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Paradoxos da resolubilidade das denúncias de violência sexual na perspectiva dos conselheiros tutelares
Vicente de Paula Faleiros; Patrícia Jakeliny F. S. Moraes
Vicente de Paula Faleiros; Patrícia Jakeliny F. S. Moraes
Paradoxos da resolubilidade das denúncias de violência sexual na perspectiva dos conselheiros tutelares
O Social em Questão, vol. 19, núm. 35, pp. 17-40, 2016
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: Este artigo trata do processo de recepção, encaminhamento e acompanhamento das de- núncias de violência sexual contra crianças e adolescentes junto a 24 Conselhos Tutelares de 12 capitais, tendo em vista a resolubilidade das demandas na visão de conselheiros e de diários de campo das pesquisadoras. A coleta de dados foi feita no contexto de uma pes- quisa executada no Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes, apoiada pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos em 2013 e 2014. As entrevistas com conselheiros foram livres e interpretadas por temas, conforme análise temática de Bardin. Os resultados apontam para a necessidade de interação entre as políticas e as práticas, de condições adequadas nos conselhos, de formação dos conselheiros, de efetivi- dade das redes no território com monitoramento da informação e do acompanhamento.

Carátula del artículo

Paradoxos da resolubilidade das denúncias de violência sexual na perspectiva dos conselheiros tutelares

Vicente de Paula Faleiros
Universidade Católica de Brasília, Brasil
Patrícia Jakeliny F. S. Moraes
Universidade Católica de Brasília, Brasil
O Social em Questão, vol. 19, núm. 35, pp. 17-40, 2016
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Paradoxos da resolubilidade das denúncias de violência sexual na perspectiva dos conselheiros tutelares

Vicente de Paula Faleiros1 Patrícia Jakeliny F. S. Moraes2

Resumo

Este artigo trata do processo de recepção, encaminhamento e acompanhamento das de- núncias de violência sexual contra crianças e adolescentes junto a 24 Conselhos Tutelares de 12 capitais, tendo em vista a resolubilidade das demandas na visão de conselheiros e de diários de campo das pesquisadoras. A coleta de dados foi feita no contexto de uma pes- quisa executada no Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes, apoiada pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos em 2013 e 2014. As entrevistas com conselheiros foram livres e interpretadas por temas, conforme análise temática de Bardin. Os resultados apontam para a necessidade de interação entre as políticas e as práticas, de condições adequadas nos conselhos, de formação dos conselheiros, de efetivi- dade das redes no território com monitoramento da informação e do acompanhamento.

Palavras-chave

Violência sexual; Conselhos Tutelares; Resolubilidade das denúncias; Crianças e adolescentes.

Paradoxes for solving the complaints of sexual violence from the perspective of guardianship counselors

Abstract

This article deals with the process of reception, referral and follow-up of allegations of sexual violence against children and adolescents at 24 Guardianship Councils of 12 capital in Brazil. The analysis was based on interviews with counsellors and field diaries of the researchers. Data collection was done in the context of a research performed on the Re- ference Center, Studies and Actions on Children and Adolescents, supported by the Na- tional Secretariat of Human Rights between 2013 and 2014. Interviews with counsellors were free and interpreted by theme analysis according to Bardin.The results point to the need for interaction between policies and practices , adequate conditions on the boards, training of counsellors, effectiveness of networks in the territory, with monitoring infor- mation and follow-up.

Keywords

Sexual violence; Guardianship Councils; Solving process of reporting; Children and adolescents.

Introdução

Este texto faz parte de uma pesquisa mais ampla, qualiquantitativa, de situ- ações de violação de direitos de crianças e adolescentes, trazendo à discussão as dimensões salientadas nas entrevistas com conselheiros tutelares e anotações de diários de campo. Para a realização das entrevistas, foi seguido um protocolo éti- co, com termo de consentimento e sem identificação dos conselheiros entrevista- dos, dos conselhos e dos autores dos diários de campo. Participaram da pesquisa 12 estudantes residentes nas 12 capitais sedes da Copa Fifa, onde foram realizadas as entrevistas em 24 Conselhos Tutelares. A pesquisa foi feita no Centro de Re- ferência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria), apoiada pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos em 2013 e 2014.

Traz à análise a visão dos conselheiros tutelares coletadas por meio de entrevis- tas e a visão das pesquisadoras e pesquisadores de campo coletada por meio de ob- servações feitas nos diários de campo e nos formulários. Estas observações foram de fundamental importância para interpretar os dados encaminhados.As pesquisadoras e pesquisadores elaboraram um diário de campo durante o processo de coleta de dados, com argutas reflexões sobre o dia a dia dos Conselhos Tutelares.

A escolha do Conselho Tutelar como universo da pesquisa tem como funda- mento o fato de ser instância de ponta e, ao mesmo tempo, instância a que se atri- bui o zelo pelos direitos da criança e do adolescente e sua proteção, considerando a efetividade dessa ação estatuída na Lei 8.069/1990 - ECA.

O texto aborda a questão da resolubilidade de denúncias, as condições dos conselhos tutelares e os resultados das entrevistas e diários de campo, por temas emergentes dos mesmos.

Fundamentos

O conceito-chave para articular-se a resolubilidade de denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes é o de proteção integral. Esta implica a defesa de direitos do ponto de vista legal e a prática concreta para que esses direitos se tornem efetivos, no sentido de cuidar da criança e de promover o seu desenvolvi-

mento integral, para que todas as suas dimensões sejam asseguradas. É fundamen- tal que haja, na implementação do Sistema de Garantia de Direitos, uma articu- lação da atenção à criança, à família e ao adolescente com a rede de atendimento. A operacionalização do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) faz-se por dispositivos específicos, para que realmente o direito seja efetivado, tanto para reduzir riscos como para maior proteção e cuidado. Não há proteção sem

redução ou eliminação de riscos à violação de direitos.

Proteção pressupõe, por um lado, que não haja riscos, bem como exige a re- dução de danos, a descontinuidade da violação e o desenvolvimento de contextos protetivos. Como assinala Faleiros (2008), o enfrentamento do abuso sexual implica a garantia de inviolabilidade da integridade física e psíquica da criança, abrangendo a preservação da sua imagem, da identidade, da autonomia, de seus valores, ideias, crenças, espaços e objetos, bem como de sua palavra. A resolubilidade implica a in- tegralidade do atendimento à criança e ao adolescente num processo de empodera- mento e de inclusão na sociedade e na vida. O proteger, no seu processo e nos seus resultados, se desdobra na cessação da violência ou da violação, e ao mesmo tempo na dinamização das responsabilidades na prática do trabalho em rede.

É na rede de atenção que se efetiva a proteção com dispositivos de políticas públicas, da família e da sociedade. Nas situações de violação da liberdade e da integridade sexuais, as políticas públicas dispõem de alguns mecanismos de comunicação e de atenção. Dentre os primeiros está consolidado o DDN 100, desde 2003, que deve estar integrado à rede de proteção para ser efetivo, e também articulado às demandas dos jovens e das crianças vítimas de violência, tendo em vista que as relações de risco precisam ser enfrentadas, reduzidas e desfeitas nos vários níveis de organização.

A denúncia da violência sexual é difícil e complexa (FALEIROS; FALEI- ROS, 2001; FALEIROS, 2003a), pois envolve poder e segredo implicados nas relações autoritárias e machistas (FALEIROS, 2003b).

A passagem da ruptura do segredo dentro da família para uma denúncia pú- blica traz consequências nas relações dos sujeitos envolvidos e torna a violência uma questão pública, deixando de ser restrita ao âmbito privado e doméstico. Desta forma, passa a fazer parte de um circuito, ao mesmo tempo repressivo e protetivo, envolvendo um fluxo de atendimento, de defesa de direitos e de responsabilização, além da necessidade de prevenção, mobilização da sociedade e de protagonismo juvenil, como está expresso no Plano Nacional de Enfren- tamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (BRASIL, 2013).

O atendimento ou a atenção interfere nas dimensões relacionais entre vítima e abusador, mas principalmente na relação com a rede para a redução de danos, envolvendo os diferentes organismos do estado e os dispositivos existentes para fortalecer as relações da vítima com a sua inclusão social e superação dos traumas, devendo assegurar a sua integridade, o respeito e a dignidade. Não se trata de uma ação simples, pois implica uma diversidade de atores e uma multidimensio- nalidade a ser considerada, como o sofrimento da vítima, a estrutura da família, a relação com o abusador e a articulação da rede.

O Conselho Tutelar como uma instância de poder, é permeada por conflitos e por condições diversas de infraestrutura e de articulação. A estratégia de rede é uma construção dependente das relações de força e das condições objetivas exis- tentes nos Conselhos, envolvendo tanto a formação dos conselheiros como um mapeamento e a comunicação dos atores no território.

O objeto da pesquisa foi construído a partir da questão da violação de direitos e das reflexões sobre o Sistema de Garantia de Direitos, com o olhar da relação entre direitos e democracia participativa. Desta forma, compreende medidas de atendimento, de defesa de direitos e de responsabilização com seu acompanha- mento, no sentido de avaliar a efetividade do processo de proteção, uma vez re- cebida a denúncia na esfera pública.

A avaliação desta efetividade é um processo técnico e crítico, na perspectiva de questionamento da política existente, considerando o olhar dos protagonistas envolvidos, ou seja, os próprios conselheiros, e considerando o fluxo existente nos próprios conselhos a partir de prontuários onde exista atendimento.

Como assinala Perret (2014), a avaliação não é apenas o trabalho de espe- cialistas, mas envolve o entrecruzamento das visões de vários protagonistas. A questão da resolubilidade se torna dinâmica, um processo e não apenas como um resultado prefixado. Ao considerar a visão dos conselheiros tutelares, busca-se articulá-la com a reflexão dos pesquisadores. A perspectiva de análise torna-se processual, tendo como foco os direitos da criança e do adolescente. Esse foco se desdobra na efetividade dos dispositivos que são colocados em prática a partir da demanda da população diante da violação de direitos. O itinerário ou fluxo das ações a partir do recebimento da denúncia não é arbitrário, mas deve considerar o disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Na realidade, não cabe atribuir ao Conselho Tutelar toda a responsabilidade da pro- teção, mas olhá-la como um eixo dinâmico dos fluxos: o atendimento, a requisição, a de- fesa, a representação e a responsabilização, que estão configurados no Art. 136 do ECA.

Segundo o Cadastro Nacional dos Conselhos Tutelares (2013), foram iden- tificados no Brasil 5.906 Conselhos Tutelares estruturados, o que significa uma proporção de 7,9% a mais comparada com os 5.472 constatados em 2009 pelo IBGE. Segundo o Cadastro Nacional, ainda seriam necessários 632 conselhos para se assegurar a proporção de um conselho para cada 100.000 habitantes no município, conforme recomendado pela Resolução 139 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda. Verifica-se nesse estudo que apenas 277 municípios têm menos conselhos do que o recomendado. Os conselhos tutelares são instâncias capilares já enraizadas em todo o Brasil, mos- trando a implementação efetiva e consolidada.

O conceito de rede é fundamental para a proteção dos direitos da criança e do adolescente, principalmente no contexto político brasileiro marcado pela frag- mentação da ação das políticas públicas. Na realidade, existe uma cultura de frag- mentação e valorização de cada segmento da ação, ao invés da visão do todo. Na construção da rede há pesos diferentes para o exercício dos poderes de cada órgão. A construção da rede é um pacto de compromissos, não se reduzindo a contatos informais. Na construção da rede, é necessária a troca de informações com uma coordenação e um processo de comunicação eficaz. Nesse processo de construção da rede, é preciso definir o compartilhamento de recursos e de tarefas, de tal forma

que haja sincronia e sintonia para efetivação da sinergia (FALEIROS, 2010).

É importante que o Conselho Tutelar acompanhe as situações de violação da dignidade sexual de crianças e adolescentes, inclusive sobre sua resolubilidade nas políticas existentes, chamando a atenção do Conselho de Direitos sobre o andamento dos atendimentos, inclusive com um banco de dados atualizado. É preciso levar em conta que cada conselho vai depender das condições existentes. Em pesquisa no Distrito Federal, Malaquias (2013) constata a necessidade de espaços e móveis mais adequados. Verifica também que o Conselho Tutelar, para os próprios conselheiros, é uma instância em que agem com muito envolvimento nas situações, absorvidos pela demanda, pela urgência e “pelo jeito próprio de agir”. Existem estudos sobre atuações dos conselhos tutelares (SANTOS; SOU- ZA FILHO; DURIGUETTO, 2011; ANDRADE, 2000; ASSIS, 2009; FALEIROS, 2003a; FALEIROS E FALEIROS, 2001; MALAQUIAS, 2013; NAHRA; BRAGA-

GLIA, 2002), mostrando que a realidade dos conselhos é diversificada, contem- plando-se várias dimensões na análise dos mesmos.

Na prática os conselhos estão consolidados, mas se configuram numa encruzi- lhada de limitações e possibilidades, de exercício de poder e de recursos restritos

frente a grande quantidade de demandas, de exigências de atenção e de proteção à criança e aos adolescentes.

São muito diversificadas as demandas que chegam aos conselhos tutelares como: situação de rua, ausência de casa, problemas de comportamento em casa, gravidez na adolescência, ameaças de morte, abrigamento provisório, drogadi- ção, abuso ou suspeita de abuso sexual, exploração sexual, exploração do tra- balho infantil, negligência, abandono material ou afetivo, violência física, falta à escola ou aulas, furtos, contaminação por HIV, ausência de vagas nas escolas e creches, comportamento nas escolas e violência institucional, em especial nas instituições de ensino ou de saúde.

As demandas são vinculadas às violações de direitos. Além disso, chegam aos Conselhos os encaminhamentos do Disque Denúncia Nacional - Disque 100 Di- reitos Humanos, para que providências sejam tomadas. Trata-se de providências também diversificadas, sejam no sentido de interrupção da violência, de proteção das vítimas, de busca da sanção para os praticantes da violência e/ou de apoio para sua recuperação, bem como de apoio à família e de mudança das condições e relações familiares, ou de promoção de ações preventivas.

Metodologia

As observações e falas foram articuladas por temas, conforme a proposta de Bardin (2008) depois de uma leitura de todo o material. Os temas emer- giram da pré-análise dos textos e de observações, e foram sistematizados em temas aglutinadores ou zonas de convergência, sem com isso significar que tenha havido consenso. A interpretação ou hermenêutica dos segmentos de discurso e relatos de observações aqui realizada tem o objetivo de eviden- ciar o ponto de vista dos atores. Desta forma, consideram-se as expressões de caráter qualitativo, hoje dimensão metodológica valorizada nas pesquisas sociais (FLICK, 2009).

Como já foi salientado, a pesquisa foi realizada em 24 Conselhos Tutelares das dez Capitais sedes da Copa Fifa de Futebol no Brasil de 2014: Belo Hori- zonte, Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Cuiabá, Manaus, Natal, Porto Alegre, Salvador e Recife. O foco da resolubilidade não abrangeu a totalidade das ações dos conselhos, mas o processo, o resultado das providências e os dispositivos em relação à dinâmica e à estrutura de proteção da vítima de abuso sexual, na ga- rantia de direitos, defesa, responsabilização do agressor e prevenção, enquanto redução de riscos e construção de uma cultura de respeito aos direitos humanos.

A resolubilidade não é dada como um resultado final e apodítico, ou seja, como a solução definitiva do problema, mas como um processo de interrupção da violência e desenvolvimento da proteção da criança e do adolescente, numa trama de relações complexas, de um sistema de funções e de uma rede de inte- rações (FALEIROS, 2008).

As entrevistas com os conselheiros foram feitas com um roteiro sintético focado na resolubilidade, tendo em vista a pouca disponibilidade de tempo dos próprios conselheiros, assoberbados com as demandas cotidianas de violação de direitos.

A interrupção da violência

A temática da interrupção da violência emerge das entrevistas e regis- tros dos diários de campo, e se articula tanto à proteção da vítima como à coerção do abusador. Tanto a interrupção de uma violência como a proteção são funções dos Conselhos Tutelares encontradas na Lei 8069/90, em especial no art. 136, que trata das atribuições desses conselhos.

No entanto, observações de pesquisadoras sinalizam que existe também, de forma diversa conforme a realidade, pouca preocupação de conselheiros tutelares com o acompanhamento da situação depois do encaminhamento da denúncia e da medida de proteção, o que não pode ser generalizado.

Mesmo estando inserido na comunidade e ser um espaço de defesa de direi- tos, no imaginário social local a imagem do Conselho Tutelar para alguns está associada ao papel coercitivo (como a dos órgãos da segurança pública), o que provoca resistência das famílias em estabelecer contato (imaginam a perda da guarda dos filhos, por exemplo), sugerindo a necessidade de

o conselheiro estabelecer um diálogo mais próximo das vítimas de violência sexual, de modo a permitir um feedback profícuo e constante. Ou seja, atendi- mentos mais humanizados por parte de profissionais melhor capacitados (Pes- quisadora de Campo).

Os próprios conselheiros apontam que são muitos os “dificultadores” para o desenvolvimento de um bom trabalho, dentre eles foram citados: a grande de- manda e diversidade de situações recebidas; a falta de estrutura física e material nos conselhos, e a alta rotatividade dos profissionais; a falta de protocolo e sis- tematização dos dados e a falta de capacitação continuada sobre a competência e atribuições nas suas ações.

Falta de formação

Nesse sentido afirma uma pesquisadora de campo, falando de um dos conse- lhos, o que não é, per se, generalizável:

Há um quadro de defasagem preocupante no que concerne à capacitação perma- nente de conselheiros. Além de serem pouco instruídos para o trabalho presta- do (recebem um curso básico quando de sua eleição ao conselho), não contam com nenhum material documentado que possa conduzir os procedimentos, como exemplo um manual específico para o trabalho de conselheiros tutelares, adequa- do à realidade de cada território (Diário de Campo).

Ainda referindo-se à formação, evidencia-se outra afirmação de pesquisadora que assinala descomprometimento com a causa da defesa de direitos da criança e do adolescente:

Compreendendo o processo de formação dos conselhos, entendo a não obriga- toriedade de uma formação técnica para a ação, mas também observo que, infe- lizmente pelas relações de trabalho/empregabilidade, nem todos os profissionais que assumem este trabalho estão ou são envolvidos politicamente pela causa da infância e juventude. Percebi ainda, infelizmente, que estes profissionais não re- cebem formação ou propostas de discussões políticas sobre essa população que atendem. As conselheiras apresentaram na entrevista [a existência] de limitados espaços de formação e a dificuldade quanto à identificação das competências de um conselheiro, além da falta de conhecimento da legislação (Diário de Campo).

Falta de organização do Conselho, de apoio político e dificuldades de gestão

Outra pesquisadora assinalou que há dificuldades que provêm da própria orga- nização dos conselhos no seu cotidiano, faltando registros e prontuários bem feitos:

As análises dos circuitos das supostas denúncias de violência sexual foram dificul- tadas devido à má organização das informações contidas nas pastas das crianças e adolescentes, sem qualquer registro das intervenções com os usuários. As supostas denúncias somente eram possíveis de serem compreendidas quando se realizava a leitura dos ofícios expedidos à rede de proteção, ou então quando havia o relato verbal dos fatos e intervenções para requisição dos serviços aos órgãos da rede, pelo

conselheiro. Não havia registro formal. Observa-se que esta pasta/dossiê das crian- ças/adolescentes é um dos instrumentos de trabalho do conselheiro mais relevante. Nela se baseia para aplicação de outras medidas, requisitar serviços e encaminham estes sujeitos. Diante disto, constata-se a necessidade de que haja o relato descritivo das intervenções para compreensão da história destas crianças/adolescentes, não somente em casos de pesquisa, mas sim para o próximo conselheiro que dará conti- nuidade no acompanhamento da família (Diário de Campo).

Nas falas abaixo, expressam-se as falas dos próprios conselheiros que salien- tam a descontinuidade da gestão, o descaso, até mesmo a falta d’água, e principal- mente a falta de pessoal e de conselheiros:

(...) eu não posso falar muito sobre esse caso, pois é da gestão anterior e eu não sei o que aconteceu direito (CT- Sudeste).

Há em nosso Estado um desinteresse geral dos governos em fornecer apoio ao CT. As autoridades ficam satisfeitas por não ser cobrado a eles uma reestruturação dos conselhos. Aqui não vejo a tão falada prioridade à criança e ao adolescente. Só existe CT porque o ECA exige (CT – Nordeste).

O número de conselheiros é reduzido, os plantões noturnos prejudicam o trabalho diário do conselho, pois a cada plantão dado, o conselheiro tira dois dias de folga. Aqui não tem conselheiro pra trabalhar nem durante o dia, que dirá a noite. O con- selho tem problemas com o carro, pois atualmente estão apenas com o veículo re- cebido da SDH. A Kombi anteriormente usada pelo conselho passou duas semanas com o pneu furado. Quando consertou, ficou sem motorista. Por dia, há no mínimo 20 visitas para o conselheiro fazer, mas às vezes, dependendo da gravidade do caso, o conselheiro só consegue fazer uma e as visitas se acumulam. Algumas acabam nem sendo feitas. Não temos uma equipe multiprofissional no CT, nem estrutura de ma- terial de trabalho. O CT não tem acessibilidade, pois se localiza no primeiro andar e não tem rampas ou elevadores. O prédio é precário, quente, e não há um local apropriado para os usuários esperarem atendimento (CT- Nordeste).

Falta também o apoio da Prefeitura e do Governo do Estado. A rede está defasa- da e sobrecarregada. Tem dias que não há agua ou energia no CT, a internet na maioria dos dias não funciona. Muitas vezes o CT não tem como fazer nada sobre as denúncias, porque a rede não oferece suporte para atendimento. Disse que quando tem é muito lenta. Já fizemos três capacitações sobre o SIPIA, mas que até agora o sistema não foi efetivado no conselho (CT – Nordeste).

Esta fala se articula com a observação seguinte do diário de campo:

Cheguei na frente do conselho e vi uma faixa de tecido preta no portão de en- trada. A faixa simbolizava que o conselho estava de luto, devido à falta de estru- tura e porque depois de 23 anos de Estatuto, eles não tinham o que comemorar. Também tinha um aviso que dizia: “Comunicamos aos Sr. Usuários que a partir desta data, por falta de condições de trabalho, este Conselho Tutelar não estará atendendo a população, por tempo indeterminado (Diário de Campo).

Este conselheiro assinala o cansaço das famílias à espera de um resultado da denúncia feita, constatando o conselheiro que há demora grande entre a denúncia e a resposta, indicando que muitas vezes o agressor “não sai da casa da vítima”, apontando grave problema de resolubilidade:

Muitas famílias não retornam depois da primeira denúncia, não sei porquê (...) há uma grande demora entre o tempo da denúncia e a solução do problema (...) muitas vezes o agressor nem sai de casa. (...) (CT – Sudeste).

Em diário de campo, há relato da queixa de que denúncias que chegam do Disque 100 sejam incompletas por falta de endereço ou contato, mas a classifica- ção como “falsa” também pode refletir problemas internos do conselho, que não lhe dá a devida atenção:

Há tendência de conselheiros a perceberem a maioria das denúncias que chegam pelo Disque 100 como falsas. Alegam que não conseguem encontrar a família por erro de endereço/contato. No entanto, foi percebida a classificação de denúncia falsa sem fundamento crítico em situação de considerada “brigas por poder”, em que não se deu qualificada atenção à adolescente, mesmo com as constantes de- núncias (Disque 100 por 3 vezes e denúncias anônimas na escola e por telefone ao CT), envolvendo também outros irmãos (violência física e psicológica, trabalho infantil, abuso sexual) (Diário de Campo).

Em outra situação denunciada pela escola ao CT, houve total descaso com a situ- ação de adolescente tímida e depressiva que confidenciou à professora e orien- tadora que sofria abuso sexual há oito anos. Não houve qualquer contato com a escola, e a denúncia foi apenas encaminhada à DPCA (Diário de Campo).

A questão da resolubilidade implica considerar tanto as condições existentes, as políticas, a gestão, bem como a ação dos atores diretamente envolvidos. Mas existe uma representação da crença na “vontade do conselheiro”, de que podem melhorar a situação por sua interferência como responsáveis em solucionar pro- blemas trazidos pelas famílias. Por outro lado é comum, de seu senso comum, expressarem que a burocracia é o principal empecilho que dificulta a solução dos problemas. Estas representações contraditórias do trabalho mostram paradoxos da atuação dos conselheiros.

Esses achados sugerem que haja não apenas uma formação burocrática dos conselheiros, mas uma formação crítica sobre seu papel frente ao combate do abuso sexual contra crianças e adolescentes, e uma formação consistente na de- fesa dos direitos humanos, além de uma formação técnico-política para trabalhar em redes e gestão de dossiês.

A valorização da escuta da pessoa vitimizada

Os conselheiros, por sua vez, valorizam a escuta e a formação para dar uma atenção às demandas que lhes chegam.

O tema da escuta das queixas e demandas de violação de direitos e da vio- lência sexual contra crianças e adolescentes são enunciados nas falas dos conse- lheiros e nas observações de campo.

Segundo a percepção dos conselheiros, o primeiro acolhimento, tanto da criança como das famílias, no serviço deve valorizar uma escuta atenta que pos- sibilite um vínculo maior e uma credibilidade no trabalho que será desenvolvi- do. A demanda pode ser apresentada pela família e a elaboração de uma saída é complexa, implicando envolvimento da família e do serviço para assegurar a atenção e a proteção da vítima. Isso pode provocar uma grande mudança no âmbito familiar e social da criança.

Alguns conselheiros entrevistados nessa pesquisa apontaram a escuta cui- dadosa como sendo uma função importante do serviço, entretanto, quase sempre inviabilizada pela grande demanda, pela falta de registros das infor- mações, pela falta de comunicação de uma gestão para a outra, pela morosi- dade dos encaminhamentos e pela falta de capacitação sobre a temática nos conselhos; mas estão dispostos a conversar:

A população está mais propensa a realizar denúncia no CT do que a outros órgãos ou instituições. Essa tendência se deve ao fato de o CT estar na própria comuni-

dade, próximo das pessoas, inclusive para deslocamento. Mesmo que o CT esteja com muitas demandas, atendemos quem chegar aqui, mas nem sempre consegui- mos resolver o problema (CT – Nordeste).

Sobre esses casos de abuso contra criança e adolescente, eu não posso falar nada porque são da gestão anterior, mas os que eu atendo eu procuro conversar muito com a família (CT – Sudeste).

Muitas famílias não retornam ao Conselho Tutelar, eu acho que isso se deve à demo- ra em resolver os problemas, além disso, deveríamos ter mais capacitação, tem casos que são muito complexos e só encaminhar pra a rede de serviços não adianta, pre- cisamos muito mais do que capacitação, precisamos de criatividade (CT – Sudeste).

O paradoxo do empenho e da falta de recursos

Sobre a questão da queixa, ressalta a observação de campo de que o con- selheiro não dispõe de meios para agir e a rede não retorna, configurando um paradoxo da ação:

Pude perceber o empenho do conselheiro tutelar na resolução dos impasses voltados às crianças e adolescentes que procuram pelo serviço, mas achei incipientes as medidas de proteção para os pais ou responsáveis, como os tratamentos psicológicos, toxicô- manos, etc., pois a família deve ser tratada em seu contexto geral, até mesmo para evi- tar reincidências... Em relação às medidas de responsabilização propostas nos instru- mentais, pude perceber que não existe uma interlocução entre a rede de atendimento, sendo que os conselheiros encaminham os casos, mas não recebem nenhum retorno sobre a investigação ou conclusão dos casos encaminhados (Diário de Campo).

No entanto, há uma possibilidade concreta em se responsabilizar as mães pela situação, conforme o diário de campo:

As medidas de proteção e acompanhamento das vítimas responsabilizaram majo- ritariamente as mães, que voltou por vezes a ser responsabilizada por negligência ou descumprimento, algumas mães alegaram ser “chefes” de família, necessitando do trabalho para o sustento dos filhos, ou mesmo não tendo o dinheiro para o transporte ao local de atendimento (Diário de Campo).

Destaca-se, no item seguinte, a temática emergente das “redes sociais” em vários segmentos de discurso.

As redes primárias e secundárias: seus fluxos e seus paradoxos

Sobre essa temática, ressalta-se essa observação do diário de campo, assinalan- do a falta de retorno da rede ao Conselho Tutelar:

Mesmo com as condições socioeconômicas desiguais, as situações de violência sexual contra crianças e adolescentes não deixaram de acontecer nos dois espaços pesquisados, e para mim pareceram ainda mais complexas na região de poder aquisitivo mais elevado. Em ambos os conselhos, em quase todos os casos não houve retorno de resultado de exame do IML, e em nenhum foi possível identifi- car o processo de responsabilização do abusador (Diário de Campo).

O fato dos ConselhosTutelares estarem próximos às redes primárias e secundárias das vítimas de violência sexual deveria facilitar os fluxos de atendimento e agilizar as requisições dos serviços solicitados, mas aciona-se mais a rede primária da família. A rede secundária de serviços não é suficiente para garantir a proteção à criança.

A articulação entre rede primária e rede secundária é um processo do qual o conselho não dá conta. É preciso que seja feito por profissionais do Centro Especializado de Assistência Social – CREAS ou de Centros de Atendimento. As relações abusadoras implicam tramas significativamente presentes em arranjos familiares autoritários que se revertem em dramas para as vítimas e com sofri- mento que pode se converter em trauma, como desorientação de si, exclusão de possibilidades, ou como raiva ou feridas psicossomáticas muito diversas de pessoa para pessoa (FALEIROS, 2003b). Não parece haver resolubilidade sem articu- lação entre rede primária e rede secundária, entre a família e o suporte da rede para a mudança, mas este suporte não tem a devida estrutura na realidade em que vivem essas crianças e suas famílias. Um diário de campo pontua:

Percebi também um fato que não é característico apenas deste serviço, mas de muitos outros de caráter público, a demanda elevada para uma estrutura profis- sional e estrutural limitada. O local além da densidade populacional, apresenta muitas outras demandas, a questão habitacional é visível... Na coleta dos dados percebe-se o afastamento dos serviços de atenção à criança e/ou adolescente ví- timas de violência sexual da região, muitos das situações estudadas indicam os locais de atendimento em outro distrito da cidade, além de atendimento espe- cializado às vítimas de violência sexual em Hospital que fica muito longe, assim como fica a Defensoria Pública do Estado (Diário de Campo).

Na seguinte observação de campo, mostra-se que a estratégia do conse- lheiro pode limitar-se a requisições, embora também se apresente a preocu- pação “salvadora”:

(...) o trabalho dos conselheiros restringe-se somente à requisição de serviço. A mobilização, articulação e o acompanhamento, enquanto órgão centralizador do SGD, não acontece ou é realizado por meio dos retornos dos ofícios e relató- rios circunstanciados da rede, as visitas de acompanhamento não são realizadas, devido a conflitos com outras instituições da rede (Diário de Campo).

Nas falas dos conselheiros há destaque também para suas limitações e as li- mitações da rede, conforme dois depoimentos abaixo, num dos quais uma ado- lescente atendida criou um vínculo de presença no próprio local do conselho:

Não posso falar sobre o caso, porque sei pouco dele, pois segue em segredo de jus- tiça e quando isso acontece a gente só sabe informação quando a família vem aqui nos dizer (...) esse outro caso foi passado para outro conselho devido à mudança da família, quando isso acontece a gente não tem mais informações (CT –Sul).

A adolescente atendida criou um vínculo com o Conselho. Ela passou a vir ao conselho mesmo quando não era convocada. Ela alcançou certa independência, internalizou algumas das regras que a escola, o conselho e a mãe propunham a ela, mas nós nos víamos limitados a isso (CT- Brasília, Centro –Oeste).

(...) quando acontece o abuso com uma adolescente ou criança muitas vezes é necessário a gente tirar eles de casa e levar pra uma instituição, porque na maioria dos casos o agressor continua na casa ou na própria comunidade e até resolver a questão leva tempo, é preciso paciência (CT – Sul).

Outro conselheiro faz sua autocrítica e a crítica das condições, ou seja, faz a interação entre a estratégia do conselheiro (vontade) e estrutura:

Temos que ter mais agilidade nos processos. A demora no atendimento altera os fatos e favorece ao abusador. Temos apenas um carro para fazer o atendimento. Muitas vezes recebemos denúncia e o carro está em atendimento a outro caso, en- tão temos que esperar. Estamos trabalhando capenga, as falhas nas redes também atrapalham na resolução dos casos, não adianta nada a agilidade aqui se chega lá na frente para tudo” (CT- Centro-Oeste).

A rede lida com questões de múltiplas violações e depende de comunica- ção, interação e de compromissos que exigem uma organização no território (FALEIROS, 1998).

Em relação a isso, a pesquisadora de campo pontua:

Há “buracos” nos fluxos de encaminhamentos da rede, exemplo do caso de ado- lescente com direitos duplamente violados, que sofreu trauma intenso de abuso sexual e ficou sem nenhum atendimento de proteção e cuidados com relação a esse trauma, devido à DPCA não encaminhar o caso ao CT (Diário de Campo).

Sem comunicação entre um serviço e outro, fica inviabilizado o andamento da resolubilidade da demanda que a família apresenta ao conselho. As famílias acre- ditam que ao fazerem a denúncia ao conselho, a violência vai cessar. No entanto, na maioria dos casos da pesquisa, os conselheiros se sentiram impossibilitados de darem continuidade ao acompanhamento das denúncias por dependerem de outras instâncias:

Nós não temos retorno dos exames de IML, quando procuramos a delegacia não temos nenhuma informação sobre o caso (...) algumas vezes temos infor- mações do CRAS e CREAS, mesmo assim é muito difícil o contato e os enca- minhamentos (CT – Nordeste).

Uma anotação do diário de campo aponta para a necessidade de formação conceitual:

Em conversa informal com os conselheiros para ver quem tinha casos de violência sexual, foi possível constatar que uma das conselheiras ficou confusa ao tentar de- finir abuso e violência sexual. Ela definiu a violência sexual como estupro e abuso como situação em que o ato sexual não foi consumado. Outro conselheiro definiu as atribuições do conselho como apenas requisitar e disse que em todos os casos eu encontraria as mesmas coisas, visto que os encaminhamentos eram os mesmo em todas as situações de violência sexual (Diário de Campo).

A seguinte fala trata do sofrimento do depoimento múltiplo por parte da víti- ma, da dificuldade de se cumprir a própria decisão da Justiça:

É um processo muito lento para se ver uma solução. Os adolescentes vitimizados se sentem muito constrangidos, por terem que relatar a mesma situação para vá- rias pessoas de distintos órgãos. Eu me sinto em uma situação de impotência, por não poder tomar uma atitude direta, desta forma tendo que aguardar a resolução de outras instâncias, como por exemplo, a judicial, pois só o juiz tem autono- mia para tomar determinadas resoluções, atitudes. Este caso, por exemplo, vem em andamento desde 2009, com o acompanhamento deste Conselho Tutelar, e até agora (2013), ainda não se cumpriu de fato o que foi determinado pelo juiz (prisão e afastamento do abusador em relação à vítima). O agressor só se afastou por um curto período, quando a polícia foi tentar prendê-lo, ele fugiu e logo em seguida voltou a residir na mesma casa da vítima (CT- Nordeste).

O seguinte fragmento de um diário de campo coloca a questão fundamental das políticas para a Infância, que implica a relação entre estrutura, política, estra- tégia e organização e redes:

No decorrer da pesquisa foi possível perceber que a falta de atuação dos Con- selhos Tutelares não é ocasionada apenas pela falta de conhecimento dos con- selheiros, como muito escutei falar antes de iniciar a pesquisa, embora seja relevante reconhecer que a postura e o compromisso dos conselheiros, também é um determinante para a atuação do conselho enquanto órgão de defesa de direitos das crianças e adolescentes (como observado anteriormente). Porém, também se faz necessário entender a dinâmica na qual os conselhos estão inse- ridos e o processo cotidiano que eles vivem que, muitas vezes, geram limites e não permitem o conselho cumprir, em algumas situações, com o seu papel. Acredito que o problema seja estrutural, uma vez que perpassa por todas as ins- tâncias e níveis de atuação. Fico me perguntando como é possível a efetivação do SGD, quando alguns órgãos competentes (por exemplo, gestão municipal, estadual e federal) não cumprem com suas responsabilidades e prejudicam os órgãos de execução? Enquanto a solução não aparece, como fica a situação de “nossas” crianças e adolescentes? (Diário de Campo).

É fundamental que existam planos e propostas de integração das políticas para a infância para que exista orçamento, apoio e credibilidade para a atuação dos Conselhos Tutelares por parte das autoridades gestoras das Políticas Públicas. Os depoimentos mostram que os conselheiros que trabalham com a articulação des-

sas Políticas Públicas se sentem incapazes de fazer algo em relação à fragmentação dos serviços. As seguintes observações de diário de campo e falas das entrevistas assinalam a falta de comunicação da rede e de apoio político:

A ausência de informações sobre o andamento das situações também merece des- taque, uma vez que, sobretudo quanto às medidas de responsabilização, ficou níti- do a falta de informações precisas sobre a resolução dos fatos/encaminhamentos/ solicitações e sobre a resolubilidade como um todo. Isso pode ser um indicativo da descontinuidade do acompanhamento tanto pelo CT como pelos demais órgãos. Observei também que existem muitas demandas para o CT (Diário de Campo).

O apoio político

Os conselheiros falam da falta de apoio político:

Precisamos de mais apoio das próprias autoridades do Estado, só que a gente não está tendo. Tudo que passa são propagandas enganosas, são mentiras, pra gente que trabalha na própria instituição sabe que a Rede é só uma ilusão, é tudo fachada, meio difícil acreditar que possa acontecer alguns desses fatos (melho- rias no trabalho do CT) com os casos que vem acontecendo aqui, a gente fica desanimada, mas tem que trabalhar desse jeito mesmo (CT – Centro-Oeste). Em muitos casos não podemos fazer nada (...). No caso da adolescente que foi abusada por um policial e engravidou, ela acabou retirando a denúncia por medo (CT - Norte).

Os conselheiros entrevistados afirmaram que suas ações em relação às crian- ças vítimas de abuso sexual têm encaminhamentos para atendimento psicológico, transferência de escola, retirada da criança e do adolescente da situação de risco com colocação em Instituição de Acolhimento Familiar ou em uma família ex- tensa. Nesses casos, o entendimento dos conselheiros sobre a resolubilidade se deteve muito mais na saída da criança do seu núcleo familiar do que em um tra- balho de prevenção e fortalecimento de vínculo da criança com seu responsável. Na observação da pesquisa de campo foi pontuado que:

Muitas vezes a proteção fica a desejar. No caso caracterizado pela Polícia Civil (BO) como abuso sexual, em que criança de 9 anos abusada sexualmente con- forme informação da mãe fez jogos sexuais com outra de 5 anos, não foi aberto

nenhum processo em nome da criança de 9 anos nem aplicada a essa nenhuma medida de proteção e nem encaminhamento de denúncia. A Conselheira respon- sável pelo caso não estava mais no conselho e a que a substituiu não localizou mais a família. Não houve entendimento de que criança não abusa sexualmente da outra e houve descaso com a situação da criança abusada considerada “abusadora” até pela polícia civil (Diário de Campo).

(Des)burocratização da máquina estatal

O tema da burocracia aparece tanto nos depoimentos dos conselheiros, como nos Diários de Campo. A (des)burocratização da máquina estatal apareceu como peça-chave para o desvelamento da resolubilidade da violência de abuso sexual contra crianças e adolescentes. A questão crucial é: se desburocratizada a Política de Atendimento nos casos de abuso contra crianças e adolescentes, o problema estaria, ao menos, processado sem dificuldades para a proteção da vítima e a responsabilização dos agressores? Um conselheiro argumentou que há “agilidades diferentes” ou diferenciadas, distinguindo a Polícia do Judiciário:

O fluxo de atendimento inicial, especificamente Polícia-IML-ONG funciona com agilidade, mas nós não temos acesso aos resultados dos exames, além disso, as medidas referentes à responsabilização são lentas e burocráticas, sem efetiva res- ponsabilização dos abusadores (CT- Nordeste).

Conforme o diário de campo em seguida citado, as ações dos conselheiros so- frem bloqueios de diversos tipos, o que é analisado por Faleiros e Faleiros (2001) como curtos-circuitos na dinâmica da atenção aos fenômenos de violência sexual. Assim consta de diário de campo.

Em casos de violência sexual, a atuação do CT é pontual e apenas imediata, não havendo um acompanhamento dos casos após o encaminhamento à delegacia. A maioria dos processos não possui informações sobre o desenrolar dos casos na fase das medidas de responsabilização. Em muitas situações o boletim de ocor- rência é feito, mas a oportunidade da prova do abuso sexual é perdida devido aos indícios estarem comprometidos pela denúncia tardia do fato (Diário de Campo).

O SIPIA (Sistema de Informação para a Infância e Adolescência) é uma forma de sistematização das atividades dos conselhos e de visibilidade das informações

sobre violência contra crianças e adolescentes. A sua operacionalização encontra bloqueios no que diz respeito à sua colocação em prática, conforme o registro abaixo, destacando-se a necessidade de formação para operá-lo:

O SIPIA (Sistema de Informação para a Infância e Adolescência) é o sistema disponibilizado para o uso dos conselhos, considerado não funcional e há pouca capacitação para o reconhecimento dos recursos do mesmo (Diário de Campo). Percebi uma fragilidade quanto ao registro e controle das denúncias rece- bidas. Há dificuldades de manuseio com o office do Windows para gerar e gerenciar informações. O SIPIA apresenta problemas em ambos conselhos pesquisados, e o instrumento que teria possibilidade de proporcionar infor- mações que pudessem embasar políticas públicas acaba por ficar em desuso. Este foi um dos motivos pelo qual tomei a iniciativa de criar uma planilha de fácil compreensão e preenchimento para possibilitar a elas uma maior per- cepção quanto à população atendida, sistematizar informações que possam apontar indicadores para uma maior intervenção governamental, viabilizan- do uma melhor atuação profissional, mas também a garantia dos direitos da criança e do adolescente (Diário de Campo).

O sistema SIPIA trava demais, quando a gente tem computador para usar ainda tentamos inserir informação, mas nem sempre isso acontece. Já tivemos a visita de vários técnicos para verificar o que acontece, mas ninguém soube dizer o que acontece com o sistema (...). A gente não tem retorno dos resul- tados dos exames do IML, quem traz informações são as famílias (CT- Sul).

É plausível, de acordo com a pesquisa, que uma articulação das políticas e a agilização no atendimento das demandas apresentadas aos conselhos faci- litaria o andamento da resolubilidade da situação, mas não o resolveria, pois a resolubilidade, como vimos, está além da burocracia dos serviços, passando pela questão estrutural e relacional que as famílias vivenciam no dia a dia em seus microssistemas.

Resolubilidade e Prevenção

Além das questões apresentadas acima, a pesquisa revelou também que não existe na agenda dos conselhos um trabalho preventivo com as famílias e suas crianças vítimas de violência sexual, inclusive de exploração sexual comercial, como se observa num diário de campo:

Nas pastas de denúncias do disque 100, foram verificadas várias denúncias iguais, de datas diferentes, que pontuavam supostos locais estratégicos para exploração sexual de crianças e adolescentes, porém constata-se que nada foi feito, não houve nenhuma ação de mobilização, articulação junto à Delegacia Especializada no sen- tido de prevenção por parte do CT. Os CTs deixam a desejar em relação às ações de prevenção, à mobilização e à articulação (Diário de Campo).

Um conselheiro assinalou também que precisam oferecer orientação para a adolescente que está em um abrigo e com a qual depois perdem o contato, pois as instituições não se colocam numa ação integrada:

Nós tiramos a adolescente do risco e colocamos em um abrigo, às vezes ele veio aqui no conselho a pedido da instituição para darmos uma orientação. De- pois que ela foi para a instituição não acompanhamos mais, não conversamos com a família” (CT – Nordeste).

Como assinala o depoimento abaixo, a atividade de prevenção se deve prin- cipalmente a palestras, considerando-se, inclusive, o que se assinalou quanto à grande demanda de situações que chegam: “No que diz respeito às atividades preventivas, digo que estamos fazendo palestras nas escolas, mas isso ainda é in- suficiente (CT –Nordeste)”.

Uma das pesquisadoras de campo diz que as ações dos conselheiros trariam muito mais resultados se os conselhos trabalhassem com a redução de danos a par- tir da prevenção, configurando-se outro paradoxo da ação dos conselhos, a urgên- cia do atendimento e a prevenção: “Não está sendo possível fazer nenhum trabalho preventivo. Há grande descontentamento dos conselheiros em relação às condi- ções de trabalho e reclamam sempre da situação precária (Diário de Campo)”.

Considerações finais

A partir dessa pesquisa, foi possível identificar o lugar privilegiado que os conselheiros ocupam na resolubilidade da questão da violência sexual contra crianças e adolescentes, embora sua atuação seja limitada ao atendimento de situ- ação por situação. No entanto, o assessoramento ao Poder Executivo, por parte dos Conselhos Tutelares, inclusive previsto no ECA, não tem acontecido.

Destaca-se que a presença do Conselho Tutelar na comunidade e a pertença dos conselheiros a essa mesma comunidade é fundamental para se implementar a

justiça de proximidade, sendo dimensões favoráveis à resolubilidade, como apon- tado pelos conselheiros. O fato de a comunidade reconhecer esse serviço como espaço de defesa de direitos da criança e do adolescente aproxima-os e possibilita uma abertura na denúncia.

Nos vinte e quatro conselhos pesquisados existem depoimentos sobre as limi- tações de sua ação e, ao mesmo tempo, sobre a vontade de mudar a situação, ou seja, um paradoxo entre o a condição estrutural e a vontade de fazer.

Na realidade, as ações dos conselheiros se resumiram à priorização da retirada da vítima do meio de violência, sem maior articulação com o fortalecimento dos vínculos familiares entre a criança e os outros responsáveis, o que poderia ser feito por meio dos CRAS e CREAS.

A orientação às famílias em muitos casos ajuda na interrupção do abuso ou pelo menos na construção de um olhar mais atento da família. Tal questão pode ser observada na fala de um dos conselheiros: “Depois que orientamos a família de que a adolescente não deveria ficar muitas horas na internet e orientamos o uso do celular, não tivemos mais queixas da família sobre o abuso (CT – Sudeste)”.

A pesquisa aponta para as limitações que cada conselho enfrenta no dia a dia. O abuso sexual contra crianças e adolescentes é uma violência que tem uma dimensão imediata, que é a agressão inserida em condições estruturais de desigualdade socioeconômica e cultural de machismo, adulcentrismo e de poder (FALEIROS, 2001).

Desta forma, a resolubilidade dessa questão é de tal forma complexa que se apoia tanto no nível da mudança das condições estruturais em que se en- contram as vítimas, como na mudança de percepção sobre essa problemática por parte da sociedade. Assim é inviável se pensar em resolubilidade apenas do ponto de vista da ação dos Conselhos Tutelares. Uma das observações do Diário de Campo assinala:

Foram as vítimas que terminaram sendo punidas de alguma forma, que tiveram de abrir mão do convívio das pessoas que já estavam acostumadas a conviver, como pai, tia, as colegas da creche para ir morar em outro município com a mãe. Há de- mora da justiça em tomar uma resolução. Percebi que este caso chegou ao mesmo momento por duas portas de entrada, pelo Disque 100 e o Ministério Público. Que os órgãos competentes possam repensar sobre a violência sexual cometida contra crianças e adolescentes, para que a resolução chegue com maior rapidez. Que haja uma integração maior entre as portas de entrada desses casos, os Conselhos Tute-

lares sejam urgentemente informatizados e a população seja atendida com maior presteza, pois presenciei mães com crianças ficarem por mais de três horas aguar- dando para atendimento. Que seja efetivada a Resolução 139/2011 do CONAN- DA, para que haja um atendimento eficaz para a população... (Diário de Campo).

Os resultados da pesquisa nos permitem pensar em um Conselho Tutelar ideal, que direcione suas ações não só para encaminhamentos, mas que trabalhe com a concepção de redução de danos a partir da ação integrada no território. A seguinte observação de um diário de campo, como palavra final, reforça esta reflexão:

A relação entre as medidas de proteção, atendimento e responsabilização são ten- sionadas por interesses diversos, atuações unilaterais de alguns órgãos, em que prevalece a atuação desarticulada, sem comunicação com as demais entidades/ organizações/ órgãos que formam a rede de proteção e o sistema de garantia de direitos. Os registros documentais indicam que os CTs têm acionado com maior facilidade os órgãos de atendimento; os discursos colhidos nas entrevistas também caminham nessa direção. Por outro lado, o acesso aos órgãos de responsabiliza- ção, embora realizados encaminhamentos na maioria das situações, não significa necessariamente a garantia de proteção e responsabilização dos/as abusadores/as ou exploradores/as e a consequente resolubilidade. O monitoramento realizado também pelo CT sinaliza não ser integral (Diário de Campo).

Material suplementar
Referências
ANDRADE, José Eduardo. Conselhos Tutelares – sem ou cem caminhos. São Paulo: Veras Editora, 2000.ASSIS, Simone Gonçalves de. et al (Orgs.). Teoria e prática dos conselhos tutelares e conselhos dos direitos da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2009.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2008.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal nº 8.069. Brasília: Con- gresso Nacional, 1990.
. Plano Nacional de Enfrentamento àViolência Sexual contra Crianças e Adoles- centes. Brasília: Presidência da República. Secretaria de Direitos Humanos, Secre- taria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), 2013.
. Presidência da República. Secretaria de Direitos Humanos (SDH). Ca- dastro Nacional dos Conselhos Tutelares: Histórico, Objetivos, Metodologia e Resul- tados. Andrei Suárez Dillon Soares (Org.) Brasília: Secretaria de Direitos Huma- nos da Presidência da República, 2013.
CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. Plano Nacional de enfrentamento a Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Brasília: Comitê Nacional de Enfren- tamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, 2013.
FALEIROS, Eva T. Silveira (Org.). Abuso sexual conta crianças e adolescentes: os des- caminhos da denúncia. Brasília: SDH, 2003a.
FALEIROS, V. P. A violência sexual contra crianças e adolescentes e a construção de indicadores: a crítica do poder, da desigualdade e do imaginário. In: Ser Social, nº 2, p.37-56. Brasília: Pós-graduação em Política Social, 1998. Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/184/2226. Acessado no mês de dezembro de 2015.
. Abuso sexual de crianças e adolescentes: trama, drama e trauma. Serviço social & saúde. Campinas, v. 2, n. 2, p. 65-82, 2003b.
SANTOS, Benedito Rodrigues dos; SOUZA FILHO, Rodrigo de; DURIGUET- TO, Maria Lúcia (Orgs.) Conselhos Tutelares: desafios teóricos e práticos da garantia de direitos da criança e do adolescente. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2011.
Notas
Notas
1 Assistente social, PhD em sociologia, professor emérito da UnB, docente na Universidade Católica de Brasília, autor. UCB. SGAN, Campus II, Sala A 213, CEP 70790-160. Email: vi- centefaleiros@terrra.com.br
2 Assistente social, mestra em Psicologia, doutoranda em Psicologia na Universidade Católica de Brasília. UCB. SGAN, Campus II, Sala A 213, CEP 70790-160.Email: jakeliny@hotmail.com Artigo recebido em dezembro de 2015 e aprovado para publicação em fevereiro de 2016.
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