Resumo: O artigo propõe-se a identificar, no trabalho das cuidadoras em saúde mental,a perpe- tuação do racismo como uma das ideologias de dominação na formação social brasileira. No primeiro momento tratou-se acerca das escravas e africanas livres que serviam nos hospícios a partir da terceira década do século XIX. Em seguida, sobre a mudança da psiquiatria tradicional à Reforma Psiquiátrica e Atenção Psicossocial. Por fim, identificou se, no cenário pós-reforma psiquiátrica, o trabalho das mulheres negras, dando destaque à invisibilidade e à subalternidade que perpassam a ocupação de cuidadora e que estão vinculadas às desigualdades de classe e raça existentes na realidade brasileira.
Palavras-chave:Mulheres negrasMulheres negras,Saúde mentalSaúde mental,cuidadorascuidadoras,escravasescravas.
Artigos
“De escravas a cuidadoras”: invisibilidade e subalternidade das mulheres negras na política de saúde mental brasileira
“De escravas a cuidadoras”: invisibilidade e subalternidade das mulheres negras na política de saúde mental brasileira
Rachel Gouveia Passos1
Resumo
O artigo propõe-se a identificar, no trabalho das cuidadoras em saúde mental,a perpe- tuação do racismo como uma das ideologias de dominação na formação social brasileira. No primeiro momento tratou-se acerca das escravas e africanas livres que serviam nos hospícios a partir da terceira década do século XIX. Em seguida, sobre a mudança da psiquiatria tradicional à Reforma Psiquiátrica e Atenção Psicossocial. Por fim, identificou se, no cenário pós-reforma psiquiátrica, o trabalho das mulheres negras, dando destaque à invisibilidade e à subalternidade que perpassam a ocupação de cuidadora e que estão vinculadas às desigualdades de classe e raça existentes na realidade brasileira.
Palavras-chave
Mulheres negras; Saúde mental; cuidadoras; escravas.
“From slaves to caregivers”: invisibility and subalternity of black women in Brazilian mental health policy
Abstract
The article proposes to identify the work of mental health care givers the perpetuation of racism as one of the ideologies of domination in Brazilian social formation. In the first moment we dealt with the slaves and free Africans who served in the hospices from the third decade of the nine tenth century. Next, we talk about the change from traditional psychiatry to Psychiatric Reform and Psychosocial attention. Finally, the work of black women is identified in the psychiatric post-reform scenario, highlighting the invisibility and subalternity that permeate the occupation of caregiver and which are linked to the class and racial inequalities existing in the Brazilian reality.
Keywords
Black women; Mental health; Care givers; Slaves.
Introdução
Nas produções acadêmicas direcionadas para a história da psiquiatria e para a história das mulheres poucas foram as vezes que identificou-se a presença das escravas e das africanas livres que serviam nos hospícios brasileiros. Essa dupla invisibilidade nos mostra como temos lidado com a subalternidade do tema da escravidão e da questão racial nas pesquisas e nas produções acadêmicas.
Além disso, nas atuais configurações da política de saúde mental, no contex- to pós-reforma psiquiátrica brasileira, poucas são as pesquisadoras que se de- bruçam sobre a temática das relações de gênero e da questão racial2. A escassez da análise impede avanços, inclusive, nas abordagens dos serviços substitutivos, uma vez que naturalizamos as desigualdades e opressões sociais, raciais/étnicas e de gênero nas relações sociais do cotidiano.
Tais questões atravessam o cuidado em saúde mental que é viabilizado às pessoas em sofrimento psíquico grave e que demandam o suporte dos ser- viços substitutivos, em especial, os serviços residenciais terapêuticos. Cabe assinalar que esses dispositivos possuem uma particularidade, pois não são voltados para o “tratamento” em saúde mental e, sim, para moradia, logo, são casas localizadas na cidade.
São nessas casas – denominadas de residências terapêuticas (RT) – que locali- zamos as cuidadoras ou trabalhadoras do care. As cuidadoras são as trabalhadoras que viabilizam o cuidado3 diário das pessoas em sofrimento psíquico, uma vez que a maioria dos moradores dessas casas estiveram internados longos anos em hospitais psiquiátricos e demandam um suporte para lidarem com a vida. Essas trabalhadoras, na realidade do município do Rio de Janeiro, são mulheres negras, sem formação e que pertencem às camadas subalternas (PASSOS, 2016).
Nesse caminho, o presente artigo divide-se em três partes: a primeira parte iremos tratar acerca das escravas e africanas livres que trabalhavam nos hospícios brasileiros. Queremos dar visibilidade a essas mulheres que, de cer- ta forma, “sustentaram” a perpetuação da lógica manicomial com sua força de trabalho. Na segunda parte, será abordada a mudança de paradigma da psi- quiatria tradicional e o seu modelo de tratamento localizado no manicômio para a Reforma Psiquiátrica e a Atenção Psicossocial, o que é fundamental para compreendermos a ruptura existente entre ambos, inclusive sobre a concepção de loucura e sociedade. Por fim, na terceira parte, trataremos sobre o trabalho das mulheres negras no campo da Atenção Psicossocial, dan- do destaque à subalternidade e à invisibilidade das cuidadoras nos serviços
residenciais terapêuticos. Entendemos que esta ocupação está vinculada às desigualdades de classe, gênero, raça/etnia existentes e são perpetuadas na formação social brasileira.
A natureza dessa análise é resultado de reflexões oriundas da pesquisa de dou- toramento. O método aqui apropriado é o materialismo histórico dialético e a metodologia selecionada foi a revisão de literatura e análise qualitativa. Utili- zamos ainda, dados quantitativos produzidos para a tese, além de documentos publicados pelo IBGE.
As escravas e africanas livres dos hospícios brasileiros
Apesar da temática aqui tratada não estar relacionada ao adoecimento psí- quico das mulheres e dos homens negros do século XIX, é por meio de estudos sobre escravidão, saúde, doenças e práticas de cura que localizamos o trabalho das mulheres negras nos primeiros hospícios brasileiros. A maioria dos pesquisadores busca a identificação do perfil dos alienados desse período, conforme assinala Ribeiro (2016), dando destaque às publicações de Manoel Olavo Teixeira (1998) e Magali Engel (2001) que sinalizam que poucos eram os negros e mestiços aten- didos no Hospício de Pedro II (RIBEIRO, 2016).
O Hospício de Pedro II foi inaugurado em 1852, na atual região da Praia Vermelha, localizado na zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Esse modelo de tratamento para a “loucura” veio importado da França e fundamentado na psiquia- tria pineliana4. A “loucura” só chegou a ser objeto de intervenção específica por parte do Estado a partir da chegada da Família Real. Antes da criação do asilo de alienados, os sujeitos eram encaminhados para as Santas Casas da Misericórdia, principalmente os mais pobres. Cabe assinalar que escravos e homens livres tam- bém eram atendidos na instituição (RIBEIRO, 2016).
Em sua pesquisa, Ribeiro (2016) assinala que localizou um livro de “Matrícula de escravos” do Hospício Pedro II5. Neste livro é possível encontrar dados sobre os escravos que serviam no hospício. Como os negros/negras trabalhadores não eram objeto de análise da autora, não obtivemos maiores informações acerca do assunto em seus estudos e por isso não identificamos o perfil desses trabalhadores negros/negras (RIBEIRO; 2016).
Já Bertin (2010), ao tratar sobre a “Sociabilidade negra na São Paulo do século XIX” apresenta-nos a presença de africanos livres que trabalhavam nos hospícios paulistas. Os africanos livres foram aqueles que chegaram ao Brasil depois do es- tabelecimento da Lei de 1831, que tornou proibido o tráfico de escravos.
As embarcações apreendidas por entrarem ilegalmente com escravos no país deveriam ser julgadas, no Rio de Janeiro, por uma Comissão Mista forma- da por representantes brasileiros e britânicos. Uma vez comprovado o tráfico ilegal, os escravos eram liberados e recolhidos à Casa de Correção da Corte para que fossem protegidos da escravização. Passavam a ser chamados africanos livres e eram informados da nova condição. A pressão britânica pela abolição do tráfico incluía a tentativa de definir como africano livre todo africano que entrasse no país após 1831, independentemente de ter passado pela Comissão Mista no Rio de Janeiro (BERTIN, 2010, p. 118-119).
Os africanos livres eram mantidos sob a tutela do Estado e deveriam cumprir, no mínimo, 14 anos de trabalho6, na condição de “libertos”. Esse trabalho deveria ser realizado em serviços públicos ou privados, “até que al- cançassem a capacidade para a autonomia, quando poderiam obter a carta de emancipação” (BERTIN, 2010, p. 119). Segundo a autora, em São Paulo, as instituições públicas que mais utilizavam essa força de trabalho eram: a Fábri- ca de Ferro São João do Ipanema, Colônia Militar do Itapura, Obras Públicas, Casas de Correção, Jardim Público, Hospício, Quartel, Santa Casa, Seminá- rio das Educandas e Seminário Santa Ana.
No hospício de alienados, em especial, uma das atribuições das mulheres negras era a higiene das roupas dos internos e dos demais africanos. “No ano de 1862, por exemplo, Paulina e Eugênia dividiam a rotina diária de lavagem das roupas dos 34 internos, além dos serviços gerais de limpeza do asilo e de auxílio na enfermagem” (BERTIN, 2010, p. 120). Podemos notar que as africanas livres e as escravas acabavam exercendo as atividades voltadas para a organização da limpeza, da lavagem e organização das roupas, demais serviços gerais e também de um trabalho que envolvia ”cuidados” diretos as pessoas internas no hospício – vide o auxílio na enfermagem. Tais atribuições são ex- tremamente relevantes e importantes, inclusive, para a própria reprodução da lógica manicomial.
A localização do Seminário próximo aoTanque do Arouche até 1862, e depois disso, à margem do rio Tamanduateí, indica que era nestas águas que as africanas cum- priam a tarefa diária de lavanderia do asilo.Ao considerarmos a exiguidade de vestes dos africanos livres e dos alienados – que em geral recebiam uma troca por ano
– e a dificuldade para a obtenção da água, o trabalho das africanas lavadeiras ganha contornos de atividade essencial para os estabelecimentos (BERTIN, 2010, p. 120).
Nesse caminho, podemos identificar de forma preliminar o trabalho invisível e subalterno das mulheres negras (escravas e africanas livres) nos hospícios brasi- leiros. Os africanos livres, escravos e libertos contribuíram imensamente com a movimentação e transformação do espaço urbano em São Paulo, entretanto, para Bertin os “negros ocuparam os espaços públicos, mas resistiram em ser apenas mão-de-obra” (BERTIN, 2010, p. 130), o que para nós é bastante questionável, já que a autora não apresenta em nenhum momento o movimento negro de resis- tência. Para Clóvis Moura (1994, p. 62), existe um mito que é um dos mais caros da historiografia tradicional brasileira: “o da passividade do escravo e da benigni- dade da escravidão em nosso país”.
Por fim, eram recorrentes as solicitações de serventes negros para os diver- sos estabelecimentos públicos, pois aproveitava-se da precarização e escassez de mão-de-obra para suprir por meio do rodízio de africanos livres. “Um ofício do administrador Alvarenga, de 1863, reclamando serventes para o Hospício, informa a importância que os africanos livres tiveram no serviço público”:
Estando muito sentida no serviço do estabelecimento a falta do casal de africanos de que tratei no ofício que em data de 15 do corrente mês enderecei a
V. Exa, por não ser possível que o outro casal existente para dar conta da condu- ção de água e de gêneros, lavagem de roupa, limpeza e lavagem diária de grande parte da casa, e de muitos outros serviços, rogo por isso a V. Exa para que se digne providenciar a fim de virem para que mais dois africanos que coadjuvem nesse serviço (BERTIN, 2010, p.120-121).
Apesar da escassez de literatura e pesquisas acerca do trabalho das mu- lheres e homens negros nos hospícios brasileiros, esta história não pode ser apagada e esquecida. É necessário avançarmos para identificarmos a perpe- tuação desse trabalho nos moldes do racismo moderno por meio dos novos arranjos e significados.
Num país que, como o nosso, teve quatro quintos de sua história vividos sob o sistema escravista, a compreensão em profundidade de sua trajetória implica, ne- cessariamente, esmiuçar os segredos do escravismo, resgatar as lutas escravas con- tra esse sistema opressivo, rastrear nesse passado conflituoso as raízes dos dramas que o povo e a nação brasileira vivem em nosso tempo. Afinal, as marcas desse passado escravista e colonial estão ainda vivas nas instituições políticas brasileiras; na forma de organização da produção material; na maneira como nós brasileiros, nos relacionamos entre nós e com o mundo (MOURA; 1994, p. 62).
O pensamento escravocrata, patriarcal e colonialista ainda permanece nas re- lações sociais brasileiras contemporâneas, principalmente quando questionamos o “mito da democracia racial”. Para Abdias Nascimento (2016) a mulher negra recebeu uma herança que ainda lhe custa um preço muito alto. Ao obtermos de Portugal a estrutura patriarcal, os senhores de escravos, além de tratarem as ne- gras como subumanas ou inumanas, consistiam ainda da exploração sexual dessas mulheres. “Ainda nos dias de hoje, a mulher negra, por causa da sua condição de pobreza, ausência de status social, e total desamparo, continua vítima fácil, vul- nerável a qualquer agressão sexual do branco” (NASCIMENTO, 2016, p. 73-74).
Da Psiquiatria tradicional a Atenção Psicossocial
O início da Reforma Psiquiátrica brasileira (RPb) deu-se ao mesmo tempo em que o país exigia transformações em seu panorama político, econômico e social. Assim, ocorreu“no contexto de reivindicações de mudanças concretas e se desenvolveu no campo da luta dos movimentos sociais, na conjunção da sociedade civil e do Estado” (FERREIRA, 2006, p. 132). Para Ferreira (2006) a Reforma Psiquiátrica seguiu, passo a passo, o processo de democratização do país.
No final da década de 1970, em abril de 1978, houve o estopim do episódio do movimento da reforma psiquiátrica brasileira, provocado pela “Crise da DINSAM” (Divisão Nacional de Saúde Mental) (AMARANTE, 1995). Foi nesse período, que Franco Basaglia7 e Michel Foucault visitaram o Brasil, aquecendo os debates sobre as vinculações de poder existentes nas relações psicológicas/psiquiátricas. A in- teração entre os diversos atores colaborou para outras formas de conhecimento, práticas e questionamentos sobre o objeto loucura e trouxe a luta pelos direitos das pessoas em sofrimento psíquico a espaços não exclusivamente médicos.
A crise da DINSAM disparou após a denúncia de médicos residentes do antigo Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII)8, localizado no Rio de Janeiro. Nasceu, a partir desse movimento, reuniões de diversos grupos interessados em transfor- mar a saúde mental, reunindo sindicatos e outras formas de organizações da so- ciedade civil. Em 1978, emergiu o Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) com o objetivo de realizar debates que pudessem proporcionar a trans- formação da assistência psiquiátrica que, até aquele momento, estava centrada no poder/saber médico – expresso na figura do psiquiatra –, na internação e no hospital psiquiátrico como única medida para tratamento.
De acordo com Amarante (1995, p. 52), o MTSM nasceu com o objetivo de tornar-se um “espaço de luta não institucional, em um lócus de debate e encami-
nhamento de propostas de transformação da assistência psiquiátrica”. Questiona- vam-se tanto as condições de trabalho as quais eram submetidos os trabalhadores quanto a assistência prestada a população: denunciaram violências, negligências e o controle social que ocorria dentro dos hospitais psiquiátricos.
A partir do final da década de 1980 e início da de 1990, iniciou-se um pro- cesso de mudanças legislativas, em que começaram a circular projetos de lei esta- duais e municipais, legislando sobre a questão dos direitos dos usuários da saúde mental. Ainda em 1980, o Ministério da Saúde redigiu o documento “Diretrizes para a área de Saúde Mental”. A característica do documento era a substituição do modelo assistencial custodial por um mais abrangente, ou seja, de um enfoque exclusivamente organicista para uma abordagem multicasual do transtorno men- tal. Incluía o debate sobre a integração das ações de saúde mental desenvolvidas na rede de serviços de saúde, com a criação de unidades intermediárias entre a internação e o ambulatório tradicional.
O auge do contexto reformista ocorreu em 1986, em Brasília, com a 8ª Con- ferência Nacional de Saúde, que inaugurou uma nova contextualização do pro- cesso de participação social, sendo aberta e consultiva, estimulou a inserção da sociedade civil. Foi proposta a realização de conferências temáticas, ocorrendo, em 1987, a I Conferência Nacional de Saúde Mental. Nesse mesmo ano, aconte- ceu o II Congresso Nacional do MTSM, na cidade de Bauru, que contou com 350 participantes. Neste evento demarcou-se o lema do Movimento da Luta Antima- nicomial: “Por uma sociedade sem manicômios”.
É de extrema importância sinalizarmos que o Lema da Luta Antimanicomial não traz consigo uma mera reforma assistencial em saúde mental, ele expressa em sua natureza um projeto societário de transformação. A luta “por uma sociedade sem manicômios” coloca-se contrária às desigualdades de classe, gênero, raça/ etnia e a favor da superação da propriedade privada. Identificamos este projeto societário na Carta de Bauru de 1987. Entretanto, ele vem sendo abandonado por muitos militantes, uma vez que a estratégia da institucionalização das práticas tornou-se a saída principal e a pactuação entre classes vem influenciando forte- mente a direção da Reforma Psiquiátrica.
Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agente da exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana, inauguramos um novo compromisso.Temos claro que não basta raciona- lizar e modernizar os serviços nos quais trabalhamos.
O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os mecanis- mos de exploração e de produção social da loucura e da violência. O compromis- so estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora organizada.
O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorpo- rar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida (CARTA DE BAURU, 1987).
Já, em 1988, com a Constituição Cidadã, surgiu o SUS – Sistema Único de Saúde, que apontava para a construção de um sistema universalista dentro dos parâmetros do Estado de Bem-Estar Social. Assim, em 1989, o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado (PT/MG) foi apresentado no Congresso Nacional, propondo a regulamentação dos direitos das pessoas com transtorno mental e a extinção progressiva dos manicômios no país. Nesse cenário, demarcou-se o iní- cio do movimento da Reforma Psiquiátrica nos campos legislativo e normativo.
O novo modelo de cuidado em saúde mental, efetivado pelos dispositivos que substituem o hospital psiquiátrico, propõe não só a superação da lógi- ca hospitalocêntrica, medicamentosa e excludente, mas também a visão do diálogo junto à comunidade e à família, a fim de proporcionar uma gestão compartilhada do cuidado9, procurando promover e viabilizar a emancipação política. É importante frisar que a Reforma Psiquiátrica brasileira adotou o processo de desinstitucionalização das pessoas em sofrimento psíquico como sua principal estratégia.
No processo de transformação do modelo dominante, a RPb, além de abor- dar as mudanças dos serviços assistenciais, também destaca a desconstrução da abordagem clássica da psiquiatria, ou seja, propõe-se um novo olhar sobre o modelo conceitual e assistencial acerca da loucura, que passa a visar a cons- trução de uma ciência social crítica, que aponte para a transformação do “lugar social” do louco (AMARANTE, 2007). De acordo com Rotelli (1990, p. 30), com a transformação do “objeto” de intervenção, o processo de desinstitucio- nalização redefine referências e vê-se diante da complexidade do objeto, não mais se limitando ao processo de “cura”, mas, tão logo, voltando-se ao processo de “invenção de saúde” e de “reprodução social do paciente”.
A nova perspectiva buscou compreender e se relacionar com os sujeitos e não mais com a doença, que é posta entre parênteses, permitindo e promovendo um deslocamento da identidade social doada a esse sujeito enquanto desprovido de razão. Esta mudança significa a necessidade de superação da intolerância em rela- ção ao sujeito em sofrimento psíquico e de sua experiência subjetiva, considerada “loucura”, devendo ser respeitada já que faz parte de sua condição.
Nesse sentido, as mudanças viabilizadas pela RPb compõem o campo da Atenção Psicossocial. Para Amarante (2007) a Atenção Psicossocial é composta por quatro dimensões: a dimensão jurídico-política (mudanças nas legislações e portarias); dimensão teórico-conceitual (novas bases teóricas que sustentam esse campo); dimensão técnico-assistencial (novas formas de operar o cuidado em saú- de mental) e a dimensão sociocultural (que é a transformação ética e política do pensamento manicomial reproduzido nas relações sociais). Logo, esse novo cam- po rompe com a psiquiatria tradicional e suas bases de sustentação.
É preciso sinalizar que a Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial bra- sileira não caminharam sem divergências internas e nem oposições. As principais forças de oposição são colocadas pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e também pela Associação dos Amigos e Familiares dos Doentes Mentais (AFDM), pois ambas defendem a internação, o hospital psiquiátrico e a centralidade do poder/saber médico no “tratamento” das pessoas em sofrimento psíquico.
Em relação à divergência interna do Movimento de Reforma Psiquiátrica, torna-se possível identificarmos dois projetos em disputa: o primeiro diz res- peito ao projeto de Reforma Psiquiátrica assentado na perspectiva radical da Luta Antimanicomial e no Lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Este projeto pauta-se nos princípios defendidos na Carta de Bauru que expressam um projeto societário e não apenas em uma “reforma” da assistência psiquiá- trica. E o segundo, que diz respeito a uma RPb “simpática” aos interesses do neoliberalismo e do grande capital. Tal projeto vem aceitando a implantação da Reforma Psiquiátrica a qualquer custo e sem questionar, inclusive, a gestão do ex-presidente Lula da Silva. Destacamos que a RPb vem sendo implantada, principalmente, através de parcerias público-privadas, seja com ONGs, Organi- zações Sociais, Fundações, etc. Além disso, tivemos a inserção das comunidades terapêuticas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS); o engessamento da pró- pria Rede de Cuidados através do estabelecimento da portaria n. 3.088/2011 que institui a RAPS; a pouca expansão dos serviços substitutivos, destacando o não avanço das residências terapêuticas; a precarização das formas contratuais;
o engessamento do fechamento dos leitos psiquiátricos em todo o Brasil. Pode- mos assinalar que foi na gestão de Roberto Tykanori na coordenação nacional de saúde mental (2011-2015), do Ministério da Saúde, que identificamos de forma mais clara esse projeto. Logo, temos um determinado avanço da RPb expresso apenas nas mudanças legislativas e assistenciais.
O trabalho das mulheres negras na Atenção Psicossocial: uma outra lógica, a mesma invisibilidade e subalternidade
Ao retomarmos o trabalho das mulheres negras, agora no século XXI, no contexto pós-reforma psiquiátrica, identificamos nas atribuições das cuidadoras dos serviços residenciais terapêuticos aproximações ao trabalho executado pelas escravas e africanas livres nos hospícios do século XIX. Essa relação está vinculada às desigualdades existentes na formação social brasileira que se encontram es- truturadas nas diferenças de classe e raça. Para Moura (1994a, p. 30), “o racismo pode ser considerado – da forma como entendemos atualmente – um dos galhos ideológicos do capitalismo”.
No primeiro momento, foi possível perceber que as escravas e as africanas livres lidavam com os serviços gerais de limpeza, da lavagem das roupas dos inter- nos e dos homens africanos e também auxiliavam nas atividades da enfermagem. Já nesse segundo momento, veremos que as atribuições e o perfil das trabalha- doras não sofreram transformações, pelo contrário, aprofundou-se e enraizou-se nomito da “democracia racial” e na negação da existência do racismo.
Em 2014, o IBGE10 publicou uma síntese da pesquisa realizada nos anos de 2012-2013, identificando que a maioria das trabalhadoras com carteira de tra- balho assinada são mulheres brancas, sendo elas 58,4%. As negras (pretas ou pardas)11 compõem a maior proporção de trabalhadoras domésticas, sendo elas 57,0%. Entre as que não possuem carteira assinada, somam 62,3%. Em relação à desigualdade entre as mulheres, no que se refere à escolarização, as negras são de 42,5% das mulheres sem instrução ou com nível de ensino fundamental incom- pleto, enquanto as brancas são 28,2%.As disparidades também são localizadas no nível superior: as mulheres brancas são 26,0%, considerando que as condições destas são mais favoráveis em relação às mulheres negras que ficam em 11,2%. Já em relação ao nível de escolaridade das mulheres ocupadas, este é superior ao dos homens, que apresentam uma maior proporção de ocupados sem instrução e sem ensino superior incompleto, 45,5%, enquanto as mulheres aparecem com 34,8%. Portanto, fica evidente a desigualdade de classe e raça em relação ao tra-
balho feminino.
No caso da política de saúde mental, o novo modelo de cuidado expresso na Atenção Psicossocial vem apresentando novas demandas de atividades e atribui- ções ao campo, possibilitando a inserção de trabalhadoras que não possuem qual- quer formação específica para operacionalizar o cuidado em saúde mental. Essas atividades possibilitam a inserção massiva das mulheres que estão subalternizadas na pirâmide social, conforme sinalizado pelos dados do IBGE (2014):as negras pobres sem formação. Localizamos a inserção massiva dessas mulheres nos servi- ços residenciais terapêuticos, em especial, na ocupação de cuidadoras.
O cuidador é um profissional importante no projeto. Ele passa a operar em uma residência e isso causa impactos importantes. Os profissionais que cuidam de moradores do SRT deverão saber dosar sempre o quanto de cuidado deverá ser oferecido para auxiliar na aquisição de autonomia pelo usuário, numa negociação constante. Este novo lugar de trabalho também vai requerer dos profissionais a realização de atividades que vão muito além de sua formação inicial, tais como: auxiliar em tarefas domésticas, ajudar no pagamento de contas, na administração do próprio dinheiro etc., requerendo dos trabalhadores o desenvolvimento de novas formas de cuidar. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 12; grifo nosso).
Para exercer a ocupação de cuidadora na saúde mental não é necessária for- mação anterior, pelo contrário, um dos argumentos é que essas trabalhadoras possuam um “saber não técnico”, ou melhor, um “saber leigo”. Esse argumento pauta-se na psicanálise e justifica a precarização do trabalho das mulheres negras através de um viés clínico. Infelizmente, a perspectiva radical pautada na Luta Antimanicomial e no Lema “Por uma sociedade sem manicômios” que emergiu em Bauru, em 1987, está sendo substituída pelos acordos com o capital, a fim de possibilitar o avanço de uma RPb “simpática” aos interesses do neoliberalismo. A implantação da Atenção Psicossocial apenas na assistência e no campo legislativo vem sendo aceita, levando a uma mudança de atendimento a qualquer custo, sem questionamento da perpetuação das opressões e desigualdades da formação social brasileira na política de saúde mental. Logo, há uma “convocação” por parte da RPb para esse tipo de trabalho.
No que se refere às residências terapêuticas, é importante lembrar que sua organização é em formato de casa. Apesar de constar na legislação como serviço — para fins do recebimento do seu financiamento e da contratação da
equipe —, essas moradias encontram-se no seio do território e da comuni- dade. Portanto, as cuidadoras possuem um papel extremamente importante na construção do diálogo com a comunidade, na viabilização da autonomia e na emancipação política desses sujeitos. Ao mesmo tempo, é viável locali- zar, nesse cotidiano, práticas de cuidado com caráter maternalista, pois em algumas situações as próprias trabalhadoras desconhecem o propósito do seu trabalho, recorrendo aos recursos “naturais” do cuidado feminino. Um dos elementos que fortalece essa naturalização encontra-se na não exigência de uma formação e no não reconhecimento dessa ocupação como profissão. Isso não quer dizer que não seja possível a reprodução dessas práticas com uma formação, entretanto, o que vem ocorrendo é um certo fortalecimento do cuidado vinculado à determinada “essência feminina”.
Essa essencialização do feminino, para a mulher negra, tende a ser explorada de forma avassaladora e perversa, antes pelo senhor de escravos (pela exploração sexual, para servir na Casa Grande, como ama de leite), agora pela mercantili- zação do trabalho doméstico e de cuidados, via mercado privado ou pelas polí- ticas públicas. Podemos perceber que as atribuições permanecem as mesmas, só que em um cenário completamente diferente. Agora o capital não só deixa esse trabalho invisível e subalterno como o “convoca” e o aprofunda para permitir a reprodução do modo de produção capitalista.
Nota-se também que as cuidadoras executam tanto o trabalho doméstico quanto o de cuidados, sendo eles completamente diferentes um do outro. O tra- balho doméstico diz respeito à organização da vida, como: lavar e passar roupa, executar serviços gerais de limpeza, etc., e o trabalho do cuidado/care12 diz res- peito a suprir as necessidades ontológicas do ser social (PASSOS, 2016). As múl- tiplas atribuições não estão claras nem para os gestores e nem para as cuidadoras.
É possível notar, nos relatos e publicações de experiências em SRTs, diferenças nas atribuições do trabalho do cuidador e no modo de contratação e capacitação, o que parece ocasionar certo tipo de entrave no cotidiano dos SRTs. Por exemplo, alguns cuidadores são contratados somente como empregados domésticos, com a atribuição de manter a higiene da casa e ser responsável pela alimentação; em outros casos o cuidador terá como tarefa mediar a rotina da casa com relação a cumprimento de horários, higiene, administração da medicação etc. (SILVA; VAZ; CAMPOS, 2014, p. 243).
Podemos ainda dizer que o trabalho é considerado “sujo”, pois são as cuidado- ras que lidam diretamente com os moradores das RT. É possível que alguns dos moradores necessitem de intervenção direta em seu corpo: como auxílio para limpar-se, tomar banho, comer, caminhar e etc.; e quem executa esse trabalho? As cuidadoras e não o “corpo técnico”13 da equipe. Nesse sentido, é fundamental sinalizarmos que há uma hierarquia não só em relação ao saber (conhecimento técnico e não técnico), como em relação ao poder (hierarquias) e as atribuições. Deter o saber e o poder permite com que se delegue ao outro o trabalho “sujo” do cuidado. Logo, torna-se necessário questionarmos acerca do cuidado em saúde mental e suas hierarquias em outros estudos.
Em nossa pesquisa de doutoramento14 identificamos que das 258 cuidadoras que trabalhavam nos serviços residenciais terapêuticos do município do Rio de Janeiro, no ano de 2014, 72% eram negras e 26% brancas. Ou seja, foi possível comprovar que majoritariamente são as mulheres negras que ocupam este lugar. Já em relação a escolaridade constatou-se que 64% possuíam ensino médio completo, sendo que apenas 5% apresentavam o ensino superior completo (PASSOS, 2016).
Em pesquisa realizada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e noti- ciada pelo jornal “O Dia” em 2014, o pesquisador e economista Marcelo Paixão apontou que no país, a cada cinco mulheres negras no mercado de trabalho, uma trabalha como empregada doméstica, o que significa que são 20%15. Para o pes- quisador este é um percentual relevante, porque “é mais ou menos o percentual coletado no Censo de 1872, antes da Lei Áurea: 25% das escravas trabalhavam como domésticas” (PAIXÃO, 2014)16.
Por fim, queremos sinalizar que a perpetuação da subalternidade e invisibi- lidade do trabalho das mulheres negras na sociedade brasileira está vinculada à construção da nossa formação social. O racismo, o patriarcado e o colonialismo fazem parte da sociabilidade brasileira, por isso torna-se extremamente impor- tante descortinar as desigualdades e opressões que estruturam a nossa sociedade a fim de buscarmos a sua superação e transformação. Entretanto, essa transfor- mação não vem desacompanhada da superação da propriedade privada e do modo de produção capitalista.
Um país que tem na sua estrutura social vestígios do sistema escravista, com uma concentração fundiária e de rendas das maiores do mundo; governado por oligar- quias regionais retrógradas e broncas; um país no qual a concentração de renda exclui total ou parcialmente 80% da sua população da possibilidade de usufruir um
padrão de vida decente; que tem 30 milhões de menores abandonados, carentes ou criminalizados, não pode ser uma democracia racial (MOURA, 1994, p. 63).
Algumas Considerações
O presente texto não teve a pretensão de esgotar o assunto aqui abordado, pelo contrário, objetivou alavancar o debate sobre as desigualdades de classe, gê- nero e raça/etnia reproduzidas na formação social brasileira e que perpassam a política de saúde mental. A invisibilidade e subalternidade do trabalho das mulhe- res negras não é algo exclusivo da saúde mental. Conforme sinalizamos com os dados do IBGE e da pesquisa quantitativa realizada na tese de doutoramento, essas desigualdades estão estruturadas na sociabilidade brasileira. Portanto, a reprodu- ção das opressões/exploração do trabalho feminino caminha acompanhada pelas diferenças de classe e de raça.
A escassez de literatura acerca do trabalho das mulheres negras nos hospí- cios brasileiros é um dos componentes da invisibilidade reproduzida em nossa sociabilidade. Ao possibilitarmos, ainda que minimamente, reflexões sobre a apropriação desse trabalho por parte da psiquiatria tradicional e, posterior- mente, pela Reforma Psiquiátrica e a Atenção Psicossocial, identificamos que as mulheres negras permanecem no “mesmo lugar social”, ou seja, continuam exercendo atribuições subalternas e consideradas inferiores. Nesse sentido, a lógica escravocrata perpetua-se com outras características e nomenclaturas ex- pressas no “mito da democracia racial”.
Trazer à tona esse debate, em destaque na política de saúde mental, possibi- lita-nos recuperar o Lema da Luta Antimanicomial e sua direção radical pautada em um projeto societário de transformação. Ainda que muitos tenham se desvia- do do caminho que estava proposto em 1987, no Encontro de Bauru, e tenham aceito executar a RPb a qualquer custo, uma nova geração de antimanicomiais vem questionando as estratégias adotadas e recuperando os princípios originais do Lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Logo, questionar as desigualda- des e opressões/explorações de classe, gênero e raça/etnia faz parte das mudan- ças que se deseja e almeja alcançar não só em relação às pessoas em sofrimento psíquico, mas também em relação à utopia que nos direciona na busca por uma transformação societária que esteja pautada no fim da propriedade privada!