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Resumo: Este artigo resulta de um trabalho de observação participante que tratou do tema da po- lítica pública e acolhida de mulheres estrangeiras na cidade de São Paulo. A pesquisadora participou de forma continua e sistemática do cotidiano de um grupo específico de es- trangeiras - refugiadas e mulheres egressas do sistema prisional. No trabalho procuramos entender elementos que compõem a rede de relacionamentos entre estas mulheres na Casa de Acolhida em que vivem, assim como compreender as redes mais complexas que envolvem a dinâmica de manutenção da Casa, sobrevivência econômica, os problemas re- lacionados à ausência da estrutura de Acolhida de Estrangeiros e da incipiência de políticas públicas para a acolhida no Brasil, em específico na cidade de São Paulo.
Palavras-chave: Imigração, Acolhida, Políticas sociais.
Casa das mulheres: refugiadas, estrangeiras egressas do sistema penitenciário e políticas de acolhida em São Paulo / Brasil
Claudia Moraes De Souza1
Resumo
Este artigo resulta de um trabalho de observação participante que tratou do tema da po- lítica pública e acolhida de mulheres estrangeiras na cidade de São Paulo. A pesquisadora participou de forma continua e sistemática do cotidiano de um grupo específico de es- trangeiras - refugiadas e mulheres egressas do sistema prisional. No trabalho procuramos entender elementos que compõem a rede de relacionamentos entre estas mulheres na Casa de Acolhida em que vivem, assim como compreender as redes mais complexas que envolvem a dinâmica de manutenção da Casa, sobrevivência econômica, os problemas re- lacionados à ausência da estrutura de Acolhida de Estrangeiros e da incipiência de políticas públicas para a acolhida no Brasil, em específico na cidade de São Paulo.
Palavras-chave
Imigração; Acolhida; Políticas sociais
Women’s house: refugees, foreign leaving of the prison system and the pro- tection policy in São Paulo / Brazil”
Abstract
This article results from a participant observation work that addressed the issue of public policy and acceptance of foreign women in the city of São Paulo. The researcher partici- pated continuously and systematically of the daily lives of a group of refugees and women who have left the prison system in Brazil. At work, we seek to understand the elements that make up the network of relationships between these women in Welcoming House in which they live. We also seek to understand the most complex networks involving the dynamic maintenance of the House, the economic survival of women at the city, the problems related to the lack of structure acceptance of strangers and the paucity of public policies for the reception in Brazil, specifically in São Paulo.
Keywords
Imigration; Reception; Social Policies.
Introdução
Este artigo, resulta de uma pesquisa qualitativa baseada na observação par- ticipante. A observação participante como método investigativo consiste na in- serção do pesquisador no interior de um coletivo, um grupo ou um conjunto social observado, passando a fazer parte dele (temporariamente), com pretensões de interagir com os sujeitos, partilhar experiências, compartilhar do cotidiano (MAY,2001). Assim, por um viés histórico-antropológico, a observação partici- pante se constituiu em método investigativo qualitativo para esta pesquisa, com a finalidade de estabelecer percepções e interpretações da realidade de sujeitos sociais, tanto em seu contexto imediato quanto em contextos mais complexos da realidade social que o atinge (TRIP, 2015).
A experiência de partilha do cotidiano teve início a partir de um projeto de Segurança Alimentar, financiado pelo Fundo Municipal de Meio Ambiente da Ci- dade de São Paulo (FEMA), que instituiu a presença desta pesquisadora junto às mulheres da Casa de Acolhida Nossa Senhora Aparecida. Como voluntária, me inseri ao grupo da Prefeitura Municipal designado para conceber, construir e aplicar as oficinas de Segurança Alimentar e Educação Ambiental concernentes ao projeto. Ao longo dos anos de 2011 e 2013 participei semanalmente do cotidiano da Casa ministrando oficinas e/ou aulas temáticas voltadas às moradoras, nos te- mas da segurança alimentar, organização social, consumo, saúde e meio ambiente. Participando de uma ação contínua e sistemática, instalada no cotidiano de um grupo específico de imigrantes contemporâneas - mulheres refugiadas e mulheres estrangeiras egressas do sistema prisional brasileiro - procurei des- vendar elementos da rede de relacionamentos entre as mulheres na Casa de Acolhida, assim como as redes mais complexas que envolviam a dinâmica de manutenção da Casa e os problemas do processo de acolhida de estrangeiros no
Brasil e na cidade de São Paulo.
Apresentamos assim, a discussão da questão da Acolhida de Mulheres Imi- grantes/Refugiadas como um problema relativo à política pública, num contexto internacional de deslocamentos contemporâneos marcados pelo tráfico interna- cional de pessoas e de drogas e pelas mazelas políticas e econômicas dos continen- tes subordinados aos altos índices de pobreza. Compartilhar com as moradoras da Casa de Acolhida a dinâmica de manutenção e organização da Casa nos permitiu duas importantes visões: primeiro o conhecimento dos dilemas colocados pela situação da egressa estrangeira no país, situação sui generis que envolve múltiplas questões que vão das necessidades econômicas aos dilemas da intolerância social e
cultural da sociedade brasileira; segundo, a visualização do difícil processo de ga- rantia mínima de direitos econômicos, sociais e civis na situação inicial de refúgio, fato que envolve novamente as questões econômicas, culturais, além da xenofobia e, finalmente, o conhecimento das dificuldades enfrentadas para a acolhida de imigrantes no país, fato vinculado à ausência (ou incipiência) de políticas públicas e de financiamento público e/ou privado para a gestão da demanda imigratória uma presença cravada na realidade das metrópoles brasileiras.
Casa de mulheres: uma casa na história da cidade
Para quem passa pela Rua Bueno de Andrade, no bairro da Liberdade, região central da cidade de São Paulo, uma casa chama a atenção. Um casarão antigo, construído ao final do XIX, térreo, de janelas e portas amplas, à moda dos casa- rões do baronato do café. No terreno, de largas dimensões: jardim e capela. Não se tratava mesmo de uma casa comum. A construção representa um tempo em que a riqueza do café propiciou poder e luxo ao empresariado paulista que, desde o início do século XX, demarcou este poder na arquitetura da cidade e na osten- tação de um modo de vida próprio.
A história da casa acompanhou a história da cidade. De casarão residencial de uma família abastada, tornou-se um renomado pensionato para moças, na metade dos anos de 1950, por ação de seus novos proprietários, a Ordem Ca- tólica das Irmãs Palotinas. O pensionato atendia famílias de classe média e alta, hospedando jovens mulheres estudantes das faculdades e escolas de renome da região da Liberdade. Apesar das bruscas mudanças na paisagem do entorno, devido ao crescimento da cidade, o “pensionato” manteve a arquitetura da casa secular, mesmo diante de um processo de expansão urbana em que o bairro da Liberdade adquiriu características de um bairro verticalizado, num misto de atividades do setor terciário - localizadas pelas avenidas e ruas principais, mes- cladas com esparsas moradias familiares e muitas moradias coletivas - grandes casas antigas transformadas em moradias coletivas para pessoas de baixa renda, pensões, ou os denominados cortiços.
Nos anos 1980, a rua já não mantinha nenhuma moradia com famílias indi- vidualizadas, caracterizando-se como uma rua mista de grandes moradias co- letivas – os cortiços – e comércio. O pensionato fechou, na medida em que a classe média alta atendida não circulava mais pelas redondezas. A Ordem das Irmãs Palotinas manteve a casa fechada por mais de uma década a espera de um novo projeto para o imóvel.
Foi desta maneira que, de antigo pensionato de moças, a casa, em 2006, tornou-
-se uma Casa de Acolhida – o Centro Social Nossa Senhora Aparecida, através de sua mantenedora a Associação Palotina. A escolha para a nova vocação do casarão deu continuidade à relação entre as mudanças na paisagem e a história da cidade.
Nos idos dos anos 2000, tratando do destino da casa, a Ordem travou uma discussão interna decidindo por atuar socialmente frente à uma demanda pre- mente da realidade da cidade de São Paulo. O carisma da ordem Palotina, fun- dada no século XIX, na França, relaciona-se à ação social direta com comu- nidades carentes, atendendo um público alvo específico – crianças, idosos e mulheres em situação de abandono e vulnerabilidade.
Confluíram elementos da realidade social concreta e a orientação carismática da Ordem, na medida em que se corporificava a presença crescente de imigrantes na cena urbana. A cidade recebia, em números crescentes, cidadãos de uma nova economia internacionalizada, em busca de possibilidades de apropriação econô- mica, cultural e social da cidade. Bolivianos, paraguaios, colombianos e todo um conjunto de nacionalidades africanas - como angolanos, nigerianos, congoleses, cabo-verdianos e moçambicanos - passaram a fazer parte da composição social de um amplo limite espacial irradiado a partir do centro velho da cidade de São Paulo. Na realidade, nos bairros centrais a presença imigrante havia sido uma re- alidade desde muito cedo. A história do bairro da Liberdade, no século XX, se relaciona aos grandes ciclos imigratórios de mão de obra para a economia paulista. Caracterizado anteriormente como um bairro de imigração asiática, pela forte presença da imigração japonesa, hoje as ruas da Liberdade nos apre- sentam uma diversidade incontável de presenças nacionais e etnias múltiplas:
latino-americanas, africanas e asiáticas.
No entanto, muito mais do que uma presença cidadã na cidade, a imigração contemporânea para São Paulo nos revela o lado perverso da presença subal- terna desses indivíduos na economia do sudeste brasileiro. As possibilidades de sobrevivência constituídas estão articuladas ao mercado informal e a alta exploração do trabalho irregular e do subemprego (SPOSATI, 2000). A po- pulação estrangeira de trabalhadores se circunscreve a um amplo mercado de venda de produtos não licenciados e/ou contrabandeados instalado no coração da cidade, caracterizado pela instabilidade de ganhos, pela irregularidade e pela ilegalidade. Soma-se a isto, o trabalho confinado em oficinas de costura e ofici- nas gráficas que oferecem salários parcos aproveitando-se da irregularidade da situação laboral e civil desses trabalhadores.
De fato, estes dados genéricos geram um sem número de histórias individuais marcadas pela imigração, pelo refúgio, pelo desejo de apropriação da cidade, pela necessidade de sobrevivência, abrigo e trabalho. Em outras palavras, pela necessi- dade de Acolhida, demanda que cada indivíduo apresenta ao território em que ele se encontra quando em deslocamento por motivações diversas, qual sejam: mi- gração laboral, migrações forçadas, asilo político, refúgio, desterro, entre outras. Sabemos também que a mulher tem ocupado um espaço cada vez mais pro- tagonista no processo imigratório, assumindo atualmente importância quantita- tiva no mesmo (quase 50% dos imigrantes contemporâneos são mulheres)2. Ao falar da feminização das migrações não nos limitamos aos dados quantitativos ou de fluxos. As mulheres sempre estiveram presentes como protagonistas tanto no contexto das migrações internas, quanto internacionais. A diferença em relação a outros momentos é que na atualidade sua visibilidade nos estudos acadêmicos é maior, tanto em relação à construção do projeto migratório, quanto à decisão familiar de migrar. Há que se atentar, no entanto, para o conjunto de especi- ficidades que acompanham a condição feminina. Numa dupla vulnerabilidade, mulheres e crianças migrantes expõem-se a riscos acrescidos, encontrando-se em situação mais exposta à violação de direitos fundamentais, exploração, discrimi-
nação e abusos de todos os tipos, do que suas contrapartes masculinas adultas.
Com o intento de atender uma necessidade premente de mulheres e crianças submetidas à situação de vulnerabilidade na cidade, em 2006, a Associação Palo- tina iniciou os trabalhos de atendimento da Casa de Acolhida Nossa Senhora de Aparecida, voltada a acolher mulheres refugiadas, acompanhadas ou não e seus filhos, assim como outro público carente de atendimento em qualquer instituição pública paulistana (e brasileira) – as mulheres estrangeiras (acompanhadas ou não de seus filhos) - egressas do sistema prisional.
Na proposição de intervir diante da realidade contemporânea, o projeto so- cial sensibilizou-se com um novo aspecto da realidade concernente a imigração: o aumento da população carcerária estrangeira em solo nacional. Segundo dados do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), organização não governamental que assiste à população carcerária nacional e estrangeira desde 1997, e é parceira da Casa NSA, desde 2006 a aprovação da Lei de Drogas levou a um expressivo número de mulheres encarceradas, chamando atenção para aumento da popu- lação prisional estrangeira masculina e feminina, em 2012 o número de presos estrangeiros lotados no sistema penitenciário nacional dobrou de 29.4237 para 54.8000 (o que corresponde a alta de 120%) e, o número de mulheres estrangei-
ras privadas de liberdade mais que triplicou, de 238 para 774 (225%), sendo o tráfico de drogas a maior causa do encarceramento3.
Refugiadas, egressas e o cotidiano da casa de acolhida
O Centro Social Casa Nossa Senhora de Aparecida tem capacidade estrutural física para acolher setenta mulheres. Atualmente consegue acolher cerca de qua- renta mulheres/ano tendo em vista seus limite financeiros. A instituição mantém-
-se por recursos próprios. Até o mês de novembro de 20144, um contingente de vinte mulheres e duas crianças (filhas de imigrantes egressas do sistema peniten- ciário) ocupavam a casa, sendo cinco egressas e quinze refugiadas que pertenciam a nacionalidades diversas – Angola, Congo, África do Sul, Bolívia, Grécia, Alema- nha, Filipinas, Nigéria, Sudão e Congo (dentre outras).
O processo de acolhida se inicia a partir do contato com instituições especí- ficas: a Cáritas Arquidiocesana, a Pastoral Carcerária de São Paulo e o Instituto Terra, Cidadania e Trabalho (ITTC). A Cáritas Arquidiocesana é a receptora do pedido formal de refúgio e conduz o processo para a formalização do asilo ou refúgio em território nacional, encaminhando as mulheres, solteiras ou mães sol- teiras e seus filhos, diretamente para a Casa das Irmãs Palotinas. Contudo, o nú- mero anual mais significativo de mulheres encaminhadas para a Casa das Palotinas resulta das intermediações com a Pastoral Carcerária e o ITTC. Destas institui- ções advêm mulheres estrangeiras que cumpriram pena criminal em território brasileiro, encontrando-se em regime de Patronato ou que obtiveram liberdade condicional. Desta forma, a instituição acabou por se configurar como a primeira instituição paulista, de caráter assistencial e sem fins lucrativos, que acolhe presas e egressas estrangeiras do sistema prisional de São Paulo.
Este fato interpôs à Casa Nossa Senhora de Aparecida a necessidade de edificar o processo de acolhida de forma a oferecer às mulheres que acolhe, não apenas a garantia da moradia temporária, mas um leque de assistência bem mais amplo e complexo: que envolve a integração/reintegração social de seu público, a as- sistência jurídica e a consolidação de uma autonomia financeira das moradoras egressas do sistema penitenciário empenhadas em cumprir as formalidades do retorno ao seu país de origem.
Abdelmalek Sayad (1998) nos coloca que, mais do que qualquer outra cir- cunstância, a habitação e o trabalho estão, no caso do imigrante, numa relação mútua de dependência. Habitar e trabalhar constituem a dimensão que estrutura a existência do imigrante pobre em seu novo lugar. Sua existência e autonomia es-
tarão relacionadas com a possibilidade de acolhida (morada), concomitantemente ao trabalho. Para trabalhar ele precisa de abrigo e para manter o abrigo ele precisa de trabalho. Este é o fato central da imigração: a acolhida, ou seja, a oportunidade de morada, abrigo, habitação, convívio, sociabilidade.
Se considerarmos a fundamental importância da moradia para o migrante la- boral, o caso que envolve o refúgio e o estrangeiro egresso se torna complexo e repleto de contradições. A população egressa ou em liberdade assistida não pos- sui nenhum documento aceito em território brasileiro, com exceção do docu- mento que o identifica como um egresso do sistema penal. A situação penaliza e discrimina o indivíduo, impedindo a possibilidade do trabalho legalizado e a organização da vida em geral, como, por exemplo, a abertura de conta corrente bancária, aluguel de imóvel, dentre outros. De outro lado, após sua libertação, encontrando-se em regime de Patronato, este indivíduo tem prazos de cerca de um até um ano e meio para se organizar financeiramente e deixar o país.
Este caso extremo da vulnerabilidade do estrangeiro orientou a estrutu- ração do Projeto de Acolhida das Irmãs Palotinas, baseado na premissa de que a acolhida é um direito humano e uma necessidade fundamental do indivíduo deslocado. Acolher assume um significado muito maior do que dar abrigo/mo- rada ou assistência jurídica, ampliando-se para outros objetivos do projeto: in- tegrar/reintegrar e propiciar autonomia financeira.
Assim, o trabalho da instituição se organiza em momentos distintos. Num primeiro momento, o objetivo é desenvolver “o convívio solidário no Centro Social NSA entre as moradoras e funcionárias, bem como, o de construir o contato com outros profissionais de outras organizações públicas e privadas”, segundo depoimento da diretora atual da Casa NSA5. Acolher e integrar so- cialmente constituem-se ações iniciais do trabalho institucional, sob esta pers- pectiva, a Casa organiza as regras de convivência e a rotina de manutenção do espaço, assim como oferece e incentiva o convívio solidário, o aprendizado da língua, o conhecimento e adaptação com a cultura, a culinária, os costumes e hábitos do novo país. Esta perspectiva gera uma rotina cotidiana organizada com intuitos educativos e funcionais.
Conviver na Casa de Acolhida é um aprendizado, trata-se, no projeto da Casa, de reconstruírem-se elementos de múltiplas nacionalidades e de diferentes con- dições socioculturais aos quais pertencem cada uma daquelas mulheres, sob um novo sentido que é o de reorganização da vida material e social para a viabiliza- ção da permanência no país ou do retorno ao país de origem. Desta forma, nos
projetos formativos, o trabalho com a narrativa das experiências migratórias das mulheres ocupa sempre um espaço central.
Nas oficinas de Educação Alimentar que promovemos, a narrativa das experi- ências pretéritas das mulheres acolhidas foram premissas do trabalho pedagógico. As oficinas partiam da ideia de que o foco central seria a subjetividade do sujeito e suas experiências culturais direcionadas à construção de conhecimentos e inte- rações sobre a alimentação, a cultura, a realidade de São Paulo e as possibilidades de sobrevivência na cidade.
A narrativa de histórias pertinentes à vida de mulheres em processo de re- fúgio e de estrangeiras egressas do sistema penitenciário não é algo fácil de se motivar, promover ou expor. Nos construtos teóricos da História Oral e História de Vida sabemos que a subalternidade de grupos sociais e, principalmente, do feminino em dadas situações culturais, religiosas ou econômicas, colocam suas vozes em total silêncio. A teórica feminista Gayatri Spivak lança exatamente esta questão para debate: pode o subalterno falar? (SPIVAK,1994). Observamos, na experiência das oficinas, a dificuldade de ambos os grupos, refugiadas e egressas, em elaborar narrativas densas, completas, abertas, acerca de suas memórias pas- sadas e as experiências traumáticas da prisão ou do refúgio.
Entre as mulheres advindas do sistema carcerário havia a maior resistência à narrativa aberta acerca de sua condição e passado recente. A prisão oprime a fala, a prisão oprime o uso da língua materna, a prisão oprime a história de cada indivíduo, oprime a condição feminina, a sexualidade, a maternidade. Também, para as mulheres em condição de pedido de asilo político e refúgio, o passado recente é um tempo doloroso a ser recordado. A saída do país de origem, a partir de perseguições políticas, religiosas, da guerra, etc., são fatos e elementos que se quer esquecer e não recordar.
Nas oficinas, a narrativa de um tempo passado e distante eram mais comuns. Em torno de hábitos alimentares, costumes familiares, receitas, sabores de ali- mentos e pratos, o papel feminino na organização familiar, na maternidade, na organização do trabalho para a manutenção das moradias e da vida cotidiana aca- bou por se tornar um ponto comum entre as participantes, apesar da diversidade religiosa, cultural, social e nacional do grupo. Lembrar da infância, lembrar de receitas, tratar das propriedades curativas ou benéficas dos alimentos tornou-se linha condutora dos trabalhos nas oficinas do programa6.
No entanto, retornando a perspectiva do fomento às narrativas nos estudos de oralidade, as ausências de determinadas falas também nos esclarecem elementos
de realidades diversas. A ausência de falas sobre o passado recente, os silêncios ouvidos em momentos chaves das histórias, relembradas pelas mulheres durante as oficinas propostas, demarcam o sofrimento, o medo, as experiências traumáti- cas que envolvem a imigração, o refúgio e os deslocamentos globais.
Em breves momentos, os motivos que obrigaram essas mulheres ao refúgio e os motivos e forças que levaram essas mulheres à prisão emergem em curtas histórias: a fuga da guerra étnica que assombra o território centro africano pena- lizando algumas etnias, a perseguição religiosa, e, no caso das egressas, os motivos diversos – econômicos, ameaças, solicitações de namorados, irmãos e parentes
– que as transformaram nas chamadas “mulas”, responsáveis pelo transporte in- ternacional de drogas por diferentes continentes.
No processo de observação participante, optamos por centrar esforços na di- nâmica de organização e manutenção da rotina do espaço, procurando encontrar os elementos do cotidiano que revelam as estratégias do convívio, da construção de laços e elementos articuladores das diferenças socioculturais, religiosas e con- dicionais das mulheres acolhidas.
Como estratégia de construção de um convívio solidário, faz parte da regra central da Casa de Acolhida Nossa Senhora, a participação de todas no cuidado e manutenção do espaço coletivo e privado. Na Casa, as moradoras são responsáveis pelo cuidado e limpeza de seus espaços privados, assim como pela organização e manutenção de espaços coletivos. Funcionários específicos desempenham funções especializadas na cozinha e na manutenção da estrutura física e administrativa, po- rém a ideia é a de construir uma convivência cooperativa entre as moradoras, com a finalidade de manter a organização do espaço socializado por todas.
A primeira observação que desejamos demarcar relaciona-se à comunicação entre as moradoras, funcionárias e diferentes sujeitos participantes da rotina na moradia. Na construção do convívio a questão linguística é central. Funcionárias e colaboradores não necessariamente dominam a diversidade de línguas apresen- tadas pelas múltiplas nacionalidades e etnias das moradoras. Deste fato resulta uma forte colaboração entre a próprias mulheres, fazendo com que as moradoras “mais antigas” da Casa acabem se responsabilizando pela recepção de recém-che- gadas, aproximando-se por idiomas, religiosidades ou necessidades em comum, a exemplo a necessidade de cuidar de seus filhos.
No processo de integração de estrangeiros ao novo país, sabe-se que o domí- nio da língua é de fundamental importância, pois, da possibilidade de comunica- ção é que se edificam as possibilidades do trabalho e a autonomia financeira. Na
casa de acolhida percebemos serem– língua e trabalho – os fatores de fundamen- tal importância junto às mulheres. Ambos têm função na construção de sentimen- tos de pertencimento e afeição ao novo país.
Diante dessa demanda, o projeto das Irmãs Palotinas se esforça por firmar parcerias com instituições diversas que possam oferecer o ensino da língua portu- guesa às moradoras e também vagas de trabalho. Desde 2006, o Serviço Social do Comércio – SESC/Carmo/São Paulo – organização de caráter privado - recebe gratuitamente moradoras da casa (em processo de pedido de refúgio ou asilo político) em seus cursos de português para estrangeiros. Uma parceria avalia- da positivamente pelas moradoras e funcionárias, na medida em que propicia o aprendizado da língua e a conquista de uma maior autonomia de comunicação para as mulheres em situação de refúgio, mas, que apresenta um forte senão: as moradoras egressas do sistema carcerário não têm direito ao serviço (premissa instituída pela organização). Este fato, acabou por revelar uma cisão presente na sociedade paulistana e sua política de acolhida, cisão clara que distingue o público egresso do sistema carcerário de forma negativa, desvelando não apenas elemen- tos de xenofobia, mas de discriminação social. As distinções entre as moradoras, não apenas pelas questões da nacionalidade, língua, cultura ou religião, mas pela distinção jurídica entre refugiadas e egressas, tem sido o maior desafio ao Projeto. Para além de uma cisão externa, gerada pela discriminação das mulheres egressas no campo das parcerias com empresas ou outros organismos com quais a Casa se associa em trabalhos formativos ou educacionais, os efeitos da discrimina- ção social instituído na sociedade brasileira, no que diz respeito a população car- cerária e egressa, também se reproduzem claramente no interior da instituição. No convívio entre egressas e refugiadas, por vezes, o preconceito se impõe entre os grupos. A condição civil de refugiado acaba por delegar aos indivíduos um status social melhor compreendido e aceito entre as moradoras e o público em geral. Contrariamente, a egressa do sistema penitenciário tem dificuldades e im- peditivos sociais, a começar pelo conjunto de direitos e acesso a serviços sociais e assistenciais que se estendem por um amplo conjunto de ações discriminatórias vividas na condição de liberdade assistida ou de egressa, inclusive no interior da
comunidade imigrante à qual pertence.
Este fato dirige o trabalho da instituição a um vetor que busca efetivar um convívio solidário, de respeito mútuo e entendimento entre as moradoras, a par- tir de uma ação pedagógica de educadoras e funcionárias da Casa. Organizam-se palestras, oficinas e oportunidades diversas de debate e discussão das questões
à superação da dicotomia egressa – refugiada.
De nosso ponto de vista, elementos da condição feminina acabam por conse- guir superar os elementos que distanciam essas mulheres e reaproximá-las. Em relação às condições do feminino que as interligam: muitas estão sozinhas, viaja- ram sozinhas ao país, sozinhas cumpriram penas judiciais ou aguardam asilo; algu- mas são mães e mantém seus filhos na casa, outras mães, as egressas, tiveram seus filhos internados em instituições, recebem suas crianças em períodos esporádicos para visitas e contato; refugiadas casadas que tem maridos e filhos homens em outros abrigos espalhados pela cidade, ou seja, são mulheres na condição de mães, filhas ou esposas que têm papel fundamental na continuidade de laços familiares, emocionais, culturais e na manutenção econômica de grupos familiares no Brasil ou em seus países de origem.
Mulheres de diversas idades, diferentes proveniências socioculturais e étni- cas, religiosas e nacionais, mulheres sozinhas responsáveis ou não por familiares e filhos todas marcadas pela responsabilidade de reconstruir sua vida material, social, cultural em um novo país, cientes da necessidade de solidariedade e co- operação mútua entre si, o que transforma a casa em espaço de convivência e reconstrução de relações sociais.
Integração social, trabalho e dificuldades financeiras da casa de acolhida
No processo de construção da convivência em bases solidárias, a Casa NSA atua na integração social das moradoras que tem seu foco na formação para o tra-
balho. Na avaliação da administradora e funcionárias, a possibilidade de integra- ção se consolida após a conquista de um posto de trabalho e da garantia da auto- nomia financeira das egressas e refugiadas. O esforço contínuo da instituição é o de consolidar parcerias com organismos que propiciem a formação e qualificação profissional e colaborem na colocação destas mulheres no mercado de trabalho, o que tem representado a maior dificuldade do projeto.
Atualmente, a instituição possui parceria com organismos de formação e qua- lificação profissional: o Serviço de Apoio Socioeducativo de Capacitação e Orien- tação Profissional (SASECOP), uma organização não governamental paulistana e o Centro Scalabriniano de Profissionalização (CESPROM)-, associação mantida pela ordem Scalabriniana, e, mais recentemente,pela Prefeitura Municipal de São Paulo. Considerando o projeto migratório nacional, que privilegia a importação de mão de obra qualificada ou superespecializada, o perfil do refugiado, e, principal- mente do egresso, não atende às exigências legais para o trabalho em solo brasilei- ro. O público de mulheres egressas não preenche requisitos exigidos por lei para a regularização do trabalho, acarretando a situação de reprodução do trabalho indocumentado e do subemprego, ou alimentando o desemprego puro e simples.
No ano de 2014, na Casa, de 20 moradoras, apenas duas estavam trabalhando.
Quanto às mulheres em situação de refúgio, o protocolo de pedido de refúgio permite e garante a conquista de posto de trabalho regulamentado e mais qualifi- cado, na medida em que, entre as refugiadas os índices de escolarização e formação profissional é maior do que entre as egressas do sistema carcerário. No entanto, esta não é uma condição recorrente. Os postos de trabalho ocupados pelas refugiadas limitam-se aos serviços domésticos - trabalhos de babá, cozinheira e serviços au- xiliares de limpeza. Na situação da estrangeira egressa, a realidade se mostra ainda mais cruel, a dificuldade de se inserir em postos de trabalho é imensa, todos os tra- balhos ofertados são irregulares e informais e os salários ficam, na maioria das vezes, abaixo da metade do salário-mínimo garantido pela lei brasileira.
Uma luta cotidiana se instala na vida dessas mulheres desde que chegam ao Brasil, ou saem da prisão: o acesso ao dinheiro, o único equivalente possível para sobrevivência autônoma na cidade. A realidade é a da discriminação e do desam- paro legal impeditivo da regularização de suas atividades de trabalho e tal situação alimenta a constante preocupação da recorrência do crime entre a população egressa, que, por necessidade financeira, às vezes, torna a se reaproximar dos gru- pos ou indivíduos (familiares, namorados ou aliciadores) que as vitimaram, en- volvendo-as na atividade ilegal que as levaram a julgamento, condenação e prisão.
Fica claro, diante das dificuldades de promoção do trabalho decente entre imigrantes indocumentados, refugiados e estrangeiros egressos, a necessidade premente de políticas públicas que reconheçam os movimentos imigratórios, a ineficácia das políticas punitivas e restritivas impostas ao imigrante e que se orien- tem na direção da sedimentação de novos paradigmas: o dos direitos humanos e da cidadania global.
A cidade de São Paulo foi e continua sendo construída pelo processo imigra- tório de diferentes origens. No entanto, na história e na configuração espacial da cidade está ausente o reconhecimento efetivo desta contribuição, o que torna urgente a necessidade de tradução do seu reconhecimento em políticas públicas efetivas que garantam o conjunto de direitos pertencentes a esse público: direitos civis, econômicos, sociais, culturais e políticos.
Desde o ano de 2013, as dificuldades financeiras se instalaram mais aguda- mente para a Associação Palotina. A direção da associação tomou uma decisão crucial na contenção de altos custos e despesas, empreendendo a troca de espaço na instalação do projeto. Acompanhando o movimento da cidade, a Casa migrou para a zona leste, região menos valorizada financeiramente. A resolução resul- tou em economia na manutenção do imóvel, visto que o famoso Casarão exigia altos custos em reparo e manutenção. A nova sede foi instalada em uma edifica- ção recém construída onde funcionou um pequeno hotel no bairro da Penha. Diminuíram-se custos com impostos e manutenção do prédio, de outro lado, o bairro distante da região central da cidade dificultou a mobilidade das mulheres, o acesso aos diversos serviços públicos e, inclusive, a postos de trabalho.
Também em 2013, o município de São Paulo criou a Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMig) no âmbito da Secretaria Municipal de Direitos Huma- nos e Cidadania de São Paulo, de acordo com o Artigo 242 da Lei nº 15.764, de 27/5/13. Seu objetivo é articular as políticas públicas migratórias no município de forma transversal, intersetorial e intersecretarial, uma proposta pioneira na cidade e no país. A possibilidade do apoio do poder público deu ao Projeto Casa NSA novas possibilidades de ação. A luta pela construção de políticas públicas foi e continua sendo uma plataforma política do projeto da Casa de Acolhida, que há muito denuncia a vulnerabilidade de seu público e a necessidade de financiamento e intervenção estatal no processo de acolhimento.
O projeto que vinha sendo mantido financeiramente somente pela Associação Palotina, o que incluía estrutura física da casa, alimentação, custos de funcioná- rios, além da realização de um árduo trabalho de garantir às mulheres o acesso
aos serviços de saúde, educação, assistência psicossocial, jurídica. Este processo acarretava dificuldades diversas para sua continuidade. Em dezembro de 2014, foi assinado o primeiro convênio entre a Casa Nossa Senhora Aparecida e o poder público municipal, por meio da Secretaria de Direitos Humanos-Coordenadoria de Políticas Públicas para Imigrantes, possibilitando o repasse financeiro de ver- bas para auxílio na manutenção estrutural da Casa.
O fato evidencia a necessidade premente de parceria dos poderes públicos com a sociedade civil e instituições diversas na atuação sobre causas relativas aos direitos sociais, econômicos e humanos. Sem embargo, as políticas públicas para imigrantes são preceitos centrais para a realização de uma cidadania global, funda- da no conjunto de acordos em âmbito internacional para assegurar ao imigrante, refugiado ou egresso estrangeiro, a garantia de igualdade no acesso aos direitos básicos e humanos. A acolhida, sem dúvida, é um ponto chave da política pública, pois dela depende a integração inicial e a construção das bases de inserção do imi- grante na sociedade brasileira. Acolher, integrar, dar autonomia e garantir direi- tos, estes são princípios mínimos da acolhida, e a Casa de Acolhida Nossa Senhora Aparecida, com sua micro história cravada na grande história da cidade de São Paulo, nos revela apenas um mínima faceta da desafiadora situação de mulheres refugiadas, indocumentadas e egressas na cidade de São Paulo, mas não deixa de apontar caminhos em direção ao entendimento da migração como direito da cida- dania global, como fruto do intercâmbio cultural, da mobilidade e das mudanças radicais de nosso tempo.
Referências
CAVALCANTI, L., OLIVEIRA, A.,TONHATI,T. A Inserção dos Imigrantes no Mercado de Trabalho Brasileiro. Brasília: Cadernos do Observatório das Migrações Internacionais.2014. Disponível em: file:///C:/Users/claudia/Do- wnloads/Relatorio%20Parcial%20A%20inser%C3%A7ao%20dos%20imigran- tes%20no%20mercado%20de%20trabalho%20brasileiro.pdf.
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