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Notas sobre a Revolução Russa e a reflexão de Gramsci
O Social em Questão, vol. 20, núm. 39, pp. 41-54, 2017
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Artigos



Resumo: O objetivo deste artigo é mostrar que o grande marco do século XX foi a Revolução de Outubro de 1917, que deu outro significado para a história mundial, a partir das grandes conquistas sociais das classes trabalhadoras incentivadas pela Revolução Russa. Outubro de 1917 mostrou a possibilidade de uma nova ordem social e política bem como mudou radicalmente a correlação de forças vigente até então. Antonio Gramsci, militante político em plena efervescência do movimento operário italiano, analisou a Revolução Russa para dela tirar o incentivo para a organização dos trabalhadores na Itália. Retomamos seus escritos entre 1917 e 1919, a fim de refletir sobre sua leitura da revolução.

Palavras-chave: Revolução Russa, movimento operário europeu, Gramsci.

Notas sobre a Revolução Russa e a reflexão de Gramsci

Anita Helena Schlesener1

Resumo

O objetivo deste artigo é mostrar que o grande marco do século XX foi a Revolução de Outubro de 1917, que deu outro significado para a história mundial, a partir das grandes conquistas sociais das classes trabalhadoras incentivadas pela Revolução Russa. Outubro de 1917 mostrou a possibilidade de uma nova ordem social e política bem como mudou radicalmente a correlação de forças vigente até então. Antonio Gramsci, militante político em plena efervescência do movimento operário italiano, analisou a Revolução Russa para dela tirar o incentivo para a organização dos trabalhadores na Itália. Retomamos seus escritos entre 1917 e 1919, a fim de refletir sobre sua leitura da revolução.

Palavras-chave

Revolução Russa; movimento operário europeu; Gramsci.

Notes on the Russian Revolution and the reflections of Gramsci

Abstract

The aim of this article is to show that the great landmark of the twentieth century was the October Revolution of 1917, that gave another meaning to world history, from the great social achievements of the working classes encouraged by the Russian Revolution. October 1917 showed the possibility of a new social and political order and radically changed the correlation of forces prevailing until then. Antonio Gramsci, political activist in full swing of the Italian workers’ movement, analyzed the Russian Revolution to draw the incentive for the workers’ organization in Italy.We resume his writings between 1917 and 1919, in order to reflect on his reading of the revolution.

Keywords

Russian Revolution; European labor movement; Gramsci.

Introdução

A história está na Rússia, a vida está na Rússia. Somente no regime dos Conselhos os problemas de vida ou morte que pesam sobre o mundo encontram a sua adequada solução (GRAMSCI, 1975b, p. 9).

Nosso objetivo é, no momento das comemorações dos cem anos da Revolução Russa, retomar algumas reflexões de Antonio Gramsci para explicitar aos trabalhadores italianos os desdobramentos da insurreição de 1917. Hoje se pode afirmar que Outubro de 1917 marcou a história do século XX impulsionando as classes trabalhadoras do mundo inteiro a empenhar-se em grandes conquista sociais. Pela primeira vez as classes trabalhadoras tomam o poder nas mãos para finalmente controlar o seu trabalho e definir os caminhos de seu futuro. Pela primeira vez na história uma experiência revolucionária de massas demonstrou que a emancipação do trabalho realizada pelos trabalhadores não precisava esperar a realização do capitalismo e sua consolidação, na linha do que pensavam os deterministas. As classes trabalhadoras demonstraram, na Rússia de 1917, recém-saída do domínio czarista, que se podia construir uma nova sociabilidade criadora do trabalho livre.

Estas linhas iniciais buscam apresentar, na primeira parte deste artigo, um breve esboço das condições históricas nas quais se construiu subterraneamente a revolução e, em seguida, uma breve abordagem da interpretação que Gramsci fazia dos acontecimentos a partir dos fragmentos de notícias que chegavam à Itália e de sua reflexão sobre o movimento russo visando esclarecer a classe operária italiana. A terceira parte traz algumas notas sobre a relação entre os Soviets e os Conselhos de Fábrica.

As condições históricas da grande revolução operária do século XX

Ao lado das usinas, das casernas, das províncias, do front, dos Soviets, a Revolução contava com outro laboratório: a cabeça de Lenin (TROTSKY, 1980, p. 808).

O que dizer, a cem anos de distância, de uma Revolução que marcou a história do século XX, mas que os historiadores, em geral, insistem em ignorar? Qual o significado e a força de um movimento insurrecional que abriu o caminho para que os trabalhadores tomassem nas mãos o controle do seu trabalho e que,

para tanto, precisaram tomar nas mãos o aparato estatal e redefini-lo? Quando “se conquista o poder não se trata de reeducar o velho aparelho, é necessário destruí-lo todo” e substituí-lo pelos Soviets (TROTSKY, 1980, p. 809-810). Construir novas relações de poder, criar uma experiência inovadora numa terra, até a pouco, dominada por um tirano que não hesitou em massacrar uma massa faminta, parecia uma tarefa de gigantes. Mas as próprias circunstâncias, a fome, a “guerra, ao ligar de modo indissolúvel a democracia burguesa ao imperialismo”, mostravam que uma mudança estrutural só poderia acontecer por meio de uma revolução proletária (TROTSKY, 1980, p. 820).

Alguns recortes históricos se fazem necessários para circunscrever as condições econômicas e sociais que precederam este grande evento: a Rússia era uma das últimas regiões onde o poder monárquico absolutista se mantinha nas mãos da família Romanoff desde 1613. No âmbito da estrutura administrativa e burocrática do Estado absolutista, o poder firmava-se basicamente na aristocracia agrária, abrindo espaço para a entrada do capital estrangeiro e a formação de uma burguesia na implementação de uma estrutura industrial nos moldes do que havia se desenvolvido no Ocidente. A debilidade econômica se produzia tanto a partir de uma gestão política arcaica quanto da participação do país em guerras, como a do Japão (1904-1905), que colocava a população trabalhadora em situação de miséria extrema levando-a, em 1905 a uma primeira insurreição, reprimida com o massacre do “domingo sangrento”.

A medida política tomada pelo czar a seguir foi convocar a Duma, um poder representativo semelhante aos parlamentos ocidentais, mas mantendo ainda a mesma estrutura do Estado, com o controle e o poder repressivo fortemente concentrado em suas mãos. Em termos da economia, a situação continua inalterada, com abertura ao capital estrangeiro e aliança com a aristocracia fundiária, sem fortalecer a burguesia nacional cujos interesses iam além da simples instauração da Duma.

O período seguinte, de 1905 a 1917, foi de acirramento da luta de classes, com as classes trabalhadoras emergindo no cenário nacional a partir de suas organizações políticas que entendiam a necessidade de mudar a estrutura da sociedade. A eclosão da Primeira Guerra Mundial e a participação da Rússia levaram ao agravamento das condições econômicas e sociais internas, gerando novos conflitos com a participação de movimentos de trabalhadores e de soldados, que se organizavam ao longo deste processo. O caminho para a grande revolução abriu-se com a renúncia do czar, em fevereiro de 1917. Cresce a partir

daí o processo de organização política das massas, com alguns pontos altos de luta e fortalecimento do movimento, como: a instauração do governo provisório, a união entre trabalhadores e soldados na formação dos Soviets, as Jornadas de Abril, o congresso dos Soviets e as Jornadas de Julho, a contrarrevolução e a atuação de Lenin rumo à insurreição de Outubro.

Como reconheceTrotsky na nossa epígrafe, o ponto referencial de organização e incentivo da organização revolucionária foi, sem dúvida, Lenin que, aliando o conhecimento da teoria que havia acumulado no exílio com análises conjunturais precisas, conseguiu impulsionar o movimento convencendo a Comissão Central e os líderes do Partido das forças inauditas que emergiam no cenário da Rússia e da necessidade urgente de ação. Trotsky (1980, p. 821) ressalta o testemunho de Molotov: a “partir da chegada de Lenin na Rússia em abril de 1917”, o “partido começou a sentir que tinha, sob os pés, um terreno firme. Até aquele momento o partido tateava fraco e inseguro, tentando encontrar o caminho”.E isto foi possível porque Lenin articulava a situação Russa daquele momento ao cenário internacional de uma guerra imperialista que fragilizava a burguesia e abria a senda para a revolução. As teses de abril, o brado de “todo o poder aos Soviets” articulado, em seguida, com a ideia de revolução permanente foram os estopins que impulsionaram o movimento destinado a mudar o curso da história.

Gramsci acompanhou atento o processo revolucionário a partir de seu envolvimento com a organização do proletariado italiano. A questão principal que Gramsci enfrenta no movimento são as ideias reformistas que grassam entre os dirigentes do Partido Socialista Italiano(PSI) e, para enfrentar esta questão, busca elementos na ação revolucionária russa, na crítica à necessidade fatalista de que na Rússia se formasse inicialmente uma burguesia e se fortalecesse o capitalismo para, depois, pensar-se em uma revolução proletária. No movimento dos Soviets busca a força para alimentar e impulsionar o movimento operário italiano.

Notas sobre Gramsci e a revolução russa

Para os bolcheviques a história reserva um lugar de primeira ordem, superior ao dos jacobinos franceses tanto quanto o socialismo é superior às ideologias burguesas (GRAMSCI, 1982, p. 691-692)

Gramsci se mostra grande entusiasta da revolução, mas a interpreta a partir de notícias fragmentadas que chegam à Itália, tentando identificar nestas notícias

o que de verdadeiramente acontecia, ou seja, buscando separar o que entendia superficial e aparente daquilo que germinava e amadurecia nas profundezas. A censura imposta pela situação de guerra, o marasmo do cotidiano, aquele silêncio que antecede as grandes tempestades... “Gente vulgar quer a ordem, deseja a continuidade regular”, a censura que embranquece a página, a semente depositada nos húmus, o nascimento, o crescimento, o florir e o dar frutos... “Não quer persuadir-se de que a sociedade não se rege por leis determinadas”. E se confunde a máscara com o verdadeiro rosto. “A máscara de hoje é o branco da censura, o amanhã será a nossa revolução triunfante”(GRAMSCI, 1980,p. 700).

Este pequeno artigo, de janeiro de 1917, parece antever o que aconteceria nos subterrâneos do movimento popular na Rússia. Os artigos posteriores procuram entender os desdobramentos do movimento revolucionário trazendo-o para o contexto das lutas da classe operária italiana; se, na Rússia, se vencem as barreiras do czarismo, a Itália se vê limitada por um Estado envolvido em uma guerra mundial e cuja formação tardia gerou um conjunto de relações de forças que em nada favoreciam o movimento operário. Nestes anos, no curso de sua militância política, Gramsci alia a organização da revolução à necessidade de formação cultural, uma nova concepção de mundo, a fim de concretizar a verdadeira liberdade, enquanto ação libertadora que só pode ser realizada pelas classes trabalhadoras.

As reflexões referentes à Revolução Russa servem para explicitar o seu próprio caminho teórico articulado ao seu mergulho na experiência militante, acentuando a relação entre revolução e cultura no processo de organização revolucionária. Com o movimento revolucionário em curso, Gramsci escreve, em abril de 1917, que o proletariado italiano tem agora o apoio e “a ‘força’ do proletariado russo”, ou seja, acentua que o movimento russo impulsiona e revigora todo o movimento internacional; o “proletariado russo representa neste momento o exército russo”, a “vontade russa e é o arbitro da situação internacional”, sendo que “uma grande parte desta sua potência se reflete sobre os outros proletariados”, lhes dá uma “vida nova, uma nova autoridade”. A Internacional não é mais uma utopia, porque “ao menos em um país os internacionalistas não estão mais de joelhos”, mas erguidos e em pé (GRAMSCI, 1982, p. 131-132).

O entusiasmo com o movimento russo, que se constituía, para Gramsci, como a verdadeira emancipação das massas, uma experiência coletiva a ser seguida eo filósofo sardo se empenha neste sentido com o seu trabalho jornalístico, que é também expressão do seu percurso teórico de assimilação

do pensamento marxista. Retomamos os escritos a partir de abril de 1917, quando o movimento revolucionário russo estava em pleno curso e os embates no interior do partido avançavam no sentido de dar à revolução o caráter proletário. Gramsci acentua que o fato dos proletários participarem não basta para criar a identidade do movimento; os operários são mandados à guerra e nem por isso a guerra traz a sua marca e a sua vontade. O que caracteriza a revolução como proletária é a vontade e o objetivo de construir uma nova ordem social e política na qual os trabalhadores possam ter o controle da sua vida e de seu trabalho, ou seja, que se proponha como um outro modo de vida, um outro costume, um “fato moral” (GRAMSCI, 1982, p. 138).

Outras duas características abordadas neste artigo é que a Revolução Russa abateu a autocracia sem a violência, que é uma atitude do jacobinismo burguês, que fez a revolução burguesa defendendo interesses de classe e não interesses universais. “O fato violento das revoluções burguesas é duplamente violento: destrói a velha ordem e impõe a nova ordem”, tanto à casta antes dominante quanto ao povo que ela domina (GRAMSCI, 1982, p. 139)2. A diferença fundamental se encontra no fato que a Revolução Russa visa a concretizar um projeto social que nasce e é realizado pelas massas, enquanto a Revolução Francesa teve como seu centro o processo jurídico de instauração de uma nova ordem e tendo o movimento popular como coadjuvante. São estes elementos que diferenciam também jacobinismo de antijacobinismo: sim, porque não se pode ignorar que a violência existiu nos dois movimentos. Porém, no jacobinismo se tratava de substituir um “regime autoritário por outro regime autoritário” (GRAMSCI, 1982, p. 139), enquanto a Revolução Russa visa superar toda a violência da sociedade de classes para implementar um programa universal.

Como acentua Portelli (1981, p. 65), o jacobinismo foi, desde a sua origem, “tanto do ponto de vista social, como político e ideológico, um movimento burguês cujos métodos não são aplicáveis a uma revolução popular”. A crítica gramsciana ao jacobinismo não se limita aos aspectos sociais e políticos, ao modo como um regime autoritário substitui outro, mas estende-se aos limites ideológicos que se evidenciam no jacobinismo. Para Gramsci, trata-se de um movimento que é “incapaz de compreender a história e, portanto, também incapaz de fazer a história”. Um movimento que “tem uma visão messiânica da história; fala sempre por abstrações, o mal, o bem, a opressão, a liberdade, a luz...”, sempre de modo genérico e não histórico (GRAMSCI, 1975a, p. 270). Ou seja, Gramsci identifica ideias e valores que desembocam na abordagem liberal da política e, consequentemente, uma

abordagem que dilui ou ignora a luta de classes. Na formação do senso comum, esse messianismo cultural se dirige a “todos genericamente e a nenhum praticamente”, atuando para a formação do indivíduo.

Em decorrência deste modo de se apropriar do jacobinismo, os intelectuais representantes da burguesia italiana não conseguem interpretar a realidade política a não ser por esquemas, e o principal aquele da Revolução Francesa, mas de uma forma superficial: “não da Revolução francesa que transformou profundamente o mundo”, que envolveu as massas, que estimulou e fez florescer “estratos profundos de humanidade submersa”, mas sim aquela superficial, “que aparece nos romances e nos livros de Michelet, cujos atores são advogados raivosos e energúmenos sanguinários”. Os símios da burguesia italiana valorizam “o gesto de um indivíduo tomando-o pela alma de um povo” (GRAMSCI, 1982, p. 408).

Neste sentido, a leitura gramsciana da Revolução Russa tem ainda o objetivo de situar-se ante as polêmicas internas ao PSI, principalmente a crítica ao reformismo e seus desdobramentos na formação das massas, assim como à abstração dos conceitos retomados da tradição jacobina francesa, como liberdade, bem e mal, sem articular tais conceitos com a realidade concreta, o que gerava uma incompreensão histórica e contradições no encaminhamento da ação (GRAMSCI, 1975a). Conforme Gervasoni (1998, p. 63), com estas reflexões “Gramsci apontava a principal debilidade do projeto político dos unitários de Salvemini”.

O que define, portanto, o caráter proletário da Revolução Russa são: o método de encaminhamento centralizado na vontade popular que os dirigentes respeitar sem qualquer vanguardismo e o programa social e político a implementar. Na opinião de Portelli (1981, p. 68), neste momento Gramsci ainda ignora os escritos de Lenin mas, “sensível à influência de Sorel, Gramsci desenvolve os temas que serão da ultraesquerda: os revolucionários russos não foram mais que os ‘regadores’ do socialismo”, enquanto a “revolução tem sido obra das massas, que têm criado espontaneamente suas próprias instituições: os Soviets”.

A Revolução Russa, portanto, organizada a partir das novas forças sociais emergentes, é o que se pode chamar a verdadeira revolução, porque de massas, com um caráter universal que as eleva e unifica em torno de um projeto comum de trabalho, de sociedade e de vida. O sinal dos novos tempos: o sufrágio universal estendido às mulheres, o autoritarismo substituído pela liberdade, o pensamento livre, a abertura dos cárceres, a liberdade estendida a todos, a única forma de realmente existir liberdade (GRAMSCI, 1982, p. 139-140).

Uma concepção mais realista, produzida através de uma proximidade maior dos acontecimentos a partir de novas notícias, aparece nos escritos a partir de julho e agosto de 1917, nos quais Gramsci tenta explicitar as relações de força resultantes dos embates entre o governo provisório e os bolcheviques ou os maximalistas russos, que “são o ritmo da revolução e, por isso, a própria revolução russa”;são a ponta de lança, o ponto mais avançado das ideias socialistas. Todos vão em frente porque existe um grupo que os incentiva, que percebe a urgência da tomada de decisões, a urgência de uma insurreição. Esta atitude antijacobina de mobilizar as massas, de prosseguir na luta superando todos os limites é própria dos maximalistas e, por isso, eles são a própria revolução (GRAMSCI, 1982, p. 265-267).

É neste momento que Gramsci começa a se referir a Lenin como o grande líder da revolução, aquele que “suscitou energias que não morrerão”; Lenin e seus “companheiros bolcheviques estão persuadidos que seja possível realizar o socialismo a qualquer momento”. E salienta a principal diferença dos bolcheviques com a socialdemocracia: “são revolucionários, não evolucionistas. E o pensamento revolucionário nega o tempo como fator de progresso” (GRAMSCI, 1982, 266). Esta questão é o ponto central do polêmico artigo “A revolução contra O Capital”, publicado em dezembro de 1917, no qual Gramsci critica as posições dogmáticas, os cânones fixos de interpretação da história, mostrando mais uma vez que, para fazer história é preciso compreendê-la em seu movimento e em suas múltiplas determinações. A Revolução de Outubro provou que não existem esquemas rígidos de transição para o socialismo a seguir invariavelmente; o que Lenin e os bolcheviques fizeram foi articular teoria e prática, reinterpretando a teoria a partir das características específicas de uma determinada situação histórica a fim de transformar a teoria em ação frutífera.

E Gramsci acentua: a revolução é um processo contínuo. “Toda a vida se torna verdadeiramente revolucionária; uma atividade sempre atual, uma contínua troca, uma escavação contínua no bloco amorfo do povo”. Deste modo, suscitando novas energias e novas ideias, os homens tomam nas mãos o seu destino, “todos os homens. É impossível que se formem minorias despóticas” (GRAMSCI, 1982,

p. 267). São escritos para o operariado italiano, ou seja,muito mais mobilizadores das forças locais do que de esclarecimento sobre os acontecimentos que se desdobravam na Rússia.

Na medida em que Gramsci tem acesso a maiores informações sobre o movimento revolucionário em curso na Rússia, seus escritos se tornam ainda

mais incentivadores da organização do movimento operário italiano. Descreve os embates entre as forças reformistas e o movimento bolchevique, a importância de Kerensky no governo provisório, para o equilíbrio das forças em presença, enquanto o movimento operário ainda se organizava, mas a necessidade de avançar para um momento mais importante, visto que os trabalhadores já estavam preparados para assumir o poder. Com os bolcheviques e a liderança de Lenin, os trabalhadores tinham se tornado “uma das maiores forças políticas organizadas” (GRAMSCI, 1982, p. 353).

Na verdade, este processo foi acelerado: “sete meses de liberdade, de discussões, de propaganda, permitiram ao proletariado russo de reconhecer- se, de organizar-se, de fixar uma outra etapa imediata a alcançar”. Kerensky foi importante para que houvesse um compromisso, mínimo de condições “para que fosse possível viver, trabalhar, produzir sem convulsões diárias, sem estar acampados nas praças” e continuar “a vida cotidiana de trabalho e de emergências”.Agora, porém, a consciência coletiva havia aflorado, “consciente das próprias forças e da própria missão”; o proletariado estava pronto para “iniciar concretamente a transformação do mundo econômico e social da velha Rússia czarista” (GRAMSCI, 1982, p. 358-359).

Voltado sempre ao movimento operário italiano, surge o artigo Il privilegio dell’ignoranza, publicado em Il Grido del Popolo, de 13/10/1917, que aborda o sentido do princípio de autoridade: no Estado burguês a organização política se firma em uma hierarquia de poder a partir da qual a autoridade se impõe e não pode ser questionada; na base desta concepção encontramos o privilégio da burguesia de ser ignorante ou “o privilégio da preguiça mental”, visto que tem quem pense e faça por ela. A separação entre dirigentes e dirigidos e a hierarquia de poder fundamentam esta estrutura e se traduzem nas democracias burguesas (GRAMSCI, 1982,p. 393).

A crise em que se debatem as democracias é produzida em grande parte pela contraposição entre o princípio de autoridade, entre o jacobinismo necessário a todo Estado burguês e as tendências das massas populares, socialistas e democráticas, a ampliar sempre mais sua própria ação de controle (GRAMSCI, 1982, p. 393).

A Revolução Russa mostrou que a luta de classes se encontra na ordem do dia, de modo que o proletariado tem o dever de conhecer e entender o conjunto

de relações de força das quais faz parte, de modo a lutar por uma sociedade “sem privilégios de casta ou de categoria” que, “para realizar-se completamente requer que todos os cidadãos saibam controlar aquilo que vez ou outra os seus representantes decidem e fazem”. [...] “Deve haver um modo de escolher entre um número quanto maior possível de indivíduos a ocupar os cargos públicos, para que haja garantia de liberdade” e, principalmente, para que “a escolha recaia sobre os melhores e não necessariamente sempre sobre os mesmos”; é necessário que “ninguém seja absolutamente indispensável” (GRAMSCI, 1982, p. 394).

O que temos aqui, depois da severa crítica ao jacobinismo e à abstração e superficialidade dos dirigentes da burguesia na estrutura da democracia burguesa, uma proposta de democracia popular efetiva, com elementos que parecem recuperar a reflexão de Marx sobre a experiência da Comuna de Paris. Esta posição de Gramsci, em nosso entender, repercute no seu trabalho jornalístico e na militância junto aos trabalhadores de Turim nos anos de organização dos Conselhos de Fábrica. O empenho de Gramsci em torno da formação política dos trabalhadores no processo de organização dos Conselhos se alimentou tanto de sua formação, quanto da forma como entendia o movimento revolucionário russo. Tentamos aqui levantar alguns traços destes eventos nos escritos sobre os Conselhos.

Notas sobre revolução e experiência dos Conselhos

Devemos esclarecer que cada situação histórica é única e cada experiência de Conselho traz as características específicas das realidades empíricas nas quais estes se organizam. Os Soviets russos têm uma grande experiência já em 1905, que tem raízes históricas na Comuna de Paris. Já em 1905 estes conselhos eram denominados por Trotsky de órgãos de poder do proletariado, denominação que reaparece nas Teses de Abril de 1917. Os Conselhos de Fábrica italianos, dos quais Gramsci participou ativamente, se constituíram também a partir do que se conhecia da experiência dos Soviets.

Soviets e Conselhos têm em comum o fato de serem instituições criadas pelo movimento operário, soldados e trabalhadores em geral, com o objetivo de efetivar a revolução de massas, como tomada do poder para assumir o controle do trabalho organizando uma nova ordem social e política. Foram eles, respeitando-se as especificidades históricas, uma primeira experiência de democracia socialista, ou seja, de gestão da economia e da política pela massa de trabalhadores. Trata- se da ação política que Marx denomina, nas suas reflexões de 1843-1844, de

“democracia radical” e que analisa no escrito A Guerra Civil na França, voltado a compreender as lutas de classes que culminaram na Comuna de Paris.

O processo de organização dos Conselhos de Fábrica entre 1918-1920 na Itália pode ser acompanhado por meio dos artigos de Gramsci publicados em L’Ordine Nuovo. Iniciamos com o artigo La taglia dela storia, de junho de 1919, no qual Gramsci acentua o caráter inovador da Revolução Russa e se pergunta sobre o que ainda se faz necessário para “legitimar e tornar permanentes as suas conquistas”. Uma revolução que teve que enfrentar dificuldades inauditas, “imensamente superiores àquelas de qualquer outra revolução do passado”. Porque se trata de uma revolução inovadora, que se propôs transformar radicalmente a sociedade suprimindo a propriedade privada dos meios de produção e colocando como base da “sociedade núcleos já orgânicos da própria sociedade” com fins especificamente sociais (GRAMSCI, 1975b, p. 6).

Estes núcleos ou Soviets, fortalecidos no movimento de organização de massas, são a característica inovadora e Lenin, neste processo, se revelou “o maior estadista da Europa contemporânea”, porque, com sua energia e inteligência, soube unir a “doutrina comunista com a consciência coletiva do povo russo”. A revolução tornou-se um “sistema organizado de poder” e a gestão, uma experiência inovadora de democracia (GRAMSCI, 1975b,p. 6-7).

É esta experiência dos Conselhos que Gramsci incentiva no movimento operário italiano, apresentando-os como a força vital capaz de tirara sociedade italiana de seu marasmo e livrar a Europa do risco permanente da barbárie. A pressão sobre a Rússia levada a efeito pelos países capitalistas com os enormes meios de que eles dispõem: “o monopólio da informação, a possibilidade da calúnia, a corrupção, o bloqueio terrestre e marítimo, os boicotes e sabotagens, a deslealdade despudorada”, não podem vencer a força e a vontade do povo russo (GRAMSCI, 1975b,p. 9). Gramsci incentiva e orienta o operariado italiano, explicitando a função e os objetivos dos Conselhos como iniciadores de uma nova experiência de convivência social e de participação coletiva; um trabalho efetivo de construção de uma nova experiência democrática que precisa desaguar num novo Estado. A relação entre política e economia se explicita na ação dos Conselhos, como experiência de vida coletiva e de participação direta na construção de uma nova ordem política capaz de reorganizar a sociedade.

O Jornal L’Ordine Nuovo serviu como instrumento de divulgação do ideário da Revolução Russa, de um esforço para transpor para a realidade italiana os elementos teóricos e práticos que efetivaram a primeira revolução de massas da

história da modernidade e que marcou o século XX. Os conselhos permanecem para a história como uma experiência original de gestão política nascida no âmbito da produção, com a finalidade explícita de tomar nas mãos os meios de produção para que os trabalhadores tivessem finalmente o controle do seu destino, da sua vida, da sua história.

O artigo Democrazia Operaia, de 1919, foi um marco para o início da organização dos Conselhos de Fábrica em Turim, salientando a importância e o significado de uma experiência de democracia direta, de gestão compartilhada e de extensão desta experiência para outras instituições da sociedade. Como se fazia com o Soviets, proclamando “todo poder ao proletariado”, aqui se proclama “todo o poder de Estado aos conselhos operários e camponeses”, a fim de envolver toda a classe trabalhadora, do campo e da cidade, dos bairros, num esforço comum e solidário de esclarecimento, de persuasão, de formação de uma consciência de classe, enfim, “de educação recíproca da qual nascerá a ação concreta de construção”(GRAMSCI, 1975b, p. 10).

Um Estado assim não se improvisa: os russos se empenharam por oito meses a “trabalhar e, a difundir, a fim de tornar concreta a palavra de ordem: ‘todo poder ao Soviet’”, Soviets que já existiam desde 1905. “Os comunistas italianos devem assimilar a experiência russa e economizar tempo e trabalho”; porque a obra de instauração de um novo Estado demanda muito tempo e trabalho e a ela devemos dedicar cada dia e cada ação (GRAMSCI, 1975b,p. 13).

Breve conclusão

Tentamos evidenciar tanto a importância da experiência russa para as classes trabalhadoras mundiais quanto à leitura de Gramsci no curso do movimento revolucionário, tentando compreendê-lo e transmiti-lo aos trabalhadores italianos, a fim de organizar a revolução operária na Itália, principalmente por entendê-la como uma experiência universal. Uma experiência a ser tornada internacional.

Cem anos deste grande acontecimento, coincidindo com a memória dos oitenta anos da morte de Gramsci, nos devem servir como base de reflexão sobre o momento difícil que as classes trabalhadoras estão vivendo no mundo inteiro, acuadas pelo capital e fragmentadas pelas mutações do trabalho, sem instrumentos para sua defesa e com instituições políticas frágeis, que não conseguem se articular para enfrentar este momento histórico. Gramsci, assim como Lenin e Trotsky, continuam sendo grandes teóricos do pensamento

marxista, porque conseguiram articular como ninguém a teoria proposta por Marx e Engels, com suas experiências históricas específicas.

Esta breve reflexão pretendeu mostrar a grandeza da experiência revolucionária, bem como a força e determinação de seus líderes, que precisamos conhecer e reinterpretar para compreender os limites e possibilidades que se colocam em nosso momento histórico.

Referências

GERVASONI, M. Antonio Gramsci e la Francia – dal mito della modernità alla “scienza della politica”. Milano: Unicopli, 1998.

GRAMSCI, A. Scritti Giovanili (1914-1918). Torino: Einaudi, 1975a.

. Cronache Torinesi (1913-1917), (a cura di Sergio Caprioglio). Torino: Einaudi Editore, 1980.

. La Cittá Futura (1917-1918), (a cura di Sergio Caprioglio). Torino: Einaudi Editore, 1982.

PORTELLI, H. Jacobinismo e antijacobinismo de Gramsci. In: HOBSBAWM, E. et al. Revolucion y Democracia en Gramsci. Barcelona: Fontamara, 1981.

TROTSKY, L. A História da Revolução Russa. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1980.(4 v.).



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