Seção Livre

Sob a ponta da agulha: dimensões do trabalho precário na indústria têxtil

Hiago Trindade
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil

Sob a ponta da agulha: dimensões do trabalho precário na indústria têxtil

O Social em Questão, vol. 20, núm. 39, pp. 285-300, 2017

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Resumo: A precarização do trabalho na sociedade contemporânea se materializa a partir de múltiplas dimensões: rebaixamento dos salários, degradação da saúde do trabalhador e intensificação da exploração da força de trabalho ilustram alguns exemplos. A fim de compreender como estas dimensões se expressam no âmbito da indústria têxtil potiguar “Casa de Costura”, desenvolvemos um estudo articulando revisão de literatura com um conjunto de informações produzidas mediante pesquisa empírica realizada junto aos operários da indústria mencionada. Concluímos o texto ressaltando que a precarização do trabalho é base de sustentação para o modo de produção capitalista e apontando a necessidade histórica de superar este sistema para inaugurar uma vida cheia de sentido dentro e fora do trabalho.

Palavras-chave: Precarização do trabalho, Capitalismo contemporâneo, Indústria têxtil.

Sob a ponta da agulha: dimensões do trabalho precário na indústria têxtil1

Hiago Trindade2

Resumo

A precarização do trabalho na sociedade contemporânea se materializa a partir de múltiplas dimensões: rebaixamento dos salários, degradação da saúde do trabalhador e intensificação da exploração da força de trabalho ilustram alguns exemplos. A fim de compreender como estas dimensões se expressam no âmbito da indústria têxtil potiguar “Casa de Costura”, desenvolvemos um estudo articulando revisão de literatura com um conjunto de informações produzidas mediante pesquisa empírica realizada junto aos operários da indústria mencionada. Concluímos o texto ressaltando que a precarização do trabalho é base de sustentação para o modo de produção capitalista e apontando a necessidade histórica de superar este sistema para inaugurar uma vida cheia de sentido dentro e fora do trabalho.

Palavras-chave

Precarização do trabalho; Capitalismo contemporâneo; Indústria têxtil.

The tip of the needle: dimensions of precarious labor within the textile industry

Abstract

The precariousness of work in contemporary society materializes from multiple dimensions: lowering wages, degrading workers’ health, and intensifying labor exploitation illustrate some examples. In order to understand how these dimensions are expressed in the context of the textile industry “Casa de Costura”, we developed a study articulating literature review with a set of information produced through empirical research carried out with the industry workers mentioned. We conclude the text by emphasizing that the precariousness of labor is a basis for sustaining the capitalist mode of production and pointing out the historical necessity of overcoming this system to inaugurate a life full of meaning inside and outside of work.

Keywords

Precarization of work; Contemporary capitalism; Textile industry.

Introdução

Dentre os estudiosos que vêm se dedicando à compreensão da precarização do trabalho, especialmente no Brasil, parece ser consensual o entendimento de que esse fenômeno não pode ser assimilado tomando-se por referência um único aspecto da realidade. Em verdade, as pesquisas desenvolvidas nesse campo temático (Cf. FRANCO & DRUCK, 2008; DRUCK, 2011; ANTUNES, 2011;

ALVES, 2013, 2014a) elucidam que a precarização do trabalho está assentada num conjunto heteróclito de dimensões que se entrelaçam e complexificam ao mesmo instante em que o modo de produção capitalista se (re)produz, fazendo avançar sua lógica por todas as esferas da vida social.

Essa reflexão é necessária na medida em que vai ao encontro do esforço e da necessidade histórica em perceber as novas determinações que embalam a precarização do trabalho nos tempos contemporâneos. Em lúcido exame, Giovanni Alves (2013) argumenta que, na era dominada pela maquinofatura e pela crise de valorização do valor do capital, “[...] a precarização do trabalho põe- se não apenas como precarização salarial, mas [como] precarização existencial, alterando os registros históricos da questão social no século XXI” (ALVES, 2013, p.235). Assim, embora a precarização do trabalho seja um traço constitutivo do modo de produção capitalista, suas formas de existência variam ao sabor de cada conjuntura. Para que fique mais claro: a condição de precariedade tem sua gênese atrelada ao surgimento do capitalismo, com a submissão do trabalho ao capital. Contudo, os níveis de precarização sofrem variações em grau e intensidade, como nos faz crer o mexicano Adriàn Valencia (2016).

Por isso, devemos nos afastar das investidas que procuram caracterizar a precarização do trabalho, levando-se em consideração apenas as alterações imediatas, diga-se, as mutações no modus operandi da fabricação de mercadorias na grande indústria (relação homem-máquina). Estas mutações foram provocadas pelas transformações que a substituição do modelo de organização e gestão da força de trabalho fordista para o modelo toyotista desencadearam no mundo do trabalho. É preciso estender o alcance de nossa lente investigativa para captar a realidade além da dimensão da aparência fenomênica e imediata que se nos apresenta, sempre, esvaziada de mediações fundamentais para a compreensão do real numa perspectiva de totalidade.

Assim, precisamos nos apropriar de um conjunto de direcionamentos e estratégias que se materializam nos planos objetivo e subjetivo para o conjunto de homens e mulheres que necessitam vender sua força de trabalho para sobrevier.

Por certo, com a revolução tecnológica e a reestruturação produtiva, novas formas de trabalho são acionadas, fortemente embaladas pela flexibilização das condições e relações de trabalho. Além disso, surgem exigências quanto ao perfil e comportamento do trabalhador: são tempos de “captura” da subjetividade desse sujeito pelo “espírito do toyotismo” (ALVES, 2011).

Nesse quadro, inúmeras táticas são mobilizadas pelo capitalista no afã de elevar suas taxas de lucro à enésima potência. Com a conjugação entre formas de extração de mais-valia absoluta e relativa, os níveis de intensidade de exploração da classe trabalhadora aumentam de maneira considerável, gerando impactos diretos para condições de existência e saúde do trabalhador. Além disso, a alteração na composição orgânica do capital é responsável por provocar a redução de trabalhadores estáveis, elevando assustadoramente os níveis de desemprego, que se tornam estruturais – e até mesmo parte integrante do modo de ser do capital. Diante disto, visualizamos, “[...] um enorme incremento do novo proletariado fabril e de serviços, que se traduz pelo impressionante crescimento, em escala mundial, do que a vertente crítica tem denominado trabalho precarizado” (ANTUNES, 2009, p. 104; grifos nossos).

Nesses tempos de capitalismo financeirizado, a precarização dos salários também é uma marca evidente. Numa sociedade fortemente marcada pelo assalariamento e pela mercantilização da vida social, o acesso aos produtos elementares para suprir as necessidades humanas são, para uma gigantesca massa de trabalhadores, adquiridos de acordo com as receitas provenientes do salário. Assim, a precarização salarial se traduz na própria degradação da vida humana do ser que trabalha.

Não é casual que, traçando a evolução das formas de precarização do trabalho ao longo dos sucessivos períodos, Alves (2013) identifique três gerações distintas (mas, em alguma medida, articuladas), quais sejam: 1) precariedade salarial extrema, fruto da conformação do capitalismo industrial; 2) precariedade salarial flexível, que emerge como expressão do desmonte do estatuto salarial regulado, após as transformações processadas no século XX; 3) e, finalmente, precarização existencial, que implica pensar a “[...] precarização das condições de existência humana no âmbito da objetividade-subjetividade/intersubjetividade do homem- que-trabalha” (ALVES, 2013, p. 244).

Até aqui, apontamos algumas questões importantes para desvelar a precarização do trabalho. Todavia, tais questões não esgotam as complexas possiblidades de aspectos mobilizados para demarcar o fenômeno. O ataque

às legislações sociais e trabalhistas, por exemplo, também constitui outra forma de aumento dos níveis de precarização do trabalho. Ora, já que todas as leis são passíveis de alterações, podemos afirmar que as condições de trabalho não são únicas, na exata medida em que acompanham o movimento das flutuações operadas no transcorrer dos tempos; ou seja, elas variam ao embalo de cada conjuntura e se relacionam diretamente com o nível de organização política dos trabalhadores. No tempo mais recente, por exemplo, uma alteração significativa foi provocada no universo trabalhista com a aprovação do Projeto de Lei 4.302/1998, cuja intenção constitui regulamentar e promover a total liberalização da terceirização no Brasil, isto para não falar de algumas propostas regressivas da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Estas alterações e propostas são caracterizadas pela elevação dos graus de precarização do trabalho3.

O fenômeno da precarização também está intrinsecamente relacionado com a dimensão subjetiva do trabalhador. Em seus estudos, Danièle Linhart (2014) chama atenção para este aspecto. A autora discorre sobre o que ela denomina de precarização subjetiva do trabalho, a acometer os trabalhadores que, mesmo possuindo vínculo empregatício “estável”, sentem-se impactados por não dominarem suas atividades, por perceberem-se cada vez mais isolados (mesmo e inclusive nesses tempos de “times” e de “trabalho em equipe”) ou, ainda, por terem baixa autoestima e pela insegurança que os assombram constantemente. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, Giovanni Alves completa enfatizando que: “A precarização do homem que trabalha produz desânimo, apreensão e angústia nas pessoas que trabalham. A insatisfação com as funções exercidas e as pressões do trabalho torna-se efetivamente uma tortura” (ALVES, 2014b, p. 115). Sumariadas algumas dimensões, cumpre-nos ressaltar que os esforços a nos guiarem na construção deste texto voltam-se para a análise de como essas dimensões se apresentam na indústria têxtil potiguar Casa de Costura, dando maior ênfase para a precarização salarial, a saúde do trabalhador e a intensificação dos níveis de exploração do trabalho. De um lado, acreditamos que o conjunto dos dados apresentados serve como complemento às informações já expostas e, de outro, traz à baila novos elementos para análise, possibilitando-nos avançar na

compreensão da estrutura, dinâmica e funcionamento da indústria investigada.

Precarização do trabalho: múltiplas dimensões na Casa de Costura

Na corrida para alcançar suas vultuosas taxas de lucro, o capitalista não mede os esforços nem as consequências de seus atos para o conjunto de trabalhadores

que a ele precisa se subordinar. Assim, sempre formula estratégias que lhe permitam sair na frente nessa verdadeira “caça a mais-valia”. Nesse contexto, as inflexões para a força de trabalho são evidentes, haja vista a recorrência com que, no intuito de reduzir gastos com a produção, os trabalhadores são dispensados e, mergulhados no desemprego, passam a estar relegados à própria sorte. Esse processo é reflexo do aumento da composição orgânica do capital. Marx (1989) chama de composição orgânica do capital a simbiose estabelecida, de um lado, entre o valor empregado em capital constante e em capital variável e, de outro lado, entre a massa, ou seja, o quanto de mão de obra é necessário, em cada momento histórico, para fazer avivar o maquinário do capitalista.

No que concerne à realidade da Casa de Costura, podemos afirmar que o capital constante se expressa nas instalações físicas – a fábrica em si, ou melhor: um galpão que consegue aglutinar grande quantidade de trabalhadores; veículos automotores, sobretudo para permitir o transporte das mercadorias da fábrica para os pontos de venda; máquina de costura, que pode ser tomada como a principal ferramenta de quem ali trabalha; matérias-primas etc. Já o capital variável aparece na força de trabalho, que, em geral, compõe-se por costureiras, costureiros, mecânicos e serigrafistas, dentre outros homens e mulheres que exercem alguma atividade na empresa.

Nos marcos dessa relação, é sabido que, aumentando a dimensão referente ao capital constante, inevitavelmente há uma diminuição do capital variável. Noutras palavras: ao se elevar a quantidade de maquinários, diminui-se a necessidade da força de trabalho de homens e mulheres. Dessa maneira, modifica- se a conformação do exército industrial de reserva ao sabor da dinâmica de acumulação do capital, mantendo-se, todavia, a tendência à redução do quantum de capital investido em mão de obra, com relação ao capital constante.

Em 2011, o jornal Tribuna do Norte veiculou uma matéria cujo foco era as diversas demissões na Casa de Costura. Naquele tempo, 2.214 trabalhadores e trabalhadoras perderam seus empregos em razão de um rearranjo de horários no âmbito da empresa, de modo que as atividades realizadas em dois turnos (6-14h e 14-22h) foram reduzidas para apenas um turno. Trata-se de um “novo modelo de negócio”, para usar as palavras da então Diretora de Recursos Humanos da empresa. E continua ela: “O que fizemos foi aumentar o número de máquinas no parque industrial, para atender o número de funcionários em um mesmo horário. A medida acabou reduzindo a necessidade de pessoal, mas não deverá afetar o ritmo de produção”.

Historicamente, a expansão do exército industrial de reserva tem constituído um dos fatores a pressionar o salário dos trabalhadores para baixo ou para o seu congelamento.Assim, estes sujeitos precisam buscar estratégias para complementar seus rendimentos e, dessa forma, sanar suas necessidades. Particularmente, em se tratando da Casa de Costura, nossas incursões em campo mostraram que tais estratégias ganham vida, por exemplo, através da realização de outras atividades que permitem à empresa obter adicionais financeiros, a exemplo da venda de produtos no interior da própria indústria, como balas, café e bolos ou, ainda, fazendo consultoria para outras empresas, como Natura e Avon.Vejamos:

“[...] na época que eu estava, sabe, vendia de tudo! De tudo, assim... o povo leva de tudo... é uma forma também de aumentar sua renda... era bala, era... tudo! Tudo! Tudo que você imaginar...” (Annie Rosen).

Na tese defendida por Abílio (2014), essa forma de inserção no mundo do trabalho representa, verdadeiramente, uma das faces contemporâneas da exploração do trabalho. Em seu texto, a autora identifica que a atividade de venda dos produtos da Natura é realizada por sujeitos com diferentes posições socioeconômicas, inseridos em espaços sociolaborais diversificados. Em outras palavras: “vender Natura pode ser um dos ‘bicos’ que compõem a renda de trabalhadores qualificados e não tão qualificados” (ABÍLIO, 2014, p. 14).

Ademais, no contexto da reestruturação produtiva, as mulheres4 têm conseguido ultrapassar o espaço privado do lar e atingir o mundo do trabalho

– ainda que isso se faça, de um lado, sem se desvincularem das atividades domésticas e, de outro, com a ocupação de cargos e atividades nas quais podem ser mais exploradas e, contraditoriamente, menos remuneradas. Na verdade, as trabalhadoras da Casa de Costura acabam cumprindo, de maneira combinada, triplas jornadas de trabalho: no âmbito do próprio lar, com a realização de atividades domésticas indispensáveis para a sobrevivência da família; na inserção do mercado informal, com a revenda de produtos, especialmente quitutes e cosméticos, via consultoria, que não anule ou impeça a realização da função acima indicada; e, por fim, no próprio chão de fábrica.

Ressalta-se que, além de ser uma forma de aumentar a renda, a venda dos produtos (no caso específico dos quitutes) expressa uma demanda do cotidiano desses sujeitos, posto que, para que consigam chegar no horário certo a empresa, os trabalhadores necessitam acordar bastante cedo, vendo-se muitas vezes impossibilitados de realizar

a primeira alimentação diária no espaço do lar.Tal situação se agrava se levarmos em consideração que, também, compõem o contingente de operários da indústria Casa de Costura sujeitos advindos de cidades mais afastadas da fábrica.

O modo de produção capitalista só consegue manter-se gerando uma quantidade de homens e mulheres que, a despeito de suas qualidades e habilidades, não conseguem adentrar o espaço do trabalho ou, ainda, são dele afastados sob as mais diversas justificativas. De um modo ou de outro, é notável o aumento substancial do desemprego como um fenômeno próprio dessa sociabilidade. Ademais, ao passo em que se elevam os índices de desempregados, avança uma brutal exploração dos trabalhadores que conseguem manter-se inseridos no âmbito da produção, o que corre, fundamentalmente, a partir de uma conjugação de formas de extração de mais-valia absoluta e relativa.

Como elucidou Marx (1989), o capital não tem nenhuma consideração com a vida e com a saúde do trabalhador. Esses sujeitos são explorados cotidianamente, de maneira intensa e despudorada.A velocidade da produção, na Casa de Costura, só é rompida por um dos tantos desmaios que lá acontecem, vitimando homens e mulheres já esgotados física e psicologicamente. A velocidade da produção, naquela fábrica, só é rompida para uma pausa de cinco minutos, nem mais, nem menos! A velocidade da produção não pode parar, ainda que custe a vida de seus milhares de trabalhadores.

Num trecho dessa entrevista, uma das operárias nos informa que, tendo como motivação a ausência de um produto:

“Uma roupa preta que tinha lá, que por certo o povo queria, né? Ou era as lojas [...] que num tinha, [...] [um dos donos grita]: manda essas rapariga trabalhar!” (Rosey Sorkin).

Esse era o tratamento conferido a Rosey Sorkin, no início da década de 2000, quando ela esteve trabalhando na indústria. Trata-se de uma forma de violência explícita. Outros entrevistados também nos relatam que, já nos marcos dos anos 2008/2009, nesse período histórico, evidenciava-se mais facilmente esse trato entre os supervisores/donos e os trabalhadores. Nesse modelo, tudo se resolvia “na base do grito”.Vejamos o que nos diz Sam Lehrer:

“[...] aconteceu bastante isso em termo de assédio moral lá, aí houve um bocado de campanha lá dentro da fábrica, a gente teve palestra, essas coisa” (Sam Lehrer).

As falas supracitadas demonstram que vêm perdurando, no âmbito da indústria têxtil estudada e por um considerável lapso temporal, formas despóticas no trato com os trabalhadores. Tais formas garantem espaço na Casa de Costura num tempo histórico em que, de modo geral, o toyotismo avança com a predominância de seu caráter manipulatório. Assim, os gritos, imposições e açoites convivem com a captura ideológica, com a criação de estratégias diversas para que os trabalhadores “vistam a camisa da empresa”, dentre outras questões. Destarte, defrontamo-nos com uma peculiaridade do “toyotismo à brasileira”, uma forma específica que o sistema de gestão adquiriu no Brasil, especialmente no Rio Grande do Norte.

A pressão por produtividade reflete o desejo do capitalista em alcançar maiores cifras de lucro através da exploração dos trabalhadores. Nesse sentido, essa pressão faz parte do cotidiano dos trabalhadores em todos os setores da indústria; para alcançá-la, métodos de todos os tipos são mobilizados.

Dando consecução às nossas análises, é interessante notar, no que tange especificamente ao cumprimento dos números estipulados, que essas metas sempre são acompanhadas de uma tendência ao aumento do nível de produtividade, como elucidam as seguintes falas:

“Gente, quanto mais você aumentar [a produção], mais sua meta vai aumentar.Você num vai parar de trabalhar nunca! Não vai baixar essa meta nunca! [...] Essa meta não para de subir. É como se fosse... gente, não tem fim! Sabe como é um fio que não acaba nunca?” (Annie Rosen).

O fio que não acaba nunca é o mesmo que acorrenta os trabalhadores a um ritmo de produção frenético, pautado na exaustão física e psicológica dos operários que precisam atingir as metas como forma de saciar a fome desesperada que o capitalista tem por mais-valia. Na mesma direção, segue a fala de outra operária:

“[...] porque quanto mais você faz, [mais eles querem]. A meta é tanto, mas se a gente der aquela meta no outro dia já e mais, né?” (Ida Jacobowski).

Podemos depreender das falas acima transcritas que, as metas são estipuladas de acordo com o máximo que a capacidade física humana é capaz de suportar. A tendência ao aumento significa a exponenciação do trabalho e do esforço que as trabalhadoras precisam operar. Estas pessoas estão encurraladas numa espécie

de beco sem saída, pois, de um lado, se não atingem o nível de produtividade esperado, sofrem diversos tipos de repressão e, de outro, se os alcançam, sabem que precisarão trabalhar ainda mais. As duas “opções” são igualmente terríveis.

A pressão por produtividade acarreta, assim, uma série de rebatimentos para os trabalhadores. Abdicar do tempo de almoço, reduzir ao máximo as saídas para o banheiro, não observar o tempo (que é um direito) para pausas, necessário para evitar adoecimentos, e pressionar os colegas, são exemplos emblemáticos do que ocorre, rotineiramente, na indústria têxtil estudada. Faz-se mister ressaltar que, além das cobranças para atingir as metas, existe também uma exigência para a manutenção de um padrão de qualidade nas peças fabricadas.

De tempos em tempos, os supervisores da indústria passam por entre as Pequenas Unidades de Produção (PUP) e selecionam, aleatoriamente, peças para serem avaliadas em relação à qualidade apresentada pelo produto. Caso a peça testada não esteja no nível ou padrão desejado, o trabalhador que a produziu é chamado para reparar a mercadoria. Isso, por conseguinte, contribui para atrasar e/ou dificultar o ritmo de produção.A contradição é gritante: produzir o máximo de produtos, no menor tempo possível, com alta qualidade.

Ao relatar estas exigências, a fala de uma operária nos chamou atenção.Vejamos:

“eu não conseguia dar a produção de jeito nenhum, nunca consegui dar a produção... porque tinha que dar a produção com qualidade, tinha que sair tudo perfeita” (Rosey Safran).

Rosey apresentava uma dupla dificuldade: alcançar as metas estipuladas e imprimir, no produto, a qualidade necessária/requisitada. Nesse caso, assim como, certamente, em muitos outros, uma insuficiência decorria da outra. O tempo que ela necessitava para fabricar determinada peça de roupa era superior ao cálculo estabelecido na produção diária. Rosey precisava matar dois leões (tempo e qualidade) por hora para sobreviver na selva capitalista da indústria têxtil.

No que tange a esta contradição, é importante destacar suas consequências para a saúde e qualidade de vida dos trabalhadores, dado que, por vezes, os mesmos abdicam das medidas de segurança propostas pela empresa em razão de elas se apresentarem, em algumas situações, como empecilhos para o cumprimento da produtividade requerida. Como exemplo concreto, poderíamos citar a soltura da corrente que fixa a tesoura na mesa de costura. Isto acontece porque, ao prender a tesoura à mesa, o trabalhador tem sua

mobilidade, de certo modo, reduzida, tornando mais difícil a atividade de corte e aumentando, por conseguinte, o tempo de produção.

Nesse sentido, não raras vezes, a pressa e a tensão para alcançar a meta fazem com que a tesoura caia e atinja o operário, causando ferimentos os mais diversos. A esse respeito, Ida nos relata um caso recente, afirmando que:

“[...] um dia antes [da entrevista] a menina tava trabalhando e a tesoura caiu no pé dela. Aquela tesoura grande, né? Que refila, que até a menina tava refilando e... e a tesoura não tava, por que eles já fica engalhada numa corrente, então a menina tava trabalhando com a tesoura fora da corrente e solta, então a tesoura caiu no pé dela...” (Ida Jacobowski).

Nos anos 2000, quando Rosey Sorkin trabalhava na empresa, ela tinha acesso apenas ao protetor de ouvido. De acordo com seu depoimento, em sua máquina não havia mecanismos para evitar acidentes de trabalho, de modo que ela nos conta o seguinte:

“Eu costurei o dedo, dum cochilo que eu dei. [...] Cochilei na máquina com a mão debaixo, com a roupa debaixo da agulha... quando eu cochilei, a agulha bateu e eu danei o grito” (Rosey Sorkin).

No caso de Rosey Sorkin, notamos que ela não possuía os equipamentos de segurança adequados para a função. Já no que se refere à situação das trabalhadoras que possuem esses equipamentos, ponderamos que, mesmo tendo consciência dos riscos em abdicar deles, elas, por vezes, o fazem, já que precisam criar estratégias que permitam atingir ou mesmo se aproximar das metas. Eis a inclinação para uma das terríveis “opções” aludidas anteriormente: tentar atingir as metas para manter-se no emprego e conseguir sobreviver, ainda que, aos poucos, essas trabalhadoras se deteriorem física e psicologicamente na empresa.

Associada a esta situação, outra contradição é explícita: trata-se da responsabilização do operário pelos acidentes desse tipo. Desconsideram-se a pressão e o estresse constantes a que esses trabalhadores são submetidos e quaisquer outras determinações que os conduzam a não utilização dos equipamentos de segurança. Essa “desresponsabilização” da empresa se mostra, por exemplo, nos termos e advertências que chegam aos trabalhadores quando estes tipos de acidente ocorrem.

Continuando sua fala, Ida Jacobowski lembra-nos que, certa vez, precisou ocupar outra máquina de costura e se esqueceu de observar as normas de segurança. Então:

“[...] tem casos que leva você até a uma advertência, eu fui uma que já aconteceu comigo, que já levei uma advertência, mas não por minha culpa, porque... eu tava... saí da minha máquina e fui pra outra máquina, então eu não observei na máquina que a máquina ela tava sem a proteção... sem a proteção de dedo; [...] então aí a menina da CIPA passou, aí disse: o que é que tá faltando na sua máquina? Aí eu disse: não, essa máquina num é minha não, tô... só sentei agora há pouco tempo. Aí ela disse: não, mas o que é que tá faltando na sua máquina? Aí eu olhei, olhei... aí eu disse: ah! é a proteção [...]” (Ida Jacobowski).

Que contraditório: a proteção do equipamento, que deveria garantir a proteção de Ida, do ponto de vista da saúde e da qualidade de vida, também dificulta a realização do trabalho nos parâmetros requeridos pela empresa, podendo deixá- la numa situação de vulnerabilidade; posto que, em casos extremos, o não atendimento das metas pode levar à demissão.

Para camuflar essas contradições, a empresa oferece bonificações em dinheiro, na forma de acréscimo ao salário, que faz parte do processo de captura da subjetividade dos sujeitos, influenciando-os direta e indiretamente a concentrarem todos os seus esforços para obter êxito nas demandas que lhes são atribuídas e alcançar metas cada vez mais elevadas.

Como evidenciamos, a lógica em que se assenta esta nova configuração repousa sobre a necessidade do atendimento de metas estabelecidas. Nesse sentido, todos os operários precisam estar preparados para substituir ou cobrir a atividade de algum colega quando necessário, sob o risco de sofrerem as consequências que o não cumprimento das exigências/metas pode acarretar.As reprimendas vão desde pressões psicológicas até mesmo à demissão. Em síntese: “cria-se um ambiente de desafio contínuo, em que o capital não dispensa, como fez no fordismo, o ‘espírito’ operário” (ALVES, 2005, p. 55).

Recorramos, mais uma vez, à fala de Ida. Mesmo já havendo exposto todas as dificuldades anteriores, ela aponta-nos a importância de atingir as metas para ampliar o salário, ao passo em que demonstra como o grupo, o trabalho em equipe, é importante para isto. Senão, vejamos:

“Mas, assim, depende do grupo, se o grupo quiser ele vai pra frente, mas se depender de uma pessoa que não quiser, meu filho, ele cai...” (Ida Jacobowski).

O que Ida quer nos transmitir com esta fala? Todos devem se empenhar para que o grupo progrida, o que significa, antes de tudo, atingir as metas. É apenas quando isso acontece que eles poderão ser “recompensados” pelo bom trabalho executado. Mas, se alguém falha e o grupo “cai”, vem por terra o tão vislumbrado aumento no salário.

Ao questionarmos Dora, uma experiente operária do ramo, sobre os fatores que dificultavam o trabalho na PUP, no que tange ao acompanhamento da taxa de produtividade esperada, ela não demora a responder:

“Ah, meu filho, pessoas preguiçosas que espera uns pelos outros... Vixe Maria! É isso! É a pior coisa que tem! É quando nós pega gente que num quer fazer nada!” (Dora).

Em sua fala, Dora mostra-se irredutível. Ela aparenta ter muita convicção de que o problema está na vontade do indivíduo e, com isso, as condições objetivas e subjetivas de cada um tornam-se invisibilizadas.

Desse modo, ninguém precisa indicar o que necessita ser feito, pois cada trabalhador já deve ter consciência de como agir, na sua PUP, de acordo com as requisições (im)postas. Nesse sentido, os trabalhadores são duplamente inspecionados: de um lado, pelo que Giovanni Alves (2014b) denomina de “inspetor interno”, aquele que brota do interior do operário e que está integrado em si; de outro lado, há também um inspetor externo, aquele cuja função consiste, legalmente, em averiguar o desenvolvimento dos grupos de trabalho que estão sob sua tutela. Como elucida Danièle Linhart, “[...] a gestão moderna impõe que todos os assalariados administrem, em nome da autonomia e da responsabilização, as inúmeras disfunções de organização falha do trabalho [...]” (LINHART, 2014, p. 46).

Objetivamente, a nova gestão da força de trabalho prescinde da “captura” da subjetividade do trabalho vivo. Sem essa captura o operário não conseguiria se adequar e, mais que isso, tomar para si um modo específico de produzir mercadorias. Dessa forma, os trabalhadores precisam estar preparados para assumir as tarefas em momentos simples, como as idas ao banheiro, por exemplo, ou em

situações mais complicadas – faltas e afastamentos por atestado médico, realidade corriqueira neste universo. Se isto não acontece, ou seja, quando o trabalhador não consegue manter-se na unidade produtiva, nos moldes impostos pelo capital, resta-lhe mergulhar no universo da incerteza ou, quando não, engrossar as filas do mundo da informalidade numa vida extremamente precarizada.

Nesse momento, somos tomados pela entrevista de Maria Lavalle. Ela começou a exercer suas atividades na empresa como Auxiliar de Serviços Gerais (ASG) e, numa manobra muito difícil, conseguiu se inserir no espaço da confecção, como costureira. Contudo, algo inesperado a aguardava neste novo setor: junto com sua inserção naquele espaço, viria uma série de exigências difíceis de serem cumpridas; por sua vez, o não cumprimento poderia levá-la ao mundo pantanoso do desemprego. Seu receio era explícito. Relatando-nos um momento no qual houve diversas demissões na fábrica, ela relembra:

“Algumas menina que dava produção, que era melhor, eles começaram a botar pra confecção, começaram a passar pra confecção, algumas que não dava produção, que era fraca, assim como eu e outras, ele dava... pra rua! Eu fiquei com medo logo, que eu sabia que eu ia pra rua!” (Maria Lavalle).

No caso de Maria Lavalle, temos a situação de uma operária que se esforçou o quanto pôde, mas, apesar disso, não conseguiu se adequar à dinâmica requerida. Seu exemplo não é único. Da entrevista, restou ainda o lamento de Maria, por estar atualmente desempregada e distante de uma vontade que nutria. Vejamos:

“eu tinha a maior vontade de aprender, [...] meu sonho era aprender a costurar e costurar, e ir pra frente, continuar, ainda tá trabalhando lá, mas só que num deu certo” (Maria Lavalle).

Os sonhos de Maria Lavalle certamente, também, são os sonhos de outras tantas Marias, de outros tantos seres humanos que, na órbita do modo de produção capitalista, encontram-se limitados, reduzidos e acorrentados a uma vida sem sentido. Mas, para que esses sonhos verdadeiramente se realizem, é preciso que se encontrem forças para romper as barreiras da desumanidade que marcam o capitalismo. Só assim trabalhar será sinônimo de pleno desenvolvimento humano; só assim os trabalhadores serão verdadeiramente livres.

Considerações finais

A precarização do trabalho, em suas múltiplas dimensões, está presente na Casa de Costura. Os dados obtidos podem facilmente revelar essa assertiva. Por meio deles, observamos a elevação da intensidade da exploração do trabalho, que ocorre embalada por pressões de ordem objetiva e subjetiva, nos marcos do capitalismo manipulatório. Ademais, a forma de ser do trabalho, hoje, tem gerado repercussões diretas que se fazem sentir nas condições de vida e saúde da classe trabalhadora, cada dia mais agravada. Pontuamos, ainda, a precarização dos salários como um fator que conduz as trabalhadoras ao exercício de diversas atividades, em múltiplos espaços, contribuindo para nutrir uma vida sem sentido. Essas e outras questões apresentadas persistem, em diferentes formas e intensidades, ao longo das diversas fases de desenvolvimento do capitalismo. Na realidade hodierna, temos como forte característica a precarização estrutural do homem que trabalha: a flexibilização das condições e relações de trabalho, a captura da subjetividade do trabalhador e o avanço regressivo no âmbito das legislações sociais e trabalhistas, dentre tantos outros fatores que indicam os limites do trabalho sob a égide do modo de produção capitalista.

Contraditoriamente, este sistema de metabolismos não pode se livrar desses limites sem comprometer as bases que lhe dão sustentação.

Assim, enquanto o capitalismo perdurar serão mantidas todas as determinações negativas que infletem na classe trabalhadora. Isso aponta a necessidade histórica de destruir este sistema para construir um mundo novo, no qual o trabalho seja sinônimo de vida e realização humana, e não de angústias, privações e precarização.

Referências

ABÍLIO, L. C. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, 2014.

ALVES, G. O Novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2005.

. Crise estrutural do capital, maquinofatura e precarização do trabalho

. Trabalho e neodesenvolvimentismo: choque de capitalismo e nova degradação do trabalho no Brasil. Baurú: Canal 6, 2014a.

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