Marxismo e subjetividade em Eduardo Vasconcelos: uma revisão crítica do pluralismo teórico do serviço social brasileiro

Vinicius Pinheiro Magalhães
UFS, Brasil

Marxismo e subjetividade em Eduardo Vasconcelos: uma revisão crítica do pluralismo teórico do serviço social brasileiro

O Social em Questão, núm. 47, pp. 245-270, 2020

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

PUC-RIO © 1992 - 2020

Resumo: Pretende-se, com este ensaio teórico, expor o pensamento de Eduardo Vascon- celos, professor e pesquisador do campo do serviço social brasileiro, sobre a te- mática do marxismo e subjetividade, bem como suas implicações no contexto profissional. O problema de fundo desta empreitada é: a contribuição teórica de Eduardo Vasconcelos sobre o marxismo e a subjetividade dialoga com o Projeto Ético-político do serviço social brasileiro? A reflexão teórica mostrou clara con- vergência entre o pensamento de Eduardo Vasconcelos e o Projeto Ético-político da profissão, além de ter sido possível captar a contribuição do autor para uma revisão crítica do pluralismo teórico do serviço social.

Palavras-chave: Serviço Social, Subjetividade, Marxismo, Pluralismo.

Marxismo e subjetividade em Eduardo Vasconcelos: uma revisão crítica do

pluralismo teórico do serviço social brasileiro

Vinicius Pinheiro de Magalhães1

Resumo

Pretende-se, com este ensaio teórico, expor o pensamento de Eduardo Vascon- celos, professor e pesquisador do campo do serviço social brasileiro, sobre a te- mática do marxismo e subjetividade, bem como suas implicações no contexto profissional. O problema de fundo desta empreitada é: a contribuição teórica de Eduardo Vasconcelos sobre o marxismo e a subjetividade dialoga com o Projeto Ético-político do serviço social brasileiro? A reflexão teórica mostrou clara con- vergência entre o pensamento de Eduardo Vasconcelos e o Projeto Ético-político da profissão, além de ter sido possível captar a contribuição do autor para uma revisão crítica do pluralismo teórico do serviço social.

Palavras-chave

Serviço Social; Subjetividade; Marxismo; Pluralismo.

Marxism and subjectivity in Eduardo Vasconcelos’ works: a critical review of

theoretical pluralism of the brazilian social work

Abstract

This theoretical essay intends to expose the thinking of Eduardo Vasconcelos, a professor and researcher in the field of social work in Brazil, concerning Marxism and subjectivity, as well as its implications in the professional context. The basic problem of this work is: Does the theoretical contribution of Eduardo Vasconce- los on Marxism and subjectivity dialogue with the ethical-political Project of the Brazilian social work? Theoretical reflection showed a clear convergence between Eduardo Vasconcelos’ thought and the ethical-political Project of the profession, and it was possible to apprehend the author’s contribution to a critical revision of the theoretical pluralism of social work.

Keywords

Social Work; Subjectivity; Marxism. Pluralism.

Artigo recebido em abril de 2019

Artigo aceito em julho de 2019.

Introdução

Pretende-se, com este ensaio teórico, expor o pensamento de Edu- ardo Vasconcelos sobre a temática do marxismo e subjetividade, bem como suas implicações no contexto do serviço social brasileiro.

Eduardo Mourão Vasconcelos é um pesquisador brasileiro que tra- balha com as temáticas das políticas sociais, movimentos sociais e psicologia social, com ênfase no campo da saúde mental. É psicólogo, mestre em ciência política e doutor em políticas sociais. É professor associado aposentado da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vinculado, como professor voluntário, ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social. Trata-se de um dos nomes mais relevantes do movimento de Reforma Psiquiátrica brasi- leira e da Luta Antimanicomial.

A formação plural e profundamente interdisciplinar engendrou a intelectualidade desse pesquisador que tem contribuído significativa- mente para o serviço social, sobretudo no que se refere à viabilização de uma produção teórica que tem possibilitado perspectivas antima- nicomiais críticas e instrumentalizado o trabalho do assistente social no espaço sócio-ocupacional da política de saúde mental.

O problema de fundo posto por este ensaio teórico, que tem por baliza a produção intelectual desse pensador, é: a contribuição teórica de Eduardo Vasconcelos sobre o marxismo e a subjetividade dialoga com o Projeto Ético-político do serviço social brasileiro?

Para responder o problema proposto digressarei sobre o pensa- mento de Vasconcelos expresso em três obras: Saúde Mental e Ser- viço Social: o desafio da subjetividade e da interdisciplinaridade2; Complexidade e pesquisa Interdisciplinar: Epistemologia e Metodo- logia operativa3; e Karl Marx e a subjetividade humana, volume III4. A exposição das obras neste ensaio teórico segue uma sequência cronológica de publicação. Ainda que não sabendo se há uma re- lação consciente de continuidade entre esses trabalhos é possível inferir um nexo heurístico no desenvolvimento da obra de Eduardo

Vasconcelos. É justamente a coerência interna de sua obra que per- mite vislumbrar não só uma tese sobre o marxismo e a subjetividade, mas, derivada de sua originalidade teórica, também uma compro- metida proposição crítica para o serviço social brasileiro.

O polêmico recalque da subjetividade no âmbito do Serviço Social brasileiro

O medo é uma ilha que separa o mundo [...] é uma casa aonde ninguém vai

[...] é uma força que não me deixa andar

Lenine - Medo

Antes de tratar especificamente da tese de Vasconcelos sobre o recalque da subjetividade no âmbito do serviço social é importante contextualizar, a partir de dados biográficos, seu processo de individu- ação na pesquisa e interesse pelo campo do serviço social.

Os dados aqui registrados são baseados em declarações feitas pelo próprio autor em obras publicadas e no currículo do Sistema de Currículos Lattes.

Uma primeira questão que surge quando se propõe analisar a vida intelectual de um autor relevante é a do motivo de escolha de um campo de atuação. No caso de Eduardo Vasconcelos, ainda que sen- do psicólogo, sua escolha foi pelo serviço social. Obviamente que, no contexto de uma sociabilidade capitalista, nossas escolhas são lapidadas pelas condições objetivas, ou seja, nem sempre consegui- mos, no contexto profissional, o que de fato almejamos, mas no caso de Vasconcelos há uma estreita relação entre sua biografia e a esco- lha por atuar na área do serviço social brasileiro. Infere-se que tenha sido uma aproximação proposital. Em certa publicação Vasconcelos relembra um trágico acontecimento, ainda da década de 1970, que expressou a dificuldade de setores da esquerda com algumas temá- ticas que envolvem a subjetividade:

Retomei também uma trágica e difícil experiência de suicídio por enforcamento de dois amigos e companheiros de luta estu- dantil acometidos por crise paranoica – Flavio Sampaio e Mar- celo Righi Marco – em Belo Horizonte, em 1977, em um período de menos de um ano. Naquele ambiente de ainda forte dita- dura e perseguição política, Flávio e Marcelo tinham a visão de que suas dificuldades pessoais constituíam resquícios de sua formação pequeno-burguesa. Diziam que seus conflitos só se- riam superados pela militância política, se recusando a utilizar os já disponíveis vários tipos de tratamento psicológico, pois, segundo eles, todos estavam inteiramente aprisionados pelo subjetivismo e individualismo burguês e pequeno-burguês (VASCONCELOS, 2010b, p. 20-21).

É certo que uma experiência com esse nível de intensidade não passa pela vida de uma pessoa sem deixar marcas. Talvez esse epi- sódio tenha influenciado Vasconcelos a contribuir de alguma forma para diminuir as dificuldades entre a esquerda e a dimensão da sub- jetividade humana5.

Sem sombra de dúvidas o serviço social renovado, constituído de uma hegemonia marxista, de meados das décadas de 1980 e 1990, representou e representa um dos campos profissionais que mais le- vam a sério a teoria social crítica de Marx no Brasil. Eduardo Vas- concelos ingressa na UFRJ como professor associado de dedicação exclusiva na Escola de Serviço Social no ano de 1994. Essa vinculação ao serviço social seria uma tentativa consciente de contribuir com o debate da subjetividade no âmbito do marxismo brasileiro, cujo um dos principais representantes é justamente esse campo profis- sional?6 Se essa empreitada não foi consciente, não deixou de ser coerente. Apenas seis anos depois de ingressar na referida universi- dade, Vasconcelos publica Saúde mental e Serviço Social: o desafio da subjetividade e da interdisciplinaridade.

É importante destacar o fato de que sua tese sobre o recalque da subjetividade no âmbito do serviço social brasileiro é um empreendi-

mento que, conforme o próprio autor, aponta as dificuldades da tradi- ção marxista da profissão em lidar com a subjetividade, mas que ainda carece de apontamentos das “[...] raízes histórico-teóricas de tais difi- culdades” (VASCONCELOS, 2010b, p. 15).

A polêmica tese do recalque está exposta no ensaio do livro su- prarreferido, intitulado: Da hiperpsicologização normatizadora ao re- calcamento da subjetividade: notas históricas sobre o Serviço Social, subjetividade e saúde mental no Brasil e no Rio de Janeiro, fruto da linha de pesquisa Serviço Social, Saúde Mental e Abordagens Psicos- sociais do projeto interdisciplinar de pesquisa Saúde Mental, Desins- titucionalização e Abordagens Psicossociais.

Trata-se de um ensaio teórico que lança luz sobre as relações entre o serviço social e o campo da saúde mental no Brasil e no Rio de Janei- ro, e que expõe as influências das abordagens da saúde mental para o histórico da profissão.

Vasconcelos (2010a) digressa sobre as influências higienistas que se capilarizaram sobre balizas católicas e também norte-americanas (dé- cadas de 1940 a 1960) no contexto do serviço social, ambas as pers- pectivas de natureza conservadora e ajustadora.

Também expõe as influências das oficinas terapêutico-expressivas da Dra. Nise da Silveira que inspiraram inúmeras assistentes sociais (nas décadas de 1940 a 1990) que entraram em contato com uma “[...] abor- dagem humanizada, individualizada, ética, aberta e respeitosa em rela- ção aos direitos dos clientes, a sua história pessoal e sua subjetividade, bem como sua produção artística” (VASCONCELOS, 2010a, p. 186).

Destaca ainda a característica do trabalho burocrático e limitado dos assistentes sociais vinculados às enfermarias e hospitais psiquiá- tricos das décadas de 1940 e 1950, que trabalhavam numa perspectiva de mediação na porta de entrada e saída dessas instituições. A posi- ção e demanda profissional dos assistentes sociais dessas instituições eram profundamente subalternas em relação aos médicos e dirigentes institucionais (VASCONCELOS, 2010a).

Além destas influências também aponta outras, do campo progres- sista, de relevância significativa para o serviço social no âmbito da saúde mental, a saber: as comunidades terapêuticas das décadas de 1960 e 1970; o sanitarismo e a psiquiatria social das décadas de 1970 e 1980; e a Psiquiatria Democrática italiana que se estende ao Brasil a partir da década de 1990 e influencia o processo de Reforma Psiquiá- trica (VASCONCELOS, 2010a).

No contexto do serviço social das décadas de 1970 e 1980, Vas- concelos (2010a) chama atenção para a crítica, empreendida pelo Prof. José Paulo Netto, que foi direcionada à tentativa de formulação de uma perspectiva fenomenológica na profissão. Eduardo Vascon- celos concorda com a crítica de que essa tentativa foi marcada por “[...] referências teóricas secundárias, assistemáticas, centradas em poucas categorias [e que simplificam] o pensamento de seus funda- dores” (VASCONCELOS, 2010a, p. 196), entretanto considera que uma aproximação “[...] mais sistemática às formulações mais à esquerda do movimento fenomenológico poderia representar outro tipo de contri- buições, potencialmente mais interessantes ao serviço social brasilei- ro, dentro de uma perspectiva pluralista” (VASCONCELOS, 2010a, p. 197). Trata-se de uma primeira proposta, ainda que tímida, de revisão do pluralismo do projeto profissional.

Observa-se, na exposição de Eduardo Vasconcelos (2010a), a traje- tória do serviço social brasileiro com uma profunda interlocução com o campo da saúde mental, seja em perspectivas e experiências con- servadoras ou progressistas. Essa relação dialógica começa a empo- brecer a partir do marco histórico do movimento de reconceituação do serviço social brasileiro e este é ponto central de sua tese sobre o recalque da subjetividade no contexto da profissão.

O movimento progressista de reconceituação da profissão – ver- tente calcada na perspectiva teórica do marxismo e crítica do projeto profissional conservador – teceu duras críticas a uma abordagem do campo psi, influente a partir da década de 1940, que desconsiderava

os aspectos concretos da realidade macro. Tratava-se de uma verten- te da psicologia norte-americana, a psicologia do ego, centrada numa “[...] matriz psicossocial adaptadora, ajustadora, individualizadora e por sua teoria sociológica funcionalista” (VASCONCELOS, 2010a, p. 199). Entretanto, o movimento de reconceituação não considerou as perspectivas progressistas e críticas que tratavam da subjetividade naquele contexto, generalizando para todo o campo psi o enquadra- mento na tese da psicologização das relações sociais.

Na direção desta reflexão Eduardo Vasconcelos (2010a) conclui

O movimento da reconceituação adotou várias versões do mar- xismo como matrizes teóricas, incluindo, inicialmente, a influên- cia de fontes marxistas simplificadoras, entre elas o empirismo influenciado pelo maoísmo e o epistemologismo de inspiração estruturalista [...] é possível afirmar de modo provisório que o processo de reconceituação reproduziu dentro da profissão um recalcamento da temática da subjetividade, sobretudo de seus aspectos relacionados ao inconsciente, à personalidade e ao campo das emoções (p. 198).

O termo recalque ou recalcamento, em Vasconcelos (2010a), é uma incorporação crítica do conceito primeiramente utilizado por Freud. O termo refere-se a um sistema de defesa inconsciente contra possíveis ameaças. No contexto do serviço social a ameaça seria a reatualização de um conservadorismo teórico no seio da profissão. A originalidade de Vasconcelos (2010a) está em mostrar que este pro- cesso de recalcamento não é coerente com a proposta de dialetici- dade crítica do projeto profissional.

Ainda que o serviço social tenha se aproximado da temática da subjetividade através das necessárias discussões sobre a ética e os valores profissionais7, a tese de Vasconcelos (2010a) enfatiza o recal- que, sobretudo, das dimensões do inconsciente, da personalidade e das emoções; elementos mais próximos do serviço social antes do movimento de reconceituação, através de experiências progressistas

como no caso das oficinas terapêuticas da Dra. Nise da Silveira e das Comunidades Terapêuticas8 propostas por Luís Cerqueira, Oswaldo Santos9, Eustachio Portela e Roberto Quilelli.

Este primeiro empreendimento teórico-reflexivo que envolve as temáticas da subjetividade, do serviço social e também do marxismo, é preliminar e será melhor fundamentado mais à frente no decorrer da produção intelectual de Vasconcelos. O importante aqui foi perceber o contexto da construção de uma tese que serviu de ponto de par- tida para posteriores empreendimentos heurísticos. Pareceu ter sido necessário, após essa reflexão polêmica, sistematizar uma crítica de natureza epistemológica e metodológica a determinado tipo de mar- xismo, além de também ter sido necessária a proposição de uma pos- sibilidade epistemológica e metodológica que desse conta da comple- xidade das variadas dimensões da realidade sem cair na apoteose de perspectivas teóricas que beiram a panaceia, nem nas fragmentações e esfacelamentos da pós-modernidade.

Da crítica de um imperialismo epistemológico a uma proposta metodológica complexa

O elo é o samba!

Igor de Carvalho - Samba de todas as crenças

Para tratar da reflexão sobre o imperialismo epistemológico em Eduardo Vasconcelos é necessário apresentar, a partir de informações fornecidas pelo próprio autor, o cenário, o contexto e as condições objetivas que permitiram um acúmulo teórico crítico nos campos da epistemologia e metodologia da pesquisa.

No período de 1987-1992, Vasconcelos cursou o doutorado na Lon- don School of Economics (LSE) – Inglaterra. Outra experiência naquele país foi o seu pós-doutoramento em Cambridge no final de 2000 e início de 2001, empreitada que não dispensou a famosa biblioteca da

LSE, o que o fez trabalhar nas cidades de Londres e Cambridge nesse

breve período (VASCONCELOS, 2002).

O autor reconhece que seu contato com o ambiente intelectual da In- glaterra, sobretudo no contexto da LSE, onde trabalharam Popper e Laka- tos, contribuiu para sua incorporação e aproximação crítica das principais tradições de metodologia da pesquisa. O essencial de seu texto Comple- xidade e pesquisa interdisciplinar foi influenciado por suas experiências teóricas e intelectuais na Inglaterra (VASCONCELOS, 2002).

Portanto, infere-se que, do ponto de vista cronológico, suas in- quietações em relação a certo tipo de imperialismo epistemológico são anteriores à sua tese do recalque da subjetividade no âmbito do serviço social.

Não é relevante saber o que de fato veio primeiro, o que interessa é a relação essencial entre essas duas reflexões teóricas que expressam a ousadia crítica e a coragem intelectual de Eduardo Vasconcelos, tanto no campo do serviço social, como no da esquerda de uma forma geral.

Mas o que vem a ser um imperialismo epistemológico? De acordo

com o autor analisado, trata-se de um processo de radicalização da

[...] posição de que todos os fenômenos físicos, biológicos, so- ciais e subjetivos:

seriam da mesma natureza e teriam características fenomenais homogêneas;

poderiam ser explicados por um único tipo de saber globalizante; poderiam constituir competência de um superprofissional do tipo intelectual-universal (VASCONCELOS, 2002, p. 38).

Vasconcelos (2002) afirma que esta tentativa apoteótica e totaliza- dora de um paradigma ou epistemologia é inexoravelmente desastrosa, pois: reduz a complexidade dos fenômenos; ocupa de forma imperia- lista vários campos do saber (naturais, biológicos, humanos, subjetivos etc.) enquadrando-os num único paradigma e propondo uma única au- toridade cognitiva de conhecimento; produz a ilusão do saber onipo-

tente em detrimento do particularismo alienado dos homens comuns e legitima processos de concentração de poder, na medida em que se concebe saber e poder como intrinsecamente relacionados.

O autor expõe os exemplos históricos, carregados de implicações políticas e sociais, de imperialismos epistemológicos: a teologia cristã medieval e seu projeto societário; o racionalismo dualista cartesiano; as ciências naturais e o positivismo do século XIX; o monismo dog- mático que representam certas versões do marxismo do século XIX; a ortodoxia comunista e stalinista; a psiquiatrização da sociedade e o movimento de higiene mental; a psicologia na versão materialista inspirada em Engels, Lênin e Pavlov; as teorias gerais de sistemas; as variadas versões de psicologismos; o projeto de remedicalização da psiquiatria biológica e o sociologismo e politicismo dos freudomarxis- tas (VASCONCELOS, 2002).

A despeito das variadas formas de imperialismo epistemológico exemplificadas por Vasconcelos (2002), em minha opinião, o que re- almente importa para o autor é tratar de sua forma contemporânea expressa, sobretudo, no bojo dos debates do marxismo. Na direção dessa observação cabe uma citação mais longa sobre o parecer do autor em relação ao desdobramento do imperialismo epistemológico no campo do marxismo contemporâneo, avaliação que comunga com a tese de Laclau e Mouffe:

Por meio dela, [uma lógica essencialista no seio do marxismo, como sugeriram Laclau e Mouffe] em uma aspiração monista, uma teoria considera-se onipotente para capturar a essência e todos os sentidos implícitos da história e dos fenômenos cul- turais e objetivos, reduzindo toda a complexidade da vida so- cial e humana à dinâmica da esfera da produção, acumulação e das classes sociais, possibilitando inclusive reivindicar para a classe operária o status de sujeito universal da história, capaz de direcionar alternativas para todas as questões que afetam os seres humanos e o planeta. Assim, temas como gênero, etnia,

raça, diferenças intergeracionais, processos subjetivos, questões ambientais e planetárias, poderiam ser subsumidos à lógica do modo de produção/acumulação e da luta de classes de forma linear, sem descontinuidades epistemológicas e paradigmáticas (LACLAU; MOUFFE apud VASCONCELOS, 2002).

O empreendimento crítico feito a uma forma epistemológica que se arroga suficiente para captar a complexidade das diversas dimensões da realidade expressas na diversidade dos campos de saber constru- ídos pela humanidade significa uma identificação com a lógica frag- mentalista do pós-modernismo?

Respondendo a essa questão Vasconcelos (2002, p. 14) faz uma crítica às tendências pós-modernas de “[...] fragmentação do social,

[e] da perda dos referenciais da realidade no discurso humano e so- cial contemporâneo”, que abrem caminho para as forças neoliberais ocuparem os espaços de poder e de gestão social. A perspectiva te- órico-metodológica assumida pelo autor analisado, portanto, está no limbo entre a proposta de uma panaceia totalizante e um frag- mentalismo apolítico:

As estratégias indicadas aqui mostram a possibilidade de um “caminho do meio”, que valoriza a multidimensionalidade e com- plexidade dos fenômenos e um certo relativismo moderado com base em um pluralismo crítico, sem ecletismo, buscando inte- ragir perspectivas particulares, sem negar as diferenças ou, do outro lado, violentar as regras epistemológicas de cada campo (VASCONCELOS, 2002, p. 14).

Sem pretensão de empobrecer a rica reflexão de Eduardo Vascon- celos (2002) sobre as estratégias deste caminho do meio é possível destacar que os elementos fundamentais de sua proposta teórico-

-metodológica se centram em balizas do paradigma da complexidade, transversalidade, trans/interdisciplinaridade e das perspectivas inter- teóricas e interparadigmáticas, que sustentam a tese de

[...] uma crise radical dos paradigmas e epistemologias con- vencionais, fundamentados no humanismo racionalista e nos projetos históricos alternativos que marcaram a modernidade, com suas dificuldades inerentes de lidar com a complexidade, com o pluralismo e a diversidade dos campos de saber e de dinâmicas transversais específicas que atravessam as diversas formas de opressão nas sociedades contemporâneas (VAS- CONCELOS, 2002, p. 101).

Vasconcelos é explicitamente influenciado por pensadores como Edgar Morin, Felix Guattari, Boaventura de Souza Santos, Franco Basaglia e outros que compõem o grupo de pensadores que aderem a uma perspectiva teórico-metodológica calcada num pluralismo crítico e transdisciplinar.

Preocupado com a dimensão ético-política na pesquisa transdisci- plinar o autor expõe alguns princípios que devem compor os estudos10 que almejam aderir às perspectivas interparadigmática e complexa.

Um primeiro princípio diz respeito a uma responsabilidade so- cial que incorpore toda a complexidade do problema de estudo. Trata-se de uma necessária abertura do sujeito-pesquisador para a complexidade da realidade, o que necessariamente implica em autocríticas epistemológicas constantes, na medida em que se captam lacunas e limitações na perspectiva teórico-metodológica assumida. Nessa mesma direção, esse primeiro princípio exposto por Vasconcelos (2002) propõe uma análise desideologizada das principais contribuições sobre o problema de estudo em questão. Essa conduta não é apolítica, neutra, muito pelo contrário, apenas permite uma abertura científica que apreende, de forma mais ri- gorosa, a complexidade do problema a fim de melhor resolvê-lo.

Um segundo princípio, derivado do primeiro, é o da superação da fase exploratória do problema complexo e de partida para alianças com os setores, movimentos, perspectivas e segmentos progres- sistas que atuam em torno da temática explorada. Nesse princípio

percebe-se uma profunda articulação política, a construção de uma frente ampla, plural e crítica cujo núcleo unificador é o progressismo em relação ao problema de estudo (VASCONCELOS, 2002).

O terceiro princípio ético-político que deve nortear os estudos complexos, proposto por Vasconcelos (2002), me chamou muito a atenção. O autor afirma que as dimensões de criatividade, origina- lidade e singularidade, necessárias à prática da pesquisa, derivam, sobretudo, de um processo de individuação do sujeito-pesquisador. No contexto da pesquisa complexa é necessário que os pesquisado- res estejam atentos a esse elemento a fim de construírem relações mais dialógicas, e menos despóticas, na medida em que se compre- ende, conforme Boff (1998), que “[...] todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão do mundo” (p. 9).

Finalmente, propõe como o quarto e último princípio para a pes- quisa complexa, interdisciplinar e interparadigmática um verdadei- ro processo de incorporação dessa perspectiva à dimensão subje- tiva do sujeito-pesquisador e aos contextos de formação, trabalho e militância sócio-política, o que revela a natureza desafiadora dessa abordagem teórica e ético-política que extrapola a dimensão científica e assume contornos existenciais (VASCONCELOS, 2002). A digressão sobre a reflexão de um imperialismo epistemoló-

gico e uma proposta teórico-metodológica complexa em Eduar- do Vasconcelos é absolutamente necessária para compreender os desdobramentos de seu pensamento sobre marxismo e subjetivi- dade. Sua aproximação com o paradigma da complexidade, trans/ interdisciplinaridade, transversalidade e abordagens interteóricas e interparadigmáticas é o que o encorajaram a tecer uma crítica ao marxismo mais bem fundamentada, retomando o debate de fundo de sua tese sobre o recalque da subjetividade no âmbito do serviço social.

O projeto Karl Marx e a subjetividade humana

Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma negra

Você não me pega Você nem chega a me ver Caetano Veloso - Reconvexo

Quando se analisa os textos de Vasconcelos é perceptível sua humil- dade intelectual em relação às teses que assume e defende, o que mostra uma forte incorporação dos princípios suprarreferidos. O autor comu- mente destaca em suas obras as limitações de seu texto e a necessidade de maior aprofundamento da complexidade dos problemas explorados.

No contexto de seu intercurso teórico entre o marxismo e a subjeti- vidade restava-lhe captar as “[...] raízes histórico-teóricas [das] dificul- dades” (VASCONCELOS, 2010b, p. 15) existentes entre esses campos, a fim de melhor fundamentar a tese do recalque da subjetividade no âmbito do serviço social brasileiro.

Essa é a proposta do autor com o projeto Karl Marx e a subjeti- vidade humana. Esse empreendimento inicia-se desde seu primeiro pós-doutorado na Inglaterra nos anos de 2000-2001, e a partir de seu contato com as bibliotecas de Londres e Cambridge. Todavia, é em 2007 que este projeto começa a se materializar com a realização de um novo pós-doutoramento no Instituto de Psicologia da Universida- de de São Paulo (USP). Os textos – em três volumes – de Karl Marx e a subjetividade humana são, originalmente, resultados desse contex- to intelectual, além de também serem fruto do Projeto Transversões (UFRJ), já mencionado acima sob o título Saúde Mental, Desinstitucio- nalização e Abordagens Psicossociais (VASCONCELOS, 2010b).

Nos anos de 2008 e 2009 os textos originais de Karl Marx e a sub- jetividade humana sofreram algumas modificações, além de também ser deste período a realização de uma nova viagem do autor à Euro- pa. Visitou a Holanda (Amsterdam) e a Alemanha (Trier), viagem que permitiu contatos com os acervos do International Institute of So-

cial History (Amsterdam) e do Karl-Marx-Haus(Trier); que abrigam importantes fontes documentais, pessoais e bibliográficas de Marx (VASCONCELOS, 2010b).

Essa odisseia intelectual de Vasconcelos permitiu a realização do re- ferido projeto baseado em três empreendimentos: captar a trajetória das ideias e conceitos sobre a subjetividade nos textos teóricos de Marx (primeiro volume); captar a história das ideias psicológicas na Europa até 1850, que estavam disponíveis no tempo de vida de Marx (segundo volume); e por fim realizar um balanço sintético e crítico das contribui- ções de Marx para a subjetividade e apontar questões teóricas para de- bate sobre algumas limitações do marxismo (terceiro volume).

Dada a natureza sintético-crítica do terceiro volume de Karl Marx e a subjetividade humana é a partir deste texto que apresentarei as conclusões preliminares de Eduardo Vasconcelos sobre a relação en- tre marxismo e subjetividade.

Dois aspectos iniciais me chamaram atenção ao analisar o tex- to de Vasconcelos (2014b): 1 – a preocupação do autor em afirmar sua identidade militante, sua identificação política à esquerda e seu compromisso com o projeto emancipatório revolucionário; e 2 – seu rigor metodológico e exaustividade intelectual. Ambos os elementos indiscutivelmente necessários para o empreendimento crítico deste projeto heurístico.

O autor estabelece como ponto de partida de seu texto as contribui- ções fundamentais de Marx e do marxismo para o campo da subjetivi- dade humana. Trata da contribuição da concepção da dialética históri- ca, materialista, da teoria social crítica marxiana, que dá centralidade à determinação material da história humana. Vasconcelos (2014b) mostra como que esta perspectiva teórica contribui para avaliar e refletir so- bre o Estado, as políticas sociais, o trabalho em saúde e saúde mental e sobre a atuação de movimentos sociais nesse campo. Aponta a contri- buição do marxismo para o desenvolvimento da psicologia sócio-his- tórica e seu desdobramento nas dimensões da cognição, linguagem e

educação. Também trata da influência do marxismo nas análises que relacionam saúde mental ao trabalho, além de destacar a contribuição desta perspectiva teórica para pensar a história da loucura – em termos diferentes daquela empreendida por Foucault – dando ênfase à dimen- são da produtividade do louco no contexto do capitalismo. Ademais, o marxismo contribui com a reflexão crítica sobre a subjetividade coletiva como produto dos processos constitutivos do fetichismo da mercado- ria, com a reflexão sobre a reprodução ideológica e a opressão de di- versos segmentos sociais (VASCONCELOS, 2014b).

Além das contribuições da teoria marxiana e marxista para o cam- po da subjetividade o autor também apresenta a problemática dos aspectos filosóficos e epistemológicos desta perspectiva. Destaca a relação conflituosa entre as abordagens naturalista e relativista no pensamento de Marx, a primeira dando ênfase a elementos essenciais do homem que o tornam diferente dos animais, e a segunda dando ênfase às determinações concretas e sócio-históricas da formação do homem. Essa imprecisão no pensamento de Marx reverberou em processos teóricos que autonomizam o homem em relação à natu- reza; manifestam dificuldades sobre a concepção de corporeidade e finitude humana (ausentes da obra marxiana); apresentam otimismo em relação à superação histórica do mal na natureza humana, des- considerando dinâmicas naturais, psíquicas e individuais; superesti- mam a natureza messiânica de uma sociabilidade não alienada a partir da superação do fetichismo da mercadoria; desconsideram a questão da subjetividade recortadas pela especificidade geracional; e proje- tam para o futuro a possibilidade de individuação, formação pessoal e emancipação humana, desconsiderando os sofrimentos subjetivos da dinâmica da vida presente. Ademais, trata ainda da natureza empirista da concepção de subjetividade da teoria marxiana e do pensamento marxista, o que influenciou, prioritariamente, a psicologia sensacio- nista, aquela que relacionava as sensações e sentimentos apenas à concreticidade e materialidade da existência (VASCONCELOS, 2014b).

O autor também problematiza algumas ideias de Marx no campo sociológico e político e suas implicações subjetivas. Destaca a proble- mática em torno da ruptura revolucionária e da emancipação huma- na, enfatizando contradições e incoerências em Marx no que se refere à dialeticidade, que pressupõe rupturas e continuidades, mas que na teoria revolucionária marxiana perde a dimensão das continuidades. Nessa direção a emancipação humana se desenvolverá do zero, sem mediação com o passado. Essa concepção em Marx subestima a im- portância da democracia e do pluralismo (experiências oriundas da ordem burguesa); mistura a dimensão política à dimensão científica; abre espaços para genocídios políticos, culturais e étnicos numa ra- dical ruptura com o passado; desconsidera variedades de expressões de práxis, como o acúmulo e o saber sobre a subjetividade; determina sectarismos na esquerda; recalca e nega a dimensão psíquica do ser social; e dissocia a dimensão psíquica particular e singular da missão universal e coletiva do militante, superdimensionando a última em de- trimento da primeira. Ademais, também aponta problemas associados à limitação na análise sobre divisão social do trabalho, do patrimônio simbólico, dos processos de burocratização e gestão social e destaca a dificuldade de Marx com as questões étnicas e de gênero, que su- perestima as questões de classe em detrimento daqueles outros ele- mentos complexos (VASCONCELOS, 2014b).

Vasconcelos (2014b) também discorre sobre as dificuldades e limi- tações da abordagem marxiana sobre a objetivação (exteriorização) para o campo da subjetividade. Chama atenção para o fato de que a noção de subjetividade em Marx limitava-se à percepção, cognição e comportamento, e desconsiderava uma série de realidades psicoló- gicas (emoção, sentimento, imaginação, etc.). Destaca uma contradi- ção na concepção do individualismo proposto pela teoria marxiana, condição inaugurada pela modernidade, e a perspectiva de Bildung (individuação ou formação pessoal), proposta também inaugurada pelas condições objetivas da sociedade moderna. Ainda nesta dire-

ção, o autor reflete sobre a dificuldade de as categorias marxianas desvendarem as formas positivas e sutis de captura da subjetividade ou do indivíduo na sociedade capitalista avançada, a exemplo das questões do prazer e da libido. Sobre este campo de dificuldades também destaca outras referentes à questão geracional, do desen- volvimento psicológico, da personalidade e da loucura – elementos muito particulares no campo da subjetividade, que a teoria de obje- tivação (exteriorização) em Marx não dá conta de explorar. Ademais, o autor retrata a especificidade do aparelho psíquico, do inconsciente e da pulsão que, apesar de terem relação com a dimensão sócio-his- tórica, não podem ser explicados apenas por esta perspectiva, pois se tratam de elementos de natureza específica e singular. Finalmente, destaca a tendência das contradições permanentes de nosso incons- ciente, bem como dos riscos de, no campo de um dogmatismo mar- xista, normatização e repressão à dissidência comportamental e polí- tica – nessa direção o autor expõe o exemplo da repressão impetrada pela psiquiatria soviética aos dissidentes políticos, desviantes morais e religiosos, num verdadeiro uso político e repressivo do saber médi- co psiquiátrico, que não prescindiu das internações e das dopagens com neurolépticos como forma de tratamento.

Apesar das contribuições inarredáveis do marxismo para o campo da subjetividade, Vasconcelos (2014b) demonstrou que a teoria mar- xiana ainda tem sérias limitações para tratar das questões específicas deste campo. O autor sustenta eticamente essa tese reivindicando sua história como militante, mostrando que não se trata de uma desqua- lificação da obra marxiana, mas de um compromisso ético-político com a revisão crítica de sua obra para os desafios atuais no campo da subjetividade. A solução sinalizada pelo autor para o problema da limitação do marxismo no campo da subjetividade é estabelecer in- tercursos e diálogos interteóricos e interparadigmáticos entre teorias progressistas que lutam pela emancipação, o que acaba fechando um ciclo de coerência heurística no seu trajeto intelectual.

Resta saber se a contribuição teórica de Eduardo Vasconcelos co- munga com o Projeto Ético-político do serviço social e quais os im- pactos de seu pensamento para o contexto profissional.

Marxismo, subjetividade e Projeto Ético-político: uma revisão crítica do pluralismo teórico do Serviço Social brasileiro

Refazendo tudo

Refazenda Refazenda toda

Guariroba

Gilberto Gil – Refazenda

Apenas será possível verificar a possibilidade de convergência en- tre o pensamento de Eduardo Vasconcelos e o Projeto Ético-político (PEP) do serviço social ao passo em que a natureza e os elementos constitutivos desse projeto profissional forem expostos.

O projeto profissional oriundo da fase progressista do serviço so- cial brasileiro manifesta uma clara vinculação com um projeto socie- tário emancipatório (NETTO, 1999), cujo valor ético central é o prin- cípio da liberdade. A relação do PEP com o princípio da liberdade não se dá nos termos de uma perspectiva universal-abstrata imposta pela sociabilidade burguesa, antes trata-se de uma relação que si- naliza possibilidades de construção de outra sociabilidade, onde não haja processos de exploração e dominação do homem pelo homem (BARROCO, 2010; BONETTI et al., 1998).

O projeto profissional do serviço social, calcado no bojo das implica- ções da sinalização do princípio da liberdade como possibilidade con- creta de construção de outra sociabilidade, também tem aderência aos princípios que adubam a luta pela emancipação humana, a saber: defe- sa intransigente dos direitos humanos; democracia; cidadania ampliada; defesa da equidade e justiça social; eliminação de todas as formas de preconceito; pluralismo democrático e articulação com outras catego- rias que comungam com estes princípios emancipatórios (CFESS, 2011).

Esse projeto profissional consubstancia-se na Lei de Regulamenta- ção da profissão 8.662 de 1993, no Código de ética profissional de 1993, nas Diretrizes Curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) de 1996 e na organização político-profis- sional das entidades representativas da categoria, através do conjunto Conselhos Federal e Regional de Serviço Social (CFESS/CRESS).

Feita esta rápida exposição sobre a natureza do PEP do serviço so- cial gostaria de expor alguns motivos pelos quais acredito que a con- tribuição de Eduardo Vasconcelos no campo do marxismo e da subje- tividade é convergente com nosso projeto profissional:

a) A perspectiva teórica proposta por Vasconcelos é crítica da abordagem conservadora do campo psi de psicologização das re- lações sociais: a abordagem da psicologia do ego norte-america- na, que influenciou o serviço social a partir da década de 1940, é apenas uma vertente da psicologia. A generalização do campo psi a partir desta corrente calcada em práticas ajustadoras, individualis- tas e conservadoras é um empobrecimento da complexidade deste campo, o que neutraliza possibilidades de interlocuções críticas, in- terdisciplinares, de fertilização mútua entre a psicologia e o serviço social. É nessa reflexão que o pensamento de Eduardo Vasconcelos está centrado; trata-se de uma perspectiva teórico-crítica e, por este mesmo motivo, alcança a complexidade, diversidade e possibilida- de de intercursos férteis com o campo. É possível, portanto, notar a convergência entre o pensamento de Vasconcelos e o PEP do serviço social, na medida em que sua perspectiva propõe uma articulação com outras categorias que concordam com os princípios emancipa- tórios defendidos pelo projeto profissional.

b) A perspectiva teórica proposta por Vasconcelos não comunga com práticas que desvirtuam a natureza da profissão de Serviço So- cial: uma questão polêmica que tem surgido no contexto profissional é a da possibilidade de um assistente social da área de saúde mental estar apto, a partir de suas especializações, a clinicar; o que tem sido

chamado de serviço social clínico. Não tenho como afirmar se estes profissionais se baseiam nos textos de Vasconcelos sobre a subjetivi- dade no âmbito da saúde mental para legitimarem suas práticas, mas afirmo que não identifico esta perspectiva no autor analisado. Pen- so que a implicação da perspectiva de Vasconcelos no contexto do exercício profissional é, sobretudo, mostrar a existência de dimensões sutis presentes no trabalho do assistente social e que uma aproxima- ção interdisciplinar com outros campos teóricos e profissionais pode munir, aliada à perspectiva marxista, a dimensão investigativa do pro- fissional para uma intervenção mais qualificada.

c) O núcleo da perspectiva de Eduardo Vasconcelos centra-se no diálogo interteórico e interdisciplinar com segmentos e perspectivas do progressismo científico e militante: como exposto acima, sobre os princípios que devem orientar a pesquisa complexa, Vasconcelos afirma que o elemento coagular para o intercurso teórico, disciplinar e paradigmático é a natureza progressista do campo de interlocução. Penso que esta perspectiva se aproxima de forma mais frentista dos chamados novos movimentos sociais, de natureza difusa e setorial. Acredito que esta abordagem é uma forma de ampliar a luta pela emancipação humana, articulando operários, trabalhadores do setor de serviços, LGBT’s, mulheres, negros, indígenas, quilombolas, am- bientalistas, antimanicomialistas, sanitaristas, ecumênicos etc. Esse projeto teórico e político lança luz sobre a possibilidade de unidade na diversidade na luta pela emancipação humana, pois, superado o capitalismo, as pessoas ainda terão cor de pele, gênero, sexualidade e condição mental diferentes e o planeta ainda correrá risco de vida. É flagrante o diálogo desta perspectiva teórica com os princípios de nosso PEP: defesa intransigente dos direitos humanos; democracia; cidadania ampliada; defesa da equidade e justiça social e eliminação de todas as formas de preconceito.

d) A perspectiva teórica proposta por Vasconcelos é crítica de abordagens ecléticas e pós-modernas fragmentalistas: apesar de

propor um intenso diálogo interdisciplinar e interteórico, Vasconcelos deixa clara sua posição contrária ao ecletismo. O diálogo interteórico não violenta as regras metodológicas de cada campo do conhecimen- to nem fecha os olhos para as limitações e pontos de conflito, antes valoriza o rigor metodológico que fortalece os empreendimentos de aproximação das realidades complexas e, mais ainda, enaltece pos- turas dialógicas que, ao invés de fomentarem disputas sobre qual a perspectiva teórica que tem menos lacunas e limitações, contribuam para a emancipação humana e supressão das opressões coletivas e singulares. Ademais, como tratado acima, a perspectiva do autor ana- lisado propõe o caminho do meio entre, de um lado um imperialismo epistemológico, e de outro um fragmentalismo pós-moderno. Edu- ardo Vasconcelos não reduz sua perspectiva teórica aos relativismos fragmentalistas do pós-modernismo, que acredita ser uma vertente legitimadora de forças neoliberais no processo de gerência do poder.

e) E, sobretudo, a perspectiva teórica de Eduardo Vasconcelos não só defende radicalmente o pluralismo teórico como contribui para uma revisão crítica de um pluralismo restrito: em meu ponto de vista penso que a principal contribuição, tanto da trajetória, como do pensamento de Eduardo Vasconcelos nos campos do marxismo e da subjetividade é a da proposta de revisão do pluralismo teórico do projeto do serviço social. Acredito que tenha ficado clara a vinculação do professor Vas- concelos ao campo do progressismo científico e militante, uma das in- formações das quais o autor mais se preocupa quando da exposição de suas teses para o serviço social brasileiro. Portanto, a proposta de uma revisão crítica do pluralismo teórico da profissão não é uma forma de re- atualização conservadora, mas a expressão de um compromisso crítico com este princípio que não pode ter sua natureza mutilada, sobretudo no âmbito de um projeto profissional calcado numa abordagem dialéti- ca. É preciso pensar num pluralismo para além dos intercursos teóricos com Lênin, Luxemburgo, Gramsci e Lukács – que são fundamentais e necessários. Os campos progressista e crítico no qual está sustentado

nosso projeto profissional são mais amplos do que o marxismo orto- doxo e, também, deveriam compor o projeto de formação profissional, sob pena de formarmos reprodutores acríticos de uma teoria crítica in- disponível para o debate plural do campo progressista.

Considerações finais

O empreendimento deste ensaio teórico derivou de uma motivação pessoal para contribuir com o fortalecimento do PEP do serviço so- cial. O fortalecimento do PEP passa, necessariamente, pela defesa da natureza essencial do pluralismo teórico. Identificar as convergências claras entre o pensamento de Eduardo Vasconcelos sobre o marxismo e a subjetividade e o projeto profissional é um objetivo que, em última instância, fortalece o projeto progressista do serviço social brasilei- ro, desde que se compreenda o progressismo como um movimento aberto aos debates teóricos plurais calcados no objetivo comum si- nalizado por nosso projeto: a emancipação humana e a construção de uma sociabilidade onde não haja exploração do homem pelo homem, manicômios, misoginia, racismo, etnocídio, LGBTfobia, intolerância re- ligiosa e descompromisso ambiental.

Referências

BARROCO, Maria Lucia S. Ética: fundamentos sócio-históricos. Biblioteca básica de Serviço Social. v. 4. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2010.

BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1998.

BONETTI, Dilséa Adeodata et al (orgs.). Serviço Social e ética: convite a uma nova práxis. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1998.

NETTO, José Paulo. A construção do projeto ético-político contemporâneo. In: CEAD/ABEPSS/CFESS (Org.). Capacitação em Serviço Social e Política Social. Módulo 1. Brasília: CEAD/ABEPSS/CFESS, 1999.

PERRONE, Pablo Andrés Kurlander. A comunidade terapêutica para recupe- ração da dependência do álcool e outras drogas no Brasil: mão ou contramão da reforma psiquiátrica? Ciência & Saúde Coletiva. São Paulo, 2014, 19(2): 569-580. Doi: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014192.00382013

VASCONCELOS, Eduardo Mourão. Complexidade e Pesquisa Interdiscipli- nar: epistemologia e metodologia operativa. 2 ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002.

VASCONCELOS, Eduardo Mourão. Da hiperpsicologização normatizadora ao recalcamento da subjetividade: notas históricas sobre Serviço Social, subjeti- vidade e saúde mental no Brasil e no Rio de Janeiro. In: VASCONCELOS, Eduar- do Mourão (org.). Saúde Mental e Serviço Social: o desafio da subjetividade e da interdisciplinaridade. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2010a. p. 181-214.

VASCONCELOS, Eduardo Mourão. Karl Marx e a subjetividade humana, vo- lume I: a trajetória das ideias e conceitos nos textos teóricos. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 2010b.

VASCONCELOS, Eduardo Mourão. Karl Marx e a subjetividade humana, vo- lume II: uma história das ideias psicológicas na Europa até 1850. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 2014a.

VASCONCELOS, Eduardo Mourão. Karl Marx e a subjetividade humana, vo- lume III: balanço de contribuições e questões teóricas para debate. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 2014b.

Notas

1 Mestrando em Serviço Social e Bolsista CAPES/DS pelo Programa de Pós-gra- duação da Universidade Federal de Sergipe (PROSS/UFS), Brasil, ORCID: orcid. org/0000-0002-2909-3517, e-mail: viniciuspmaga@gmail.com.
2 Primeira edição do ano de 2000.
3 Primeira edição do ano de 2002.
4 Primeira edição do ano de 2010.
5 A proposta deste ensaio não é a de superdimensionar as influências subjetivas no trajeto do autor analisado, obviamente que a realidade de complexificação do capitalismo contemporâneo é um determinante objetivo para revisionismos da ortodoxia marxista.
6 As décadas de 1980 e 1990 – década de ingresso de Vasconcelos na Escola de Serviço Social da UFRJ – também foram palco de intensas lutas, conquistas e Importar imagen avanços dos movimentos de Reforma Psiquiátrica e Antimanicomial. O autor par- ticipou ativamente desses processos, contribuindo de maneira significativa para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Portanto, estou atento a essa dimensão de mi- litância de Eduardo Vasconcelos e não quero reduzir sua biografia aos embates teóricos em torno do marxismo e da subjetividade no campo do Serviço Social. Apenas dei foco aos aspectos biográficos mais próximos do debate deste ensaio.
7 Como bem lembrou a profa. Josiane Santos, atual presidente do Conselho Federal de Serviço Social – CFESS, no Seminário Nacional “O trabalho do/a assistente social na Política sobre drogas e saúde mental” do ano de 2018, disponível na plataforma do CFESS no Youtube através do seguinte link: <https://www.youtube. com/watch?v=3LU_cz_B40U>.
8 Importante destacar o fato de que estas primeiras Comunidades Terapêuti- cas de natureza reformista das instituições de saúde mental não têm abso- lutamente nenhuma relação com as atuais instituições que se utilizam dessa identidade para mascarar as violações de direitos humanos das quais são sig- natárias (PERRONE, 2014).
9 Importante influência para a assistente social Lêda de Oliveira “[...] que mais tarde ocupou, até o final da década de 70, a Coordenação de Serviço Social da Divisão de Saúde Mental (DINSAM) do Ministério da Saúde e que teve um papel impor- tante na divulgação da abordagem [do Dr. Oswaldo Santos, inspirado nas Co- munidades terapêuticas] entre assistentes sociais e particularmente estagiários de Serviço Social em saúde mental, através de treinamentos e divulgação mais global da experiência” (VASCONCELOS, 2010a, p. 190).
10 Vasconcelos (2002) se preocupa com a exposição de princípios para as pesqui- sas porque o texto de Complexidade e pesquisa interdisciplinar, além de propor uma reflexão teórica sobre os campos da epistemologia e metodologia, também apresenta, na segunda parte da obra, um manual operativo de pesquisa balizado na perspectiva teórica defendida neste trabalho.
HMTL gerado a partir de XML JATS4R por