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O AMBIENTE ESCOLAR E A VALORIZAÇÃO CULTURAL INDÍGENA

Walace Rodrigues
Universidade Federal do Tocantins – UFT, Brasil

O AMBIENTE ESCOLAR E A VALORIZAÇÃO CULTURAL INDÍGENA

Periferia, vol. 8, núm. 1, pp. 106-122, 2016

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Resumo: O texto aqui apresentado se coloca como um dos frutos da pesquisa acadêmica realizada na Universidade Federal do Tocantins – UFT através do projeto de extensão intitulado “Reflexões sobre a estética indígena para o campo da Arte-Educação”. Tal projeto ocorreu entre os anos de 2012 e 2013 no campus de Tocantinópolis, no curso de Pedagogia e envolveu, basicamente, estudantes de tal curso. O projeto buscou relacionar a estética indígena e sua possível utilização nas aulas escolares da região, incentivando futuros professores a se utilizarem de tal concepção estética. Este artigo tentou dar a entender a importância da instituição escolar na valorização do contexto multicultural de seus estudantes, usando como exemplo a questão dos fazeres e saberes artísticos indígenas. Os resultados deste escrito deixam ver possibilidades de trabalho com obras de arte indígenas na escola e a necessidade de desconstrução das representações dos indígenas como pontos positivos para a valorização destes brasileiros e para o incremento de saberes dos estudantes escolares.

Palavras-chave: valorização indígena, culturas, escola pública, ensino.

Abstract: The text presented here is one of the fruits of the academic research carried out at the Federal University of Tocantins - UFT through the extension project titled "Reflections on the indigenous aesthetics for the field of Art-Education". Such project took place between the years of 2012 and 2013 at the campus of Tocantinópolis, at the Pedagogy graduation course and involved basically students from such course. Such project sought to relate the indigenous aesthetics and their possible use in school classes in the region, encouraging future teachers to use theirs aesthetic concept. This article tried to explain the importance of the school in valuing the multicultural context of its students. The results of this paper show the possibilities of working with indigenous artworks in the school and the need to deconstruct indigenous representations as positive points for the valorization of these Brazilians and to increase the knowledge of school students.

Keywords: indigenous importance, cultures, public school, teaching.

INTRODUÇÃO

Há no Brasil atual uma necessidade de alfabetização e leitura em todos os níveis, do mais elementar ao mais intelectualizado e abstrato. Apesar de parecer senso comum que a escola deve ensinar conteúdos e mecanismos de aprender dentro da diversidade, a escola brasileira falha nesta tarefa (vide resultados do IDEB!). Imagine, então, em se tratando de conteúdos acerca das “minorias” nacionais, como no caso dos indígenas!

Acreditamos que os conteúdos relacionados às minorias devem ser ensinados e compreendidos dentro dos vários contextos sócio-histórico-culturais existentes no Brasil. Apesar de difícil, a tarefa de proporcionar informações e possibilitar meios de entendimento sobre os “outros” cidadãos nacionais, deve ser seriamente executada na escola, espaço, por excelência e genuíno, de promoção dos vários saberes e atitudes sociais responsáveis, conscientes e críticas (ou assim o deveria ser!).

Em face do exposto, vale informar que este artigo tenta mostrar como as escolas são um lugar propício de valorização cultural dos vários grupos étnicos existentes no Brasil, principalmente das sociedades indígenas e afro-descendentes. Estes grupos sempre foram os mais “fracos” nas relações econômicas de poder no Brasil, isso desde a chegada dos portugueses. Como pode-se verificar pela necessidade de políticas de inclusão, essa desigualdade ainda persiste.

Também, os indígenas se colocam, ainda hoje, como um grupo social ainda desconhecido da maior parte dos brasileiros, necessitando de políticas de inclusão que só podem ser bem-sucedidas quando a população em geral compreenda a relevância dos indígenas na sociedade nacional.

Neste escrito trataremos de focar na importância da escola como lugar de conhecimento e reconhecimento dos indígenas brasileiros, dando ênfase às potencialidades das obras literárias de abrirem caminho para discussões sobre os vários grupos indígenas existentes no Brasil.

CULTURA INDÍGENA NA ESCOLA

Para começar, informamos que este escrito é um dos frutos da pesquisa acadêmica realizada na Universidade Federal do Tocantins – UFT através do projeto de extensão intitulado “Reflexões sobre a estética indígena para o campo da Arte-Educação”. Tal projeto ocorreu entre os anos de 2012 e 2013 e buscou pesquisar as artes indígenas brasileiras através da compreensão indígena de que um objeto de arte só será “inteiro” quando estiver embuído do aspecto estético de sua etnia. Três cursos (totalizando quinze horas) foram ofertados aos estudantes do curso de Pedagogia, do Campus de Tocantinópolis, para levantar a questão sobre a especificidade da estética indígena e seu possível uso na escola.

Partindo da preparação estética de formar futuros professores na área de Pedagogia em relação às criações artísticas indígenas e à maneira destes indígenas de pensarem suas criações artísticas, expandimos esta pesquisa para alguns textos escritos e que poderiam apoiar professores da educação fundamental. Sendo este texto um destes escritos de suporte teorico sobre a fundamentação de utilizar-se da arte indígena dentro do ambiente escolar como forma de valorização desses brasileiros.

Em relação aos indígenas de nosso país, sabemos que eles são escolarizados, geralmente, em escolas públicas com infraestrutura precária, dependente de parcos e mal administrados recursos públicos, com professores mal pagos e pouco preparados.

Assim sendo, por causa de várias situações de diferenciação racial, econômica, de poder e acesso à educação de qualidade, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira (LDB - Lei 9394/96) dá especial atenção aos conteúdos ensinados sobre os povos indígenas nacionais.

Essa tentativa de aproximação dos estudantes com as culturas indígenas enriquece a visão dos alunos em relação aos “outros” povos formadores da sociedade nacional. O artigo da atual LDB que, especificamente, direciona as escolas a ensinarem estes conteúdos é o artigo 26-A, que transcrevo abaixo como embasamento legal para a ação de valorização dos vários grupos formadores da sociedade brasileira:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).

§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).

§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). (BRASIL, 1996).

Nessa ordem de ideias, para além das razões morais (legais) de valorização das culturas dos afro-brasileiros e indígenas no contexto escolar, há uma necessidade ética em combater qualquer tipo de discriminação, tendo a escola papel fundamental na função de abrir-se ao conhecimento da diferença enquanto ação humanizadora. As diferenças devem ser valorizadas na escola como temas que enriquecem os conteúdos e que respeitam as várias visões de mundo existentes em uma sociedade. Uso aqui uma passagem da professora Vera Neusa Lopes (2005) que fala exatamente sobre esse ponto:

A educação escolar deve ajudar professor e alunos a compreenderem que a diferença entre pessoas, povos e nações é saudável e enriquecedora; que é preciso valorizá-la para garantir a democracia que, entre outros, significa respeito pelas pessoas e nações tais como são, com suas características próprias e individualizadoras; que buscar soluções e fazê-las vigorar é uma questão de direitos humanos e cidadania. Aprendendo a se ver, a ver o seu entorno (família, amigos, comunidade imediata) de modo objetivo e crítico, a comparar todos elementos com os de outros tempos e lugares, a criança desenvolve comportamentos adequados para viver numa sociedade democrática. (LOPES, 2005, p.189).

Para que se possa construir uma nação livre, solidária e igualitária, onde ser cidadão não seja um privilégio de poucos, devemos buscar informar sobre todos os povos que compõem a sociedade nacional (asiáticos, brancos, negros, indígenas, entre outros) e tentar valorizar as culturas e feitos destes tantos povos, principalmente mas não exclusivamente, dentro da escola. Assim sendo, a escola deve começar a se ver como espaço genuíno de promoção e da valorização da diferença. Ela dever ser um espaço de possibilidades de conhecimento do “outro”, do “diferente”.

Para que as crianças não cheguem a conhecer situações de racismo no ambiente escolar é preciso que a escola seja um lugar de acolhida de todos. A pesquisadora indiana Gayatri Spivak (1996), muito conhecida por seus estudos nas áreas de feminismo e pós-colonialismo, nos informa que racismo (discriminação por motivos raciais) é aprendido e, portanto, pode, também, ser desaprendido na tentativa de mostrar possibilidades mais críticas e criativas em relação ao “outro”. Colocamos aqui uma passagem de Spivak sobre este processo de desaprendizado: “Se nós aprendemos racismo, nós podemos desaprendê-lo, e desaprendê-lo precisamente porque nossas ideias sobre raça representam um fechamento de possibilidade criativa, a perda da opção do outro, outro conhecimento” (SPIVAK apud LANDRY e MACLEAN, 1996, p.4, tradução nossa).

O ato de informar os estudantes sobre os vários povos formadores da sociedade nacional se mostra mais que necessário, não somente por seu aporte legal, como designado pela LDB, mas por uma revisão ética e histórica de valorização devida a alguns povos desprezados na sociedade nacional, como no caso dos afro-brasileiros e dos indígenas. Assim, a escola deve incentivar seus estudantes a pensarem criticamente um Brasil mais múltiplo e heterogêneo em sua formação cultural.

Acreditamos que é papel da escola ajudar seus estudantes a terem representações simbólicas corretas sobre a sociedade em que vivem e sobre as várias vertentes étnicas encontradas nesta sociedade. Isso pode levar os estudantes a aprimorarem seus olhares críticos em relação às informações que recebem, abrindo espaço para problematizações acerca da importância de termos uma sociedade heterogênea onde todos devem ser tratados da mesma maneira, sem as gritantes diferenças assimétricas entre indígenas e brancos.

Em um país tão mesclado etnicamente como o nosso, o entendimento de cada grupo social e seu papel na sociedade nacional se torna essencial. Utilizamos aqui uma passagem dos educadores Ercília Maria de Paula e Fernando Wolff Mendonça (2009) sobre a construção de conteúdos sociais simbólicos e o papel da escola:

A escola é criação social e representa um espaço em que as apropriações comuns de uma sociedade podem ser ordenadas e classificadas de acordo com a utilidade e a significação dos conceitos sociais, desde que essas apropriações tenham relevância para o desenvolvimento da criança, sendo utilizadas como ferramenta de interação da criança com o grupo social. (PAULA; MENDONÇA, 2009, p.51).

Esse conhecimento que a escola deve compartilhar com seus estudantes também tem uma vertente ética em relação às representações dos grupos formadores da sociedade nacional. Essa atualidade sobre a discussão de valores éticos pode ser vista na seguinte passagem de Edilson Santana (2007):

No mundo contemporâneo, tudo se converte em ameaça e exige uma construção ética inédita, que tem como centro as tecnologias biológicas e a energia nuclear, para as quais os regramentos da tradição acham-se inoperantes. Neste contexto, torna-se inevitável o questionamento das éticas aplicadas, tais como a bioética. Tudo reclama um ethos mundial, uma ética universal, capaz de corrigir a rota que vem levando à grave crise da injustiça social. (SANTANA, 2007, p. 94).

Assim sendo, seguindo os ensinamentos de Paulo Freire (1997, p. 46), sobre a importância da “outredade” do “não-eu” para assumir a radicalidade do meu “eu”, podemos verificar que o reconhecimento da importância social e cultural dos vários grupos nacionais se mostra na necessidade de valorização das contribuições de tais grupos sociais, não somente em um sentido ético, mas, também, em um sentido de autoentendimento cultural desses grupos.

Voltando aos nossos cursos do projeto de extensão intitulado “Reflexões sobre a estética indígena para o campo da Arte-Educação”, fizemos a seguinte pegunta a nossos estudantes: Qual a melhor maneira de começar a conhecer o “outro” senão pela sua arte e cultura? Todos concordaram que este seria um caminho possível para a valorização dos indígenas.

Acreditamos que, também conforme nos informa a LDB, as aulas das disciplinas de Artes, Literatura e História representam espaço privilegiado para uma tomada crítica de consciência sobre a importância, por exemplo, dos indígenas, seus costumes e suas criações para a sociedade e a cultura brasileiras.

A professora Darly Nicolanna Scornaienchi (s/d) deixa ver que os artistas são pensadores importantes para a compreensão do mundo em que se vive e que suas obras nos abrem caminhos diversos para entender nosso meio e nossa cultura, conforme na passagem abaixo:

Os artistas são homens dotados de dons maravilhosos: a fantasia e a capacidade de expressar o que têm no coração. Podendo comunicar suas emoções e sentimentos aos outros homens, plasticamente, serão arquitetos, pintores e escultores; exprimindo-se pela arte do som, músicos; se quiserem dedicar-se à arte literária, serão escritores (SCORNAIENCHI, s/d, p. 9).

Assim, pode-se compreender a literatura brasileira como uma produção artística e que pode fornecer uma verdadeira mudança de olhar em relação aos povos indígenas. Sugerimos que se pode trabalhar com literatura mitológica dos próprios indígenas (facilmente encontrada como livros infantis ou em trabalhos monográficos acadêmicos), literatura onde os indígenas sejam, direta ou indiretamente, mencionados, literatura de escritores indígenas, etc...

Obras literárias indígenas (executadas por indígenas) e obras literárias que tragam personagens indígenas (desde A Carta de Achamento do Brasil, passando pelas obras de viajantes e missionários, dos escritores do século XIX, dos regionalistas do século XX e chegando à literatura atual) devem fazer parte das leituras dos estudantes escolares, mas também devem servir para uma representação historicamente coerente das figuras indígenas.

De acordo com Aline França e Naira Christofoletti Silveira (2014) a literatura produzida por escritores indígenas começam a tomar corpo a partir da década de 1980, conforme informado na passagem abaixo:

A partir da década de 1980, diversos grupos indígenas passaram a publicar e divulgar seus conhecimentos por meio de livros. Este tipo de publicação vem crescendo, tanto em número quanto em relevância, tornando-se presente em várias partes do mundo. Nesse sentido, é interessante discutir a forma do tratamento documental desses materiais, uma vez que são produzidos no Brasil por índios brasileiros (FRANÇA; SILVEIRA, 2014, p. 68).

Ainda, há que se informar que a análise das representações de indígenas dadas pelas obras literárias são entendidas aqui de acordo com os estudos de Stuart Hall (2009), onde representação é a maneira na qual significado é dado para as coisas “descritas” (mímica, verbal ou visualmente, entre tantas outras formas). Assim, representação não tem, e nunca terá, um significado fixo, pois se refere a múltiplas interpretações. Deste modo, significado depende da interpretação individual e de como informação é representada. Este processo de representar o mundo que nos cerca é, portanto, um contínuo e ativo ciclo de criação de significações.

No entanto, vale ressaltar que os professores devem estar preparados conceitual e metodologicamente para lidar com este tema da valorização da diferença e do uso da literatura como fomentadora de visões variadas sobre os indígenas, já que não se pode tomar as representações dadas nas publicações como verdades incontestáveis. O professor tem que ter um claro entendimento de que representações são criações e que são variáveis temporalmente.

Ainda, é importante ressaltar que o uso de imagens é essencial (preferencialmente imagens de boa qualidade) como material de apoio ao texto literário, assim como uma boa contextualização por parte do(a) professor(a) e o incentivo à total liberdade criativa e inventiva das crianças. Também, o professor pode utilizar-se de objetos de artes indígenas para complementar informações a respeito da literatura estudada.

Vale, também, mostrar o que a pesquisadora das culturas dos índios nacionais Berta Ribeiro (1991) nos informa sobre a riqueza estética das produções dos indígenas brasileiros, pois é exatamente através desta riqueza estética que se espera sensibilizar as crianças em idade escolar para a valorização cultural indígena:

Nos campos das expressões gráficas e plásticas, a criatividade estética do índio brasileiro se estende, além do corpo, à ornamentação da vivenda e dos objetos. Trata-se de uma reiteração de motivos e significados semânticos aplicados ao embelezamento da casa, da cerâmica, à estrutura dos tecidos e trançados, à pirogravura da superfície das cuias, à pintura dos utensílios de madeira e dos implementos de trabalho. Essa iconografia confere homogeneidade visual ao universo tribal que milita em favor da singularização étnica. (RIBEIRO,1991, p. 155).

Os povos indígenas brasileiros demonstram uma preocupação “estética” para além do seu valor de uso dos objetos produzidos por eles. Esses objetos, também, identificam o artesão que os produziu e a sociedade da qual eles são cultura material. Utilizamos aqui uma passagem de Berta Ribeiro que mostra esse “cuidado” indígena na produção de sua cultura material. Produção material essa que ela não se acanha em chamar de “arte”:

A arte impregna todas as esferas da vida do indígena brasileiro. A casa, a disposição espacial da aldeia, os utensílios de provimento da subsistência, os meios de transporte, os objetos de uso cotidiano e, principalmente, os de cunho ritual estão embebidos de uma vontade de beleza e de expressão simbólica. Estas características transparecem quando se observa que o índio emprega mais esforço e mais tempo na produção de seus artefatos que o necessário aos fins utilitários a que se destinam; e quando passa horas a fio ocupado na ornamentação e simbolização do próprio corpo. Neste sentido, a arte indígena reflete um desejo de fruição estética e de comunicação de uma linguagem visual. (RIBEIRO: 1989, p.13).

Cabe mencionar que várias instituições culturais (como os museus, bibliotecas, etc) têm, geralmente, material de empréstimo para as escolas que desejarem exibir ou utilizar em suas aulas objetos de tais grupos sociais e obras literárias referentes a eles. Pode-se pedir, como empréstimo, objetos que valorizem as habilidades estéticas dos indígenas, o que facilitará o trabalho nas aulas de Artes. Também, pode-se pedir doações de publicações sobre temas indígenas para a doação à biblioteca escolar.

Ainda, acreditamos ser de fundamental importância que os estudantes de escolas públicas compreendam que aprender a ler e escrever é somente o começo de um longo processo de letramento visual, político, social, ético, etc. Utilizo aqui uma passagem da arte-educadora Ana Mae Barbosa (1995) sobre a importância da alfabetização para a leitura na formação crítica de um cidadão consciente:

Nosso problema fundamental é alfabetização: alfabetização letral, alfabetização emocional, alfabetização política, alfabetização cívica, alfabetização visual. Daí, a ênfase na leitura: leitura de palavras, gestos, ações, imagens, necessidades, desejos, expectativas, enfim, leitura de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Num país onde os políticos ganham eleições através da televisão, a alfabetização para a leitura da imagem é fundamental e a leitura da imagem artística, humanizadora. (BARBOSA, 1995, p. 63).

Assim, acreditamos que uma das maneiras da escola valorizar as várias etnias que a formam é a de deixar ver a criatividade artística e tecnológica dos diferentes grupos sociais que estão nela representados ou não. Portanto, vemos a leitura de textos que se relacionem aos indígenas como uma chave para a valorização da grandeza desse grupo nacional, causando uma tomada de consciência da importância dos indígenas na formação social de nosso país.

Ainda, vale a pena informar que em um recente artigo de Eunícia Fernandes (2009), intitulado “Presos ao passado”, esta professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro nos deixa ver que as representações imagéticas dos indígenas brasileiros nos livros didáticos estão longe de mostrarem a realidade desses grupos e a verdadeira maneira de como vivem os vários e distintos povos indígenas nacionais. E, também, a falta de imagens que retratam os indígenas como sujeitos ativos na sociedade nacional de ontem e de hoje somente ajuda a que se cometam mais falhas historiográficas e educacionais sobre as formas de representação destes grupos. A pesquisadora nos diz:

Os enganos são muitos, mas algumas obras atuais procuram romper com os estereótipos, mostrando os índios como sujeitos ativos na História do Brasil. No entanto, essa postura não corresponde à totalidade das produções editoriais. Além disso, se esta preocupação é cada vez mais comum em textos, não se pode dizer o mesmo quanto às ilustrações: há uma menor elaboração sobre elas. (FERNANDES, 2009, p. 79-80).

Assim sendo, nossa sugestão metodológica seria utilizar, no ensino escolar, obras literárias indígenas (dos mais variados gêneros) e que se referem aos indígenas como forma de fazer com que os estudantes tomem contato com as representações dos vários povos indígenas brasileiros e, em seguida, reinterpretem criticamente as representações ali contidas. Porém os estudantes sempre devem ser informados sobre as situações socioculturais atuais de cada grupo étnico que é foco de estudo, pois isto auxiliará na compreensão crítica das representações de indígenas presentes nas obras literárias.

Também, o uso de imagens poderia ser uma metodologia didática preciosa no apoio às representações literárias dos indígenas, porém situação do uso de imagens nas aulas de artes ainda é um problema, pois nem mesmo os professores conseguem interpretar coerentemente as imagens da mídia e imagens artísticas e relacioná-las ao contexto literário.

A necessidade de deixar ver imagens, interpretá-las (também enquanto outra forma de linguagem) e deslocá-la para outras funções pare ser fundamental na educação escolar. Utilizamos uma passagem da arte-educadora Ana Mae Barbosa (1989) sobre o pouco e fraco uso das imagens na escola:

Apreciação artística e história da arte não têm lugar na escola. As únicas imagens na sala de aula são as imagens ruins dos livros didáticos, as imagens das folhas de colorir, e no melhor dos casos, as imagens produzidas pelas próprias crianças. Mesmo os livros didáticos são raramente oferecidos às crianças porque elas não têm dinheiro para comprar livros. O professor tem sua cópia e segue os exercícios propostos pelo livro didático com as crianças. (BARBOSA, 1989, p. 172).

Esse reaprender a olhar a partir da análise das representações lidas e estudadas tem como âmago a valorização dos indígenas enquanto personagens importantes em nossas histórias e vidas, em seguida, a desconstrução de nossos preconceitos em relação aos indígenas nacionais e suas criações.

Ainda, compreender, de maneira desconstrutora, as maneiras de viver dos grupos sociais que existem no Brasil, seus saberes e fazeres, pode enriquecer sobremaneira as experiências dos estudantes no ambiente escolar, além de auxiliar na valorização do “outro”.

Também, essa desconstrução como mecanismo de releitura do mundo dos indígenas nacionais, a que nos referimos aqui, se baseia nas teorias de Jacques Derrida (1930-2004). Na teoria deste pensador os discursos são buscados e desvendados em suas intencionalidades e ausências de força e poder. Desconstruir significa, portanto, a nível conceitual, desvendar as relações assimétricas de poder existentes no texto (ou no contexto) e tentar compreender seus mecanismos. A partir daí poder-se-á chegar a uma compreensão mais próxima da realidade dos papéis sociais e de importância das minorias descritas ou ausentes no discurso.

O filósofo francês Jacques Derrida, que trabalhou como uma metodologia negativa, é largamente utilizado pela pesquisadora Gayatri Spivak no campo dos estudos pós-coloniais. Nas palavras de Spivak (1996) “desconstrução” é:

Desconstrução não diz que não há sujeito, que não há verdade, que não há história. Ela simplesmente questiona os privilégios de identidade de alguém que acredita ter a verdade. Ela não é a exposição do erro. Ela está, constante e persistentemente, buscando como as verdades são produzidas. Daí o porquê que desconstrução não diz que logocentrismo é uma patologia, ou que fechamentos metafísicos são algo de que você pode escapar. Desconstrução, se alguém necessita uma fórmula, é, entre outras coisas, uma crítica persistente do que uma pessoa não pode não querer. (SPIVAK, 1996, p.27-28, tradução nossa).

Neste contexto, nossa reflexão nos leva a pensar a desconstrução dentro do ambiente escolar como um mecanismo que deixaria ver o que a LDB 9394/96 tenta clarificar: a importância dos indígenas na sociedade nacional. Porém, como fazer isto? Uma solução possível seria trabalhar com a desconstrução de personagens indígenas da literatura nacional e com o estudo da literatura indígena (escrita por indígenas e que deixa ver a fala direta destas pessoas).

Começar perguntando o que lemos, os porquês da escolha de tais atributos para os personagens indígenas, os porquês de grupos minoritários não estarem representados e, caso estejam representados, como aparecem para nós. Perguntar sobre o que lemos e vemos (caso haja imagens) é uma atitude, primeiro, crítica e, segundo, filosófica em seus desdobramentos.

Assim, a partir do que foi descoberto no exercício de desconstrução, deve-se perguntar como podemos nos valer desse conhecimento para realinhar essas assimetrias detectadas? De que maneira podemos reelaborar o que foi descoberto em benefício das minorias pesquisadas? De que forma essas descobertas mudam nossa forma de ver os indígenas?

Nossa sugestão seria trabalhar com obras literárias que valorizassem os indígenas, buscando uma visão positiva sobre esses grupos sociais nacionais. Assim, o conhecimento não seria uma abstração escolar e passaria a ser uma realidade materializada em conhecimentos e, espera-se, em atitudes de respeito. Obras de arte indígenas e imagens coerentes sobre os indígenas poderia servir, também, como apoio para o exercício de valorização dos indígenas brasileiros no ambiente escolar.

Neste sentido, os professores devem estar preparados para fazer com que seus estudantes percebam que há, na sociedade brasileira, grupos indígenas, que estes detêm uma riqueza cultural única e que estes brasileiros podem contribuir muito para que nosso país, assim como sempre o fizeram.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme informa a educadora Simone Selbach (2010): “a verdadeira aprendizagem é processo que começa com o confronto entre a realidade do que sabemos e algo novo que descobrimos, uma nova maneira de encarar a realidade (SELBACH, 2010, p. 19). Assim sendo, acreditamos que o estudo das representações dadas aos indígenas nas obras literárias brasileiras podem auxiliar no descobrimento de novas formas de encarar estes cidadãos brasileiros, dando a eles o devido respeito que merecem, buscando inclui-los, e reconhecendo seus saberes e fazeres como importantes e significativos.

Ainda, enquanto resultado de nosso projeto de extensão, percebemos que devemos compreender que o conhecimento crítico sobre os povos indígenas brasileiros pode ser uma forma de incluí-los nas discussões sócio-históricas que nos rodeiam e que são importantes para o país pode trazer novas formas informações antes desconhecidas e/ou desconsideradas, como no caso, por exemplo, informações sobre as obras de várias usinas hidroelétricas pelo interior do Brasil. Tais obras não somente são importantes para fornecer energia, mas mostram a emergência de se discutir temas que atingem as comunidades indígenas, as florestas nacionais, as reservas a serem preservadas e outros temas sobre os quais nos calamos.

Vemos que o estudo de obras literárias onde haja representações de indígenas deve ser tomado como um caminho possível para a inclusão de temas referentes a estes personagens de nosso país, mas também enquanto exercício crítico de formação de representações coerentes com a historiografia atual.

Portanto, despertar nos estudantes o interesse pelos povos indígenas através da análise das representações de indígenas em obras literárias pode ser um dos caminhos possíveis para se compreender a importância dos indígenas na construção sócio-histórica do Brasil. Assim, estes cidadãos merecem nosso respeito e devem ser vistos como elementos sociais que somente enriquecem nosso país e nossa cultura nacional.

Concluindo, a inclusão dos indígenas no ambiente escolar (nas unidades escolares dentro e fora das aldeias e nas universidades) deve ser pautada pelo respeito ao outro, pelo respeito à diferença e na valorização das muitas contribuições culturais que esses autóctones brasileiros nos forneceram e nos fornecem. Assim, o estudo de personagens indígenas presentes na literatura pode favorecer o surgimento de um novo olhar sobre as populações indígenas nacionais, a fim de fortalecer o reconhecimento de suas organizações sociais, suas tradições, seus saberes, seus fazeres, seus valores simbólicos e seus processos de transmissão cultural.

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