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Promoção de culturas e práticas afirmativas no ensino superior: ideias em ebulição
Promoção de culturas e práticas afirmativas no ensino superior: ideias em ebulição
O Social em Questão, vol. 20, núm. 37, pp. 137-152, 2017
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Resumo: O debate da questão racial ainda é recente no Brasil. Dado que o direito à igualdade, no contexto da construção da cidadania, perpassa o papel da universidade e demais instituições de ensino, especialmente as públicas, o debate das ações afirmativas tem recebido cada vez mais atenção e sido mais desafiador. Contudo, esse processo é prenhe de contradições e conflitos. Nossa intenção, no contexto da reflexão das ações afirma- tivas, é tensionar e adensar saberes e iniciativas relacionadas à promoção da identidade étnico-racial e à construção de relações (dentro e fora da universidade) pautadas pela equidade de direitos e respeito à diversidade étnico-cultural.
Palavras-chave: Discriminação racial, Igualdade racial, Ensino superior, Ações afirmativas.
Promoção de culturas e práticas afirmativas no ensino superior: ideias em ebulição
Sarita Amaro1
Resumo
O debate da questão racial ainda é recente no Brasil. Dado que o direito à igualdade, no contexto da construção da cidadania, perpassa o papel da universidade e demais instituições de ensino, especialmente as públicas, o debate das ações afirmativas tem recebido cada vez mais atenção e sido mais desafiador. Contudo, esse processo é prenhe de contradições e conflitos. Nossa intenção, no contexto da reflexão das ações afirma- tivas, é tensionar e adensar saberes e iniciativas relacionadas à promoção da identidade étnico-racial e à construção de relações (dentro e fora da universidade) pautadas pela equidade de direitos e respeito à diversidade étnico-cultural.
Palavras-chave
Discriminação racial; Igualdade racial; Ensino superior; Ações afirmativas.
Promotion of cultures and affirmative practices in higher education: some fervent ideas
Abstract
The debate on the racial issue is still recent in Brazil. Given that the right to equality, in the context of the construction of citizenship, is part of the role of the university and oth- er educational institutions, especially public institutions, the affirmative action debate has received more and more attention and has been more challenging. However, this process has been full of contradictions and conflicts. In the context of affirmative action thinking, we aim to stress and deepen the knowledge and initiatives related to the promotion of the ethnic-racial identity and relationship building (inside and outside the university) guided by equal rights and respect for the ethnic and cultural diversity.
Keywords
Racial discrimination; Racial equality; Higher education; Affirmative actions.
Introdução
O debate racial e social aberto é ainda recente no Brasil e, apesar de muitas iniciativas (cada vez mais crescentes nesse sentido), o terreno de conhecimento sobre esse universo é, sem duvida, a melhor forma de abordá-lo especialmente no meio universitário, sobretudo para evitar equívocos e controvérsias em torno da visão afirmativa.
É papel da universidade e demais instituições de ensino, especialmente as pú- blicas, mobilizar esforços e iniciativas no sentido de promover o direito de popu- lações afrodescendentes e indígenas à educação pública e de qualidade. Mas sabe-
-se que essa construção não se faz em um clima desprovido de tensões e conflitos. Séculos de exclusão racial tem enraizado na consciência do brasileiro uma certa naturalização de que “pobres são negros, negros são pobres e que isso é normal, pois sempre foi assim”. Romper com essa visão enganosa, por tudo que ela tem de reprodução da discriminação e marginalização social imposta às popu-
lações afrodescendentes e indígenas, é fundamental e urgente.
Além de trazer o debate para a universidade, retirando suas mordaças opres- soras, avançando, criando espaços (eventos, núcleos de estudos e pesquisas, dis- ciplinas na graduação e pós-graduação.) de aprofundamento, isso implica em tensionar e adensar saberes e iniciativas relacionadas à promoção/valorização da identidade étnico-racial e construção de relações (dentro e fora da universidade) pautadas pela equidade de direitos e respeito à diversidade étnico-cultural.
De um lado, esta questão impõe a necessidade de aprofundar algumas ações, com destaque para a implementação de um programa acadêmico des- tinado a observar o funcionamento das ações afirmativas, avaliação de seus resultados, identificação de aspectos que prejudiquem sua eficiência e suges- tões de ajustes e modificações.
De outro, requisita o interesse e esforço, a título de organização interna, de qualificação das ações, iniciativas e agentes, com vista a constituir redes estratégi- cas dirigidas à construção de ações afirmativas, materializadas, concretas e efetivas. Isso implica que as universidades se abram ao diálogo com sua comunidade, extramuros, ou seja, que se aproximem das experiências, discussões e lutas mobilizadas pela ampla sociedade, colocando seus Núcleos de Estudos Afrobra- sileiros (NEABs), comissões e programas universitários dirigidos à implemen- tação de ações afirmativas em diálogo e colaboração com programas de gover- nos nas diferentes esferas e ações da organizações da sociedade civil– como o Movimento Negro Unificado e projetos de grandes Organizações Não Gover-
namentais, como a Ford Fundation e os diferentes organismos da Organização das Nações Unidas (ONU), na perspectiva do aprimoramento da cidadania e superação das desigualdades sociais que histórica e persistentemente atingem as populações afrodescendentes e indígenas.
As reflexões e proposições ora apresentadas voltam-se ao fortalecimento de ações e fomento de iniciativas que realcem “boas práticas” afirmativas nos di- ferentes formatos de instituições educacionais, com destaque para instituições de ensino superior.
Ações afirmativas: conceituação
Para falar de políticas de ações afirmativas precisamos retroagir no tempo e trazer à luz o famigerado mito da democracia racial. Mito que sobreviveu por mais de um século assentado em uma representação idealizada de sociedade tolerante e inclusiva, em que todos são aceitos como iguais. Henriques (2003), referência teórica nesse tema denuncia: “mito que exercita, no cotidiano, o en- gano e a mentira escondendo, de forma perversa e sutil, a enorme desigualdade racial do país” (HENRIQUES, 2003, p. 13).
De fato, o mito da democracia racial sempre foi o grande obstáculo da supe- ração das assimetrias raciais no Brasil. Na mesma medida em que a exclusão racial crescia em cifras, era silenciada por um discurso sufocante e moralizador, que evocava uma harmonia social inexistente. Nesse cenário, por mais de um século, a luta das comunidades afrodescendentes foi antes de tudo focada em dar visibili- dade ao racismo para depois partir à reivindicação de direitos. Com a politização de alguns negros, inseridos nas universidades e a organizações internacionais, e a união de esforços com outros segmentos não-negros, ativos na mesma luta social, foi-se gradualmente mudando essa história, fazendo emergir uma visão crítica sobre a realidade dos negros na sociedade e os caminhos para superá-la.
Assim, sobretudo após a primeira metade da década de 1950, a ideia da democracia racial começa a ruir, a partir da ação crítica de pesquisadores que começaram a evidenciar que os negros seguiam marginalizados, mesmo após a abolição da escravatura, e que havia preconceito e discriminação racial contra eles (BASTIDE e FERNANDES, 1955).
As duas décadas que seguiram, conforme SANTOS (1999) foram essenciais para o aprofundamento do conhecimento crítico sobre essa matéria, quebrando consensos e ideologias, sobremaneira por força da resistência e intensa ação polí- tica das organizações sociais negras.
Contudo, em que pese toda a potência desse processo, o termo “ação afir- mativa” é ainda novo nas ciências sociais brasileiras – embora seja bastante co- nhecido nos Estados Unidos, país que, desde a década de 1960, vem discutindo e rediscutindo esse tipo de política pública. Ou seja, nós, brasileiros, não temos ainda tradição em discutir esse tema (SANTOS, 1999).
Na literatura especializada na matéria encontra-se consenso em definir ações afirmativas como:
medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo Estado, espon- tânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades histo- ricamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas pela discriminação e marginali- zação, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros (SANTOS, 1999, p. 42).
Trata-se de políticas ou ações abertamente não universais, porque operam a inclusão por meio da aplicação do princípio da “discriminação positiva”, cuja lógica é tratar desigualmente, mas de modo facilitador, favorável e includente, os desiguais (VERUCCI, 1998). Visam beneficiar, de forma diferenciada, grupos discriminados, de modo a permitir que, em médio e longo prazo, possam alcan- çar condições econômicas, sociais e culturais mais vantajosas, justas e equânimes. As premissas das ações afirmativas são o reconhecimento de que segmentos historicamente excluídos, por preconceitos arraigados culturalmente, devem re- ceber tratamento diferenciado na promoção da justiça social, como forma de
qualitativa e politicamente superar os obstáculos sociais que os espreitam.
Cumpre esclarecer que ações afirmativas não são sinônimas de cotas, ou seja, um percentual de vagas a ser preenchido pelo segmento excluído em um dado espaço ou organização social. Isso porque englobam outros e mais ampliados me- canismos voltados a estimular à diversidade e o acesso à condições sociais e opor- tunidades que, dadas as hierarquias raciais instituídas, dificilmente incorporariam ou seriam permeáveis ao sujeito negro.
Ou seja: ações afirmativas não são se configuram em medidas assistenciais, emergenciais ou pontuais, marcadas pela provisoriedade ou benevolência. São, de fato, políticas articuladas, planejadas e estratégicas, requisitando, por conta dis- so, previsão orçamentária, recursos humanos qualificados e avaliação sistemática. Exemplos, nesse sentido, são as ações governamentais voltadas a
promover o aumento da presença negra ou feminina ou de outras minorias étnicas na educação, no emprego, nas outras esferas da vida pública. Promover esse aumento implica levar em conta a cor como critério relevante na seleção de candidatos para tais oportunidades (...). Tradicionalmente, foram as pessoas brancas as favorecidas para qualquer oportunidade social ou econômica; com a ação afirmativa o Estado estabele- ce certas preferências para pessoas negras, ou mulheres ou membros de outras mino- rias étnicas. Essas preferências não são absolutas; a raça é só um dos critérios utilizados para a distribuição de vagas nas faculdades ou empregos.” (SANTOS, 1999, p. 43)
Isso significa – ao contrário da compreensão equivocada de muitas pessoas – que as ações afirmativas não criam distorções, não promovem o rebaixamento do nível dos critérios de seleção, nem liberam os candidatos da apresentação de competências exigidas para os cargos e vagas oferecidos. Em outras palavras,
“um candidato negro de baixa capacidade não pode substituir um candidato bran- co de alta capacidade. Mas, no caso de competição entre dois candidatos de ca- pacidade mais ou menos igual, um branco e outro negro, segundo os critérios da ação afirmativa, o candidato negro teria preferência sobre o branco” (AN- DREWS, 1997 apud SANTOS, 1999, p. 43)
O programa de ações afirmativas do governo brasileiro
A construção das ações afirmativas no plano nacional referencia-se nos pactos e nas convenções internacionais sobre essa matéria. Na esfera da pro- teção internacional contra a discriminação em suas variadas modalidades, o Brasil é signatário junto às Nações Unidas, desde 27 de março de 1968, da Convenção Internacional sobre Eliminação sobre Todas as Formas de Discriminação Racial, entrando oficialmente em vigor no país, em 1969. Entre os compro- missos assumidos na ocasião, estão a promoção da igualdade e a construção de condições sociais equânimes no acesso à educação, à renda, ao trabalho, à saúde, à liberdade de expressão social, cultural e religiosa.
Marco desse processo foi o Brasil tornar-se signatário da Carta de Paris (1990) e do Pacto de San José, Costa Rica (1993), que versam sobre os mesmos compromissos, e da Conferência Internacional de Combate a Xenofobia, Racismo e Todas as Formas de Intolerância, ocorrida em Durban (2001).
Ancorados nestas premissas e referências, diversos são os dispositivos que, no âmbito nacional, vedam a discriminação e promovem a igualdade social en-
tre os diferentes grupos étnicos. Mas, sem dúvida, podemos encontrar a princi- pal referência à diversidade étnica e ao tratamento igualitário no que dispõem a própria Constituição Federal de 1988 e, na sua esteira, todas as leis que tratam especificamente da agenda étnico-racial.
Os primeiros passos nacionais, em termos de ações afirmativas, ocorre- ram na segunda metade década de 1990, sob o comando do governo Fernando Henrique Cardoso. Foi uma época intensa em articulações e processos de resis- tência, com forte ressonância social, marcada pela parceria de inúmeras organi- zações que atuaram em defesa dos interesses das populações afrodescendentes com o governo e especialistas no assunto.
Naquele contexto, uma atenção inicial foi dada à criação de grupos intermi- nisteriais de trabalho (GITs) que apontassem estudos e caminhos à erradicação do racismo em todas as suas formas, na escola, no acesso ao trabalho e à renda, na vida social e comunitária, na expressão de sua cultura étnica, na preservação de seus direitos sociais. O trabalho desses GITs culminou na publicação, em 14 de maio de 2002, do Programa Nacional de Ações Afirmativas (BRASIL, 2002). O processo resultou também na sensibilização de governos e sociedade e na promul- gação do Decreto 1.904/96, relativo ao Programa Nacional de Direitos Humanos, em que as populações afrodescendentes, junto a idosos, crianças e adolescentes, índios e mulheres ganharam atenção e proteção especial.
Esses esforços e iniciativas não só criaram, mas, principalmente, solidificaram dispositivos e mecanismos sociojurídicos efetivamente capazes de colocar os di- reitos sociais ao alcance das comunidades afrodescendentes. Especialmente desde 2000, mediante inúmeros decretos oficiais do governo brasileiro, as políticas afir- mativas têm sido implementadas em diferentes setores da sociedade. Atualmente elas já alcançaram áreas como saúde, desenvolvimento agrário, educação, traba- lho e emprego, administração pública e relações exteriores.
Mas a grande “diva” das ações afirmativas brasileiras, de corte racial, indis- cutivelmente, é a política de ensino superior e, nesta, as cotas étnico-raciais. O ensino superior, por meio de cotas e do Prouni, tem oportunizado uma verdadeira mudança social no sentido da inclusão para os afrodescendentes. Segundo dados disponibilizados pelo MEC (2010), em 2009, o Programa Universidade para Todos (Prouni) aumentou, em quase 50 mil, o número de alunos negros nas universidades brasileiras.
Não há dúvidas de que sem a adoção de políticas afirmativas no Ministério da Educação não se alcançaria esses índices. Apenas em um semestre de oferta
de cotas, no ano de 2009, houve um acréscimo de 5% no número de estudantes negros nas instituições de ensino superior.
Naquele mesmo ano, o MEC (2010) contabilizou: o Prouni foi o principal responsável pela inserção maciça dos afrodescendentes, ao oferecer 46.695 bolsas de estudo para o sistema de cotas, o que significou 41,54% das 112.416 vagas dis- ponibilizadas pelo programa. Em maio de 2010, quando se celebraram os 122 anos da Lei Áurea, foi lançado o Selo para Educação Étnico-Racial (BRASIL, 2010).
O selo é um reconhecimento que será entregue às 100 instituições educacionais mais bem pontuadas segundo os critérios de avaliação estabelecidos no Plano Na- cional de Implementação das Diretrizes Curriculares para a Educação das Rela- ções Étnico-Raciais. O objetivo é envolver as redes de ensino para que a Lei nº 10.639/03 possa fazer parte do currículo educacional (SEPPIR, 2010).
No sopro desses ventos “afirmativos”, dois anos mais tarde, em 29 de agosto de 2012, a Presidenta Dilma sancionou a Lei nº 12.711/2012, conhecida como Lei das Cotas, que determina que as universidades públicas federais e os institutos técnicos federais reservem, no mínimo, 50% das vagas para estudantes que tenham cursado todo o ensino médio em escolas da rede pública, com distribuição das vagas entre negros, pardos e indígenas. A aplicação da lei torna ultrapassada a escolha entre “cotas sociais” e “cotas raciais” e demonstra um efetivo e firme propósito do governo em erradicar pobreza, racismo e desigualdade social em um só ato.
Toda essa estrutura de atenção à questão racial, na perspectiva do rompimento com o racismo histórico no Brasil, contudo, não alcançou a consciência da maioria branca dos brasileiros. Não bastassem as divisórias impostas pelo racismo, a aplicação das políticas afirmativas voltadas a corrigi-lo gera novas polêmicas. Ou seja, a apresen- tação de ações afirmativas não implica, imediatamente, sua legitimação pela sociedade. Resultado: o Estado Brasileiro, que avançou na legislação antirracismo, con- vive agora com grupos organizados controversamente reivindicando “direitos históricos” de uma minoria branca. A oposição às cotas na universidade e nos
processos seletivos de trabalho e emprego é a manifestação mais recorrente.
Esta é a face do racismo brasileiro – nada cordial, diga-se de passagem. En- tretanto, na ótica de quem está no meio do “furacão” do racismo e o enfrenta, cotidianamente, o que deveria estar sendo debatido não é se as cotas são ou não constitucionais ou legítimas, mas sim a vergonhosa realidade da grande maioria da população brasileira, que sobrevive persistentemente na malha da pobreza, no
subemprego, nas sub-habitações e trilha uma história social correntemente atra- vessada por um processo educacional e social precário e talhado por obstáculos.
O problema desse ciclo excludente é que essa realidade não cessa na primeira infância, na educação básica ou no primeiro emprego, mas acompanha a biografia do sujeito e reprograma cada passo de sua vida, assim como suas perspectivas, dentro de um padrão mínimo, de cidadania miniaturizada, muito distante do pa- drão de igualdade legalmente preconizado.
Esse cenário e suas refrações na vida, tanto das comunidades afrodescenden- tes como da ampla sociedade brasileira, representam o declínio (nesse caso, sim, inconstitucional) de todas as instituições sociais, especialmente as públicas, que falharam em não assegurar seu direito à cidadania e à justiça social.
Esses condicionantes contornam o tema “cotas”, e, obviamente, gera desassos- segos. As “cotas” dizem respeito à igualdade de oportunidades, que só funciona, efetivamente, quando se criam condições para “equilibrar” as diferenças, reduzin- do as desigualdades. Ou seja, as cotas são intrinsecamente relacionadas às ações afirmativas. Assim, ao falarmos de cotas no Brasil, estamos, de fato, pautando uma das dimensões de uma política governamental de ações afirmativas, a qual dialoga com a redistribuição democrática de oportunidades, a quebra histórica de privilégios e a construção de uma nova e justa base societária.
O problema das cotas não é sua legalidade, mas sua legitimação social. A po- pulação negra sabe o quanto as cotas, como forma de ação afirmativa, são im- portantes ao seu desenvolvimento social e a sua cidadania. Apenas aos brancos ou a quem se aculturou a ponto de reproduzir mimeticamente o seu discurso, interessa julgar ou duvidar da importância social e da legalidade das cotas raciais. É oportuno esclarecer, ainda que beire o óbvio, que as cotas não pressupõem inferioridade nem, em sua gênese, lançam estigma algum, tampouco criam ou potenciam racismo, opressão, nem discriminação. Como já amplamente discu- tido e comprovado, também não constituem situação inconstitucional. Afinal, as cotas são um reconhecido mecanismo compensatório de efetivação de cidadania praticado internacionalmente, voltado a beneficiar mulheres, idosos, crianças, deficientes e grupos socialmente excluídos, visto que constroem, prospectiva-
mente, bases mais justas para esses segmentos.
Não temos dúvidas sobre a recomendação para que as cotas sejam provisó- rias, ou seja: elas devem ter uma contribuição estratégica no projeto de Nação que o governo brasileiro vem edificando, dentro de um prazo social datado. Isso é importante, exatamente porque não se credita exclusivamente às cotas, mas
sim à uma ampla agenda de políticas afirmativas, a resolução da equação da ex- clusão racial que mantém negros nas habitações mais precárias, nos subempre- gos, nos desvios de função, nas faixas mais baixas de renda e, recorrentemente, nas camadas mais pobres da sociedade.
Assim dizendo, as cotas são e deverão ser sempre parte de um plano maior, de ações afirmativas, em que ações políticas, intersetoriais, de promoção da cidada- nia, de redução de desigualdades e de investimento no desenvolvimento social e econômico da população negra são orquestradas.
Em defesa de “boas práticas” afirmativas no ensino superior
O ensino, a pesquisa e a extensão no contexto universitário, não podem mais ignorar, nem alegar neutralidade, frente à densa vulnerabilidade social e ofensiva étnico-racial, biografadas pelas populações afrodescentes e indígenas, indepen- dentemente do local, espaço ou situação social em que se representem.
A discriminação racial, enquanto questão social historicamente reconheci- da, tem imposto barreiras sociais à cidadania e desenvolvimento social de seg- mentos populares, alijando-os por abomináveis e imorais atitudes racistas, que tipificam e distinguem sujeitos, usando a etnia como fator redutor de acessos, perspectivas e possibilidades de ascensão social.
Decorre disso uma questão já conhecida: a realidade do ingresso, da evasão e da retenção de estudantes originários de camadas empobrecidas ou de grupos étnico-raciais – a saber afrodescendentes e indígenas – é indiscutivelmente mais acidentada do que a de estudantes provenientes de outros grupos sociais, nos quais as marcas de estigma social não existem. Mais que isso, o atraso educacio- nal, as prioridades familiares (de manutenção da família) e do trabalho (seja ele formal ou informal) que assegura a renda e a subsistência familiar, no contex- to de outras dificuldades, no geral, econômico-sociais, acabam precarizando o acesso, a atenção e o tempo dedicado aos estudos, comumente, comprometendo a conclusão do curso. Por reconhecer as malhas sociais que corporificam este diagnóstico e seus condicionantes na vida de grupos majoritários de brasileiros que não conseguem alcançar a formação universitária (e,por vezes, nem mesmo a colocá-la em seu horizonte), as universidades tornaram-se signatárias do REU- NI (Programa do Governo Federal de Apoio a Planos de Reestruturação e Ex- pansão das Universidades Federais Brasileiras) e do Programa Ações Afirmativas do Governo Federal e, com isso, vêm assumindo, de modo gradual e crescente, uma política educacional voltada a promover a redução das desigualdades.
Nessa perspectiva espera-se da universidade, por meio de sua administração e órgãos consultivo-deliberativos colegiados, a mobilização de esforços para pautar e atender essa realidade, organizando e apoiando ações no âmbito do ensino, da pesquisa e da extensão, estimulando para que sejam implementadas de modo articulado e indissociadamente.
Contudo, o terreno universitário, assim como ocorre em outras institui- ções, guarda conservadorismos e, por contradição, em vez de promover reno- vações e crítica, ainda nutre divisas culturais e a manutenção de searas hege- mônicas. Esta condição desafia profissionais, docentes, gestores, estudantes e pesquisadores que ali atuam, sobretudo quando defendem e lutam pela edifica- ção e fortalecimento de uma universidade afirmativa.
Em que pese o conhecimento de que não se trata de uma questão individual, mas coletiva; nada pontual, mas social e que atende a uma questão política, edu- cacional e institucional, a verdade é que a construção de ações afirmativas ainda é pautada nas universidades como uma luta de poucos, e mais que isso, uma luta de negros pelos negros. Isso coloca as ações afirmativas em uma condição de isola- mento institucional e as prende a um certo imobilismo, nutrindo avessos, valores contraditórios, neoracismos e novos segregacionismos.
Para romper com esse circuito, sugerimos:
• Promover esforços no sentido do fortalecimento da relação entre a universidade e a sociedade, e desta com os setores representativos das comunidades (associações, ONGs, sindicatos, clube de mães, etc. ) bem como os setores responsáveis pela gestão das políticas públicas e presta- ção de serviços sociais.
• Efetuar um rompimento com a desigualdade social imposta a muitos estudantes e comunidades, ao privilegiar assumidamente estudantes origi- nários das camadas empobrecidas, afrodescendentes e/ou indígenas como potenciais tutores a serem selecionados, para atuar na proposta, caso seja aprovada em nível nacional.
• Contribuir para a redução da evasão e da retenção, bem como com a ele- vação do nível de desempenho e sucesso educacional dos estudantes, sobre- tudo aqueles com trajetos educacionais e sociais mais acidentados e difíceis.
• Apresentar, desenvolver e apoiar a revisão e proposição de novos e inte- ressantes de métodos de ensino-aprendizagem, bem como de estratégias
que favoreçam os estudos, inaugurem novos estilos de aprendizagem em vista da efetiva e democrática promoção do sucesso escolar e redução das desigualdades sociais no meio acadêmico.
• Promover a aproximação dos currículos, das áreas de conhecimento e dos saberes científicos e populares, interdisciplinarizando-os, tendo o compromisso com a indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a ex- tensão o cenário que torna esse encontro possível.
• Impactar na formação (não apenas acadêmica, mas cultural, política e social) dos estudantes, docentes e funcionários engajados/envolvidos na proposta, compondo atividades, conhecimentos, atitudes, gestos e proces- sos, na forma de relações cidadãs, manifestas em boas práticas que retra- tem efetivas mudanças culturais.
Em tempo: conversa com comissões avaliadoras de cotas raciais
Toda essa reflexão assume especial importância para aqueles que trabalham com a avaliação social centrada na verificação da identidade étnica de candidatos, aspirantes às vagas de cotas, associados às políticas de ações afirmativas. Ou seja, é imprescindível falar de boas práticas em termos de ações afirmativas com as comissões de avaliação social que recepcionam muitos afrodescendentes no ensino superior público.
Os avaliadores de candidatos a cotas geralmente são solicitados a tomar de- cisões relativas à inclusão/exclusão em programas educacionais ou de empre- go, norteando suas ações, geralmente, com base em critérios de autenticidade. Isto é, convencionalmente, conduzem a seleção, mediante a verificação e/ou comprovação da autenticidade fenotípica, principalmente focados na “aparên- cia” dos candidatos a cotas raciais.
Assim guiados, agem em busca do chamado “negro autêntico”, ancorados em critérios biológicos, não raro, mistificadores e arraigados a um olhar estereotipa- do e dissociado da complexidade étnico-racial brasileira, em que a miscigenação é histórica e marcante. Sua busca é por “clichês” físicos (fenotípicos) ou verbais (discursivos), para julgar, classificar e/ou confirmar a pertença dos candidatos a um grupo étnico-racial. Os recursos, solicitando revisão da avaliação, cada vez mais correntes, dimensionam o quanto a tarefa de identificação étnico-racial é complexa e requisita um olhar amplo e interdisciplinar.
Contudo, sabe-se que a atribuição de pertença étnica deve considerar a mis- cigenação racial praticada no Brasil (aliás, entre várias etnias), confirmada, por
exemplo, pela genealogia familiar, sem ater-se apenas à valorização do aspecto fenotípico (cor da pele, textura do cabelo e outros traços físicos), que pode ser ou não correspondente à padronização (ou bioestereotipação) convencionada.
Atentos a essa questão e com vistas a contribuir ao aprimoramento desse pro- cesso avaliativo, organizamos essa reflexão. Nessa direção, convidamos inicial- mente a compreender que, conforme Inocêncio (1999), os parâmetros para se definir raça são socialmente construídos e, por essa razão, costumamos dizer que raça, menos do que um referencial biológico, é uma categoria social (que refere a pertencimento social e cultural).
Nesse sentido, acompanhamos Osório (2001) quando recomenda que a iden- tificação étnico-racial focalize não apenas as características fenotípicas, mas tam- bém a inserção sociocultural do sujeito:
a marca principal que permite a identificação das potenciais vítimas de precon- ceito é a cor [...] todavia deve-se lembrar que o propósito da classificação racial não é estabelecer com precisão um tipo “biológico”, mas se aproximar de uma caracterização sociocultural local [...] onde o preconceito é associado a carga de traços do que se imagina ser a aparência do negro (OSÓRIO, 2003, p. 22-24).
Afinal, a multidescendência (decorrente de uma família miscigenada), o uso de alguns cosméticos e a adoção de certo “pluralismo” cultural podem dificultar a “autenticação” do negro dentro do padrão idealizado. Mais que isso: é preciso ter cuidado para não transformar idealizações em dogmas e ideologias, o que seria prejudicial ao processo de legitimação de direitos sociais, pela via das ações afirmativas, às comunidades afrodescendentes. Isso coloca em discussão a suposta diferenciação étnica entre negros e pardos.
Para ficar mais claro: inexiste diferenciação entre negros e pardos, visto que ambos são afrodescendentes. Mesmo que os pardos possam ter alguma acessibilidade ou favo- recimento maior que os pretos, por conta do modo brasileiro de assimilar a pertença étnico-racial, preferindo incluir pardos por serem “mais claros”, estes seguem sendo discriminados, como parte do mesmo grupo étnico que são. Ou seja: nunca ou rara- mente alcançando as camadas, lugares ou postos designados aos brancos.
Compreender esse contexto só é possível a avaliadores dotados de uma ra- cionalidade crítica e aberta, capaz de investigar a identidade étnico-racial no pertencimento social dos sujeitos, manifesta nos discursos, nas práticas sociais, religiosas, culturais, nos gostos musicais, culinários, no modo de ser e agir; sem
reduzir-se a uma comparação estagnada e atemporal, centrada em uma aparência, uma cor ou um comportamento social ideopadronizado de “ser negro”.
Assim, mesmo que não se reconheçam como tais e mesmo que tenham fugido de sua verdade étnica, em uma estratégia defensiva e de sobrevivência social, os pardos ou mulatos, ou aqueles que adotam cabelos alisados, ou ainda os que não frequentam religiões africanistas ainda são negros. Afinal, sua identidade não é anulada por superficialidades, como a aparência criada por cosméticos, cortes ou coloração de cabelo, tampouco por sua opção religiosa.
Muitas vezes a avaliação étnica, especialmente quando é realizada por pes- soas vinculadas ao Movimento Negro, tende a ser mais rigorosa, guiando as entrevistas não apenas para identificar quem são os negros entre os não negros, mas para selecionar os biologicamente “mais negros” e os politicamente mais críticos e resistentes.
Em que pese nossa compreensão e respeito sobre o modo como pensam mui- tos desses avaliadores, preocupados com um perfil “forte” de cotista, importa observar que, quando a seleção é assim conduzida, acaba por reproduzir a discri- minação dos afrodescendentes que foram menos resistentes à opressão racial ou dos que são filhos de uniões inter-raciais. E, ao fazê-lo, distancia-se do objetivo essencialmente includente que dá sentido às ações afirmativas.
Assim considerando, a avaliação voltada à identificação/confirmação racial não pode ignorar o contexto sócio-histórico de alienação e exclusão que cerca as populações afrodescendentes, nem promover uma seleção assentada no mérito, na cognição ou em posições políticas. Aliás, as cotas e ações afirmativas visam corrigir essas distorções, buscam alcançar os segmentos que mais são atravessados por essas dificuldades e esses obstáculos.
As pessoas ou profissionais investidos na tarefa de avaliação racial, precisamen- te por sua condição estratégica, devem considerar todos os vértices do quadro complexo que o racismo e a formação da identidade étnico-racial configuram.
Não se está atrás de um descendente literal do líder Zumbi, mas de um sujeito com descendência afro-brasileira, que representa as características socioculturais próprias dos negros de nosso país e do nosso tempo.
Assim, mesmo que não apreciem, os avaliadores terão de aceitar que nem todos os negros gostam de samba e pagode, assim como cada vez menos mulheres negras usam tranças étnicas ou conservam seu cabelo natural, sem uso de química ou colorações. A experiência americana conseguiu ultrapassar essas barreiras e compreender o “ser” negro em sua diversidade sociocultural contemporânea.
A título de referência, para desviar do erro, importa observar que pessoas bran- cas (mesmo que usando rastafári, vestindo uma camiseta do Bob Marley e que rela- tem ser umbandistas e frequentar capoeira) não podem ser beneficiadas por ações afirmativas ou cotas raciais. Em contrapartida, um candidato negro ou mulato, que esteja com cabelo raspado e confesse que se incomoda com o seu cabelo e que por isso o conserva assim, não deixa de ser negro por conta dessa revelação.
Agindo desse modo, mais próximos estaremos da igualdade racial, talhando com nosso contributo crítico a verdadeira e real democracia. O bom senso e a crí- tica são sempre os guias de nossas consciências, pois, por mais que nos esforcemos em objetivá-la, essa avaliação será sempre essencialmente subjetiva. Daí a impor- tância de que as comissões de avaliação sejam tanto qualificadas (com expertise na matéria), como interdisciplinares e heterogêneas (de diferentes vinculações sociais, formativas e institucionais) em sua composição.
Nesse sentido, sugerimos que tais comissões sejam integradas por lideranças negras, representantes de entidades relacionadas ao movimento negro, mem- bros de conselhos da comunidade negra (Conselhos Municipais de Promoção de Politicas de Igualdade Racial (COMPIR), Conselhos Estaduais de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra (CODENE) ou afins, além de pesquisa- dores de diferentes áreas de conhecimento, experts nessa temática.
Para não concluir
O racismo, enquanto questão secular e culturalmente arraigada às relações, valo- res e preconceitos não pode ter sua superação ou enfrentamento apontado em algu- mas medidas ou em poucas linhas. Por isso, como já dissemos anteriormente, nossa pretensão aqui nunca foi encerrar, mas abrir um caminho reflexivo, promover o de- bate, retirar a questão racial do lugar do silenciamento, da vergonha ou da solidão.
Se as ações afirmativas são hoje política pública no Brasil e as instituições de ensino superior são estratégicas na construção de uma sociedade verdadeiramen- te democrática, não se pode mais ignorar esse debate, nem submetê-lo a interes- ses movediços de pessoas, partidos ou autoridades.
Há que assumir a realização das ações afirmativas como dever. E há que fazê-lo bem, com competência e com capacidade de impacto na realidade dos brasileiros. Isso requisita não só força de vontade e conhecimento mas, sobretudo, ”entranhamento” na realidade social da população, em suas lutas, contradições e dificuldades. Nessa pers- pectiva, o diálogo e a articulação com as organizações sociais e representações diversas das populações afrodescendentes e indígenas são o caminho mais legitimo a se trilhar.
Referências
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