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Resumo: No ano do centenário da Revolução Russa, este texto busca refletir sobre o que quer dizer, hoje, ter “compromisso de classe por uma sociedade emancipada”. Com base na teoria social de Marx e em escritos de Gramsci, utiliza o materialismo histórico como método de análise e orientação para a reflexão com o objetivo de indicar elementos para o debate sobre os desafios enfrentados pelo Serviço Social na perspectiva da emancipação humana, tendo em vista que a luta de classes, hoje, quando se vive tempos tão sombrios para a classe trabalhadora, se mostra tão necessária quanto no cenário do amadurecimento do capitalismo.
Palavras-chave: Lutas de classe, Movimentos sociais, Serviço Social, Emancipação humana.
Abstract: In the year of the centenary of the Russian Revolution, this text seeks to reflect on what it means today to have “class commitment for an emancipated society”. Based on Marx’s social theory and Gramsci’s writings, he uses historical materialism as a method of analysis and orientation for reflection with the aim of indicating elements for the debate on the challenges faced by Social Work in the perspective of human emancipation, taking into account in view of the fact that the class struggle, today, when we live in such gloomy times for the working class, is as necessary as in the scenario of the maturing of capitalism.
Keywords: Class Struggle, Social movements, Social Work, Human emancipation.
Lutas e movimentos sociais: compromisso de classe com quem?
Ainda que movidos por um otimismo da vontade quanto ao potencial dos movimentos sociais para a emancipação da sociedade, não podemos prescindir de certo pessimismo analítico. Gramsci (2011b) alertava para a vigilância em momentos de crise. É preciso não se deixar levar por fantasias tampouco cair na desesperança – “pessimismo da razão, otimismo da vontade”. Ou seja, o caminho é político, o julgamento é difícil, e a idealização uma armadilha.
Nos limites desta abordagem, podemos sustentar que a temática das lutas e movimentos sociais não é propulsora, hoje, de muitos debates e pesquisas nas Ciências Sociais e, em especial, no Serviço Social, ainda que as lutas e movimentos sociais da classe trabalhadora sejam condicionantes históricos essenciais das conquistas de direitos sociais e das ações emancipatórias.
Com o objetivo de tornar mais clara a reflexão aqui proposta, cabe uma breve referência ao que se observa na literatura especializada sobre o tema “movimentos sociais”.Os primeiros estudos sobre o tema surgiram no final da
década de 1960, com a eclosão de um ciclo de protestos em várias partes do mundo. Nas ciências sociais, o debate sobre o fenômeno somente se instalou na década de 1970, quando foram abordados os movimentos sociais como forma de ação coletiva, e surgiu, então, a primeira ramificação no interior desse estudo, com enfoques diferenciados.
O primeiro deles veio da escola norte-americana, cujo foco de pesquisa é a organização dos movimentos sociais (formas de “recrutamento”, quem são as pessoas que participam, como decidem e como organizam as formas de protestos). Nessa abordagem, não está em jogo a contestação da ordem social ou do capitalismo por parte desses movimentos. Já a escola europeia – que influenciou os cientistas sociais brasileiros – adota um tipo de investigação sobre o aspecto externo dos movimentos sociais, especialmente sua identidade social, analisando como eles se relacionam com as demais instâncias da sociedade, quais são suas formas de protestos, como se organizam e qual seu impacto nas demais forças sociais. Essas teorias quase sempre entenderam os movimentos sociais como movimentos anticapitalistas, ou seja, movimentos motivados pelo estabelecimento de outra forma societária, ainda que não necessariamente o socialismo, uma vez que várias dessas teorias nem sempre foram teorias obrigatoriamente inspiradas pelo marxismo.
Nas ciências sociais há muito dissenso teórico, escolas e definições de movimentos sociais. Todavia, no caso brasileiro, nossa memória recente recorda os movimentos sociais que reativaram a mobilização popular, sufocada pelo período de ditadura militar, como o “novo sindicalismo”, gestado no final da década de 1970, em São Bernardo do Campo (SP), e um sem-número de movimentos populares. O Brasil é um dos países que apresentam grande número de movimentos sociais. Podem ser encontrados, em todo o país, movimentos de luta pela terra e pela reforma agrária, pela habitação, movimentos dos negros, dos indígenas, das mulheres, movimentos ecológicos e cooperativos, de meninos e meninas em situação de rua, movimentos de saúde, de pessoas com deficiência, movimentos comunitários de bairros, de produção e consumo, e tantos outros.
Grandes conquistas sociais e políticas foram resultantes dessa multifacetada mobilização popular, como, por exemplo, a anistia dos exilados políticos em 1979, a reforma dos partidos políticos, a institucionalização das organizações sindicais e populares, a reforma constitucional de 1988 e a eleição direta a presidente da República. A noção de movimentos sociais está aqui sendo utilizada de uma forma ampla, de modo a contemplar as variadas expressões da mobilização popular em curso no país, em defesa de direitos sociais e coletivos5.
Tendo em vista a potencialidade de tais movimentos e lutas sociais, bem como a necessidade de busca de alternativas para o “empoderamento” das classes populares, acreditamos caber aos assistentes sociais, nas mais diversas áreas de atuação, um compromisso com o que há de mais emancipador atualmente, que são as lutas sociais da classe trabalhadora em suas mais diversas manifestações e estratégias. Esse compromisso não significa negar as contradições e os conflitos desses movimentos, mas sim de reconhecê-los como espaços de resistência e esperança. Nesse sentido, estaremos em consonância com o Projeto Ético-Político do Serviço Social, comprometido que ele está com a liberdade e com a socialização da riqueza e da participação política. Isso nos faz pensar novamente na emancipação.
O Código de Ética Profissional expressa compromisso com a defesa dos direitos e da emancipação humana. Isso significa que deve ser utilizado como um instrumento de compromisso com a qualidade dos serviços prestados à população usuária: trabalhadores e trabalhadoras desse país tão marcado pelas desigualdades de classe.
Aqui o compromisso de classe vem novamente à tona: referimo-nos àqueles que trabalham e lutam todos os dias para tentar materializar, tornar realidade, as diretrizes e os princípios expressos no Código de Ética. Esta atitude é que pode consolidar o Serviço Social como uma profissão comprometida com os direitos da classe trabalhadora, tantas vezes esquecidos, tantas vezes negligenciados.
A direção social expressa no Código de Ética indica claramente a necessidade histórica de construção de um processo societário comprometido com as lutas seculares da classe trabalhadora. Mas, não esquecendo que os assistentes sociais são também trabalhadores e sujeitos às perversas condições de trabalho que vêm fragilizando laços de solidariedade entre a classe trabalhadora. Reconhecer a condição de partícipe da classe trabalhadora é, portanto, um exercício indispensável para nós. Porém, não basta.
É preciso reconhecer que a nossa práxis profissional deve ser pautada no compromisso com a defesa dos direitos e da emancipação humana. É um compromisso de classe, numa época em que a exacerbação do individualismo, a mercantilização da vida social e a banalização da vida humana passaram a fazer parte de nossas rotinas.
Isso implica em perder o medo que ainda persiste em muitos setores ditos de esquerda, de pensar e construir/reconstruir espaços públicos democráticos, que possam incorporar as grandes maiorias que não têm vez, nem voz, nem poder de pressão no âmbito da sociedade.
Aqui não podemos falar de fórmulas e nem de receitas. O caminho é político. Que projeto societário queremos? Com quem estabelecemos compromisso de classe?
Considerações finais
As diversas formas de luta, segundo a história de cada país, de cada povo, de cada região, são legitimas. Os espaços de resistência e de esperança gerados pelas reações populares precisam ser preservados.
Cabe aos intelectuais, aos militantes, aos políticos progressistas e, no nosso caso, aos assistentes sociais, aprender com o que hoje temos de melhor, que são as organizações populares e os movimentos e lutas sociais, inclusive na América Latina e no Brasil. Eles também são permeados de contradições e conflitos, tal como a sociedade brasileira. Mas querem enfrentá-los.
O saldo positivo das lutas pela democratização deve ser utilizado pelas organizações democráticas que queiram enfrentar os interesses do capital financeiro, que se traduzem cotidianamente nos mercados, na mídia e nos círculos de poder.
Cabe aqui destacar, no que se refere ao Serviço Social, duas ordens de tensão, dentre outras, com as quais a profissão se defronta. Por um lado, temos as exigências históricas quanto à elaboração ou reelaboração de propostas/respostas qualificadas às demandas que são colocadas ao Serviço Social pelo movimento contraditório entre as forças sociais que exercem o controle do capital (ABREU; LOPES, 2010). Por outro, temos aqueles que lutam pela construção de um controle alternativo como uma necessidade das lutas emancipatórias de nossa época.
Aqui, uma vez mais, a questão das lutas e das classes sociais e da emancipação humana se impõe como categoria de análise para evitar a visão fragmentada da sociedade (falamos do avanço das teorias ditas “pós-modernas” que reforçam a questão da identidade como categoria de análise e acentuam a orientação ao individualismo) no processo de formação da consciência profissional e política dos trabalhadores no contexto das lutas sociais que precisam ser empreendidas.
Referimo-nos à vinculação da profissão com as lutas democráticas e emancipatórias da classe trabalhadora como referência para a emancipação da humanidade. Ou seja, precisamos de um Serviço Social que acredite no poder transformador da sociedade brasileira, das organizações populares e dos movimentos sociais e que se articule e se comprometa cada vez mais com as lutas travadas pela classe trabalhadora, na perspectiva de um projeto societário que tenha no horizonte a emancipação humana.
Construir uma alternativa ideológica emancipadora é dever de nosso tempo. É, além disso, uma construção dialética pautada na experiência histórica, mas, também, na permanente visão e revisão de estratégias. Mészáros (2004), ao discutir a possibilidade de construção de projetos de luta para a classe trabalhadora destaca o poder da “ideologia emancipadora”:
Sem esta, as classes trabalhadoras dos países capitalistas avançados não serão capazes de se tornar ‘conscientes de seus interesses’, muito menos de ‘lutar por eles’– em solidariedade e espírito de efetiva cooperação com as classes trabalhadoras das ‘outras’ partes do único mundo real – até uma conclusão positiva (MÉSZÁROS, 2004, p. 546).
Tais desafios indicam a necessidade de um Serviço Social que esteja atento aos interesses da classe trabalhadora, que não perca de vista o compromisso ético-político assumido em seu projeto profissional e esteja “antenado” ao movimento consciente de se vincular a outros movimentos–locais, regionais, nacionais e ao redor do mundo – como forma de construir novas alternativas de concretização do ideal emancipatório.
No entanto, se a alternativa ao capitalismo é a emancipação humana, como devemos travar essa luta, de qual perspectiva devemos defender os direitos ameaçados dos trabalhadores para que consigamos acumular forças, tendo em vista a emancipação humana? (LESSA, 2007).Aqui está o cerne da questão: não se trata se devemos ou não defender os direitos ameaçados. Antes, trata-se de saber com que perspectiva, que estratégia utilizar para fazê-lo. Em outras palavras, cabe perguntar: em qual terreno devemos nos colocar para que essa luta possa acumular forças contra uma sociabilidade que não prescinde do Estado político, da propriedade privada e da exploração da classe trabalhadora?
Referências
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Notas