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Gramsci e a Revolução de Outubro
Guido Liguori
Guido Liguori
Gramsci e a Revolução de Outubro
O Social em Questão, vol. 20, núm. 39, pp. 19-34, 2017
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: O artigo apresenta como Antonio Gramsci se relacionou com a Revolução de Outubro, a partir do reconhecimento de que o filósofo sardo foi não apenas um teórico da revolução, mas um revolucionário – desde os anos turineses às obras do cárcere.

Palavras-chave:Antonio GramsciAntonio Gramsci,Revolução de OutubroRevolução de Outubro,PolíticaPolítica.

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Gramsci e a Revolução de Outubro

Guido Liguori
Universidade da Calábria, Itália, Brasil
O Social em Questão, vol. 20, núm. 39, pp. 19-34, 2017
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Gramsci e a Revolução de Outubro1

Guido Liguori2

Resumo

O artigo apresenta como Antonio Gramsci se relacionou com a Revolução de Outubro, a partir do reconhecimento de que o filósofo sardo foi não apenas um teórico da revolução, mas um revolucionário – desde os anos turineses às obras do cárcere.

Palavras-chave

Antonio Gramsci; Revolução de Outubro;Política.

Gramsci and the October Revolution

Abstract

This article presents the relationship of Antonio Gramsci with the October Revolution, from the recognition that the Sardinian philosopher wasn’t just a theorist of the revolution, but a revolutionary – since the years from Turin to the prison notebooks.

Keywords

Antonio Gramsci; October Revolution; Politics.

Introdução

Passados cem anos da Revolução de Outubro e oitenta da morte de Gramsci não é inútil retornar à leitura, que em 1917, o socialista sardo, então com vinte e seis anos, fez dos acontecimentos da Rússia, e também ao que dessa interpretação permaneceu em sua bagagem teórico-política mais madura. A revolução liderada por Lenin, de fato, constituiu para o jovem sardo, transplantado para Turim, um ponto de virada política, teórica e existencial, a partir do qual iniciou o amadurecimento de seu pensamento e a sua história de comunista. Para compreender como Gramsci se relacionou com a Revolução de Outubro é preciso, portanto, partir do reconhecimento de que Gramsci foi sempre, dos anos turineses às obras do cárcere, não apenas um teórico da revolução, mas um revolucionário. Isso foi sublinhado por Palmiro Togliatti, no âmbito do primeiro dos congressos decenais dedicados ao pensamento de Gramsci, que teve lugar em Roma, em janeiro de 1958, ao afirmar: “Gramsci foi um teórico da política, mas sobretudo foi um político prático, isto é, um combatente [...]. É preciso buscar na política a unidade da vida de Antonio Gramsci: o ponto de partida e o ponto de chegada” (TOGLIATTI, 2013, p. 224).

Contra a passividade

Política como revolução, no caso de Gramsci, política como luta pela transformação do mundo. Inicialmente, na vida do futuro dirigente comunista, política como rebelião. Como o próprio Gramsci recordou em uma carta,de 1924, à esposa, isto que o havia conduzido a um estado de rebelião em relação às condições sociais do seu tempo e do seu país teve origem nas dolorosas experiências pessoais, que remontavam aos anos de infância, quando – depois da prisão do pai – a família foi lançada na miséria, obrigando o pequeno Nino, ainda menino, a suspender por algum tempo a escola, ao fim do primário, para trabalhar no cartório de registro de imóveis de Ghilarza. Isto que então o tinha salvado de “tornar-se um trapo engomado”– ele escrevia – foi o “instinto da rebelião, [...] desde menino era contra os ricos, porque não podia estudar, eu que tinha obtido dez em todas as matérias da escola primária, enquanto iam para a escola os filhos do açougueiro, do farmacêutico, do negociante de tecidos” (GRAMSCI, 1992, p. 271)3.

Já na Sardenha, porém, Antonio havia começado a ler os livros e revistas daquela cultura de oposição a Giolitti e ao giolittismo, que foi o terreno sobre o qual ele inicialmente se formou política e culturalmente: a imprensa

socialista, as ideias sorelianas, mas também as “revistas florentinas”, como Il Leonardo . La Voce de Papini e Prezzolini, e filosofias como o neoidealismo e o pragmatismo. Uma cultura quase toda convergente para a revalorização do “sujeito” contra o “objetivismo” (epistemológico, histórico, político) de matriz positivista, que influenciava profundamente as principais correntes do movimento operário de seu tempo.

Em 1911, Gramsci se mudou para Turim, para frequentar a faculdade de Letras e Filosofia, graças a uma bolsa de estudo, suficiente apenas para sua sobrevivência (Cf. GRAMSCI, 1996, p. 117)4. Em Turim aderiu, já antes da Grande Guerra, ao movimento socialista5. Mas o seu marxismo, a sua concepção de mundo, era então muito particular: pela sua formação cultural, o marxismo do jovem Gramsci foi subjetivista, antideterminista, antieconomiscista, influenciado precisamente pelo neoidealismo e pelo bergsonismo mediado por Sorel. Um marxismo original, portanto, também ingênuo em alguma medida, baseado no primado absoluto e idealista da vontade.

Não faltavam nestes anos traços importantes de uma visão antideterminista dos processos revolucionários. No artigo “Socialismo e cultura”, por exemplo, Gramsci apresentava uma definição da cultura como conquista e valorização do próprio eu e, portanto crescimento da subjetividade (GRAMSCI, 2016a, p. 57). Já era clara, para ele, a importância – nos processos de transformação, e também nas grandes revoluções – da aquisição da consciência, das ideias, dos valores. De fato, escrevia Gramsci:

toda revolução foi precedida por um intenso e permanente trabalho de crítica, de penetração cultural, de impregnação de ideias [...] O último exemplo, o mais próximo de nós e por isso menos distinto do nosso, é o da Revolução Francesa. O período cultural que a antecedeu, chamado de Iluminismo, tão difamado pelos críticos superficiais da razão teórica, não foi, de modo algum, ou pelo menos não foi [...] apenas um fenômeno de intelectualismo pedante e árido, similar ao que vemos diante de nossos olhos e que encontra sua maior manifestação nas universidades populares de baixo nível. Foiele mesmo uma magnífica revolução,mediante a qual, como observa agudamente De Sanctis em sua Storia della letteratura italiana, formou-se em toda a Europa uma consciência unitária, uma internacional espiritual burguesa, sensível em todos os seus elementos às dores e às desgraças comuns, e que foi a melhor preparação para a sangrenta revolta que depois teve lugar na França (GRAMSCI, 2016a, p. 57).

Esse subjetivismo anti-determinista e a importância fundamental da vontade se transformavam em uma nítida propensão a tomar parte, a tornar-se ativo, a participar e lutar, a esquivar-se da passividade: esse era o significado do célebre grito “odeio os indiferentes” (GRAMSCI, 2016b, p. 73 et seq.), lançado em janeiro de 1917, poucas semanas antes da “revolução de fevereiro” na Rússia.

As duas revoluções russas

Desde os primeiros comentários sobre a “revolução de fevereiro”, Gramsci interpretou os acontecimentos na Rússia como a retomada dos socialistas que não haviam traído o espírito da Internacional, e viu nos fatos de Petrogrado uma “revolução proletária”(GRAMSCI, 2017a, p. 34). Não estava de todo errado, uma vez que na origem da “primeira revolução” de 1917, precisamente aquela de fevereiro, haviam ocorrido imponentes greves e manifestações a partir das fábricas da então capital da Rússia czarista, como tinha sido decisivo a passagem para o lado dos insurgentes de numerosos pelotões de soldados (no mais das vezes camponeses armados, cansados da guerra, do czarismo e das relações sociais vigentes no campo) que se uniram aos revoltosos.

Quais eram para Gramsci as características fundamentais do evento?A “Revolução Russa” era para ele um “ato” proletário, sobretudo porque havia“ignorado o jacobinismo”, ou não tinha“tido que conquistar a maioria com a violência”(GRAMSCI, 2017a, p. 35). Até 1921 – quando mudará de ponto de vista, tendo como referência a obra do grande historiador francês Albert Mathiez, que sublinhará positivamente as semelhanças entre jacobinos e bolcheviques (Cf. MEDICI, 2004, p. 113 et seq.)– Gramsci foi decididamente antijacobino. Ignorando as páginas controversas sobre o assunto que se encontram em Marx ou o decidido filo jacobinismo de Lenin (Cf. SALVADORI, 1990), ele foi influenciado nos seus anos de juventude sobretudo por Sorel, que tinha sustentado existirem elementos de continuidade autoritária entre jacobinismo e ancien régime(Cf. SOREL, 1974, p. 149-158).

O jacobinismo, a revolução jacobina, eram para o Gramsci de 1917 fenômenos burgueses, de uma minoria que “servia a interesses particularistas, os interesses da sua classe, e servia a tais interesses com a mentalidade fechada e estreita de todos os que visam a metas particularistas” (GRAMSCI, 2017a, p. 35). Os “revolucionários russos”, ao contrário, não queriam substituir uma ditadura por outra ditadura e – ele sustentava – teriam tido, por meio do sufrágio universal, o apoio da imensa maioria do proletariado russo, se esse apenas tivesse podido exprimir-se livremente, sem estar sujeito aos aparatos repressivos do Estado czarista.

Trata-se de uma visão do processo revolucionário não desprovida de alguma ingenuidade, seja pelo que concernia aos fatos da Rússia – onde as forças da revolução eram na realidade muito mais heterogêneas e divididas internamente do que o discurso gramsciano em um primeiro momento compreendia e fazia supor–, seja pela ideia de que o sufrágio universal bastasse para garantir a afirmação da real vontade do proletariado, que o socialista revolucionário Gramsci compreendia nos termos de uma “passagem a uma nova forma de sociedade” (GRAMSCI, 2017a, p. 35), uma sociedade socialista. Ele não considerava aqui – ao contrário do que fará com grande acuidade nos escritos maduros do cárcere, mas também, em parte, no período consiliarista da revista L’Ordine Nuovo e do “biênio vermelho”– os pré-requisitos da democracia, os elementos tendencialmente igualitários (em termos de cultura, informação, consciência, liberdade em relação às necessidades) que um corpo eleitoral deveria ter para exprimir-se sem “fins particularistas”.

Um outro elemento bastante ingênuo parece, além disso, a convicção gramsciana de que a revolução – que ele interpreta de modo idealista em primeiro lugar como fato espiritual – devesse provocar imediatamente uma mudança de costumes e de índole, até mesmo entre os “malfeitores”, prontos a se tornarem, instantaneamente, por efeito taumatúrgico do evento revolucionário, uma nova exemplificação da “moral absoluta” kantiana (GRAMSCI, 2017a, p. 37). Assim escreve Gramsci:

Numa penitenciária, os condenados por crimes comuns, ao saber que estavam livres, responderam que não se sentiam no direito de aceitar a liberdade porque tinham de expiar suas culpas. Em Odessa eles se reuniram no pátio da prisão e juraram voluntariamente que se tornariam honestos e que buscariam viver de seu próprio trabalho (GRAMSCI, 2017a, p. 36).

Além da veracidade muito parcial dos episódios citados6, é notável nesse contexto a afirmação gramsciana de que “a liberdade faz os homens livres” (GRAMSCI, 2017a, p. 36). Palavras nas quais parece sublinhada a possibilidade e o valor da autoeducação para a liberdade, em condições sociais e culturais liberadas das antigas formas de servidão e dos velhos modos de pensar. Uma visão antropológica otimista, de tipo rousseauniano, poderia-se dizer, encontrável junto à forte influênciade Kant, explicitamente citado7. De fato, Gramsci escreve em seu artigo: “A liberdade faz os homens livres, alarga o horizonte moral, faz do

pior malfeitor em regime autoritário um mártir do dever” (GRAMSCI, 2017a,

p. 36).O fim do regime autoritário, o fim de uma dada sociedade, aparece assim como a causa, ou a condição de possibilidade, da mudança moral.

Iniciará depois de alguns meses, da parte do jovem socialista, a análise das distinções internas do grande evento revolucionário que arquivara o poder czarista, mas não a guerra. A atenção gramsciana vem se deslocando, ainda que com alguma oscilação8, compreensível dada a escassez e a dificuldade das informações, para a componente bolchevique (termo que na Itália era traduzido então como “massimalista”), identificada como a força que não aceitava que a revolução paralisasse no seu estágio democrático-burguês, mas que pretendia que essa andasse adiante até a conquista de uma sociedade socialista: “Lenin [...] e seus companheiros estão convencidos de que é possível realizar o socialismo em qualquer momento. Alimentaram-se do pensamento marxista. São revolucionários, não evolucionistas” (GRAMSCI, 2017b, p. 39). Aqui é clara a polêmica contra o evolucionismo kautskiano dominante na cultura da Segunda Internacional (normalmente representado na Itália pelo socialismo muito moderado dos Treves e dosTurati), em nome daquele subjetivismo revolucionário que caracterizava Gramsci: na Rússia – ele acrescentava – “a revolução continua”, porque os homens, todos os homens são “os artífices do seu destino”.

Em 25 de outubro segundo o calendário russo (em 7 de novembro segundo o ocidental) houve a tomada do Palácio de Inverno, a conquista do poder pelos sovietes hegemonizados pelos bolcheviques. É célebre o comentário de Gramsci, escrito no final de novembro9: tratava-se, para o socialista sardo, de uma “revolução contra O Capital”(o livro de Marx), contra quem havia feito daquele livro e do marxismo uma leitura economicista e determinista, “etapista”, pela qual não teria sido possível nenhuma revolução socialista na Rússia atrasada antes de um adequado desenvolvimento da “etapa capitalista”, da indústria e, portanto, da classe operária russa10. Ao invés disso, escrevia Gramsci:

os maximalistas [...] apossaram-se do poder, estabeleceram sua ditadura, e estão elaborando as formas socialistas às quais a revolução deverá finalmente adaptar-se a fim de continuar a se desenvolver harmoniosamente, sem choques excessivos, partindo das grandes conquistas realizadas até agora (GRAMSCI, 2017c, p. 50).

O marxismo dos bolcheviques era “concebido” por Gramsci à imagem e semelhança das suas ideias de então: um marxismo liberado dos resíduos do

positivismo. É ainda uma vez a vontade que triunfa na visão de Gramsci: são os seres humanos associados que podem compreender

os fatos econômicos, e os julgam, e os adequam à sua vontade, até que essa se torne o motor da economia, a plasmadora da realidade objetiva, a qual vive, e se move, e adquire o caráter de matéria telúrica em ebolição, que pode ser dirigida para onde a vontade quiser, do modo como a vontade quiser (GRAMSCI, 2017c, p. 51).

Uma lição ainda atual: as leis supostamente objetivas (segundo as ideologias liberais e neoliberais) da economia e do mercado podem ser compreendidas e “domadas”, mudadas; são produto dos seres humanos e podem ser por esses revogadas.

Além da jogada jornalística de efeito (a “revolução contra O Capital” de Marx), na realidade o artigo apreendia algumas motivações profundas que haviam tornado possível o Outubro russo: somente a guerra tinha possibilitado um evento inaudito e inesperado. Marx havia “previsto o previsível”, não pôde prever a Primeira Guerra Mundial, o seu caráter sem precedentes, que “teria suscitado na Rússia a vontade coletiva popular” em um tempo muito mais rápido do que o normal (“porque, normalmente”– afirmava Gramsci –, “os cânones de crítica histórica do marxismo captam a realidade” (GRAMSCI, 2017c, p. 51)). “Na Rússia, porém, a guerra serviu para despertar as vontades. Através dos sofrimentos acumulados ao longo de três anos, tais vontades se puseram em uníssono muito rapidamente. A carestia era uma ameaça constante, a fome, a morte pela fome podia atingir todos, dizimar de um só golpe dezenas de milhões de homens. As vontades se puseram em uníssono” (GRAMSCI, 2017c, p. 52). A Rússia tinha tido a sua revolução porque Lenin soube ler a “conjuntura”, diríamos hoje, soube fazer “a análise concreta da situação concreta” (como gostava de dizer o dirigente bolchevique). Os eventos históricos são sempre individuais, a política e a história são para Gramsci disciplinas idiográficas: toda generalização está errada.

O Gramsci maduro reformulará a sua visão do processo revolucionário, chegando a defini-lo como um momento de equilíbrio e de influência recíproca entre “relações de forças” e iniciativa revolucionária. Começam de fato a estar presentes em Gramsci, da Revolução Russa em diante, sob a inspiração de Lenin, considerações e argumentações mais coerentes com a tradição marxista. O pensamento gramsciano maduro não perderá de vista a importância da vontade e da subjetividade, mas a realidade histórico-social

será nos Cadernos um “campo de possibilidade” que as condições objetivas oferecem ao sujeito, no interior do qual se produzirá um certo resultado ao invés de outro, de acordo com as ações e as capacidades do próprio sujeito. O forte subjetivismo juvenil será superado propriamente a partir da nova situação que Outubro havia criado e que recolocava também a visão gramsciana sobre um terreno inédito e mais concreto. Foi precisamente a partir da adesão de Gramsci ao movimento político internacional,nascido com a “segunda revolução” russa, que o seu marxismo começou a libertar-se das incrustações idealistas e espiritualistas que o condicionavam.

Do Oriente ao Ocidente

Gramsci passa nos anos seguintes por experiências difíceis e cruciais. Em primeiro lugar o “biênio vermelho” (1919-1920), quando ele se torna um dos mais importantes e originais representantes do pensamento consiliaristaeuropeu, assumindo de fato a liderança do movimento turinense dos Conselhos de fábrica e desenvolvendo uma concepção do autogoverno das classes trabalhadoras original e, também, parcialmente diversa em relação ao modelo sovietista russo. Os Conselhos de Gramsci, muito mais que os Sovietes, afundam as próprias raízes diretamente na articulação do mundo produtivo, na fábrica, e dali se expandem (na elaboração teórica do revolucionário sardo) ao resto da sociedade, sempre visando a organização e a articulação do trabalho e dos trabalhadores11. Trata-se, para o Gramsci desse período, de reunificar o cidadão e o burguês de que fala Marx em Sobre a questão judaica; trata-se de recompor a cisão entre sociedade civil e sociedade política que o grande revolucionário alemão tinha identificado como típica da sociedade burguesa, pondo o Conselho ao mesmo tempo como o coletivo ao qual é confiada a gestão da produção e como célula de base do Estado proletário e socialista.

A derrota do movimento operário turinense possibilitou a Gramsci compreender melhor a complexidade e variedade da sociedade italiana, o fato de que nem toda a Itália era Turim, ou “Ocidente”, uma sociedade industrial moderna, caracterizada pela concentração de massas operárias da grande fábrica, tendencialmente unitárias sob o aspecto da mentalidade, dos interesses e da disciplina; mas também fez compreender os limites do Partido Socialista Italiano, dito revolucionário, mas imobilista, dividido e desordenado. A consciência de tais limites gerou o impulso de formar imediatamente um partido comunista também na Itália, aceitando a leadership de Amadeo Bordiga, do qual Gramsci era, sob

muitos aspectos, distante. Da derrota do movimento operário e socialista no “biênio vermelho” nasce, também, a dramática fase da reação fascista, obrigando Gramsci a repensar sua estratégia política e o predispondo a se apropriar do ensinamento do último Lenin sobre a possibilidade de uma revolução imediata no Ocidente nos mesmos moldes da Revolução de Outubro.

Em junho de 1922, Gramsci foi enviado pelo seu partido a Moscou como representante italiano junto à Internacional comunista. No “País dos Sovietes” residiu até finais de 1923, para depois deslocar-se para Viena e retornar a Itália em maio de 1924. Iniciou em Moscou uma fase de conhecimento mais profundo do pensamento de Lenin e do grupo dirigente bolchevique, agora – terminada a guerra civil – empenhado na tentativa de edificação de uma inédita sociedade socialista. Eram anos de redescoberta de uma certa gradualidade: a NEP (Nova Política Econômica) que buscava recuperar uma relação de aliança com os camponeses, fortemente comprometida nos anos da guerra civil e do “comunismo de guerra”.

Perdida a esperança de uma súbita revolução no Ocidente, e amadurecida a convicção de uma capacidade de resistência do capitalismo bem superior às primeiras ingênuas previsões, Lenin relançou a política da “frente única”, ou seja, da aliança com os socialistas contra as forças burguesas. A lição que vinha do último Lenin era a de uma crise capitalista que não necessariamente assumiria dimensões catastróficas, dando início a um vitorioso processo revolucionário.

Foi a partir de Lenin que Gramsci amadureceu a convicção de que no Ocidente não se poderia “fazer como na Rússia”, uma vez que (escrevia de Viena aos companheiros que lhe eram mais próximos, em grande parte os mesmos do L’Ordine Nuovo, com os quais, encarregado pelo Comintern, se propunha a criar um novo grupo dirigente do partido, distante do extremismo bordighiano).

a determinação, que na Rússia era direta e lançava as massas nas estradas ao assalto revolucionário, na Europa central e ocidental se complicavadevido a todas essas superestruturas políticas criadas pelo maior desenvolvimento do capitalismo, tornando mais lenta e mais prudente a ação das massas e demandando, portanto, ao partido revolucionário toda uma estratégia e uma tática bem mais complexa e de maior fôlego do que aquelas que foram necessárias aos bolcheviques no período entre março e novembro de 1917 (GRAMSCI, 1992, p. 233)12.

Já em 1924, Gramsci havia amadurecido in nuce alguns dos temas (guerra de posição, hegemonia) que seriam centrais nos Cadernos13. Iniciou-se, sob a direção

de Gramsci (e graças à autoridade indiscutível da Internacional, que o apoiava) um verdadeiro período de refundação gramsciana do Partido Comunista da Itália, que culminou no seu III Congresso, realizado em Lion em janeiro de 1926 (Cf. LIGUORI, 2015, p. 249 et seq.).

A “revolução do conceito de revolução”

Passando por todos esses eventos históricos dramáticos, nos anos que se seguem a 1917 e, depois, de 1921 até 1926, ano em que é preso, Gramsci chega, certamente, a uma reelaboração complexa da sua bagagem teórica juvenil. Alguns fios da qual, e não secundários, podem ser encontrados na trama das obras do cárcere, mas inseridos em um quadro de conjunto sob muitos aspectos diverso. No Gramsci maduro, ao lado da vontade revolucionária se coloca a consciência mais objetiva possível da situação, a análise histórica e social minuciosa do terreno (sobretudo nacional) sobre o qual se desenvolve a luta. Esta análise, aplicada primeiro à realidade italiana, e depois ao Ocidente capitalista, levava à conclusão da não repetibilidade de uma revolução de tipo soviético.

Em outras palavras, Gramsci no Cárcere concentra-se na diferença morfológica entre Oriente e Ocidente e, consequentemente, entre guerra de movimento e guerra de posição14. E chega a afirmar que a Revolução Russa é a última revolução de tipo oitocentista, a última revolução-insurreição, pelo menos na Europa ou no mundo avançado. A formulação dessa passagem fundamental tem lugar no Caderno 7, em uma nota intitulada justamente Guerra de movimento e guerra de posição, datável (Cf. FRANCIONI, 2009, p. 4) de novembro-dezembro de 1930:

Parece-me que Ilitch havia compreendido a necessidade de uma mudança da guerra manobrada, aplicada vitoriosamente no Oriente em 1917, para a guerra de posição, que era a única possível no Ocidente, onde, como observa Krasnov, num breve espaço de tempo os exércitos podiam acumular quantidades enormes de munição, onde os quadros sociais eram por si sós ainda capazes de se tornarem trincheiras municiadíssimas. Parece-me este o significado da fórmula da ‘frente única’, que corresponde à concepção de uma só frente da Entente sob o comando único de Foch. Só que Ilitch não teve tempo de aprofundar sua fórmula, mesmo considerando que ele só podia aprofundá-la teoricamente, quando, ao contrário, a tarefa fundamental era nacional, isto é, exigia um reconhecimento do terreno e uma fixação dos elementos de trincheira e de fortaleza representados pelos elementos da sociedade civil etc. No Oriente o

Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente havia entre o Estado e a sociedade civil uma justa relação e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas (GRAMSCI, s/d, p. 845)15.

No Ocidente, a moderna estrutura da sociedade de massas, a articulação nova entre Estado e sociedade civil, o peso e a importância dos aparatos de formação do consenso são todos fatores que levam o revolucionário sardo a revolucionar profundamente o conceito de revolução, não só em relação à visão subjetivista e idealista de seu período juvenil, mas também no que diz respeito à concepção clássica, e às vezes esteriotipada, da tradição marxista e leninista. Não porque Gramsci se afaste do marxismo ou da tradição revolucionária, com uma abordagem classicamente reformista – como às vezes se sustentou.A vontade (revolucionária), a vontade coletiva indispensável para a transformação social e política, não perde importância, mas essa agora parte da compreensão da necessidade do conhecimento do novo terreno no qual se é chamado a atuar, e se faz anunciadora daquilo que Gramsci chamou de “reforma intelectual e moral” (GRAMSCI, s/d, p. 1422)16.

A vontade de mudança não perde,contudo,a sua ancoragem de classe, o seu coração no mundo econômico e das relações sociais. A pergunta fundamental que Gramsci se faz nos Cadernos é de fato a seguinte: “como nasce o movimento histórico sobre a base da estrutura”. Sobre a base da estrutura, escreve Gramsci, que assenta a sua teoria da revolução bem firme no terreno das relações econômico- sociais, mas indagando-se, sobretudo, pelos seus aspectos “superestruturais” e sua “autonomia relativa”, uma vez que compreende toda a complexidade da ação política na época moderna: recusa as concepções economicistas fundadas sobre o binômio crise econômica-revolução (que tinham sido a base do marxismo da Segunda Internacional, mas apropriadas também pela Terceira Internacional); identifica como fundamentais os aparatos públicos e privados que formam o senso comum; assinala a importância das transformações moleculares; e considera decisivo lançar o desafio da conquista do consenso. Sublinha, portanto, a importância decisiva de uma elaboração cultural e ideológica que saiba oferecer uma nova e persuasiva “concepção de mundo”, que saiba formar um novo senso comum de massa – sempre, porém, a partir daquela leitura da sociedade dividida em classes que aprendera com Marx e tendo em vista a necessidade daquela capacidade de iniciativa política como lhe ensinara Lenin.

É uma concepção que, pondo em relevo a importância decisiva do consenso, da elaboração cultural, do senso comum organizado, do “progresso intelectual de massa”, estabelece as premissas para uma luta política democrática, compatível com a estratégia da conquista da hegemonia.

Em 1926

Em 1926, às vésperas da prisão de Gramsci em Roma, houve a famosa troca de cartas com Togliatti, que se encontrava em Moscou17. Na sua primeira carta18, Gramsci defendia a adesão à linha majoritária do Partido Comunista Russo (de Stalin e Bukharin), à qual o partido italiano era mais próximo porque essa, por enquanto19, continuava a sustentar a política leninista de aliança com os camponeses; mas se punha em guarda contra as modalidades com as quais vinha sendo conduzida a luta contra a minoria deTrotsky, Zinoviev etc., modalidades que – juntamente à ruptura da unidade da “velha guarda” leninista – minavam a credibilidade de todo o grupo dirigente comunista mundial. Gramsci expressava, em última análise, preocupações com o fato de que as massas não teriam compreendido os termos de um conflito tão violento, e temia pelo próprio futuro do movimento comunista internacional.

Um decênio havia transcorrido desde a Revolução de Outubro e dos entusiásticos comentários gramscianos de 1917. Gramsci não teria jamais renegado a sua tomada de posição ao lado do País nascido da primeira revolução socialista da história, mas tinha compreendido como os objetivos, ardentemente desejados, estavam dando lugar, irremediavelmente, a uma perspectiva rebaixada da revolução mundial e, consequentemente, ao decisivo processo de identificação do movimento comunista com o Estado soviético. A Revolução de Outubro, institucionalizando-se e enrijecendo-se em um território determinado, havia encontrado os próprios limites históricos.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
1 Artigo originalmente publicado na revista italiana Critica Marxista, Roma, n. 4-5, 2017. Tradução de Eduardo Granja Coutinho.
2 Professor de História do Pensamento Político na Universidade da Calábria, Itália. Presidente da International Gramsci Society Itália (IGS-Itália). E-mail: guidoliguori19@gmail.com.
3 Carta a Giulia, 6 de março de 1924.
4 Carta a Carlo, 12 de setembro de 1927.
5 Sobre o Gramsci do período turinense, ver: Paggi (1970), Rapone (2011) e D’Orsi (2017).
6 Vejam-se a propósito as informações fornecidas pelo utilíssimo aparato crítico dos escritos gramscianos desse período reeditados no âmbito da Edizione nazionale degli scritti di Antonio Gramsci (GRAMSCI, 2015, p. 258-259). 7 “O homem malfeitor comum se tornou, na Revolução Russa, o homem tal como Immanuel Kant, o teórico da moral absoluta, havia pregado, ou seja, o homem que diz: “fora de mim, a imensidão do céu; dentro de mim, o imperativo da minha consciência” (GRAMSCI, 2017a, p. 37).
8 A mais clamorosa dessas oscilações é aquela que, ainda no final de setembro de 1917, sugere a Gramsci a hipótese de que a alternativa a Kerensky não seja Lenin, mas o socialista revolucionário Chernov. O fato se explica pela presença na Itália do companheiro de partido de Chernov, Suchomlin, que com os seus escritos no Avanti!, onde assinava “Junior”, influenciava evidentemente a orientação de parte dos socialistas italianos. Importar tabla 9 La rivoluzione contro“Il Capitale”, o artigo de Gramsci ao qual se faz referência, veio à luz somente em 24 de dezembro no Avanti!. Várias tentativas de publicação já haviam sido feitas, mas foram frustradas devido à censura vigente durante a guerra, a primeira no Grido del Popolo de 1º de dezembro de 1917. Portanto, o artigo foi escrito por Gramsci cerca de três semanas depois dos fatos de Petrogrado (no resto do país e na própria cidade de Moscou os combates duraram alguns dias a mais), não um mês e meio depois: uma particularidade não insignificante. Veja-se a propósito o já mencionado aparato crítico do volume de Antonio Gramsci (2015, p. XXXI e 617).
10 Na realidade, o problema havia sido enfrentado de modo antideterminista e não etapista também por Marx, com base nas solicitações da revolucionária russa Vera Zasulic. Cf. Musto, 2016, p. 49 et seq.
11 Sobre esse assunto, permitam-me remeter à minha Introduzione a Antonio Gramsci “Masse e partito” (LIGUORI, 2016) e aos escritos gramscianos indicados nesse mesmo texto.
12 Carta a Palmi, Urbani etc., de 9 de fevereiro de 1924. A carta faz parte da correspondência publicada por Togliatti com o título: La formazione del gruppo dirigente del Partito comunista italiano nel 1923-1924, primeiro, em 1960, nos Anais do Instituto Giangiacomo Feltrinelli e depois, em 1962, como volume pela Editori Riuniti. 13 Sobre esse tema, remeto ao meu ensaio Teoria e politica nel marxismo di Antonio Gramsci (LIGUORI, 2015).
14 No que concerne às principais categorias gramsciana aqui referidas, remeto a: Liguori e Voza, 2009.Veja-se, em particular, de L. La Porta, o verbete “Revolução”. 15 Quaderno 7, § 16. 16 Quaderno 11, § 22.
17 Essa correspondência pode ser encontrada em Gramsci (2017d, p. 109-124). Sobre o significado dessa troca de cartas e sobre as posições de Gramsci e Togliatti, ver Liguori (2016, p. 19-21).
18 Carta de Gramsci ao Comitê Central do Partido Comunista Russo, 14 de outubro de 1926, assinada “L’Ufficio politico del PCI” (GRAMSCI, 2017d, p. 109 et seq.).
19 Tendo derrotado e liquidado Trotsky, e se desembaraçado de Bukharin (o verdadeiro teórico naqueles anos da aliança entre operários e camponeses, e ponto de referência dos comunistas italianos no grupo dirigente bolchevique), Stalin se apropriou, em essência, da proposta política do próprio Trotsky, procedendo a etapas forçadas na industrialização do país, política pela qual foram os camponeses que tiveram que pagar mais caro. Artigo recebido em agosto de 2017 e aceito para publicação em agosto de 2017.
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