Urbanização, Pequenas Cidades e Desenvolvimento Territorial
Recepción: 02 Marzo 2020
Aprobación: 02 Noviembre 2023
DOI: https://doi.org/10.17058/redes.v28i1.18212
Resumo: Quase dez anos após a criação do Programa Mais Médicos, o Brasil começa a sentir alguns dos resultados dos objetivos de longo prazo propostos por esta política pública. A presente reflexão debruça-se a analisar importantes consequências da ampliação da mão de obra médica no país e, especialmente, no Maranhão. Examina-se a interiorização dos cursos de medicina e dos novos profissionais formados. Analisam-se as variáveis que estão obrigando a fixação desses profissionais nos médios centros urbanos, assim como a saturação do mercado nas capitais. Avaliam-se as consequências para as pequenas cidades maranhenses do aumento dessa mão obra. Qual o perfil dos profissionais que escolhem o interior do estado para construir carreira e qual a remuneração alcançada? Finaliza-se a reflexão constatando o aumento da pressão do setor público e privado sobre o trabalho médico e a ampliação do mercado privado de assistência médica nos médios centros urbanos como nova fronteira do capital.
Palavras-chave: Expansão, Médicos, Maranhão, Consequências.
Abstract: Almost ten years after the creation of the More Doctors Program (MDP), Brazil is started to feel some of the results of the long-term goals proposed by this public policy. The present reflection focuses on analyzing important consequences of the expansion of the medical workforce in the country and, especially, in Maranhão. The internalization of medical courses and new trained professionals is examined. The variables that are forcing these professionals to settle in medium-sized urban centers are analyzed, as well as the saturation of the market in the capitals. The consequences for the small towns of Maranhão from the increase in this workforce are evaluated. What is the profile of the professionals who choose the interior of State to build a career and what is the achieved remuneration? The reflection concludes by noting the increase in pressure from the public and private sector on medical work and the expansion of the private market for medical assistance in medium-sized urban centers as a new frontier of the capital.
Keywords: Expansion, Medical, Maranhão, Consequences.
Resumen: Casi diez años después de la creación del Programa Mais Médicos, Brasil comienza a experimentar algunos de los resultados de los objetivos de largo plazo propuestos por esta política pública. La presente reflexión se centra en analizar consecuencias importantes de la expansión de la fuerza laboral médica en el país y, especialmente, en Maranhão. Se examina la internalización de cursos de medicina y nuevos profesionales formados. Se analizan las variables que están obligando a estos profesionales a instalarse en centros urbanos medianos, así como la saturación del mercado en las capitales. Se evalúan las consecuencias para los pequeños municipios de Maranhão del aumento de esa mano de obra. ¿Cuál es el perfil de los profesionales que eligen el interior del estado para hacer carrera y cuál es la remuneración que logran? La reflexión concluye señalando el aumento de la presión del sector público y privado sobre el trabajo médico y la expansión del mercado de atención médica privada en centros urbanos medianos como la nueva frontera del capital.
Palabras clave: Expansión, Médicos, Maranhão, Consecuencias.
1 Introdução
Dados da MACROPLAN (2016, 2018) indicam que a saúde pública maranhense perfila entre as piores do país. Pesquisas mais recentes (SCHEFFER, 2023,) corroboram com essa afirmação. Importantes variáveis militam a favor dessa situação dramática, a exemplo do baixo número de médicos à disposição da população, limitado número de leitos de enfermaria e de UTI disponíveis na rede pública. Quando cruzamos esses dados com outras variáveis, tais como: expectativa de vida, despesa per capita em saúde, taxa de mortalidade infantil, índice de saneamento, rede de distribuição de água potável, coleta e tratamento de esgoto e IDH, o quadro geral sugere que as condições gerais da saúde no Estado se mostram ainda mais precárias.
Esses dados já foram piores, mas vêm melhorando nos últimos anos, resultados de algumas políticas públicas e programas de governo, como o Programa Mais Médicos (PMM) que busca reverter parte dessa situação terrível que aflige o país e o Maranhão em particular. Quase dez anos após a sua criação, o Brasil e o Maranhão começam a sentir alguns dos efeitos, tanto na esfera pública quanto na economia privada. Assim, o ponto de partida dessa reflexão é a criação do PMM e um dos objetivos de longo prazo contidos nele, qual seja, a ampliação de cursos, vagas e, consequentemente, de profissionais à disposição do mercado e do Estado brasileiro.
Busca-se problematizar a interiorização da força de trabalho médica no Maranhão e algumas mudanças advindas, em especial no desenvolvimento do setor da saúde. Discute-se alguns dos efeitos previstos e imprevistos desse programa de governo, tais como: a ampliação da oferta de mão de obra médica nas pequenas e médias cidades maranhenses como consequência da saturação do mercado nas capitais. Analisa-se o perfil dos profissionais que escolhem estas cidades para trabalhar e a rentabilidade do trabalho ali alcançado. Conclui-se a reflexão problematizando a criação e consolidação de um mercado privado de assistência à saúde nas pequenas e médias cidades maranhenses.
Embora o número de médicos tenha dado um salto nos últimos 5 anos, o país padece com a má distribuição desses profissionais no território nacional, um fenômeno que não é exclusivamente brasileiro. O mesmo acontece em países como EUA e Austrália, que possuem grande dificuldades de fixar essa mão de obra longe dos centros urbanos mais desenvolvidos1. Na presente reflexão, testamos estas teses sociológicas segundo as quais os serviços de saúde médicos acompanham os processos de urbanização (ARAÚJO e MAEDA, 2013). Inversamente, o campo e as zonas rurais têm maior dificuldade de fixar essa mão de obra. Importa indagar até que ponto tais afirmações continuam retratando a realidade, sobretudo em um novo contexto social marcado pela rápida expansão do número desses profissionais no país e pelo impacto do capital financeiro e do Estado — do qual as políticas públicas são parte do processo — como agentes alteradores das relações capital-trabalho no setor.
Debruça-se sobre esses dados, buscando analisar as transformações em curso no mercado de trabalho médico em uma das unidades da federação onde a falta desses profissionais ainda é um drama. Para isso, os resultados foram analisados a partir de um diálogo com a sociologia econômica e os destilados teóricos de autores como Lebaron (2010), Piketty (2014), Dubet (2015) e Karl Polanyi (2004).
importa salientar que esse artigo é um recorte qualitativo dos resultados de duas pesquisas sobre o campo da medicina no Maranhão e suas transformações2. À medida que as investigações avançaram, tornou-se imprescindível compreender mais detalhadamente a rápida expansão dos cursos de medicina no país, especialmente entre 2013 e 2021, seu papel no contexto das políticas públicas brasileiras, bem como os efeitos de tal programa no mercado profissional médico.
2 Aspectos metodológicos da pesquisa
Como sublinhado acima, o material aqui apresentado compõe parte dos resultados de investigações realizadas entre 2018 e 2023. As pesquisas foram aprovadas pelo Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão e pelos demais órgãos colegiados que compõem tal instituição, que chancelam e apoiam sua viabilidade.
Metodologicamente, os resultados são embasados, por um lado, em entrevistas semiestruturadas e conversas informais realizadas com médicos e gestores da saúde pública de alguns municípios escolhidos. Também realizou-se entrevistas semiestruturadas com pequenos empresários médicos que escolheram algumas cidades maranhenses como Caxias, Bacabal, Barra do Corda, Santa Inês e Imperatriz para empreender. Os entrevistados assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e foram alertados de que estavam fazendo parte de uma pesquisa acadêmica.
Paralelo ao trabalho de campo, às entrevistas e conversas informais, realizou-se um extenso mapeamento do quantitativo médico atuante em algumas das maiores cidades do Estado — excluindo a capital —, a saber: Caxias, Imperatriz, Santa Inês, Codó, Barra do Corda, Bacabal e Presidente Dutra3. O mapeamento dos profissionais ocorreu por meio da plataforma DATASUS e do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde nela presente, que reúne informações atualizadas sobre esses profissionais nos municípios4. Por meio dessa riquíssima fonte de dados, pôde-se analisar a situação da saúde pública nas cidades selecionadas, especialmente informações sobre a ocupação das funções médicas ofertadas pela rede pública, tais como: postos de saúde, clínicas, hospitais, UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) etc. Essa extensa base de dados fornece uma visão macrossociológica importante da relação entre oferta e procura por serviços médicos. O cruzamento dos dados ali existentes permite, também, perceber o trânsito dos médicos por diferentes municípios próximos a essas sedes, ocupando as funções ofertadas, sobretudo pelo setor público.
Obviamente, a análise pura e simples dos dados no DATASUS pode levar a erros, uma vez que a plataforma pode escamotear situações reais da falta desses profissionais. Assim, as pesquisas in loco poderiam revelar que, embora conste na plataforma que em um determinado posto de saúde ou hospital exista um profissional atuando, na prática isso não acontece por diversas razões de ordem política, de compadrio, de falta de fiscalização de órgãos competentes, etc. Não obstante, os dados contidos na plataforma oferecem um bom quadro sobre a interiorização desses profissionais. As argumentações que serão levantadas ao longo desta reflexão, indicando e analisando a ampliação do número de profissionais no Brasil e no Maranhão, possibilitam relativizar o peso dessa variável na deformação geral da situação da oferta de serviços médicos nos municípios estudados.
A escolha dos municípios para a pesquisa não se deu de forma aleatória, mas encontra-se ancorada em dois elementos julgados fundamentais para a investigação, a saber: o tamanho das cidades e a facilidade de acesso a elas. Desse modo, colocamos em relevo primeiramente a relação entre expansão da oferta de serviços médicos e a vida urbana. O levantamento prévio desta investigação indicou que alguns municípios maranhenses localizados às margens das principais rodovias federais que cortam o estado, a exemplo dos mencionados aqui, têm passado, na última década, por significativo processo de urbanização e recebido diversos investimentos privados no campo da saúde, com expansão, sem precedentes, do mercado privado de assistência à saúde.
Em segundo lugar, demos destaque à variável acesso às cidades e investigamos a situação da oferta dessa mão de obra nos municípios localizados às margens das principais rodovias federais que cruzam o estado e, por conseguinte, nas pequenas cidades próximas tanto dessas rodovias quanto dos centros urbanos maiores. Ao adotar essa metodologia, tentamos perceber, com mais precisão, o sentido do termo interiorização da mão de obra médica. Adiantando o que será explorado com mais detalhes ao longo do artigo, a interiorização obedece a rotas determinadas, alcançando aquelas cidades com mais fácil acesso, enquanto outras, localizadas no Maranhão mais profundo, continuam padecendo com a falta desses profissionais.
3 Perspectivas teóricas
A proposta original do artigo é acentuar a descrição do fenômeno, todavia, algumas balizas teóricas precisam ser indicadas de modo a apresentarmos a forma como interpretamos as recentes mutações do mercado de trabalho médico.
Partimos da premissa que uma miríade de mudanças sociais, econômicas, históricas e jurídicas têm redimensionado o jogo de forças entre este segmento profissional e a sociedade mais ampla. Destacam-se dois conjuntos de variáveis que ajudam a compor um quadro analítico: variáveis macro e externas e micro e internas; transformações econômicas do capitalismo e transformações no âmbito da sociedade brasileira tais como: jurídicas e de políticas públicas. São a esses dois conjuntos de variáveis que atribuímos um peso causal (Weber) maior capaz de promover a reconfiguração do mercado de trabalho médico no Brasil.
Do ponto de vista das causalidades externas, nos alinhamos teoricamente com as perspectivas de Polanyi, segundo a qual as categorias profissionais se ajustam às transformações históricas do processo de produção econômica e a estrutura econômica determina o espaço que cada categoria deve ocupar na estrutura da sociedade. Tais transformações são compreendidas e apreendidas teoricamente dentro do que Polanyi (2004) categorizou de Grande Transformação. Diante de tais transformações, qual é o espaço que os trabalhadores médicos ocupam na estrutura da sociedade? As pesquisas mais recentes sobre as mudanças nas relações capital/trabalho indicam uma tendência de aumento das desigualdades sociais e um retorno a condições salariais semelhantes as encontradas no século XIX (LEBARON, 2010; PIKETTY, 2014; DUBET, 2015).
Essas transformações atingem profissões, como a médica que, ao longo de praticamente todo o século XX, esteve parcialmente fora da pressão do capital, especialmente no Brasil. No caso brasileiro, o mercado de trabalho médico foi um dos últimos a ser afetado por esse processo, o que permitiu que, comparativamente a outros segmentos, estes trabalhadores mantivessem elevada a renda pelo seu trabalho. Todavia, já ha algum tempo, os ventos estão soprando em outra direção e afetando a dinâmica da profissão e a vida desses trabalhadores.
Em termos genéricos, pode-se afirmar que até o início da década de 1990, em paralelo ao serviço público, vigorou um sistema privado de assistência médica marcado pela relação direta entre médicos e pacientes. Assim, de um lado, estes profissionais liberais, proprietários de seus estabelecimentos, comercializavam seus serviços diretamente aos pacientes interessados em restabelecer sua saúde. Nessa situação, o médico possuía liberdade terapêutica e na definição dos valores pagos pela consulta. Importa salientar que a história da medicina no Brasil, sobretudo da segunda metade do século XX em diante, é marcada pela defesa da classe médica dessa bandeira (médicos como profissionais liberais) (MACHADO, 1997). O que se discute na atualidade são os impactos na profissão em uma nova situação em que a saúde se transforma em mercadoria fictícia no senti do Karl Polanyi (2004) e o mercado de assistência a saúde passa a ser dominado por grandes e poderosas corporações financeiras que controlam os meios de produção e a clientela.
Tais organizações revolucionaram esse segmento da economia. Em poucas décadas, o mercado passa a ser dominado por gigantescos conglomerados financeiros que monopolizam a clientela (a exemplo das operadoras de planos de saúde com milhões de clientes) e, por outro, poderosas corporações (a exemplo das grandes redes hospitalares, de clínicas médicas e de laboratórios), organizações complexas, que são as únicas com capital financeiro suficiente para adquirir máquinas e equipamentos de exames e estruturas onde os pacientes são tratados (modelo hospitalocêntrico que tornou-se dominante no país).
No conflito econômico pelo lucro - entre operadoras, seguradoras de um lado e redes hospitalares do outro, - o médico, produtor dessa mercadoria se tornou o elo mais fraco e foi inserido em estruturas burocráticas que passaram a controlar o seu trabalho por inteiro. De profissionais liberais dominadores do mercado, eles se transformaram em trabalhadores prestadores de serviços com pouquíssimos direitos.
Dentro do processo de produção capitalista, a valorização social e monetária dessa mercadoria (saúde) reifica progressivamente o trabalhador que a produz. As transformações em cursos apontam para a consolidação da submissão dos médicos às mesmas regras de produtividade impostas às demais categorias profissionais, tais como: instabilidade no emprego, ritmo intenso de trabalho, mão de obra em expansão, diminuição da renda, precarização das condições laborais e formas precárias de contratação com ausência de direitos trabalhistas, futuro incerto, etc. (ABICALAFFE, 2015; HIRATUKA; ROCHA e SARTI, 2016; TALEVI E GUIMARÃES, 2023). Esses elementos compõe o quadro de mudanças no campo da medicina, embora no presente artigo exploraremos algumas consequências da expansão da mão de obra por meio do PMM.
Boltanski e Esquerre (2017) observam que a lógica da nova economia do enriquecimento que vemos consolidada hoje, procura auferir menos retorno financeiro dos pobres e das profissões mais básicas da estrutura produtiva geral, o que foi estimulante na produção de massa no passado. Nessa nova fase do capitalismo, a maximização do lucro passa a ser buscada pelas grandes corporações econômicas, nas categorias liberais intermediárias, historicamente elitizadas, como os médicos, através do processo de controle da profissão, do seu assalariamento e/ou da liberdade de mercado em relação a fixação do preço dos serviços por eles prestados, além do monopólio do mercado de assistência à saúde. “É a extensão do campo da mercadoria que alimenta o desenvolvimento de uma economia do enriquecimento”. (BOLTANSKI e ESQUERRE, 2017, p.379).
Há, portanto, ligações importantes entre as transformações recentes no mercado de trabalho médico e à grande transformação do sistema de produção capitalista que beneficia o Estado e o capital em detrimento desses profissionais. Estes e outros elementos permitem compreendermos a posição que esse trabalhador ocupa na sociedade, bem como a questão da autonomia da prática médica.
Quanto as causalidades internas, (que serão exploradas com mais profundidade aqui) tais alterações não ocorreriam sem a intervenção do Estado no mercado dessa profissão. Não é de hoje que o Estado e os diferentes governos atuam em determinados setores da sociedade para alcançar determinados fins políticos e sociais. Em certo sentido, essa é uma de suas funções. Com o campo da medicina não foi tão diferente. Oliveira et al, (2019) afirmam que o ensino médico no Brasil, e, consequentemente, o mercado profissional, historicamente estiveram sobre forte influência de decisões, conjunturas políticas, regimes de governo, modelos econômicos e da gestão de diferentes políticas públicas. Dentre as tentativas de intervenção governamental nesse setor, o PMM exerceu a maior força constrangedora e interventora do Estado Brasileiro sobre o mercado dessa profissão, colocando-o a serviço de um projeto amplo e ousado de democratização do acesso aos serviços médicos para populações historicamente esquecidas nos rincões do Brasil profundo.
Em tese, o objetivo das políticas públicas e programas de governo como o PMM, era fortalecer o SUS e cumprir o texto constitucional de democratizar o acesso da população aos serviços de saúde. Todavia, são intervenções que possuem afinidades eletivas (WEBER, 2004) com esse fenômeno econômico mais amplo de metamorfose do capitalismo já mencionados. A expansão sem precedentes do número de faculdades de medicina e, consequentemente, de médicos no Brasil nos últimos 20 anos tem militado em favor do Estado em seu anseio de cumprir o instituído no texto constitucional, mas, também atende aos interesses do capital que compra, em grande quantidade, as horas desses profissionais. Inversamente tal expansão pressiona para baixo os proventos recebidos pelos médicos, sobretudo nos grandes e médios centros urbanos do país, onde essa mão de obra se concentra. Em termos macrosociológicos, há uma homologia entre a produção capitalista de massa e o desenvolvimento considerável da sociedade salarial (BOLTANSKI e ESQUERRE, 2017, p. 375-376).
A corrosão da renda desses profissionais ocorre ao mesmo tempo em que as grandes corporações aumentam “como nunca antes na história desse país” os lucros nesse setor. O fenômeno beneficia também a esfera pública. Pesquisas no Brasil tem constatado a redução dos valores pagos por estados e municípios a plantões, consultas médicas, produção de diagnósticos, cirurgias e outros serviços (SCHEFFER, 2018; DRUCK, 2016; BUCK, 2018, CARREIRO, CARREIRO E SOUSA, 2021). A existência de um “exército industrial de reserva” de médicos permite aos agentes públicos negociarem em melhores condições para si, a oferta de saúde a população assistida pelo SUS.
Na nova realidade criada pelo embrincamento das causalidades internas e externas, a dinâmica da profissão médica é alterada. São marcas da nova realidade que atingem esses profissionais: um tipo de trabalho na qual a organização disciplinada pela lógica da produtividade, imposta pelos empregadores - seja o setor público, seja o privado – ocupa um papel central nos novos modos de dominação externa da profissão ao qual o profissional dificilmente pode se opor.
Tais transformações têm consequências não somente no aumento do stress para o médico, mas também da qualidade do serviço prestado à população, conforme constatam Druck (2016) e Pacheco et, al (2016). Embora existam profissionais que recusam a se curvar às novas condições de trabalho e lutam por autonomia, um estilo de trabalho mais humanizado, personalizado sem metas diárias de atendimento a serem cumpridas, a falta de liberdade, o produtivismo e o assalariamento são fenômenos já consolidados e a pressão pela sua intensificação é um fato. Os valores baixos pagos pelos empregadores (público e privado) pelos serviços prestados pressionam estes profissionais a aumentar a jornada de trabalho e o ritmo das suas atividades diárias. O capital e o Estado trabalham com a certeza da existência de um importante e crescente “exército industrial de reserva” para substituir o profissional que se recusa a se submeter as novas condições de trabalho, fato mais constante nas grandes cidades brasileiras.
4 O PMM e a expansão da mão de obra médica no Brasil
Como dito acima, os mercados profissionais estiveram à mercê do Estado, de conjunturas políticas, regimes de governo e modelos econômicos para que se alcançassem determinados objetivos políticos, sociais e econômicos, e com a profissão médica não foi diferente (OLIVEIRA et. al., 2019). Autores de diferentes áreas têm corroborado com essa tese em suas análises do campo da saúde, a exemplo de Amaral (2007), Lampert (2008) e Haddad, (2019). Assim, as decisões pela expansão ou não dessa mão de obra no país obedece a uma lógica que não é interna ao campo da medicina, nem tampouco está exclusivamente nas mãos de agentes econômicos, como os proprietários de faculdades particulares, de grandes redes hospitalares, de clínicas, ou os planos de saúde, mas é sobretudo a mão do Estado — e os embates travados entre ele e os diversos agentes de outros campos — que determina os rumos das profissões no país.
A expansão da mão de obra médica tem momentos históricos importantes. O primeiro se dá por volta de meados da década de 1960 e coincide com a expansão do próprio ensino superior no Brasil (OLIVEIRA et al., 2019). O segundo tem seu marco histórico com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e impactou decisivamente o campo da medicina até os dias atuais. Na Carta Magna, consolidou-se a relação entre saúde, educação e direitos dos cidadãos (AMARAL, 2007), e a assistência à saúde passou a ser compreendida como um direito fundamental dos brasileiros e um dever do Estado. Para concretizá-lo, nasce o SUS em 1990, sem dúvida, a intervenção estatal mais importante na saúde brasileira em todo o século XX. Um sistema público criado para organizar este setor em todo o território nacional, com o objetivo de ofertar a todo cidadão acesso integral, universal e gratuito a serviços de saúde5.
Algumas políticas públicas foram criadas nos anos seguintes como corolários do SUS na busca pela ampliação e consolidação desse direito. Merecem menção aqui o Programa de Interiorização do Sistema Único de Saúde (1993), o Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (2001), o Programa de Valorização dos Profissionais da Atenção Básica (2011) e o Programa Mais Médicos (PMM, 2013) (BRASIL, 2012; OLIVEIRA et al., 2015).
Após 1988, o Estado brasileiro também atuou em outros setores que possuíam relações diretas com o campo da saúde. Por exemplo, acentuou a flexibilização das regras para a abertura de novos cursos de graduação na área da saúde, fenômeno que já vinha crescendo desde a primeira expansão nas décadas de 1960 e 1970. Nos anos que se seguiram a 1990, viu-se uma ampliação sem precedentes de novos cursos e vagas em áreas como: enfermagem, nutrição, fisioterapia, terapia ocupacional, odontologia e farmácia. O fenômeno não alcança com tanta força o campo da medicina, mas a gestão petista e a implementação do Programa Mais Médicos (PMM) revolucionará esse mercado profissional.
Foi na gestão especialmente de Dilma Rousseff (2013-2016) que o Brasil presenciou a rápida e intensa multiplicação no número de cursos e novas vagas e, consequentemente, nos anos seguintes, de médicos formados à disposição do mercado.
Entre as tentativas de intervenção governamental no campo da medicina, o PMM, como Programa de Governo, corolário do SUS, exerceu a maior força constrangedora e interventora do Estado brasileiro sobre o mercado dessa profissão, colocando-o a serviço de um projeto amplo e ousado de democratizar o acesso aos serviços médicos para as populações historicamente esquecidas nos rincões do Brasil profundo, algo ainda não alcançado nos governos anteriores (CARREIRO et al., 2021). Kemper et al. (2016) observaram que, mesmo dentro de uma conjuntura social com forte pressão de diversos setores da sociedade (lobby médico, lobby das faculdades de medicina, disputas ideológicas dentro do governo, pressão da população por mais médicos), o governo federal conseguiu impor uma política pública de forte apelo popular, colocando em segundo plano os interesses particulares da classe médica.
O PMM ficou conhecido vulgarmente, por uma parte importante da população brasileira, como um programa de importação de mão de obra médica barata de Cuba para o Brasil. Essa visão equivocada do programa enganou os próprios representantes do setor médico brasileiro, como o Conselho Federal de Medicina, que encampou a luta contra a importação desses profissionais, não compreendendo a força revolucionária no mercado dessa profissão proposta ali. Na verdade, o desenho do programa envolvia três ações simultâneas de curto, médio e longo prazo, complementares entre si, para atingir os objetivos inicialmente estabelecidos6. São elas: 1) A promoção de “aperfeiçoamento de médicos na área de atenção básica em saúde, mediante integração ensino-serviço, inclusive por meio de intercâmbio internacional” (BRASIL, 2013), o que, na prática, significou o provimento emergencial de médicos para a atenção básica no SUS por meio da importação desses profissionais para o Brasil; 2) O estabelecimento de novos parâmetros curriculares para a formação médica no país. e 3) A ampliação da oferta de cursos de medicina e de vagas para residência médica, sobretudo nas regiões mais carentes do Brasil;
Quanto a expansão do número de cursos e vagas no país, cabe destacar que em 2003, o país possuía 64 cursos de medicina espalhados no território nacional. Em 2007, esse número é ampliado para 93 — 65 dos quais em IES privadas, graças aos incentivos contidos na nova Constituição e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996, que afrouxara as regras, facilitando a expansão do ensino superior. Uma década depois (2017), já eram 303 cursos, dos quais 30% foram abertos a partir de 2013 graças à nova legislação implementada como parte das estratégias do PMM, que ampliou os incentivos às instituições privadas a abrirem cursos de medicina em municípios com determinados perfis socioeconômicos. Somente naquele ano o MEC autorizou a abertura de novos cursos de medicina em 37 municípios brasileiros que atendiam ao perfil estabelecido pelo PMM, perfazendo um total de 2.355 novas vagas.
Quase uma década após a criação do PMM, o número de profissionais à disposição do Estado e do mercado é enorme se comparado com o período anterior. Scheffer (2020) observa que, em 1980, o Brasil dispunha de 113.500 médicos para atender a uma população de 121 milhões de brasileiros, o que equivaleria a uma razão de 0,94 médico para um grupo de 1.000 habitantes. Vinte anos depois (2000), a população de médicos salta para 239.100 médicos, enquanto a população brasileira cresce para um pouco mais de 169 milhões. A razão médico por habitante sobe para 1,41 médico/1.000 hab. Se dermos mais um salto de duas décadas (2020), o campo da medicina ultrapassa a marca de 500 mil médicos, enquanto a população brasileira aumenta para um pouco mais de 210 milhões. Naquele ano, o país alcança a razão de 2,38 médicos por grupo de 1.000 hab. Sintetizando os dados evolutivos, pode-se afirmar que, entre 1970 e 2020, a mão de obra médica cresceu 1.170,4%, ou 11,7 vezes, enquanto a população brasileira foi ampliada em 222,3%, ou 2,2 vezes (SCHEFFER, 2020).
Importa indagar se números aparentemente tão bons são adequados para as demandas da população brasileira. Scheffer traz importantes dados comparativos que lançam luz sobre essa questão. Segundo o autor, em 2020, o país possuía taxas de médicos para grupos de 1.000 habitantes semelhantes aos de países como Coreia do Sul, México, Polônia e Japão, embora abaixo das encontradas em outros 35 países membros da OCDE, como Canadá, Reino Unido e Estados Unidos. Não obstante isso, o ritmo de crescimento desses profissionais sugere que em pouco tempo o país ultrapassará muitas nações ranqueadas por essa organização. Somente entre 2013 e 2019, período de vigência do PMM e de seu clone, Médicos pelo Brasil, criado pelo governo Bolsonaro, as vagas em cursos de medicina saltaram de 20.522 para 37.346.
Ampliando a contextualização, em 2000 se formaram aproximadamente 8.100 médicos, enquanto saíram do mercado de trabalho um pouco mais de 1.000 desses profissionais. Em 2019, o número dos que entraram no mercado de trabalho eram quase 22 mil e o dos que saíram não ultrapassou 1.300. Projeta-se, com base nos dados de Scheffer (2020), que, a partir de 2024, as universidades públicas e privadas lançarão no mercado de trabalho quase 32 mil médicos por ano. Merece destacar que essa profissão está entre as mais longevas do Brasil, com média acima de 42 anos de tempo de trabalho.
5 A Interiorização do trabalho médico
Números tão impressionantes, vistos isoladamente, podem esconder problemas crônicos que insistem em não desaparecer no país, mesmo diante da revolução no mercado de trabalho médico promovido, sobretudo, pelo PMM. Um dos mais graves diz respeito à escassez desses profissionais nas pequenas cidades do Brasil e nas zonas rurais que, como dito, não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, mas observado também em outras nações.
O problema do acesso de parte da população brasileira — sobretudo a mais carente — aos serviços médicos é uma realidade que tem, pelo menos, quatro pontos nodais: por um lado, constata-se uma distribuição desigual em termos regionais, mas é desigual também quando comparamos as capitais e as zonas rurais ou semiurbanas dentro de uma mesma unidade da federação. É uma distribuição muito desigual quando se analisa comparativamente o acesso da população a médicos especialistas, estes, concentrados majoritariamente na saúde privada e nas capitais. Por último, trata-se de uma distribuição extremamente desigual quando comparamos o acesso dos diferentes extratos sociais. Assim, quem pode pagar planos de saúde e/ou consultas particulares têm mais acesso aos serviços médicos do que aqueles que dependem exclusivamente da oferta pública.
Parte desse problema é resultado da histórica falta de planejamento do estado brasileiro na distribuição das faculdades de medicina no território nacional. Algumas regiões, como Sul e Sudeste, historicamente concentraram os cursos de medicina, as residências médicas e, por conseguinte, essa mão de obra, enquanto as regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste padeceram ao longo de todo o século XX com a falta de instituições formadoras e, por conseguinte, de profissionais. Sobre isso, observa Scheffer:
A região Norte, por exemplo, agrupa 8,8% de toda a população do país, mas conta com 4,6% dos médicos em atividade. O Nordeste reúne 27,2% da população, mas somente 18,4% dos médicos. (...) Por outro lado, o Sudeste agrupa mais da metade dos médicos do país – 53,2% – que atendem 42,1% da população brasileira (SCHEFFER, 2020, p. 50).
Como mencionado, a má distribuição desses profissionais não se limita às regiões, mas ganha contornos dramáticos quando se analisam comparativamente as capitais e as pequenas cidades.
As 48 cidades brasileiras com mais de 500 mil habitantes têm, juntas, a razão de 4,89 médicos por grupos de mil habitantes. Para se ter uma ideia da dimensão da desigualdade, esses municípios reúnem 31,7% de toda a população do país e contam com 62,4% de todos os médicos. Já 1.253 municípios com até 5 mil moradores têm 0,37 médico por mil habitantes. Nessas localidades vivem 4,2 milhões de pessoas, que são atendidas por 1.557 médicos. A situação é semelhante nos 1.199 municípios que têm de 5 a 10 mil moradores: eles reúnem 8,5 milhões de pessoas e 3.269 médicos, uma razão de 0,38 médico por mil habitantes. O estrato entre 10 mil e 20 mil moradores agrupa 1.345 municípios, onde vivem 19,2 milhões de pessoas e onde estão 9.051 médicos. Significa 0,47 médico por mil habitantes. Somados, os 3.797 municípios com até 20 mil habitantes representam 68,2% dos 5.570 municípios do país. Eles abrigam 31,9 milhões de habitantes e 13.877 médicos. Dessa forma, 15,2% da população do Brasil é assistida por apenas 2,7% do total de médicos em atividade (SCHEFFER, 2020, p. 56).
Os dados sugerem uma realidade dramática de falta de assistência médica nas pequenas cidades brasileiras e no campo. Não obstante os dados de Scheffer, essa realidade tem se alterado nos últimos anos, graças às estratégias de longo prazo contidas no PMM. Tomaremos como campo empírico o estado do Maranhão e colocaremos em relevo a situação da oferta de serviços médicos nesta unidade da federação, destacando a interiorização dos cursos de medicina, a fixação de médicos fora da capital, o perfil desses profissionais e o retorno financeiro alcançado. Por último, destacaremos a ascensão de um mercado privado de assistência à saúde nos médios centros urbanos.
A interiorização dos cursos de medicina
Um dos mais importantes objetivos estabelecidos pelo PMM era o de reduzir as desigualdades regionais de acesso à atenção básica resolutiva no Brasil, e uma das estratégias adotadas foi a redistribuição mais equânime das vagas e dos cursos de medicina entre as unidades da federação. Como dito acima, ao longo do século XX esses cursos estiveram concentrados nas regiões Sudeste e Sul do país, enquanto as regiões Nordeste e Norte padeciam com poucas faculdades, consequentemente, poucos profissionais à disposição do Estado e mesmo dos hospitais privados e planos de saúde. Essa escassez de mão de obra inflacionava os valores dos serviços prestados nessas regiões e foi um fator importante (não o único) na construção de uma classe médica elitizada, economicamente forte, com poder de barganha nas negociações com os empregadores, o que reverberava em médias salariais muito acima dos demais profissionais liberais do Brasil. Esse fenômeno se mostrava ainda mais evidente nas pequenas e médias cidades das regiões Norte e oerdestes, onde o retorno financeiro pelo trabalho médico era muito elevado, dada a escassez desses profissionais.
O PMM e seu clone, Médicos pelo Brasil, alteraram significativamente essa realidade na última década, na medida em que ampliaram, em escala nunca antes vista, a produção dessa mão de obra em todo o território nacional. Para isso, o governo incentivou a criação de cursos de medicina e a ampliação de vagas nos cursos já existentes nas regiões onde essa mão de obra era mais carente.
Tomemos o Nordeste como exemplo: em 2002, a proporção de vagas de medicina por grupo de 10.000 habitantes era de um pouco mais de 0,3. Isso equivalia a menos da metade do encontrado na região Sudeste, que era de 0,8. O PMM impôs a meta de criar, até 2017, 11.500 vagas de graduação em medicina prioritariamente nas regiões mais carentes, como Norte e Nordeste, e sobretudo fora das capitais estaduais. O objetivo era elevar a razão de médicos ao patamar de 2,7/1.000 hab até o ano de 2026 (BRASIL, 2015). Essa diferença já vinha caindo, embora lentamente, ao longo da primeira década do século XXI, mas com o PMM (2013) o ritmo se acelerou.
A distribuição mais equânime das vagas por todo o território nacional buscava criar uma equiparação entre todas as regiões a um patamar de aproximadamente 1 vaga de curso de medicina para cada grupo de 10.000 habitantes (SCHEFFER, 2020). A política foi assertiva, pois houve um maior crescimento proporcional justamente nas regiões mais carentes. O Nordeste, que possuía uma proporção de 0,67 vaga por 10.000 hab ao final de 2012, chegou a 1,02 em 2015 e 1,5 em 2020.
Importante salientar que não bastava ampliar as faculdades de medicina para o Norte e Nordeste: era necessário que elas fossem criadas nas pequenas e médias cidades brasileiras, onde a carência desses profissionais era gigantesca. Os levantamentos de Scheffer (2020) indicaram que, em 2020, 62% das vagas de graduação já eram oferecidas no interior dos estados, em um claro processo de interiorização das escolas médicas, consolidando a estratégia do PMM e ratificada pelo Programa Médicos pelo Brasil. De acordo com esse levantamento, nos últimos dez anos 71% das novas vagas abertas foram ofertadas fora das capitais brasileiras. Em pouquíssimos estados essa estratégia não foi bem-sucedida, como observa Scheffer:
Na região Norte, 32,3% das vagas são ofertadas por cursos localizados no interior, enquanto no Nordeste são 49,7%. Já as regiões Sudeste e Sul, que têm no interior importantes polos econômicos de seus estados, a interiorização é maior: menos de 30% das vagas estão nas capitais. Quatorze estados apresentam mais vagas no interior do que nas capitais. Entre eles, o estado de São Paulo tem 73,3% de vagas no interior, ao lado do Rio Grande do Sul, com 80,7%, Goiás com 85,2% e Minas Gerais, com 73,9%. Em Santa Catarina, apenas um dos 17 cursos existentes estão na capital Florianópolis. Já no Rio Grande do Norte, 100% das vagas estão no interior do Estado. Na outra ponta, treze estados apresentam mais vagas nas capitais, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Os estados do Acre e Amapá apresentam 100% das vagas nas capitais, assim como o Distrito Federal (SCHEFFER, 2020, p. 101).
A situação do Maranhão é ilustrativa desse fenômeno, uma vez que, até 2002, apenas a capital maranhense dispunha de 2 cursos de medicina: o primeiro em uma universidade pública e outro em uma IES privada. O estado não formava mais do que 100 médicos por ano naquele período. Vinte anos depois, a capital ganhou mais um curso e ampliou as vagas nos já existentes, perfazendo um total de 249 vagas anuais. Por sua vez, o interior foi beneficiado com a abertura de diversas faculdades públicas e privadas. Sete municípios (Imperatriz, Caxias, Bacabal, Santa Inês, Açailândia, Codó e Pinheiro) já oferecem nove cursos de medicina. Assim, o estado saltou de 100 para aproximadamente 759 vagas de medicina em menos de duas décadas, dos quais apenas 33% são ofertados em São Luís. A ampliação não parece ter chegado ao seu limite, uma vez que pedidos de abertura de novos cursos de medicina e a ampliação das vagas nos já existentes esperam autorização do MEC.
A fixação dos médicos fora da capitail
Ao longo da última década muitas críticas foram destinadas ao PMM, e as mais severas vieram justamente dos órgãos que representam a classe, como os Conselhos Federais e Regionais de Medicina, que alardeavam que a criação de cursos no interior do Brasil não garantiria a fixação desses profissionais fora das capitais ou mesmo fora das regiões mais desenvolvidas do Brasil, como o Sudeste. As críticas também recaíram sobre a abertura de cursos nos pequenos municípios. Nesse caso, argumentava-se que a falta de profissionais para compor o corpo de professores desses cursos impactaria diretamente na má formação dos novos profissionais. As críticas tiveram pouco efeito nas decisões do MEC e a interiorização dos cursos de medicina é uma realidade consolidada em muitas partes do Brasil.
O PMM e o Programa Médicos Pelo Brasil, que manteve praticamente intacta a estratégia supracitada de ampliar o número de profissionais no país, vêm criando um importante exército industrial de reserva dessa mão de obra, que já não encontra nos grandes centros urbanos — alguns já saturados — espaço para trabalhar. Sobretudo para os recém-formados, sem residência médica, que carregam grandes dívidas financeiras com sua formação, as pequenas e médias cidades se mostram bons locais para construir uma carreira médica e, ainda, auferir maiores margens de retorno financeiro, seja porque os municípios menores pagam valores maiores, seja porque existe uma demanda reprimida e os profissionais conseguem trabalhar mais horas semanalmente. Os dados colhidos no DATASUS revelam que são os recém-formados que estão ocupando as vagas abertas pelas prefeituras das pequenas e médias cidades maranhenses. Desse modo, a interiorização da classe médica como estratégia do PMM está se dando, em parte, pela saturação do mercado de trabalho nas capitais.
Em 2020, São Luís, possuía uma razão de 4,88 médicos/1.000 hab, número bem acima do preconizado pela OMS e pelo SUS (2,5), e o restante do estado padecia com apenas 0,38 médico/1.000 hab distribuídos de forma muito desigual entre municípios médios e pequenos (SCHEFFER, 2020).
Historicamente, as pequenas e médias cidades maranhenses, semelhante ao que ocorre em todo o Nordeste, sofriam com a falta de médicos nas unidades de saúde pública, UPAs, hospitais e postos de saúde na zona urbana e, sobretudo, na zona rural. A falta de clínicas e consultórios privados nessas localidades também era uma realidade. À medida que os cursos abertos pelo PMM começam a lançar novos profissionais, as vagas ofertadas pelas prefeituras são preenchidas o que trás alívio, pois diminui a pressão popular sobre os políticos por serviços de saúde.
Os dados do DATASUS analisados por nós das cidades de Caxias, Imperatriz, Timon, Bacabal, Santa Inês e Açailândia indicam que, embora nem todas as equipes de saúde desses municípios possuam médicos, as vagas abertas pelas prefeituras estão todas preenchidas ou são rapidamente ocupadas à medida que surgem. Assim, nessas cidades, pode até haver problemas de recursos para contratar profissionais ou recusa dos gestores em abrir novas vagas, mas não faltam profissionais para ocupá-las seja nas sedes dos municípios ou nas localidades mais distantes. Esse fato tem impacto nas cidades vizinhas de menor porte, que absorvem a mão de obra excedente dos centros urbanos maiores. Isso foi observado quando cruzamos os dados do DATASUS dos médicos atuantes nas cidades estudadas e nas cidades vizinhas.
O perfil dos novos médicos e a remuneração fora da capital
Quanto ao perfil dos médicos encontrados nessas cidades, o cruzamento de dados da plataforma DATASUS indica que as pequenas e médias cidades maranhenses abrigam majoritariamente médicos recém-formados, sem residência (especialização). Sobre isso, uma médica de Barra do Corda nos relatou:
Fazer residência médica seria ótimo, mas pro tipo de trabalho que a gente realiza aqui é pouco útil. Eu, por exemplo, trabalho em Fernando Falcão e Jenipapo dos Vieiras, municípios muito pequenos. Lá realizamos procedimentos simples em 90% dos atendimentos. Eu vou deixar de ganhar dinheiro fazendo uma residência que não vai me servir no meu dia a dia? Digamos que eu seja aprovada em uma residência em oncologia, que é o que eu sempre gostei na faculdade. Pra fazê-la, eu preciso migrar pra uma capital, vou perder meus vínculos aqui e minha renda e ainda vou gastar uma fortuna com o custo de vida porque a bolsa não cobre todas as minhas despesas em São Paulo, por exemplo. Depois de 4 anos, terminei, onde eu vou atuar? Vou ter que sair de minha cidade, pra morar em uma capital pra poder trabalhar. É mais gasto e ainda vou ficar longe de minha família. Você entende? Eu vou ter que desorganizar minha vida toda (Entrevista médica S. N. F. 14/02/2022).
As entrevistas sugerem que a escolha por atuar nas pequenas cidades maranhenses é guiada por questões como: rápido retorno financeiro, atendimento básico e, em alguns casos, o conforto de morar próximo dos familiares. Ao mesmo tempo, já se verifica o medo de alguns profissionais em perder seus vínculos de emprego com prefeituras com a constatação da chegada de novos profissionais a cada dia. Assim, a realização da residência vai sendo postergada. Uma médica residente na cidade de Esperantinópolis nos relatou:
Optei pelo interior porque o atendimento nessas cidades é básico. É atendimento de posto de saúde, sem grandes complexidades. Mesmo o atendimento nas UPAS no interior é básico em 90% dos casos. Pra gente que tá começando agora é bom pra ir ganhando experiência. Isso é diferente de você encarar uma UPA na capital ou em um socorrão (Entrevista médica A. M. N. 10/01/2022).
Outro entrevistado complementa:
Além do atendimento ser mais simples, o retorno financeiro é maior. Aqui no interior a gente tá dentro de casa, gasta pouco, o custo de vida é mais baixo. Eu, por exemplo, moro com meus pais em Bacabal. Dois dias eu fico em Esperantinópolis, um dia em Lago da Pedra, um dia em Pedreiras, dois dias em Lago dos Rodrigues. Tudo pertinho. Você tem vontade de fazer residência? Nesse momento não. A bolsa não compensa, embora dê pra fazer uns plantões por fora pra complementar a renda. Eu vou ter que sair da minha cidade, perder meus contratos, vou deixar de ganhar dinheiro e não vai me dar um retorno esperado. Aqui é bom, os prefeitos te tratam bem, pagam direitinho, não tem aquele stress de socorrão e UPA de capital e no fim de semana a gente tá em casa (Entrevista médico R. A. S. 10/01/2022).
Quanto à remuneração, encontramos algumas modalidades existentes, dentre as quais a mais comum é o pagamento por plantão. Em 2022, a Empresa Maranhense de Serviços Hospitalares (EMSERH) — uma empresa pública responsável pela gestão de mais de 85% das unidades de saúde pública do Governo do Estado, portanto a maior empregadora dessa mão de obra no Maranhão — contratava esses profissionais (contratos temporários) e os valores pagos entre capital e interior variava de 2.000,00 a 2.200,00 reais por plantão de 24h, de 800,00 a 1.200,00 por plantão de 12h e de 500,00 a 600,00 reais por plantão de 6h. Os valores maiores eram pagos nas cidades do interior do estado e visavam incentivar a interiorização dessa mão de obra nas regiões mais distantes da capital. Médicos especialistas são melhor remunerados pela EMSERH e já chegaram a receber mais de 3.000 reais por plantão, mas os valores vêm caindo nos últimos anos.
Nos últimos 5 anos, a EMSERH optou por fazer licitações, terceirizando para empresas ou cooperativas a contratação desses profissionais. Ao optar por essa nova forma de contratação, a EMSERH se aproveita do excesso de mão de obra médica e pode pagar menos pelos serviços médicos. As empresas vencedoras ficam responsáveis pela subcontratação de médicos generalistas e especialistas para atuarem nos hospitais macrorregionais do estado. A concorrência entre as empresas para ganhar as licitações promove a diminuição do valor pago aos profissionais médicos.
A partir do levantamento de dados da folha de pagamento colhidos junto às prefeituras de cidades como Caxias, Timon e Imperatriz, por exemplo, onde não há escassez de mão de obra médica, percebeu-se, por um lado, uma tendência à redução nos valores pagos pelos entes públicos pelos serviços médicos e, por outro, maior fiscalização sobre os serviços prestados por esses profissionais nos plantões nas unidades de saúde. Assim, médicos que insistem em faltar aos plantões ou não cumprir integralmente as jornadas de trabalho contratadas, ou que são denunciados pela população por maus serviços prestados, podem e têm sido demitidos nessas localidades.
Isso não se aplica com a mesma frequência àqueles que possuem especialidades. Como constatado, os profissionais com residência médica recebem maiores valores pelos plantões e podem ter um pouco mais de “regalias” por parte dos agentes contratantes, que terão dificuldades de encontrar mão de obra na região que substitua aquela especialidade perdida.
Em alguns pequenos municípios localizados no Maranhão mais profundo, a situação da falta desses profissionais é tão dramática que a lei da oferta e da procura ainda favorece a classe médica, sendo constatadas, ainda, remunerações muito acima do praticado no mercado. Assim, a secretária municipal da saúde de São Mateus, uma pequena cidade localizada a 200 km de São Luís, nos informou que em 2022 a prefeitura precisou diminuir o valor do plantão de 24h dos médicos generalistas de 3.000,00 para 2.000,00. No entanto, manteve os 10.000, reais de salário pagos ao psiquiatra que vem da capital uma vez por semana para atender a população. Ela justifica o salário mais elevado pago a esse profissional em razão da dificuldade de encontrar essa especialidade a disposição para contratar.
A constituição de um mercado privado de assistência à saúde fora da capital
Um fenômeno sociológico relevante encontrado ao longo da pesquisa foi a expansão do mercado privado de assistência à saúde nas médias cidades maranhenses, como as já mencionadas aqui. Muitos municípios situados às margens das principais rodovias federais que cortam o estado de norte a sul e leste a oeste têm vivido um bum de abertura de clínicas particulares, maternidades e pequenos hospitais privados de média ou baixa complexidade que concorrem ou colaboram com os serviços públicos no atendimento da população. Esse crescente setor consegue atender a uma diminuta, mas existente, classe média e alta residente ali, que também demanda por tais serviços, porém se recusa a buscar o setor público para ser atendida.
O aparecimento desses estabelecimentos é resultado, em parte, de investimentos privados de médicos que conseguiram acumular algum capital ao longo da vida e, agora, tentam compatibilizar as carreiras de profissionais liberais e empresários no ramo de saúde. Mas eles não estão sozinhos nesse mercado: concorrem com pequenos e médios conglomerados empresariais e financeiros sediados em cidades como Teresina e São Luís que já atuam no setor e enxergaram nas médias cidades maranhenses um potencial de ampliar seus negócios e auferir elevado retorno de seus investimentos. Cidades de porte médio como as mencionadas, se tornaram economicamente interessantes para o desenvolvimento desse setor, funcionando como polos para onde migram clientes de dezenas de cidades menores em busca de tratamentos médicos.
Compõe o quadro de mudanças o recente interesse de alguns planos de saúde, como a Hapvida, Unimed e Humanas, só para indicar alguns, em comercializar seus produtos nessas localidades. O interior do Maranhão nunca foi economicamente interessante para o setor de planos de saúde e seguros de vida, no entanto, com o aparecimento das clínicas particulares e as parcerias estabelecidas entre elas e os planos de saúde, esse mercado cresce significativamente, atingindo novos públicos. Sobre isso, o gestor de uma empresa que comercializa esses produtos nos informou:
Não é fácil comercializar planos de saúde no interior do estado, mas aos poucos nós vamos avançando. Existe o problema da falta da cultura de se ter plano de saúde, mas principalmente o problema da falta de uma rede de assistência que esteja perto dos clientes. Com a abertura de clínicas privadas e maternidades em cidades como Imperatriz, Caxias, Bacabal e as parcerias que elas estão fazendo com os planos de saúde e os médicos, nosso trabalho tem prosperado (Entrevista L. M. J 17/05/2022).
Tais mudanças em curso têm relação direta com os efeitos do PMM e sua estratégia de longo prazo de ampliar a mão de obra médica em escala nunca vista no país. Esse pequeno exército industrial de reserva que não deve parar crescer atende ao serviço público, mas também aos empreendimentos privados, que passam a dispor localmente dessa mão de obra ou se beneficiam daqueles profissionais que estão sendo obrigados a se deslocar das capitais ou dos centros urbanos maiores até os municípios menores em busca de negociar sua força de trabalho.
Essa mão de obra médica sediada ou nas capitais ou nas médias cidades maranhenses faz uso das principais rodovias que cortam o estado para chegar às pequenas cidades onde ainda é abundante a clientela demandando por serviços especializados e disposta a pagar um pouco mais por consultas. Sobre isso, um médico entrevistado em Barra do Corda nos respondeu:
Sou médico cardiologista, me formei em 2018. Atendo aqui há um pouco mais de sete meses. Venho uma vez por semana. Todas as consultas são particulares, o que é ótimo pra gente. (…) Em Teresina, onde resido, 90% das consultas são por meio de planos de saúde. E plano, você sabe, paga uma mixaria. Aqui. Consultou, recebeu. Tudo certo. Estou satisfeito. (...) Não posso reclamar do que recebo aqui. A viagem é cansativa, são 300 km de distância e a estrada tá esburacada, mas é só uma vez por semana. Eu fico um pouco mais de 24h fora de casa e ganho mais do que 3 dias de trabalho em Teresina, trabalhando pra plano de saúde (Entrevista médico. T. F. R 15/01/22).
A capital piauiense (Teresina) é uma importante fornecedora de médicos para as cidades que ficam no leste e no centro do estado do Maranhão. Esses profissionais usam as BRs 316 e 226, que dão aceso rápido e fácil a diversos municípios maranhenses; médicos piauienses entram mais de 300 km Maranhão adentro em busca de clientes. Os médicos residentes na capital maranhense seguem o fluxo da BR-135, atendendo diversos municípios às margens ou próximos dessa rodovia por mais de 200 km. Por seu lado, Imperatriz vive uma situação de estar equidistante pelo menos 600 km das capitais mais próximas (São Luís, Palmas e Belém). Essa questão geográfica beneficiou a cidade, transformando-a no maior polo regional de oferta de serviços de saúde, sobretudo, depois que passou a abrigar três cursos de medicina. Os médicos residentes em Imperatriz atuam em mais de duas dezenas de cidades próximas. Ela própria recebe um número significativo de médicos especialistas vindos de Belém, São Luís, Brasília e São Paulo que contam com clientela constante. Esse fato tende a criar um ciclo virtuoso de crescimento do mercado privado de assistência à saúde naquela cidade, impulsionando o aparecimento e o crescimento de dezenas de clínicas privadas.
Conclusão
A falta de médicos no Maranhão ainda é uma realidade, e ganha contornos dramáticos quando se analisa a situação das pequenas cidades mais distantes das zonas urbanas e das principais rodovias federais. Todavia, o recente aumento do contingente médico promovido pelo PMM tem beneficiado o setor público e o privado de assistência à saúde não somente na capital como também no interior do estado.
Os dados colhidos ao longo da pesquisa revelam que, nos médios centros urbanos do Maranhão, localizados às margens das principais rodovias federais que cortam o estado, como os já mencionados, mais de 87% das funções médicas (médicos generalistas) abertas pelo setor público estão preenchidas (UPAs, prontos-socorros, postos de saúde, hospitais e clínicas). O cruzamento dos dados revela, ainda, que centenas de médicos recém-formados escolheram essas cidades para residir ou trabalhar e circulam ao longo da semana pelas rodovias federais, se deslocando de cidade em cidade, ofertando sua força de trabalho, e são eles que preenchem as vagas abertas pelos setores público e privado, aliviando, em parte, a pressão social por serviços médicos.
O estado se beneficia da ampliação dessa mão de obra e, nos últimos anos, construiu hospitais, maternidades e clínicas de média complexidade em diversas regiões do território maranhense, ampliando a ofertando de serviços médicos à população. Essa rede pública nova e expandida é gerenciada por uma empresa estatal, a EMSERH, que vem imprimindo uma racionalidade da gestão dos recursos públicos destinados à saúde (CARREIRO e CARREIRO, 2022). A EMSERH tem adotado modelos administrativos e gerenciais semelhantes às empresas privadas, primando pelo baixo custo, alta produtividade e salários baixos, de modo a esticar os recursos do Estado e a amenizar parte do drama da falta assistência à saúde no território maranhense. Nesse processo, a classe médica sente a diminuição paulatina do retorno financeiro de seus serviços prestados.
A rede privada percebeu, por um lado, o gargalo da falta da oferta de serviços médicos e encara o interior do Maranhão como uma grande oportunidade de empreender e lucrar. Empresários do setor hospitalar se beneficiam do aumento de profissionais especialistas recém-diplomados, que, ao encontrarem o mercado de saúde saturado nas capitais (São Luís e Teresina), se veem obrigados a viajar Maranhão adentro em busca de trabalho.
As pesquisas sugerem, ainda, que os planos de saúde também começam a interiorizar suas atividades, tentando captar clientes e credenciar clínicas e hospitais privados nas médias cidades maranhenses. Esta parece ser uma nova fronteira para a ampliação de lucros desse setor. Ele tem se beneficiado da expansão do setor privado fora das capitais, bem como da expansão do número de profissionais no mercado advinda do PMM.
O país como um todo e o Maranhão em particular têm sido beneficiados com o PMM. Ele tem promovido uma diminuição do número de munícios com escassez de médicos, diminuiu ainda a desigualdade na distribuição de médicos entre municípios e regiões do país. A ampliação dessa mão de obra tem efeitos importantes na melhora geral dos indicadores de saúde do país, destaque para: ampliou o número de equipes de saúde da família, melhora nos níveis de saúde da população, redução das desigualdades em saúde, maior eficiência do cuidado, melhora da garantia do direito a saúde e cobertura universal em saúde. Um dado adicional merece menção: foram constatadas mudanças significativas na diminuição dos números de internações por condições sensíveis a atenção primária (ICSAP)7 um importante indicativo do desenvolvimento social na saúde com repercussões em outros setores da sociedade.
Não restam dúvidas de que a economia das médias cidades maranhenses está sendo afetada positivamente pela instalação de clínica e pequenos hospitais de média e baixa complexidade. Empregos são gerados, pacientes migram de outras cidades em busca de tratamento, o comércio local é movimentado.
Quando concentramos a análise na situação dos trabalhadores médicos, a realidade é mais sensível e não tão positiva assim. Constatou-se a criação de uma hierarquia dentro da profissão médica com efeitos econômicos entre aqueles que possuem especialização e os médicos generalistas. Assim, médicos especialistas estão concentrados nas capitais e atuam na saúde pública e privada, mas são acessados mais facilmente, por aqueles que conseguem pagar. Como as capitais concentram uma grande quantidade desses profissionais, os serviços públicos são beneficiados e conseguem preencher parte de sua rede com essa mão de obra. Tais profissionais recebem, em média, 50% a mais do que o médico generalista pelo plantão quando a demanda é pela sua especialidade. Não obstante, as filas por uma consulta persistem na saúde pública, podendo demorar meses para se concretizar a depender da especialidade. Para milhões de maranhenses, ainda são exigidos deslocamentos, que podem ser muito longos, em direção à capital ou aos hospitais macrorregionais e clínicas especializadas criados durante a gestão do governo Flávio Dino (2013-2022).
Por outro lado, os médicos generalistas, a mão de obra que mais cresce atualmente no campo da medicina, é a que mais sofre para entrar no mercado e a que recebe menos. Esses profissionais já começam a se engalfinhar por postos de trabalho nas capitais e nos médios centros urbanos do estado, e muitos são obrigados a aceitar emprego nos pequenos e médios municípios, localizados a centenas de quilômetros de onde moram, enfrentando estradas esburacadas e condições insalubres ou inadequadas de trabalho. Ou é isso ou o desemprego.
O PMM, com sua estratégia de ampliar, como nunca antes na história deste país, o número de faculdades de medicina — e, por conseguinte, de profissionais formados — trouxe algum avanço na resolução do histórico gargalo que é a prestação de serviços de saúde à população mais carente, mais ainda está longe de concretizar o contido na Carta Magna, que é garantir o direito à saúde a todo cidadão. As pesquisas até aqui sugerem que o acesso aos serviços médicos está sendo democratizado na capital e nas médias cidades maranhenses. O mesmo não é observado quando se busca certas especialidades que continuam com traços elitistas. Sem sombra de dúvidas, a falta de médicos especialistas é o novo gargalo a ser resolvido pelo estado brasileiro. Em todo o país, mas principalmente nas regiões Norte e Nordeste faltam médicos especialistas. Nesse quesito, o Maranhão ocupa o último lugar entre todos os estados da federação com menor número de especialistas (SCHEFFER, 2023: 135)
A revolução em curso no mercado de trabalho médico parece ter efeitos irreversíveis para essa categoria profissional, dentre os quais merecem menção a diminuição do retorno financeiro pelos serviços prestados, o aumento da concorrência pelos postos de trabalho, o aumento da instabilidade no emprego, a pressão para o cumprimento de metas e a própria fragilização da categoria frente a empregadores públicos ou privados em sua capacidade de reivindicar melhores condições de trabalho, melhores salários, etc. Não se enxergam, no horizonte, possibilidades de alteração desse quadro, pelo contrário, a abertura de novos cursos e vagas, aponta para a intensificação da precarização.
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Notas