sociología, Buenos Aires, 5 (2), jul., 1969.

OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista. O ornitorrinco. São Paulo, Boitempo, 2003.

QUIJANO, Anibal [1968]. Dependência, mudança social e urbanização na América Latina. In: ALMEIDA, Fernando L. A questão urbana na América Latina. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

RIESER, Vittorio. La “apariencia” del capitalismo en el analisis de Marx. In: DOBB, Maurice et al. Estudios sobre el capital. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 1970.

SILVEIRA, María Laura. Por uma teoria do espaço latinoamericana. In: LEMOS, Amalia Inés G., SILVEIRA, María Laura e ARROYO, Mónica (Orgs.). Questões territoriais na América Latina. Buenos Aires: CLACSO; São Paulo: USP, 2006.

SUNKEL, Osvaldo. Desarrollo, subdesarrollo, dependência, marginalización y desigualdades espaciales: hacia un enfoque totalizante. Revista EURE - Revista de Estudios Urbano Regionales, 1(1), p. 13-49, 1970.

SUNKEL, Osvaldo. A crise da América Latina: dívida externa e empobrecimento. Porto Alegre: L&PM, 1986.

ZUSMAN, Perla. No solo el reposo configura geografías. Terra Brasilis, v. 5, 2015.

Notas

1 Veja a respeito o programa de pesquisa de José Luís Fiori (2014, 2018).
2 Pode-se falar também de uma espécie de nacionalismo metodológico científico, que precisa ser combatido. “La ruptura con el nacionalismo metodológico y la concepción de espacios de producción de conocimiento transnacionales abre el camino para tematizar la diversidad de formas de circulación de teorías, métodos y objetos que han tenido lugar históricamente, de redes que se han conformado y que han imaginado otras geometrías del poder (MASSEY, 2008) que desafiaron la geopolítica del conocimiento instituída” (ZUSMA, 2015, p. 6).
HTML generado a partir de XML-JATS por