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Democracia de gênero: é possível um pacto entre as mulheres?

Teresa Kleba Lisboa
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Democracia de gênero: é possível um pacto entre as mulheres?

O Social em Questão, vol. 20, núm. 38, pp. 23-38, 2017

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

O Social em Questão é uma publicação semestral, fundada em 1997, do Programa de Pós-graduação em Serviço Social, vinculado ao Centro de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Resumo: A democracia de gênero passa pela igualdade de oportunidades para homens e mulheres e pela equiparação das mulheres com os homens na ocupação de cargos. O artigo sugere que “a perspectiva de gênero”tem capacitado e mobilizado mulheres de todo o mundo e de todas as condições sociais para viver uma experiência de identidade política, propondo “pactos entre mulheres” e “pactos intergêneros”. Propõe uma ação partilhada entre mu- lheres, e entre homens e mulheres, e conclui que necessitamos de mais mulheres ocupan- do espaços de poder para que nossas reivindicações possam ser explicitadas, reconhecidas e contempladas com equidade de gênero no campo da política.

Palavras-chave: Democracia de gênero, Equidade de gênero, Pactos entre mulheres.

Democracia de gênero: é possível um pacto entre as mulheres?

Teresa Kleba Lisboa1

Resumo

A democracia de gênero passa pela igualdade de oportunidades para homens e mulheres e pela equiparação das mulheres com os homens na ocupação de cargos. O artigo sugere que “a perspectiva de gênero”tem capacitado e mobilizado mulheres de todo o mundo e de todas as condições sociais para viver uma experiência de identidade política, propondo “pactos entre mulheres” e “pactos intergêneros”. Propõe uma ação partilhada entre mu- lheres, e entre homens e mulheres, e conclui que necessitamos de mais mulheres ocupan- do espaços de poder para que nossas reivindicações possam ser explicitadas, reconhecidas e contempladas com equidade de gênero no campo da política.

Palavras-chave

Democracia de gênero; Equidade de gênero; Pactos entre mulheres.

Gender democracy: is it possible a pact among women?

Abstract

Gender democracy involves equality of opportunity for men and women and the equal- ization of women with men in the occupation of positions. The article suggests that “the gender perspective” has empowered and mobilized women from all the world and from all social conditions to live an experience of political identity, proposing “pacts between women” and “intergender pacts”.This paper proposes a shared action among women, and between men and women, and concludes that we need more women occupying spaces of power so that our demands can be made explained, recognized and contemplated with gender equality in the field of politics.

Keywords

Gender democracy; Gender equality, Pacts among women.

A democracia não pode funcionar ao menos que haja 50% de mulheres em todos os postos de poder, em todas as partes...” (BERIRÄS, 1990)

Introdução

Podemos falar em democracia diante das desigualdades de gênero que se ex- pressam diariamente, nos diferentes espaços da sociedade, nos quais milhares de mulheres estão sujeitas a injustiças, práticas de exclusão, confinamento ao espaço doméstico, discriminação, violência de todos os tipos, silenciamento, invisibilida- de e hierarquias nos espaços de poder?

Os dinâmicos processos de construção democrática permitem identificar,ao longo da história, uma perspectiva de gênero diferenciada para homens e mu- lheres que se expressa em pelo menos dois níveis: na construção da cidadania e nas instituições democráticas do Estado. No primeiro nível, nós, mulheres fomos excluídas do status de cidadania e fomos consideradas “sujeitos políticos” somente após a conquista do voto, depois de muita luta do movimento sufragista. Ao ter- mos a cidadania negada, sequer tivemos acesso aos direitos democráticos. Uma vez conseguido o status de cidadãs, a consolidação dos papéis de gênero atribu- ídos a homens e mulheres pela sociedade moderna fez com que a nossa partici- pação política, econômica e social se tornasse extremamente difícil, porque já se havia consolidado uma divisão sexual do trabalho que nos mantinha reclusas ao âmbito privado. Qualquer situação problemática que provinha deste espaço era excluída da agenda política.

A dimensão de gênero que permeou a construção da sociedade democrática decretou que a mulher é inferior e privilegiou os homens, reservando-lhes o es- paço social onde atuam, ou seja, o âmbito público.

O segundo nível que demarca a diferença entre homens e mulheres e que está aquém de configurar uma democracia de gênero, tanto pública como privada, é o pleno funcionamento das estruturas e instituições democráticas do Estado de di- reito. Ou seja, democracias consolidadas e um Estado que garanta os direitos dos cidadãos constituem o pressuposto básico da democracia de gênero: a cidadania está associada à garantia dos direitos. Sem Estado, não há democracia; tampouco democracia entre os gêneros.

As “políticas públicas de gênero” em vigência nas últimas décadas têm apre- sentado um corte nitidamente assistencial: privilegiam o repasse de recursos sem tomar em conta as capacidades das pessoas e sua autonomia. Os programas assis-

tenciais não buscam garantir os direitos dos cidadãos e as cidadanias. Não permi- tem assegurar as condições básicas de existência autônoma. A depender da von- tade assistencial ou dos programas de “promoção” social, nem os homens nem as mulheres podem desenvolver suas capacidades na sociedade. Estes programas desvirtuam o conteúdo dos direitos sociais e, na maioria das vezes, esquecem que “as mulheres possuem direitos”, ou melhor, são sujeitos de direitos, possuem com- petências, inteligência e capacidades para propor ações. A principal preocupação das/dos gestores é inserir as mulheres excluídas dos direitos mínimos em “progra- mas de benefícios assistenciais”, relegando-as a meros objetos passivos, receptivos. Fruto dos movimentos feministas da década de 1970, muitas mulheres acor- daram para vários tipos de opressão a que estavam sujeitas, independentemen- te das diferenças de classe, raça/etnia, religião ou cultura. Nesse sentido foram construindo uma consciência comum sobre a necessidade de colocar-se uma ao lado da outra para apoiarem-se mutuamente em relação ao domínio patriarcal que se caracteriza por um complexo cultural formado pelo sexismo, a misoginia, o machismo, a homofobia, bem como pelo classismo, racismo, a xenofobia e to-

dos os demais preconceitos que conduzem à exclusão e à negação da diferença. Elizabeth Fox-Genovese (1992) lembra que, inicialmente, as mulheres cria-

ram grupos e se identificavam com o termo “sororidade” ou “irmandade”, expres- sando os vínculos entre aquelas que viviam em pequenas comunidades, afirman- do lealdades específicas entre as mesmas.“Sororidade” é uma variante do termo “irmandade”, que provém do latim “sor” e é definida oficialmente como “irmã”, mantendo a referência de uma união entre as mulheres.

Durante o século XIX, por exemplo, nos Estados Unidos, mulheres negras escravizadas criaram uma densa rede de resistência cotidiana à opressão. “Essas mulheres que se reuniam para lavar roupa nos rios, capinar nos campos ou orar nas Igrejas teceram sua irmandade (sistherhood) em torno de uma teia de resistên- cias (...)” (FOX-GENOVESE, 1992, p. 32).

Para Fox-Genovese (1992, p. 34) “no centro da noção de irmandade está a afirmação de solidariedade e semelhança entre todas as mulheres”, e foi o senti- mento em torno desta categoria que ajudou muitas mulheres de classe média a romper a muralha do silêncio, permitindo-lhes criar uma linguagem comum para expressar hostilidades para com os homens. Foram grupos que insistiam que a competitividade e a hierarquia na política deveriam ser substituídas pelo igualita- rismo não competitivo e, como lembra a autora, era preciso substituir o modelo masculino do individualismo pelo modelo feminino da “irmandade de mulheres”.

Ana Maria Bach (2010, p. 49) adverte: “Considero que devemos ter cuida- do em não cair na mística da sororidade”, uma vez que esse termo sempre foi relativo a pequenos grupos que prestavam apoio entre si. Desta vez, o interesse comum é o feminismo e a irmandade entre as mulheres, neste caso, equivale à solidariedade política.

Entre as diversas correntes do feminismo, porém, temos identificado disputas de poder, provocando mal-estar entre as próprias mulheres, que por diversas ve- zes, chegam a perder o sentido de solidariedade. Um exemplo bem contundente ocorre na academia, onde a luta para conquistar o poder em diferentes níveis leva a confundir solidariedade com disputas, vantagens e conveniências.

Ao longo das últimas décadas, muitas mulheres foram se dando conta que continuavam “situadas” e “sitiadas” na inexistência do puro abstrato – que era o espaço privado. Tal pacto de exclusão (do âmbito cívico) e reclusão (no espaço doméstico e privado) teve que produzir uma indignação, seguida de reação por parte das mulheres. O antigo conceito de “sororidade” passa a ser “traduzido” e ressignificado pelas estudiosas do feminismo (KUBISSA, 1994; LAGARDE, 1996; RODRIGUEZ, 2002; AMORÓS, 2007;), que propõe um “pacto entre as mulheres”, um “pacto intragenérico” acrescido do “pacto intergenérico”; uma “aliança política” com o firme propósito de responder uma convicção: frear, di- minuir ou impedir a desigualdade de gênero que rebaixa a mulher a um estado de inexistência e marginalidade.

A epistemologia feminista é plena de criatividade e dinamismo; longe de ser um campo rígido e fixo, o pensamento feminista é nômade, rizomáticoe, portan- to, são necessárias invenções, ressignificações de novos conceitos, novas imagens e novas formas de pensar.

Nesse sentido, o conceito de “pactos entre as mulheres”,de acordo com Ku- bissa (1994), surge como uma catapulta contra o patriarcado, dando a entender que as mulheres estão embravecidas com os sucessivos “acordos entre homens” que desconsideram totalmente as suas competências e capacidades. Esses pac- tos têm produzido uma reação por parte de “sujeitos” (as mulheres) que até agora foram “pactadas como objeto”, principalmente no campo da política. Ou seja, as mulheres estão se conscientizando que querem sair da condição de “pac- tadas” (objeto) para a de “pactantes” (sujeitos). Elas podem estar mais ou menos organizadas, terem maior ou menor nível de consciência de sua marginalidade ou de sua condição de desigual, mas o importante é se unirem em torno das demandas que se caracterizam como dominação masculina e submetimento.

Perguntamo-nos: é possível construir alianças entre nós mulheres,a partir de uma posição política, a partir de uma forma diferente de fazer política, respeitan- do a Ética e os Direitos Humanos? Para isso, consideramos necessário adotarmos uma “perspectiva de gênero”.

A perspectiva de gênero como um processo sócio cultural que mobiliza mulheres de todo o mundo

Partindo de uma análise antropológica da cultura, Marcela Lagarde (1996) lembra que é importante reconhecer que todas as culturas elaboram cosmovi- sões sobre os gêneros. Neste sentido, cada sociedade, cada povo, cada grupo e todas as pessoas possuem uma particular concepção de gênero construída, forja- da, com base em sua própria cultura. Da mesma forma,continua a autora, cada etnia possui sua particular cosmovisão de gênero e a incorpora na sua identidade cultural,na sua etnicidade. Por esse motivo, para além de conter preconceitos, valores, interpretações, normas, deveres e proibições sobre a vida das mulheres e homens, para Lagarde (1996, p. 14), “a cosmovisão de gênero própria, parti- cular, é marcadamente etnocentrista”. Cada pessoa aprende a identificar-se com a cosmovisão de seu mundo e, como consequência, a cosmovisão de gênero é estruturante na formação de sua identidade.

É importante identificar, também, as diversas concepções de gênero que co- existem em cada sociedade, cada comunidade e em cada pessoa. É possível que uma pessoa, ao longo de sua vida modifique sua cosmovisão de gênero simples- mente porque, ao viver, muda a pessoa, muda a sociedade e, com ela, podem transformar-se seus valores, normas e maneiras de interpretar (julgar) os fatos.

O espaço da academia, da militância política, a participação em movimentos sociais e instâncias de políticas públicas têm possibilitado a mudança dessa cosmo- visão em muitas pessoas, tanto homens como mulheres, na medida em que pro- porcionam um olhar crítico sobre as questões de gênero, criando e evidenciando, inclusive, uma “perspectiva de gênero”.

Para Lagarde (1996), a perspectiva de gênero permite analisar e compreender as características que definem as mulheres e os homens de maneira específica, bem como suas semelhanças e diferenças. Ela analisa as possibilidades vitais das mulheres e dos homens: sua identidade de gênero, o sentido de suas vidas, suas expectativas e oportunidades, as complexas e diversas relações sociais que ocor- rem entre os gêneros, assim como os conflitos institucionais e cotidianos que devem enfrentar e a maneira que o fazem.

A análise de gênero, por sua vez, para Lagarde (1996, p. 16) “é delatora da ordem patriarcal, contém de maneira explícita uma crítica aos aspectos nocivos, destrutivos, opressivos e alienantes que se produzem na sociedade baseada na de- sigualdade, na injustiça e na hierarquização das pessoas,fundamentada no gênero”. A adesão de mulheres à perspectiva de gênero tem ocorrido como um pro- cesso aberto de criação teórico metodológica, de construção de conhecimentos e práticas sociais e políticas. Década a década, ano após ano, mulheres de uma grande diversidade de países, culturas, instituições, organizações e movimentos têm se identificado entre si e contribuído para enfrentar problemas antes inimagi- náveis. Elas têm estabelecido redes de comunicação, aprendizagem e investigação

e a partir destas, de participação pública e ação política.

A diversidade de mulheres e de problemáticas que lhe dizem respeito têm encontrado na perspectiva de gênero uma via para fazer avançar suas propostas; para tanto, tem criado mecanismos institucionais, redes, encontros, espaços, fóruns, congressos e assembleias. Através destes encontros e comunicações, so- bretudo mediante as produções de conhecimento que dali emergem, elas têm compartilhado descobertas, comparado e sistematizado experiências e, pouco a pouco, tecido consensos e alternativas. As teorias que convergem para uma perspectiva de gênero têm permitido uma construção ao mesmo tempo, in- dividual e coletiva, intelectual e empírica, pragmática e teórica, filosófica e, sobretudo política das mulheres.

Atualmente, a perspectiva de gênero é um dos processos socioculturais mais valiosos por sua capacidade de mobilizar e por seus frutos: mulheres de todo o mundo e de todas as condições sociais vivem uma experiência de identidade e po- lítica abarcadora – vide a Marcha Mundial de Mulheres - e contam com recursos de produção, difusão e execução “na prática” de alternativas concretas.

Por este motivo, a perspectiva de gênero se baseia em “outra lógica” para analisar os temas comuns, implica em outros valores,confere outro sentido ético à determinadas situações, choca e coloca em confronto as convicções ancestrais de muitas pessoas. O olhar através da perspectiva de gênero feminista nomeia de outras maneiras os fatos, explicita o que está oculto, visibiliza o que está escondi- do, vocifera o silenciado! Inclui o propósito de revolucionar a ordem dos poderes entre os gêneros e com isto, a vida cotidiana, as relações, os papéis e os estatutos de mulheres e homens. Abrange, de maneira concomitante, provocar mudanças na sociedade, nas normas, nas crenças, nos valores e no próprio Estado, ocasio- nando mal-estar nas pessoas mais rígidas e/ou resistentes (LAGARDE, 1996).

Um Estado que incorpore a perspectiva de gênero e que garanta os direitos dos cidadãos constitui o pressuposto básico da democracia de gênero: a cidadania está associada à garantia dos direitos.

Democracia de Gênero – compartilhar espaços políticos em nível de igualdade

Partimos do pressuposto que a democracia de gênero é uma meta, uma utopia a ser alcançada, transformando as relações sociais de acordo com os princípios democráticos propostos em lei.

Para Astelarra (2003), a democracia de gênero passa pela igualdade de opor- tunidades para homens e mulheres. Pela equiparação das mulheres com os ho- mens nos espaços e atividades consideradas masculinas. Pela correção da ausência de mulheres nos âmbitos dos papéis sociais até então definidos como masculinos. Para a autora, as políticas de igualdade de oportunidades, ações afirmativas, têm produzido importantes mudanças na situação das mulheres, no acesso ao espaço público e cotas para os cargos políticos. Astelarra entende que a proposta de uma democracia de gênero não só deve buscar estabelecer as mudanças necessárias na situação desigual das mulheres, mas, principalmente, investir na construção de relações de reciprocidade com os homens: realizar ações conjuntas com os ho- mens para as quais é necessário compartilhar espaços políticos; que as mulheres possam trazer seus problemas para o espaço público e colocá-los de igual para igual, na agenda política!

Célia Amorós (2007, p. 53) afirma que “conceitualizar é politizar” e traz para análise o conceito de “Pactos entre Varões” como um pacto entre homens que compactuam para excluir as mulheres e mantê-las fora da vida pública e caladas. Esta condição das mulheres estimula o sectarismo, na medida em que passam a competir entre si. E qualquer sectarismo favorece o patriarcado!

Temos constatado, diariamente, que a política brasileira se reduz em sua es- sência a ser um amplo “pacto entre varões”. Dela, raramente, nós mulheres parti- cipamos, havendo raros registros de mulheres envolvidas nos principais escânda- los ocorridos na política, entre os quais destaco: “O Mensalão”2 Operação “Lava Jato”3, a vergonhosa postura do então Presidente da Câmara de Deputados, Edu- ardo Cunha, que durante seu mandato propôs uma série de emendas contra os direitos humanos- apoiado por um grande número de correligionários: acelerou a aprovação do Estatuto da Família, que restringe o reconhecimento das famílias à união entre um homem e uma mulher; logo em seguida foi denunciado na ope-

ração Lava Jato no Superior Tribunal Federal (STF) pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro (mais de 40 milhões de dólares) de propinas de contratos fir- mados entre a Petrobras e fornecedores. Podemos ainda citar a infame sessão em que a Câmara dos Deputados aprovou o impeachment da então Presidenta Dilma Rousseff invocando Deus e a família, só faltou “a propriedade”4!

Os escândalos continuam nas pautas diárias dos jornais e da televisão, e a im- punidade tem sido fruto de um sedimentado “pacto entre varões” que, por medo de serem autuados em seus próprios crimes de corrupção, estabelecem acordos e silenciam diante dos próprios delitos.

É curioso constatar que já existiam organizações masculinas milenares, irman- dades formadas por varões e voltadas para o exercício de algum tipo de poder: confrarias religiosas (vide os filmes “O nome da Rosa”5 ou o “Código da Vinci”6); a Maçonaria7, as Máfias8 entre outras, desde os mais remotos tempos da humanida- de. Irmandades mafiosas femininas são desconhecidas, ou se houve alguma men- ção a elas, por exemplo, foram as dezenas de mulheres queimadas como bruxas nas fogueiras da inquisição, porque grupos de homens da época formavam pactos e não admitiam que elas pudessem dominar conhecimentos exercendo as funções de curandeiras, benzedeiras, entre outros.

Uma “irmandade mafiosa” também é analisada por Rita Laura Segato (2008). Ao pesquisar os casos de feminicídio ocorridos na Ciudad Juarez (fronteira norte do México com os Estados Unidos), constata a existência de uma rede de poder composta pelos governos em nível local, estatal e nacional,que dominam as estruturas administrativas da cidade. A autora afir- ma que os feminicídios cometidos na Ciudad Juarez não são “crimes comuns de gênero”, mas sim, “crimes corporativos”, crimes de um “Segundo Estado”, de um Estado paralelo, entendendo por corporação, o grupo ou rede que administra os recursos, direitos e deveres próprios de um Estado paralelo, estabelecido na região com tentáculos nas cabeças do país.

Para iluminar o conjunto de assassinatos na Ciudad Juárez, o que emerge é a sobreposição precisa entre a “irmandade masculina” e a “irmandade mafiosa”. O que a autora denomina de “irmandade mafiosa” inclui tanto os narcotraficantes, jovens marginais que cometem violência contra as moças da cidade, como todo o grupo de “confrades”, muitos das classes privilegiadas que participam dos lucros e vantagens dos crimes da fronteira. Trata-se de uma rede que articula membros da elite econômica, da administração pública e da justiça local, estatal e federal e, como provam os vinte anos de impunidade, as forças da lei que foram naturaliza-

das pelos integrantes corruptos que insistem em formar parte de uma articulação protética entre os poderes locais.

Em face desse lamentável diagnóstico, perguntamos: se nós mulheres nos uníssemos em pactos poderíamos minimizar esses escândalos, frear os feminicí- dios, não só na Ciudad Juarez mas também no Brasil? Se houvesse mais mulheres assumindo cargos de poder existiria menos corrupção e mais ética na política?

Monique Thiteux-Altschul (2010) ressalta que a corrupção não é neutra, mas quando exercida sobre os bens do Estado, sobre a “coisa Pública”, significa retrair recursos que serão aplicados em políticas públicas, que afetam, majoritariamente e diretamente, a vida das mulheres que estão em situação de maior vulnerabilidade.

O Banco Mundial em seu informe Engendering Development.Trough GenderEqua- lity in Rights, Resources andVoices (citado por THITEUX-ALTSCHUL, 2010, p. 11) afirma que mais mulheres em postos de poder garantem menos corrupção. Os países onde as mulheres têm mais direitos e participam mais da vida pública são aqueles que possuem empresas e governos menos corruptos.

Na lista dos países menos corruptos do mundo figuram a Dinamarca, Fin- lândia, Nova Zelândia e Suécia. No Parlamento da Dinamarca, 40% das cadeiras são ocupadas por mulheres. No Executivo, seis dos 19 ministérios (30%) são comandados por elas9. Atualmente, aproximadamente 33% do parlamento da Nova Zelândia é formado por mulheres e muitas ocupam posições de comando na sociedade, incluindo a primeira-ministra, a governadora geral, a chefe da justiça, entre outros10.

O Brasil está entre os países mais corruptos, ocupando o 69º lugar no ranking, atrás da África do Sul, na 67ª posição. A Rússia, a China e a Índia estão nas po- sições 136, 100 e 85 da lista, respectivamente. Se houvesse mais mulheres nos espaços de poder, será que esse índice de corrupção diminuiria?

Como tornar a política um espaço participativo? É possível um pacto entre as mulheres?

Para Marcela Lagarde (1996), todas as pessoas vivem imersas em relações de poder marcadas por seu gênero. As relações intergenéricas ocorrem en- tre pessoas de gêneros diferentes. Para além de suas vontades e de sua consciên- cia, mulheres e homens estabelecem relações de poder em todos os âmbitos. A ordem de poder patriarcal não se esgota nas relações entre homens e mulheres. Há um conjunto de poderes intragenéricos exercido entre os homens e outro exercido entre as mulheres.

As relações intragenéricas são aquelas que ocorrem entre pessoas do mesmo gênero, entre mulheres por serem mulheres, e entre homens por serem homens. A semelhança de gênero nesta ordem não significa paridade. Pelo con- trário, em cada categoria há hierarquias que enfrentam, antagonizam e localizam o domínio de mulheres sobre outras mulheres e de homens sobre outros homens. Todavia, Lagarde (1996) esclarece que há mecanismos que lhes permitem identificar-se, aliar-se e desenvolverem um “poderio de gênero” diferenciado. No caso das mulheres, as relações baseiam-se no estranhamento; ao contrário, nos homens sobrepõe-se uma básica identificação política. Para a autora, “os poderes intergenéricos e intragenéricos estão articulados entre si e formam uma comple-

xa ordem política no mundo patriarcal”(LAGARDE, 1996, p.66).

Por sua vez, Elena Simón Rodriguez (2002) afirma que é possível existir “pac- tos intergêneros”, ou seja,uma ação partilhada entre homens e mulheres, da qual surge a equidade de gênero, a solidariedade, a justiça distributiva de bens mate- riais ou não materiais (conhecimento, poder, amor, apoio); a confiança, a segu- rança, a responsabilidade mútua e compartilhada, o poder contar a/ao outro/a e saber que este/a pode contar comigo.

Conforme a autora, o pacto intergêneros baseia-se nos acordos advindos no âmbito da identidade de referência, como seres humanos: das mulheres com homens e dos homens com mulheres, para poder desconstruir mandatos patriar- cais de gênero e a dominação masculina universal, substituindo-os pela constru- ção de novas formas de relações, poder e convivência equitativa.

Para Rodriguez (2002), o pacto intergênero deve vir acompanhado de mais dois pactos: pacto intragênero – entre mulheres, e entre homens; e pacto intrap- síquico – no âmbito da subjetividade, ou seja, de cada pessoa consigo mesma, desconstruindo estereótipos na construção permanente e livre da sua formação como sujeito individual.

O pacto intrapsíquico remete a dois pontos importantes: primeiro, a importância de conseguirmos identificar-nos como feministas, sem medo dos jargões estereotipa- dos atribuídos pela sociedade: mulher macho, sapatona, mal-amada. Reconhecer que o verdadeiro significado de feminismo é lutar por uma sociedade com mais equidade de gênero! Em segundo lugar, desconstruir o modo de pensar introjetado pela academia e pela sociedade: de que as mulheres se unem pelo gênero e não por classe nem por raça; e que as mulheres brancas podem falar legitimamente em nome de todas as demais.

Consideramos que as categorias “pactos entre as mulheres” (AMORÓS, 2007; KUBISSA, 1994), e “pactos intergêneros” (RODRIGUEZ, 2002) podem ser vis-

tas como sinônimos de “aliança política”, entre todas as mulheres – de todas as classes raças, idades, orientação sexual entre outras interseccionalidades – bem como entre homens e mulheres com o firme propósito de responder a uma con- vicção: frear, diminuir ou impedir a desigualdade de gênero e a violência.

Marcela Lagarde (1996) defende que um Desenvolvimento Humano Susten- tável é impensável sem democracia, e esta se baseia em uma ampla participação social, reconhecida, capacitada e dotada de recursos econômicos e políticos da ci- dadania das pessoas - homens e mulheres – em suas diversidades e especificidades. A “democracia genérica”, conceito utilizado por Lagarde (1996, p. 190), amplia a concepção de democracia ao centrá-la “entre os gêneros” e abranger a cultura como essencial para construí-la, ampliá-la e consolidá-la. Para esta autora, a política é uma dimensão privilegiada para alcançar a democracia. Porém, não se trata de conceber a política como política pública, profissional e representativa.Trata-se de conceber a política como um espaço participativo, de legitimação de direitos, pactos e poderes, públicos e privados, institucionais, estatais, civis e comunitários.

Isso implica que as necessidades básicas das mulheres devem ser explicitadas, que as mulheres possam ser reconhecidas efetivamente como “sujeitos políticos”, assumir cargos de poder e transformar suas demandas em políticas públicas.

Sem dúvida, o espaço da democracia é o espaço dos direitos. Reconhecer este fato é lembrar que as políticas neoliberais têm provocado resultados desastrosos no que se refere à diminuição dos postos de trabalho e dos apoios e recursos gover- namentais ou estatais. O crescente afastamento do Estado na esfera do “Bem-Estar Social” tem repercutido diretamente na transferência dos serviços de cuidado e atenção cotidiana, de saúde, educação e alimentação para o mundo privado.

As mulheres que assumem cargos políticos nem sempre se identificam com as questões de gênero, ou seja, são raras as que possuem uma “consciên- cia feminista de gênero”. A falta desta identificação faz com que a articulação com outras mulheres, a troca de saberes e experiências “intragênero” não seja prioritária. É lamentável constatar a falta de memória histórica de gênero, o desconhecimento de muitas mulheres sobre as lutas e conquistas alcançadas, e mais grave ainda, é triste averiguar que algumas mulheres fazem alianças com homens sem sequer consultar suas “congêneres”.

Essa realidade, para Lagarde (1996), configura uma das vias mais graves da desigualdade, que é a falta de espaço e de oportunidades para que as mulheres possam estabelecer alianças de gênero – pactos entre mulheres, e forjar uma consciência coletiva. A condição política de pactante, para autora, só se alcan-

ça na dimensão coletiva, “se o seu suporte for uma aliança entre mulheres e homens; se o cimento para a edificar for uma ética feminista pactada em um paradigma: a construção de normas de igualdade, equidade e justiça entre os gêneros” (LAGARDE, 1996, p. 199).

A proposta feminista de democratização inclui democratizar o gênero femini- no, as relações com o outro gênero no âmbito da sociedade e as relações de ambos gêneros com o Estado. A este conjunto chamamos “a construção de uma cidadania plena entre mulheres e homens” (LAGARDE, 2015, p. 202).

Reflexões para concluir

A atuação de homens e mulheres na política, seguramente está guiada por diferentes éticas! As mulheres têm demonstrado, através de anos de lutas e mo- vimentos, que as principais conquistas em relação aos seus direitos foram alcan- ças, na grande maioria, por elas mesmas.

Por este motivo, os “pactos entre mulheres” e os “pactos intergêneros” demandam,acima de tudo,solidariedade, que para Ana Maria Martinez de Escale- ra (2013)se manifesta por meio de experiências conjuntas, tanto de apoio como de resistência, evidenciando que há várias maneiras de exercitar relações entre corpos (criativas, afetivas, sexuais, de cooperação, de divisão de tarefas), ou seja, é possível outro tipo de convivência, mais humana e menos desigual. A solida- riedade entre mulheres ou entre homens e mulheres pode estender-se também, como uma experiência coletiva, um simplesmente “estarmos juntas/juntos”. A autora crê firmemente que “os coletivos de mulheres têm dado respostas sim- ples a esta interrogação: estar juntas começa onde acaba o seguir suportando a dominação,aonde quer que esta se manifeste” (ESCALERA, 2013, s/p).

Os “pactos entre as mulheres” requerem centralidade ética e estética femi- nista como princípios; usar uma linguagem de respeito entre nós mesmas; não depreciar; considerar a estética de cada uma de nós como uma escolha de sujeitos livres, sem amarras nem tabus; não explorar pessoas – isso vale para as empresá- rias, empreendedoras, contratantes – não oprimir / não submeter as mulheres a nenhum tipo de violência nem humilhação. Respeitar as diferenças de classe, raça/etnia, orientação sexual, identidade de gênero, geração, enfim, evitar com- petições e disputas entre nós mesmas, pois estas acirram ainda mais a dominação masculina que se enriquece com as nossas desavenças!

Trabalhar por uma democracia de gênero exige passar do drama individual ao discurso público: “o pessoal é político”. Para podermos construir um projeto de-

mocrático e plural, no qual a diferença sexual seja uma distinção pertinente den- tro das relações sociais, necessitamos remontar a crise, recuperar a esperançae a credibilidade nas instituições; em outros termos, gerar um projeto que articule cidadania, autonomia e negociação.

Necessitamos de mais mulheres ocupando espaços de poder para que nossas reivindicações possam ser explicitadas, reconhecidas e contempladas no campo da política e para diminuir os índices de corrupção em nossa sociedade. Carecemos de apoio a mulheres que se disponibilizam a assumir cargos políticos dos partidos políticos,encaminhando-as para cursos de capacitação que propiciem o seu empode- ramento; dos coletivos feministas e grupos de mulheres, que possam confiar mais em mulheres, votar mais em mulheres e participar como sujeitos nos processos democrá- ticos que uma gestão implica; dos familiares e amigos, que possam propiciar tranqui- lidade no cotidiano da gestão dessas mulheres, na medida em que assumem as tarefas domésticas, compartilhem a dimensão do cuidado e coloquem em prática a verda- deira divisão sexual do trabalho em relação à casa, aos filhos, aos idosos e enfermos.

Para tanto, convidamos os homens e as mulheres para unirem-se a nós, esta- belecendo pactos intergenéricos e intragenéricos, visando uma sociedade mais justa, mais igualitária e com mais equidade de gênero na política.

Referências

AMORÓS, C. La gran diferencia y sus pequeñas consecuencias… para las luchas de las mujeres. Universitat de Valencia, Instituto de la Mujer, Co- lección Feminismos, 2007.

ASTELARRA, J.. Democracia, Género y Sistema Político. In: MEENT- ZEN, A. y GOMÁRIZ, E.. Democracia de género, una propuesta inclu- siva. Fundación Heinrich Böll, Impresso en El Salvador por: Econoprint S.A, 2003, p. 26-39.

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ESCALERA, A.M. M.de la. Consideraciones sobre política feminista. (impresso) FFyL, UNAM, 2013.

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THITEUX-ALTSCHUL, M.. Género y Corrupción – las mujeres en la demo- cracia participativa. Buenos Ayres: Libros del Zorzal, 2010.

Notas

1 Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Co- ordenadora do Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH/ UFSC) E-mail: tkleba@gmail.com
2 Ocorreu em 2005 na Câmara Federal (Brasília) - Foi um esquema de corrupção de parlamen- tares, onde deputados que compunham a chamada “base aliada” recebiam, R$ 30 mil mensais para votar de acordo com os interesses do governo Lula. Apenas três deputados foram cassados. A conta final foi estimada em R$ 55 milhões. Disponível em: < http://www.sitedecuriosida- des.com/curiosidade/quais-os-piores-escandalos-da-politica-brasileira.html>. Acessado em 08/03/2016.
3 As investigações da Operação Lava Jato, que desarticulou um mega esquema de corrupção na Petrobras, mostram que tanto a Polícia Federal (PF), quanto o Ministério Público Federal (MPF), conseguiram chegar a uma espécie de “espinha dorsal” de outros casos de corrupção em todo o Brasil. Para os investigadores, esta é a primeira vez que os elos entre diferentes esque- mas são tão fortes.
4 ATradição, Família e Propriedade (TFP) é uma organização civil de inspiração católica tradicio- nalista fundada no Brasil em 1960 pelo professor catedrático, deputado federal Constituinte em 1934, escritor e jornalista católico paulista Plinio Corrêa de Oliveira. Ela é pautada na tradição católica e no combate às ideias maçônicas, socialistas e comunistas. Disponível em: <https:// pt.wikipedia.org/wiki/Tradição_Familia_e_Propriedade>. Acessado em 08/03/2016. Importar tabla
5 Quem exercia o poder no convento era uma corporação de clérigos comprometidos em escon- der as obras de Santo Agostinho, que traziam críticas ao período da Antiguidade, na passagem para a Idade Média.
6 A trama do filme envolve grandes organizações católicas como o “Opus Dei” e sociedade secre- ta conhecida como “Priorado de Sião”.
7 Para ser membro da maçonaria é preciso um convite formal e é obrigatório que o indivíduo seja iniciado por outros maçons. Além disso, para se manter na ordem dos maçons, é necessário cumprir uma série de juramentos e obrigações, sejam elas esotéricas ou simbólicas. Disponível em: <http://www.significados.com.br/maconaria/>. (Acessado em 08/03/2016)Informar dados de acesso.
8 Máfia é uma organização criminosa cujas atividades estão submetidas a uma direção colegial oculta e que repousa numa estratégia de infiltração da sociedade civil e das instituições. Dispo- nível em:<https://pt.wikipedia.org/wiki/Mafia>. Acessado em 08/03/2016.
9 Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2015-04/dinamarca- -se-prepara-para-centenario-da-participacao-das-mulheres-na>. Acessado em: 08/03/2016.
10 Disponível em: <http://www.portaloceania.com/nz-diverses-womentips-port.htm>. Aces- sado em: 08/03/2016. Artigo recebido no mês de março de 2017 e aceito para publicação no mês de maio de 2017.
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