Resumo: O presente artigo objetiva discutir a formação socioespacial da região Oeste de Santa Catarina a partir do âmbito cultural, analisando a presença de antigas salas de cinema de rua ao longo do século XX. Este território tem sua formação marcada por conflitos e processos sociais que resultaram em uma rede de pequenas cidades ruralizadas e, posteriormente, voltadas ao agronegócio. As salas de cinema aparecem nestas cidades marcadas pelo rural e se desenvolvem em sua transição para cidades do agronegócio, conformando um notável sistema de lazer e sociabilidade urbana. Inicia-se apresentando a formação moderna deste território, relacionando-a com as primeiras experiências de exibição cinematográfica. Em seguida, relaciona-se a gênese da economia agroindustrial na região, e sua posterior hegemonia, com a instalação de infraestruturas de transporte, energia e comunicação, resultando então, em um cenário propício para multiplicação intensa de cinemas. A hipótese trabalhada é de que a análise do desenvolvimento destas pequenas cidades, com base nas nuances explicitadas pelos processos de funcionamento destes espaços, e nas dinâmicas por eles proporcionadas, pode configurar as salas de cinema como pontos demarcadores dos diferentes momentos econômicos e sociais. As bases de dados foram estruturadas a partir de entrevistas, buscas em acervos históricos e na web, além de bibliografias fundamentais para o assunto, as quais foram relacionadas com o intuito de conformar um corpo textual que apresente e discuta as contribuições teóricas.
Palavras-chave: Salas de cinema de rua, Pequenas cidades, Oeste de Santa Catarina, Desenvolvimento Regional.
Abstract: This paper aims to discuss the socio-spatial formation of the West region of Santa Catarina from the cultural scope, analyzing the presence of old street movie theaters throughout the twentieth century. This territory has its formation shaped by conflicts and social processes that resulted in a network of small rural towns and, later on, cities focused on agribusiness. The movie theaters appear in these rural towns and develop in their transition to agribusiness cities, forming a remarkable system of urban entertainment and sociability. It starts by presenting the modern formation of this territory, associating it with the first experiences of cinematographic exhibition. Then, it is linked to the genesis of the agro-industrial economy in the region, and its subsequent hegemony, with the installation of transportation, energy, and communication infrastructures, resulting in a suitable scenario for the intense multiplication of movie theaters. The worked hypothesis is that the analysis of the development of these small cities, based on the particular details explained by the operating processes of these spaces, and on the dynamics provided by them, can configure the movie theaters as marking points of different economic and social moments. The data bases were composed based on interviews, research on historical archives and on the web, as well as on fundamental bibliographies for the theme, which were then related in order to create a textual structure that presents and discusses these theoretical contributions.
Keywords: Street movie theaters, Small towns, West of Santa Catarina, Regional development.
Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo discutir la formación socioespacial de la región Oeste de Santa Catarina a partir del campo cultural, por medio del análisis de la presencia de antiguos cines de calle a lo largo del siglo XX. Este territorio tiene su formación marcada por conflictos y procesos sociales que resultan en una red de pequeñas ciudades rurales y, posteriormente, volcadas al agronegocio. Los cines emergen en estos poblados campesinos y se desarrollan en su transición a ciudades agroindustriales, conformando un notable sistema de entretenimiento y sociabilidad urbana. Se empieza presentando la formación moderna de este territorio, relacionándola con las primeras experiencias de exhibición cinematográfica. Luego, se relaciona la génesis de la economía agroindustrial en la región, y su posterior hegemonía, con la instalación de infraestructuras de transporte, energía y comunicación, resultando así, un cuadro propicio para la intensa multiplicación de salas de cine. La hipótesis es que el análisis del desarrollo de estas pequeñas ciudades, a partir de los matices explicitados por los procesos de funcionamiento de estos espacios, y de las dinámicas aportadas por ellos, puede configurar a los cines como puntos demarcadores de diferentes momentos económicos y sociales. Las bases de datos se formaron a partir de entrevistas, búsquedas en colecciones históricas y en la web, además de bibliografía fundamental para el tema, que se relacionaron para conformar un cuerpo textual que presente y discuta esta contribución teórica.
Palabras clave: Cines callejeros, Ciudades pequeñas, Oeste de Santa Catarina, Desarrollo regional.
Urbanização, Pequenas Cidades e Desenvolvimento Territorial
A cultura na formação socioespacial: a presença de salas de cinema de rua nas pequenas cidades do Oeste de Santa Catarina ao longo do século XX
Culture in the socio-spatial formation: the presence of street movie theaters in the small towns of the West of Santa Catarina throughout the 20th century
La cultura en la formación socioespacial: la presencia de cines callejeros en pequeñas ciudades del Oeste de Santa Catarina a través del siglo XX
Recepción: 27 Abril 2023
Aprobación: 01 Noviembre 2023
O presente artigo objetiva discutir a formação socioespacial da região Oeste de Santa Catarina a partir do âmbito cultural, analisando a presença de antigas salas de cinema de rua ao longo do século XX. Esta região é composta por pequenas cidades polarizadas pela capital regional Chapecó. O estado é dividido pelo IBGE (1990)1 em seis mesorregiões, e, na atualidade, 40% dos municípios catarinenses localizam-se no Oeste. São 118 cidades, de um total de 295 núcleos urbanos, aglutinados na porção ocidental desta unidade da federação (SANTA CATARINA, 2012).
Porém, na área estudada, estas “cidades”, em sua gênese, não apresentavam características fundamentalmente urbanas, aproximando-se mais de agrupamentos com equipamentos básicos como as igrejas e escolas, para onde os camponeses dirigiam-se desde suas glebas. Eram, portanto, cidades rurais, cidades no campo, que mais tarde, transformam-se em cidades do campo (SANTOS, 1988, 1993, 1996), adquirindo um caráter urbanizado, em paralelo à implantação da lógica agroindustrial sobre o espaço, a qual passa a possuir prevalência sobre os processos de desenvolvimento do local. Santos (2014), ao buscar uma classificação das cidades brasileiras, defende a alcunha de cidade local, para descrever as aglomerações que comumente seriam denominadas de cidades pequenas, como as encontradas no Oeste Catarinense. Para o autor, as cidades locais têm função polarizante, que atrai moradores e habitantes de territórios próximos. São caracterizadas como a dimensão mínima de agrupamentos urbanos, onde as atividades primárias deixam de ser as únicas a serem atendidas, e os serviços passam a priorizar às necessidades imediatas da população, processo este que é testemunhado também, a partir da instalação das salas de cinema no território estudado. Por fim, afirma que estas cidades são fundamentais para a expansão do acesso da população à bens e serviços, mesmo que a valores mais altos, os quais ocorrem como consequência de sua localização periférica no sistema urbano.
Ao longo de sua formação, a região Oeste passou por diversos conflitos relacionados à sua posse, inicialmente com a Argentina, no fim do século XIX, e, mais tarde, com o Paraná, no início do XX. Teve sua extensão cortada por uma via férrea na década de 1900, que possibilitou a exploração desenfreada das matas locais e posterior venda de lotes à migrantes descendentes de europeus nos anos 1920. Ainda, foi motivo e palco da Guerra do Contestado, e, quando a disputa chegou ao fim em 1917, iniciou-se um tardio processo de urbanização, onde inauguraram-se as primeiras salas de cinema. Durante os anos 1930, movimentos de reforma urbana baseados nas teorias higienistas foram testemunhados, e, ao longo das décadas de 1940 e 1950, a economia extrativista entrou em declínio, dando lugar à gênese e posterior expansão agroindustrial, a qual além de ser resultado da implantação de infraestruturas de transporte, energia e comunicação, é vetor também de sua multiplicação. É neste cenário de transição da economia madeireira e dos costumes rurais para a economia agroindustrial voltada à dinâmicas urbanas, que o número de salas de cinema em funcionamento simultâneo aumentou, e atingiu seu ápice.
Com base na estreita conexão percebida entre as dinâmicas descritas anteriormente e as salas de cinema, o presente texto busca relacionar estes espaços, sinônimos do cosmopolitismo, vistos por Charney e Schwarz (2004) como combinação completa dos atributos da modernidade, com a configuração urbana representada pelas pequenas cidades da região. Em primeira análise, esta união parece improvável, porém, foram encontradas pela pesquisa, 62 salas de cinema de rua no Oeste ao longo do século XX. Salas que inicialmente (até a década de 1950) exprimem o ambiente rural a partir de sua arquitetura simplória, em cidades que buscavam a urbanização, porém fortemente tomadas pelo contexto rural de seu entorno, eram centros ruralizados. Apresentavam sua economia fortemente atrelada à agricultura e pecuária de sua hinterlândia, com grande influência da cultura campesina (ESPÍNDOLA, 1996), a qual também é refletida no cinema, atividade que em outros contextos, comumente expressava laços estreitos com o cosmopolitismo e a ideia de um mundo urbanizado. Ainda que as edificações implantadas no Oeste Catarinense se esforcem para representar uma ideia de modernidade e tecnologia, seja objetivando segregar classes, ou seja para alinhar-se à novidade que era o Cinema, a conjuntura local e o público das salas seguia sendo rural, e exercendo forte influência tanto nas salas de exibição, parte delas construídas em madeira, quanto nas películas ali apresentadas, em que se destacam os filmes de atuação e direção de Mazzaropi e Teixeirinha, onde o cenário campesino frequentemente está presente.
Na segunda onda de abertura de salas, ligada à fase agroindustrial da economia (a partir da década de 1960), as cidades amadureceram e assim, os cinemas adequaram-se à nova conjuntura, em edificações construídas especificamente para a função, as quais apresentam estilemas do Ecletismo, Art Déco e do Modernismo. Berman (2007) afirma que a sétima arte tem o poder de aliar a modernização, no sentido da produção tecnológica, com o modernismo, no sentido de superestruturas culturais. Assim, estes espaços passam a auxiliar na construção de uma imagem urbana, almejada por ser sinônimo de progresso.
As salas de cinema aparecem nestas cidades marcadas pelo rural, e se desenvolvem em sua transição para cidades do agronegócio (ELIAS, 2022), conformando um notável sistema de lazer e sociabilidade urbana. A hipótese aqui trabalhada, portanto, é de que a análise do desenvolvimento destas pequenas cidades, com base nas nuances explicitadas pelos processos de funcionamento destes espaços de exibição, e nas dinâmicas por eles proporcionadas, pode configurar as salas de cinema como pontos demarcadores dos diferentes momentos da formação socioespacial do Oeste. A formação socioespacial, de acordo com Santos (2014), baseia-se no entendimento das diferentes dinâmicas da constituição do espaço com base na conjunção das esferas econômicas, sociais, políticas e culturais, como uma totalidade. Trata não da sociedade em geral, mas sim das diferentes sociedades conformadas de acordo com as variadas formas geradas pela realização dos modos de produção no espaço. Pretende-se então, observar a região estudada, a partir de diferentes momentos temporais, transformações socioespaciais, e consequentes alterações nas formas de entretenimento, acesso e democratização da cultura, representada aqui pelas salas de cinema de rua.
Para estabelecer tal discussão, apresenta-se a formação moderna deste território, relacionando-a com as primeiras experiências de exibição cinematográfica. Em seguida, associa-se a gênese da economia agroindustrial na região, e sua posterior hegemonia, com a instalação de infraestruturas de transporte, energia e comunicação, resultando então, em um cenário propício para multiplicação intensa de cinemas. As bases de dados foram estruturadas a partir de entrevistas, buscas em acervos históricos e na web, além de bibliografias fundamentais para o assunto, as quais foram relacionadas com o intuito de conformar um corpo textual que apresente e discuta as contribuições teóricas.
O atual território entendido como Mesorregião Oeste Catarinense (IBGE, 1990) passou por diversos conflitos e transformações através de seu processo de formação socioespacial. Santos (1973) apresenta indícios de que os primeiros caçadores e coletores adentraram esta região a partir do Vale do Rio Uruguai, em um movimento de oeste para leste, partindo de onde na contemporaneidade se situa a Argentina. A partir do século XVIII, tropeiros e bandeirantes passam a cruzar a região, atividade que vem a consolidar o chamado Caminho das Tropas, que acontece objetivando o transporte de gado desde o Rio Grande do Sul à Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Esta rota conta com paradas para repouso, que se consolidam e, mais tarde, ao longo do século XX, configuram-se como cidades, como Campo Erê (CAMPO ERÊ, 2013). É interessante ainda ressaltar que como testemunha da forte presença de povos originários no território, muitas das atuais cidades trazem nomes provenientes de idiomas dos grupos Xokleng, Kaingang ou Guarani que ali viviam (SANTOS, 1973), como Xanxerê; Chapecó; Tangará; Itapiranga e Cunha Porã.
Enquanto isso, a Coroa Portuguesa caracterizou estes espaços como “terras devolutas”, entendendo que estavam vazias e carentes de colonização e incentivou a apropriação do espaço para cultivo e estabelecimento de limites territoriais mais precisos. Por conta da parca conexão do Oeste Catarinense com o litoral e, portanto, das cidades, onde o modo de vida é disciplinado por Estado e Religião, os primeiros habitantes não indígenas da região conformaram a etnia hoje entendida como cabocla. Esta população, classificada então como inadequada ao modo de vida urbano e “civilizado”, era composta por descendentes de portugueses, paulistas, pessoas escravizadas, ou recentemente libertas, indígenas destribalizados e europeus (MARTINS; WELTER, 2019). Iniciam-se assim interações comerciais entre tropeiros e caboclos, os quais passam a comercializar o excedente de sua produção com os viajantes, consolidando ainda mais os pontos de parada e as rotas mercantis, de tal forma que, atualmente, diversas rodovias como a BR-116 e a BR-101 sobrepõem estes percursos (Figura 1)
Além disso, os ervais, agrupamentos da espécie Ilex paraguariensis a erva-mate, foram de fundamental importância para a valorização econômica da região, pois o produto passa a ser extraído para comercialização com os países vizinhos (BRANDT; SILVA, 2014). Como consequência, reacende-se o conflito entre Brasil e Argentina, pela posse destas terras. Assim, embates judiciais passam a acontecer na segunda metade do século XIX, os quais só vêm a resolver-se em 1897, com arbitragem externa dos Estados Unidos, que decide a questão em favor do Brasil (PERTILE, 2008). Rocha (2004) demonstra que a deliberação de Grover Cleveland apresenta curiosa ligação com a posterior exploração deste território pelo empresário estadunidense Percival Farquhar, pois, neste mesmo início de século, discutia-se com avidez a possível implantação de uma estrada de ferro, ligando o sudeste brasileiro com a produção animal do Rio Grande do Sul, substituindo as rotas tropeiras e atravessando o Oeste Catarinense (Figura 1).
Com esta probabilidade de passagem de uma via férrea, modernizando e integrando a região, novamente a área correspondente ao Oeste Catarinense é motivo de confronto, pois desde sua integração em território nacional, figurava como parte do estado do Paraná. Iniciam-se assim, mais embates judiciais em relação à posse. Ao mesmo tempo, o Governo Brasileiro, ao entender a fundamental necessidade de integração do Sul do país, porém sem possuir recursos financeiros para obra de tamanha magnitude representada pela ferrovia, concede aos investidores interessados na construção, 15km de terras de cada lado da linha férrea a ser instaurada. Visando então um maior lucro em sua empreitada, o projeto é elaborado com um elevado número de sinuosidades, aumentando sua extensão e assim, a quantidade de terras cedidas aos empresários. Em 1908, a via é incorporada à Brazil Railway Company, uma holding administrada pelo empresário estadunidense Percival Farquhar (PERTILE, 2008; SANTOS, 2000).
Em Santa Catarina, os trilhos seguem os diversos meandros do Rio do Peixe, logo, uma grande porção territorial é concedida à Farquhar, que, inicialmente, expulsa os habitantes que ali viviam com uso de violência e repressão, e passa então a explorar a madeira das matas locais (MACHADO, 2001). A matéria prima é tão abundante, que o empresário inaugura a Southern Brazil Lumber & Colonization Company, em Três Barras, no Norte Catarinense. Esta era uma subsidiária da companhia principal, a Brazil Railway, e estima-se que durante seu período de atuação, a Lumber, como era conhecida, foi a maior serraria da América do Sul. Neste cenário de ascensão econômica, surge o Cine Lumber, possivelmente a primeira sala de cinema de Santa Catarina, em 1914. Este cinema encontrava-se dentro do complexo da serraria, que possuía 60 hectares, com 214 casas abastecidas com água encanada e energia elétrica, além de quadra de tênis, exclusiva para os diretores e seus filhos. O cinema objetivava o entretenimento dos funcionários da empresa, funcionando em um galpão de madeira, com 250 lugares (MUNARIM, 2019).
Quando da conclusão da ferrovia, o grande contingente operário participante da obra fica desempregado, além de impedido por Farquhar de utilizar dos serviços da via férrea que ajudaram a construir (SANTOS, 2000). O Oeste Catarinense passa, no início do século XX, por diversas violências infligidas pelas iniciativas do empresário norte-americano ao espaço e seu povo. Inicialmente por conta do desmatamento da mata atlântica, que servia de subsidiária para a alimentação e gerava renda aos habitantes, seguido da desocupação forçada e violenta de suas terras, e, por fim o desemprego e a obsolescência de seu sistema econômico baseado no comércio com os tropeiros. Estas condições formaram o cenário propício para uma revolta, que veio a se tornar a Guerra do Contestado. O conflito acontece entre 1912 e 1915, envolvendo mais de vinte mil pessoas, desde pequenos proprietários caboclos, fazendeiros e seus agregados, pessoas negras e fugitivos à povos originários Kaingang, Xokleng e Guarani, que seguiam lutando para permanecer em seus territórios de origem. Em instância federal, a posse territorial é concedida à Santa Catarina, em 1917, e os limites estaduais se consolidam, e seguem desta forma até a atualidade. Para reafirmar o poder sobre o espaço, são estabelecidas as cidades de Mafra, Porto União, Joaçaba (na época, Cruzeiro), e Chapecó, cada qual com sua própria comarca judiciária, igreja e escola (SANTOS, 2000).
Estas novas sedes careciam de habitantes urbanos, e assim, mais uma vez, o empreendimento de Farquhar entra em cena, de forma que o empreendedor passa a lotear e comercializar as terras a ele cedidas quando da construção da ferrovia. Outras companhias colonizadoras surgem neste período, propagandeando terras baratas, férteis e com acesso a água corrente. O público-alvo destas empresas eram os imigrantes ítalos e teutos, residentes no Rio Grande do Sul, os quais viam suas famílias crescerem e não encontravam lotes acessíveis para seus descendentes. Com isso, o Oeste Catarinense passa a ser colonizado por estes europeus e, principalmente, seus filhos e netos (NODARI, 2002).
A partir desta sucessão de disputas, representantes do que Santos e Silveira (2001) chamam de uma transição do meio natural para o meio técnico, desde o massacre dos povos originários, passando pela violência para com os caboclos, a imposição da exploração capitalista, chegando até a colonização, conforma-se de um território propício para a gênese das primeiras salas de cinema, representantes da ideia de núcleo urbano e modernidade, tão almejadas por estas pequenas cidades ruralizadas.
Na Mesorregião Oeste Catarinense, as primeiras exibições cinematográficas que se tem relato acontecem na Vila Rio Capinzal, atual cidade de Capinzal. O núcleo era uma das estações da estrada de ferro, e, portanto, sua integração econômica e cultural se dava com mais facilidade com o sudeste brasileiro, além dos outros estados da região Sul, notadamente o Rio Grande do Sul. Afirma-se que ambulantes chegavam ao povoado de trem, e durante o dia anunciavam a exibição pelas ruas da cidade, que as sessões eram mudas, narradas pelo proprietário. A primeira sala do distrito, caracteriza-se como o Cine Avenida2, de propriedade de João Vargas (ALMEIDA, 2004).
Em seguida, no ano de 1925, o Cine Rádio é estabelecido em uma edificação onde funcionava também a primeira rádio comunitária de Capinzal (ALMEIDA, 2004). Ressaltamos aqui, que desde a gênese dos espaços de exibição, a sétima arte e o rádio relacionam-se intimamente. É interessante apresentar que, no Recenseamento de 1920, Vila Rio Capinzal possuía uma população de 3.351 habitantes (DIRECTORIA GERAL DE ESTATÍSTICA, 1922)
Por fim, ainda em Capinzal, é inaugurado o Cine Farroupilha (Figura 2), em 1929. De propriedade de Leonardo Spadini, a sala contava com 500 lugares (IBGE, 1959A), e tinha como única atividade comercial, a exibição cinematográfica. Relata-se que a Vila não possuía iluminação pública, sendo necessário que os espectadores se dirigissem à sessão das 20h com o uso de lanternas. Spadini e sua família residiam na edificação, toda em madeira de Araucária, de forma que o primeiro andar servia como a residência e a bilheteria, o segundo abrigava a sala de cinema, e o porão foi utilizado inicialmente para moagem de café, e, mais tarde, para a criação de pintinhos (SANTOS, 2010; PELLIZZARO, 2012). No Censo de 1940, Vila Rio Capinzal apresenta uma população de 5.535 habitantes, dos quais apenas 824 foram considerados moradores em situação urbana. A título de comparação, a cidade de Blumenau neste mesmo recenseamento, possuía 25.130 habitantes, enquanto Florianópolis contava com 46.771 (IBGE, 1952)
A evolução dos cinemas em Vila Rio Capinzal demarca com clareza os ciclos econômicos pelos quais o distrito passa no início do século XX. Inicialmente, a arte chega ao núcleo por conta da interferência da conexão proporcionada pela via férrea, integrando econômica, e culturalmente a região. Além disso, o primeiro cinema, o Cine Avenida, traz em seu nome os símbolos das reformas urbanas higienistas, ícones da modernidade na época. Anos mais tarde, a segunda sala funciona atrelada à rádio comunitária, apresentando novas tecnologias a este núcleo rural, o qual ainda não possuía nem energia elétrica. E, por fim, o Cine Farroupilha apresenta em sua história diversas características que expressam os diferentes ciclos econômicos da cidade, tanto por ser edificado em madeira, matéria prima abundante e principal produto comercial da época de inauguração, quanto por ser usado para criação de aves, em uma cidade que atualmente possui uma indústria multinacional para abate destes animais.
No início da década de 1930, é inaugurado em Joaçaba o Cine Progresso (Figura 3), com características bastante diferenciadas dos cinemas de Capinzal. Em uma época em que a cidade era ainda chamada de Cruzeiro, e o núcleo contava com 1.333 habitantes urbanos, e uma população total de 8.852, de acordo com o Censo Demográfico de 1940 (IBGE, 1952). A sala de alvenaria, construída exclusivamente para abrigar a função, possuía 480 lugares (LUIZ, 2013), e trazia em sua fachada estilemas do Art Déco, linguagem arquitetônica de vanguarda no início do século XX, e frequentemente atrelada às salas de cinema ao redor do globo. Assim, explicitava a moderna experiência cinematográfica em sua totalidade, unindo a tecnologia da imagem em movimento com a ornamentação estilística da edificação, além de comprovar a ânsia deste núcleo em ser visto como urbanizado, ao trazer a palavra Progresso, em seu nome.
Estas experiências, tanto de Capinzal quanto Joaçaba, exemplificam algumas das formas com as quais as salas de cinema de rua podem demarcar os diferentes processos sociais e econômicos que se dão ao longo do desenvolvimento de seus núcleos. Estes incipientes vilarejos almejavam manifestar urbanidade, e os cinemas foram importantes instrumentos para corroborar com esta imagem.
A urbanização desta região tem sua gênese na criação dos municípios de Chapecó e Joaçaba, após a Guerra do Contestado, em 1917. Mesmo sendo oficialmente estabelecidas no mesmo ano, o desenvolvimento destas cidades se dá de forma bastante diferenciada, por conta de fatores como a proximidade com a via férrea, e o relevo do sítio. Joaçaba é uma das estações da estrada de ferro, e, portanto, presencia um rápido crescimento populacional desde seu estabelecimento. Enquanto isso, Chapecó situava-se distante dos trilhos, e as estradas de acesso à cidade frequentemente encontravam-se intransitáveis, principalmente em períodos chuvosos, onde as cheias do Rio Uruguai impossibilitavam o tráfego (NODARI, 2009).
Os instrumentos de análise centrais deste ensaio, as salas de cinema, novamente são capazes de representar as disparidades entre o amadurecimento dos dois municípios. O Jornal Cruzeiro, de Cruzeiro do Sul (nome original de Joaçaba), já apresenta anúncios de sessões de cinema em uma edição de 1933, no Cine Progresso (CRUZEIRO, 1933). Enquanto isso, a primeira sala de cinema de Chapecó é estabelecida somente treze anos mais tarde, em 1946. O primeiro cinema da cidade é chamado de Cine Ideal (Figura 4), e funciona em um galpão de madeira, com 200 lugares (THIES, 2016). A baixa urbanização da vila é denunciada na imagem, pelas florestas de araucária ao fundo e a rua sem pavimentação. De acordo com o Censo Demográfico de 1950 (IBGE, 1953), Chapecó possuía 2.118 habitantes em seu núcleo urbano, e uma população total de 12.374.
Mesmo sendo edificado anos mais tarde que o Cine Progresso, de Joaçaba, o Cine Ideal apresenta precariedade em suas instalações, fato que corrobora com o entendimento de que dificuldade de acesso à cidade influenciou diretamente em seu desenvolvimento. Achylles Tomazelli, proprietário do Cine Ideal, é natural de Guaporé (RS), e estabelece-se em Chapecó no ano de 1935, com o objetivo de investir na economia madeireira. É interessante apontar que o deslocamento deste empresário pelo território está de acordo com os movimentos migratórios vistos entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina nesta primeira metade do século. Além da sala de cinema e da extração madeireira, Achylles ocupou-se com ofícios de sapateiro e seleiro, e em 1940, fundou a primeira hidrelétrica da região, fornecendo energia para 18 casas da vila e um poste na rua principal (THIES, 2016).
As ações de Achylles em Chapecó revelam o que Nodari (2009) apresenta como um protagonismo dos atores políticos e das elites locais, compostas de descendentes de origem portuguesa, italiana ou alemã. Estas atuavam na organização espacial e social das cidades, criando formas de sociabilidade e alterando, ou estimulando mudanças na morfologia urbana. Durante os anos 1930 e 1940, existiu a preocupação com o embelezamento de Chapecó, seguindo “os mesmos padrões homogeneizantes da civilização ocidental moderna de desconstrução do rural, que era sinônimo de atraso” (NODARI, 2009, p. 75). As elites destes núcleos passam a empreender iniciativas de remodelamento da cidade, em busca de uma civilidade e de modernidade. Para tanto, largas avenidas com canteiros centrais foram concebidas (Figura 5), a energia elétrica foi, após diversos percalços, instalada (NODARI, 2009).
Já na cidade de Joaçaba, não são elaboradas iniciativas por parte das Companhias Colonizadoras ou do Governo Estadual para a implantação de lotes destinados à equipamentos públicos, e esta condição se coloca como um empecilho para as intenções de modernização da cidade e seu centro. Nodari (2009), afirma que esta característica é comum aos núcleos que se estabelecem próximos da estrada de ferro, e que nestes, os lotes eram geralmente mais onerosos, coibindo sua compra.
Além disso, a localização geográfica de Joaçaba também apresenta impasses, pois, ao ter surgido ao longo das sinuosidades do Rio do Peixe, que atua como demarcador de sua fronteira, e por ser cortada pelo Rio do Tigre, é impelida a adequar-se às formas do relevo e tem assim, sua expansão dificultada (NODARI, 2009). Como resultado, percebe-se na planta de Joaçaba e Herval D’oeste, de 1967 (Figura 6A) a baixa regularidade da morfologia urbana, com quadras de diferentes dimensões e angulações variadas.
É interessante ressaltar que dentre os importantes equipamentos urbanos apresentados na legenda, como instituições financeiras e hotéis, os dois cinemas em funcionamento na época são destacados, o Cine Vitória, demarcado aqui em vermelho, e Cine Avenida, em laranja. Fato este que aponta o quão fundamentais eram estes espaços nas dinâmicas urbanas da Santa Catarina do século XX.
De forma distinta à Joaçaba, Chapecó apresenta um plano urbanístico bem estruturado, com uma mescla entre o traçado radial central e o ortogonal. O projeto (Figura 6B) foi idealizado por um dos colonizadores de maior atuação na região, Ernesto F. Bertaso, que demarca lotes para prédios públicos no núcleo da planta, para onde todas as ruas convergem, além de praças, na proposta da cidade (NODARI, 2009).
A possibilidade de um planejamento mais bem constituído em Chapecó, se dá também pelos fatores territoriais, visto que esta cidade possuía menos acidentes geográficos limitantes do que Joaçaba (NODARI, 2009). No plano urbano apresentado, foram destacados os lotes em que existiram salas de cinema, contribuindo mais uma vez para o entendimento de que estes lugares ocupavam territórios de destaque e importância na malha urbana: em vermelho, a localização do primeiro Cine Ideal, em madeira, onde mais tarde o Cine Astral é edificado, em alvenaria, e, em laranja, a posição do segundo Cine Ideal, adjacente à esquina aonde Achylles Tomazelli estabelece o Hotel Ideal, inaugurado em 1946 e em funcionamento até a atualidade (THIES, 2016).
A partir da década de 1930, diversos agrupamentos do Oeste catarinense passaram a almejar características urbanas, empreendendo iniciativas que visam a consolidação de uma ideia de civilidade, oposta ao mundo rural que os cercava. As cidades neste contexto eram sinônimo de progresso e desenvolvimento, e o cinema, arte do mundo moderno, contribuía para a consolidação desta imagem.
A partir dos anos 1940, o modelo econômico vigente no Oeste Catarinense é afetado, tanto pela Segunda Guerra Mundial, que interfere na economia do Brasil e da Argentina, principal mercado consumidor, quanto pela crescente escassez de recursos devido à intensa exploração madeireira. Ao mesmo tempo, os migrantes vindos do Rio Grande do Sul, passam a comercializar o excedente de suas produções da mesma maneira que faziam em seu estado de origem. Têm como principal fonte de lucro a venda de suínos criados em cativeiro, que, quando atingiam peso para o abate, eram conduzidos a pé para o vilarejo mais próximo, onde um comerciante local os adquiria e os dirigia então para os pequenos frigoríficos de Chapecó ou Joaçaba. Esta atividade se prova então fundamental para a consolidação de núcleos urbanos, incipientes redes de ligação e principalmente para a preparação de um cenário propício para o estabelecimento das agroindústrias, visto que a economia extrativista se mostrava em declínio (PERTILE, 2008).
A comercialização de suínos vivos torna-se menos lucrativa quando frigoríficos de São Paulo passam a dominar o setor. Como consequência, buscando reintegrarem-se ao mercado, os produtores tornam-se empreendedores, proprietários de pequenos frigoríficos. Este movimento baseia-se na estratégia de investimento dos lucros proporcionados pela produção excedente do campo, para o estabelecimento de instalações industriais (PERTILE, 2008).
Os primeiros frigoríficos se estabelecem ao longo do Vale do Rio do Peixe, nas margens da estrada de ferro, por consequência de um transporte facilitado que, na época, era isento de custos, apoiado pelo governo federal. Em 1940, na cidade de Videira, uma das estações férreas, nasce uma empresa que vem a tornar-se a Perdigão S.A., em 1942 é estabelecido o Comércio e Indústria Saulle Pagnoncelli, em Herval d’Oeste (cidade gêmea de Joaçaba), também ao longo da EFSPRG, e em 1943 é fundada em Concórdia a Sadia (PERTILE, 2008), que fundamentou a criação de um desvio ferroviário no distrito de Volta Grande, próximo à estação de Marcelino Ramos (RS), para o transporte de sua produção também via trem (ESPÍNDOLA, 1996).
Com o aumento da atividade pecuária, cresce a demanda também no campo da agricultura, com a expansão de lavouras de milho destinadas à alimentação animal, o que mostra que a instalação dos frigoríficos ao longo do Vale do Rio do Peixe não afeta somente os núcleos urbanos onde se estabelecem, mas também toda a região vicinal (PERTILE, 2008). Além disso, as possibilidades de transporte dos produtos – alimento para os animais, animais para os frigoríficos, carne processada para o mercado consumidor – também interferem nas dinâmicas do desenvolvimento, pois, segundo Espíndola (1996), até 1950, a única forma de enviar a produção para outros estados, era pela linha férrea, porém, a viagem levava em média três dias até São Paulo, o que impossibilitava o carregamento de carnes que necessitavam de refrigeração. A utilização das estradas, por sua vez, era da mesma forma dificultosa, visto que grande parte das rodovias careciam de pavimentação (ESPÍNDOLA, 1996).
Além das formas de apoio do Estado, Pertile (2008) destaca fatores que auxiliaram na consolidação da produção agroindustrial nesta região na segunda metade do século XX. Desde o uso da estrada de ferro e as conexões por ela proporcionadas, a criação de conexões rodoviárias e a aquisição de caminhões frigoríficos e aviões, a adequação às demandas do mercado, com a mudança das espécies suínas ali criadas, a contratação de força de trabalho especializada, a instalação de filiais em outros estados e a criação de empresas para produção das próprias embalagens. Como resultado, ao longo da década de 1960 e 1970, o Oeste Catarinense se configura como forte polo produtor para o mercado nacional e internacional (ESPÍNDOLA, 1996; PERTILE, 2008).
Este processo exerce fundamental influência nas dinâmicas de desenvolvimento da região, refletindo em mudanças importantes também nas cidades e nos movimentos de migração e êxodo urbano e rural4. Ao analisarmos os movimentos populacionais, com base nos censos demográficos do IBGE do século XX, percebemos um Oeste bastante rural, onde a população urbana só vai superar a campesina na década de 1990 (Quadro 1).
Este movimento resulta em uma urbanização tardia, em relação à vista em todo país principalmente a partir da década de 1980. Desta forma, a cidade do Oeste mantém, ao longo de seu desenvolvimento, laços com o mundo agrário que a subsidia economicamente. O desenvolvimento dos municípios acontece em função do processo produtivo das agroindústrias ao longo da segunda metade do século XX, e grande parte das atividades que se instalam nestes centros, são voltadas a este mercado, e paralelamente, a maioria da população é empregada ou pela própria fábrica, ou nos empreendimentos de apoio à produção. Este movimento acontece como resultado da industrialização brasileira, estimulada pelas políticas de Kubitschek, e traz consequências para a pequena produção familiar, que ou se adequava à modernização da agricultura, ou tinha de deixar o campo, e passar a viver nas cidades, como mão de obra operária (PERTILE, 2008; LEMOS, 2020).
Desta forma, são delineadas com mais precisão as classes sociais desta conjuntura, compostas pelos proprietários das agroindústrias, donos dos meios de produção, e, portanto, das formas de organização espaciais e administrativas, e pelos jovens campesinos que possuíam apenas sua força de trabalho, os então operários, agora moradores das cidades. No âmbito rural, os agricultores tiveram de se associar às indústrias, em um esquema de integração da produção, que torna a venda das mercadorias exclusiva à empresa agroindustrial, e que exige padrões rígidos de higiene e alimentação dos animais. Os produtores que não conseguem se alinhar à estas diretrizes, são excluídos do sistema e apresentam dificuldade em competir com as grandes companhias. Junto a estes, estão os povos originários e os caboclos, que compõem então os setores marginalizados do processo de urbanização, e ocupam assim as periferias urbanas (ALBA, 1998).
Como resultado da urbanização, consequência da industrialização da região, as salas de cinema começam a se estabelecer de forma mais intensa no Oeste Catarinense. Estes espaços se multiplicam com mais facilidade também por conta da instalação de infraestruturas que subsidiavam seu funcionamento, como as já mencionadas ligações rodoviárias, e a eletricidade. A rede elétrica, só é efetivamente estabelecida no Oeste Catarinense a partir da segunda metade do século XX, de forma que até este momento, as exibições dependiam de geradores de energia (MORAES, 2019). É interessante relembrar que os proprietários das salas de cinema com frequência se caracterizavam também como vetores de uma modernização das cidades, como é o caso de Achylles Tomazelli, que antes mesmo de possuir uma sala de cinema, administrava uma serraria e uma pequena usina hidrelétrica, que, segundo Enor Tomazelli, foi responsável pela primeira lâmpada acesa de Chapecó (THIES, 2016).
Além do desenvolvimento destas infraestruturas básicas, os avanços nos meios de comunicação foram também fundamentais para a multiplicação dos espaços de exibição ao longo dos anos 1950, 1960 e 1970. De acordo com Goularti Filho (2018, p. 276) “Transportes, comunicações e energia formam a tríade da infraestrutura social básica que é determinada e determinante do processo global da produção”. Este momento de expansão de infraestruturas para subsidiar a industrialização é periodizado por Santos e Silveira (2001) como o meio técnico-científico-informacional, e acontece como resposta às dificuldades impostas pela falta de conexões entre os diferentes polos regionais em um país de dimensões continentais como o Brasil.
Como resultado da consolidação das infraestruturas, fundamentalmente a elétrica, a rodoviária e a de comunicação, em paralelo à um cenário nacional de desenvolvimento de um mercado de produtos de origem agropecuária processados industrialmente ao longo dos anos 1950 e com mais intensidade na década de 1960 (DELGADO, 1985), as agroindústrias passam a se estabelecer de forma mais vigorosa no Oeste Catarinense. Estas, além de demandarem um amplo contingente produtor em áreas rurais, são também condutoras de um aumento da população urbana, que se configura como a classe operária. E é neste arranjo que os cinemas passam então a se expandir com mais facilidade, como pode ser visto no gráfico a seguir (Gráfico 1). Percebe-se um crescimento mais acentuado ao longo da década de 1960, alinhado com o referido movimento de urbanização das cidades e vilas da região.
Estes espaços buscavam, quando possível, um alinhamento com as linguagens arquitetônicas de vanguarda, como o Art Déco e o Modernismo. A primeira, empregada com maior intensidade ao redor do globo nos anos iniciais do século, chega ao Oeste entre as décadas de 1950 e 1960 buscando a ideia de inovação e contraste face às edificações em madeira. Nas palavras de Maziero, Campos e Godoy (2021, p. 174) “essa arquitetura expressa o desejo do novo e não necessariamente o novo propriamente dito”, justamente por ser empregada tardiamente em relação ao restante do Estado. As pequenas cidades passam a aspirar a urbanidade de grandes centros a partir da organização espacial e das formas arquitetônicas, e este movimento de urbanização resulta em transformações também no acesso à cultura. Em 1959 o Cine Vitória é estabelecido em Joaçaba (IBGE, 1959B), em um período de crescimento econômico devido ao mercado agroindustrial. A sala possuía 1550 lugares (PEREIRA, 2013), em uma edificação de quatro pavimentos contrastante com seu entorno (Figura 7).
Em 1973, é inaugurado em Chapecó o Cine Astral (Figura 8), terceiro cinema da cidade, contando com 990 lugares (THIES, 2016), em um imóvel de três andares, com estilemas modernistas. Na imagem, observa-se a sala inserida em uma Chapecó agroindustrial, com canteiros e avenidas consolidadas, expressando o investimento nas formas urbanas. Nos relatos sobre as salas a partir dos anos 1960, fica evidente uma mudança também nas películas exibidas, com a entrada da produção hollywoodiana nos circuitos de exibição, fato que representa a característica industrial do mercado cinematográfico, adaptado à massificação da cultura, e relacionando as dinâmicas locais com os movimentos globais.
De início, a população urbana é escassa, bem como o acesso à recursos financeiros e investimentos mais intensos nas possíveis formas de lazer. Quando as cidades passam a amadurecer, com o desenvolvimento das forças produtivas, um novo público se conforma, e de forma a adequarem-se à emergente demanda por entretenimento no ambiente urbano, as salas de cinema se desenvolvem. Durante a pesquisa, encontrou-se o registro de 62 salas de cinema de rua ao longo do século XX, que estiveram presentes em 37 municípios6 do Oeste de Santa Catarina7.
Ao analisarmos as cidades com maior número de salas, duas questões ficam evidentes. A primeira, se caracteriza como a fundamental importância da malha ferroviária para a integração do território e consequente instalação de salas de cinema. Capinzal, Joaçaba e Tangará contaram com quatro salas de cinema ao longo de sua história, enquanto Caçador possuiu três. Todas estas cidades faziam parte da rota ferroviária, possuindo estações em seu perímetro urbano. Chapecó, por sua vez, também apresenta três salas, e este número pode ser justificado pelo assunto tratado na presente seção, a expansão agroindustrial e a urbanização acelerada destas cidades, que passam a receber um contingente operário em seus núcleos urbanos na segunda metade do século XX. É errôneo afirmar, porém, que o processo de industrialização afetou apenas Chapecó, visto que toda a região foi influenciada, e cidades como Joaçaba e Capinzal, citadas anteriormente, receberam também grandes complexos industriais ao longo de seu desenvolvimento, interferindo novamente no número de salas presentes nestas sedes. Desta forma, consideramos importante também o caso de Concórdia, que, por mais que em sua história possuiu apenas duas salas, foi berço de uma das principais agroindústrias brasileiras, a Sadia S.A.
As salas de cinema só passam por uma expansão quando os territórios urbanos se mostram adequados à tal, quando a indústria ali já está estabelecida, e um contingente operário se conforma. Porém, ao estabelecerem-se nestes centros, os cinemas também geram mudanças no cotidiano e nas dinâmicas do lugar. Sobre esta questão, Santos (2014, p. 33) afirma: “Os objetos geográficos aparecem nas localizações correspondentes aos objetivos da produção num dado momento e, em seguida, pelo fato de sua própria presença, influenciam-lhes os momentos subsequentes da produção”. Esta lógica aplica-se tanto para as agroindústrias, quanto para os cinemas. As primeiras se consolidam no Oeste Catarinense buscando responder a lógica da produção capitalista, e, ao se estabelecerem na região, interferem nas dinâmicas econômicas e na conformação das áreas centrais, onde, como consequência, introduzem-se os espaços de exibição, os quais passam a interferir na cidade econômica e socialmente. Corrêa (2005, p. 39) disserta “Verifica-se uma certa sincronia entre o emergir do capitalismo em sua fase plenamente industrial e o aparecimento da Área Central. Processo, forma e também as funções estão assim conectados”.
Até a metade da década de 1970, as salas de cinema no Oeste de Santa Catarina seguiram se multiplicando, atingindo seu ápice em 1974. Naquele ano, 31 espaços de exibição funcionaram simultaneamente na região, em 24 cidades. O cinema estava presente no cotidiano, e acompanhando o crescimento urbano promovido pela industrialização.
Porém, a partir de 1975, inicia-se aos poucos um processo de decadência das salas de rua. Essa queda está ligada a diversos fatores:
- Às mudanças nas relações sociais, nos hábitos cotidianos de lazer e sua individualização, e o impacto destes fatores na morfologia das cidades, esvaziando as áreas centrais e transformando o conceito da rua no imaginário popular como um lugar de lazer, para a rua como um lugar apenas de passagem;
- Às crises econômicas no país e no campo da produção nacional, que passa a ser muito custosa, e da distribuição cinematográfica, que busca concentrar-se em praças mais lucrativas;
- À flutuação do valor dos ingressos;
- À massiva entrada de multinacionais no mercado brasileiro, apoiadas por políticas neoliberais;
- E ainda, à privatização das formas de lazer, seja para salas de estar domésticas, onde os novos protagonistas eram os televisores e o home vídeo, ou para os nascentes shopping centers, que emanam grande poder de concentração pautado na elitização do público-alvo e na junção de funções comerciais e de entretenimento, com notáveis andares de estacionamento, adequados ao modelo rodoviarista em expansão (SIMIS, 2017). Assim, o Oeste Catarinense, bem como o Brasil, chega ao século XXI com raros exemplares deste modelo de exibição.
As mudanças nos meios de produção e as reformas urbanas da segunda metade do século XX infligiram grande impacto na forma com a qual a sociedade relaciona-se com as salas de cinema e os novos modos de lazer. A morte da rua, os meios de comunicação individualizando o lazer, e, recentemente, a sociedade do desempenho, prestaram importantes papéis na onda de fechamento de salas de cinema de rua, tanto no Brasil, quanto no Oeste Catarinense.
É interessante notar que, por ser repleta de cidades pequenas, e por conta de sua distância de grandes centros, a região não atravessa todos estes processos de maneira simultânea ao cenário nacional, e também não com a mesma intensidade, porém, obtém resultados semelhantes. O rodoviarismo e as reformas urbanas começam a ser implantadas efetivamente somente na segunda metade do século XX, em escalas bastante reduzidas, adequadas ao contexto. Além disso, o modelo de centros comerciais representado pelos shoppings, não consegue se desenvolver por este território na virada do século, justamente por sua dinâmica ser de consumo em grande escala, voltada à grandes centros urbanos, e, os televisores, por sua vez, alcançam o Oeste também com inicial precariedade, devido à posição periférica do lugar, na malha urbana brasileira.
No estado de Santa Catarina, encontramos uma rede urbana marcada pela ausência de cidades com mais de 1 milhão de habitantes, presença marcante de cidades intermediárias, que se configuram como capitais regionais, em todas as regiões, e a predominância da cidade pequena. Assim, o cinema encontrou campo para multiplicar-se ao longo do século XX, mas, ao atravessar este período, não foi capaz de sustentar as demandas de público ou financeiras para o funcionamento dos espaços de exibição de acordo com os novos moldes multiplex (complexos com diversas salas, normalmente em shoppings ou centros comerciais, os quais dão preferência à exibição de blockbusters internacionais). De acordo com o Censo Demográfico de 2010, o Oeste Catarinense contava com apenas uma cidade de mais de 100 mil habitantes em seu território, e somente duas com mais de 50 mil, como pode ser observado no gráfico abaixo (Gráfico 2).
Assim, as salas de cinema de rua do Oeste Catarinense enfrentam uma onda de fechamento, deixando boa parte das cidades e suas áreas centrais sem acesso à esta arte, seu caráter cultural e educativo, e a sociabilidade por ela gerada. Em 2010, uma distinta iniciativa ocorre na cidade de São Miguel do Oeste, onde inaugura-se o Cine Peperi, uma sala de cinema com 200 lugares, exibição de filmes 2D e 3D, que se situa na rua, em uma edificação que abriga a Rede Peperi de Comunicação (FOLHA DO OESTE, 2010). Além disso, a mesma Rede inaugura em 2018, uma nova sede na cidade vizinha de Itapiranga, a qual também abriga uma sala de cinema (DOMENICO, 2018). Durante sua construção, em 2016, seria a menor cidade brasileira com sala de cinema, uma das quatro, naquele ano, a estarem presentes em municípios com menos de 20 mil habitantes, ao lado de Cesário Lange, em São Paulo, Remígio, na Paraíba, e a também catarinense Otacílio Costa, localizada na região serrana (CAVALCANTI, 2016).
Contudo, estas salas são exceções, visto que, em 2023, os cinemas da região não estão nas ruas, porém, tampouco são em geral encontrados em shoppings, pois mesmo este equipamento não consegue prosperar nestes núcleos, por conta do consumo de massa que exigem. Logo, cidades como Caçador, Videira, Fraiburgo e Concórdia, possuem cinemas anexados à supermercados, Joaçaba possui uma unidade da Rede Gracher, do Vale do Itajaí, anexada à uma loja de departamentos e Chapecó, por figurar como polo regional, é capaz de sustentar um shopping center, com quatro salas de cinema.
A partir da discussão aqui apresentada, foi possível entender como esta região estruturada por uma rede urbana marcada pela pequena cidade, foi passando por transformações que resultaram em configurações adequadas para a expansão das salas, de forma que estas, além de multiplicarem-se com rapidez, foram capazes de refletir as mudanças econômicas pelas quais os núcleos estavam passando. Inicialmente eram cidades ruralizadas, com dinâmicas econômicas fortemente ligadas à agricultura de subsistência. Nesta conformação, as salas de cinema expressam os costumes campesinos em sua arquitetura simplória, no conteúdo exibido nas telas e até no comportamento dos espectadores, exemplificado em relatos contidos em Florêncio (2015), que narram uma das primeiras exibições de Chapecó, em que haviam cenas com chuva, o que fez com que espectadores saíssem da sala, para cobrir seus cavalos (FLORÊNCIO, 2015). Quando o sistema agropecuário passa a se desenvolver, configurando um movimento de industrialização e convertendo as cidades para o agronegócio, estas encontram seu funcionamento fundamentado pelas atividades agroindustriais, e passam a abrigar em seu núcleo uma população operária. Esta onda de modernização é capaz de alterar, além do modo de produção, as formas de relação com a cultura, e como resultado, novas e maiores salas de cinema são implantadas, com estilos arquitetônicos capazes de demarcar o crescimento presenciado nestas áreas centrais. Tornam-se parte do cotidiano, influenciando as formas de sociabilidade, os pontos de interesse no tecido urbano e parte do setor comercial, que se adequa às demandas dos espectadores. Em meio à estas mudanças, encontra-se também a inserção do cinema americano nos circuitos exibidores, alterando o conteúdo exibido em tela.
Os cinemas de rua foram fundamentais em diversos aspectos da formação socioespacial da região estudada. Sua importância reside não apenas na forma de entretenimento por eles representada, uma das poucas disponíveis à população na época, mas também por seu papel cultural, educacional, sua participação no desenvolvimento urbano e na sociabilidade. Para a pesquisa aqui discutida, prestam papel importante ao imprimirem em suas características arquitetônicas, seu modo de funcionamento, conteúdo exibido e comportamento dos espectadores, momentos diferentes do amadurecimento destes pequenos núcleos. A partir dos anos 1980, ocorre uma inflexão no avanço conjunto de cidades e cinemas, por conta de fatores como a privatização do lazer, o esvaziamento dos centros urbanos, a abertura do mercado a redes multinacionais e incipiente popularização da televisão. Assim, inicia-se um acelerado movimento de fechamento destas salas, por falta de público, de forma que a região, detentora de ao menos 62 salas ao longo do século XX, chega ao século XXI com apenas uma sala de rua, que fecha suas portas em 2007. Atualmente, existem no Oeste Catarinense cinemas adequados aos novos modelos de exibição multiplex, com complexos de exibição em centros comerciais, shopping centers ou lojas de departamento, modelos estes que elitizam o acesso a este tipo de entretenimento, incentivam o esvaziamento das áreas centrais e privatizam as relações sociais anteriormente proporcionadas pela rua.