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O uso de substâncias psicoativas por crianças e adolescentes: a experiência de um acolhimento institucional no município do Rio de Janeiro
O Social em Questão, vol. 19, núm. 35, pp. 171-192, 2016
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro



Resumo: Não é de hoje que o uso de drogas faz parte de nossa cultura. Tomando essa afirmativa como base, o presente artigo tem por objetivo dissertar sucintamente acerca das inicia- tivas voltadas ao uso de substâncias psicoativas no Brasil, perpassando, no atual contexto, pelas Políticas de Assistência Social e Saúde. Como forma de ilustração desta produção literária, tomaremos como referencial empírico uma análise da realidade de crianças e adolescentes usuárias de substâncias psicoativas, acolhidas em um espaço de abrigamento do município do Rio de Janeiro. Para tal, utilizaremos dados coletados em pesquisa quali-

-quantitava, no período de 2009/2010.

Palavras-chave: Políticas Públicas, Criança e Adolescente, Drogas.

Keywords: Public Policy, Children and Adolescents, Drug

O uso de substâncias psicoativas por parte de crianças e adolescentes

Considerando dados estatísticos recentes, os levantamentos epidemioló- gicos sobre o consumo de álcool e outras drogas entre os jovens no mundo e no Brasil, apresentados pelo CEBRID, mostram que é na passagem da infância para a adolescência que se iniciam as experimentações, sendo o álcool e o tabaco os mais usados.

No Brasil, o panorama mudou completamente nas últimas décadas. Levanta- mentos realizados a partir de 1987 pelo Centro Brasileiro de Informações sobre as Drogas Psicotrópicas da Universidade Federal de São Paulo (CEBRID) têm docu- mentado uma tendência ao crescimento do consumo. Esses levantamentos foram realizados entre estudantes do primeiro e segundo graus em dez capitais brasileiras e também em amostras de adolescentes internados e entre meninos de rua.

Em 1997, o CEBRID mostrou que existe uma tendência ao aumento do consu- mo dos inalantes, da maconha, da cocaína e de crack em determinadas capitais. No

entanto, o álcool e o tabaco continuam a ocupar de longe o primeiro lugar como as drogas mais utilizadas ao longo da vida e no momento atual (2010) com mais problemas associados, como por exemplo, os acidentes no trânsito e a violência.

Estudo realizado em 1997 pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro avaliou 3.139 estu- dantes da quinta série do primeiro grau à terceira série do segundo grau de es- colas públicas, possibilitando comparar as taxas de uso experimental ao longo da vida com as de uso habitual (últimos 30 dias). O estudo encontrou um consumo ao longo da vida, respectivamente, de 77,7% e 19,5% para álcool; 34,9%e 4,6% para tabaco; 9,2% e 2,8% para inalantes; 7,1% e 1,6% para tranquilizantes; 6,3% e 2,0% para maconha; e 1,9% e 0,6% para cocaína.

Entre os fatores que desencadeiam o uso de drogas pelos adolescentes, os mais importantes são as emoções e os sentimentos associados a intenso so- frimento psíquico, como depressão, culpa, ansiedade exagerada e baixa auto-

-estima. O conhecimento dessas especificidades é essencial para subsidiar as políticas públicas. No entanto, ainda é pouco conhecida a real dimensão do uso de drogas no Brasil, e em especial o consumo feito por adolescentes, bem como os problemas decorrentes desse uso, especialmente devido à carência de estudos nessa área, o que se acentua diante das dificuldades relacionadas à clandestinidade que envolve o uso de drogas ilícitas.

Ilustrando um pouco melhor as especificidades deste consumo em crianças e ado- lescentes, apontam-se alguns elementos do texto “Diretrizes para o manejo e enca- minhamento de adolescentes com problemas relacionados ao consumo de álcool e drogas”.O referido texto fora elaborado e dirigido por profissionais do Commitee- onSubstance Abuse por profissionais de pediatria, e constata que cinco são os estágios do consumo de drogas por adolescentes: potencial de abuso; experimentação; uso regular: a busca pela euforia; uso regular: a preocupação com a euforia; e fadiga.

O que podemos discutir neste ponto é: será que, quando o referido tema foi estudado, consideraram frente ao estudo o consumo de drogas como o crack? Pois o que nos parece, a partir da experiência nessa área de atuação, é que devido à grande capacidade de dependência e à baixa tolerância que a droga provoca, não seria possível um sujeito avançar pelos cinco estágios propostos no documento.

Porém, segundo o artigo, o adolescente em potencial de abuso não possui prejuízos acerca do controle dos impulsos. Possui apenas uma necessidade de gratificação imediata, bem como necessidade de aceitação por grupos de amigos. Nessa fase, o artigo aponta como melhor forma de intervenção a prevenção.

Já os adolescentes em fase de experimentação costumam consumir com amigos, geralmente em fins de semana ou festas e tal consumo não gera maio- res consequências; inclusive, se ocorrer mudanças no comportamento, são poucas. A indicação terapêutica apontada pelos autores é seguindo um viés educativo, sem confrontos ou ameaças, com grande investimento “para o aprimoramento da estrutura familiar e social do adolescente” (COMMITTEE ON SUBSTANCE ABUSE, 2003).

A diferença entre os adolescentes que estão em uso regular se dá pelo fato do grupo que “busca euforia” encontrar-se utilizando múltiplas drogas, com algumas mudanças no comportamento e poucas consequências (que já existem). Há um aumento global do consumo e o uso ocorre de forma solitária. Já aqueles que também se encontram em uso regular, mas em estágio de “preocupação com a euforia”, apresentam como características a perda do controle, comportamentos de risco, estranhamento dentro do ambiente familiar e círculos de amizade. Para o primeiro caso, os autores do texto indicam um tratamento ambulatorial inten- sivo. Para o segundo caso, há indicação de tratamento internado monitorado por médicos e conduzido por profissionais da saúde.

No caso apresentado como “fadiga”, o artigo aponta que o consumo de drogas ocorre para aliviar os sintomas de abstinência. Há ainda uso de múltiplas drogas, gerando sensações de “culpa, vergonha, remorso, depressão, deterioração física e mental, aumento dos comportamentos de risco, auto-destrutivos e suicidas”.

Não se pode esquecer que existe um vínculo entre a criança e o adolescente em situação de rua e o consumo de drogas. São esses sujeitos que encontram-se em risco social que ficam mais suscetíveis ao uso prejudicial de substâncias psicoa- tivas. Para apresentar elementos, utilizou-se dados produzidos pelo “Levantamen- to Nacional sobre o Uso de Drogas entre Crianças e Adolescentes em Situação de Rua nas 27 Capitais Brasileiras”3.

O abandono de crianças e adolescentes não é um fenômeno contemporâ- neo, contudo, há certo tempo, o consumo de substâncias psicoativas parece acompanhar esse cenário. Segundo as informações do estudo do CEBRID “além dos fatores individuais e familiares, o contexto social da rua tende a favorecer o consumo” (NOTO, 2003, p. 27).

O uso de psicotrópicos faz parte da ‘identidade’ de alguns grupos e, possivelmente, o desejo de se integrar aos mesmos seja um dos aspectos mais evidentes no exato momento da decisão. Mas isso não significa que seja o mais relevante, pois a decisão

de usar (ou não) emerge da interação de vários outros fatores complexos e menos perceptíveis, como a fragilidade da situação de rua, o vínculo familiar, os limites, os medos, as expectativas e o fascínio pelos desafios (NOTO, 2003, p. 32).

Cabe ressaltar que, ainda frente à visão da autora, existem outros fatores a se ponderar que respondem ao questionamento do “Por que não usar?”. Fatores como: interrupção do vínculo familiar, religião, preceitos morais, planejamen- to de vida, entre outros motivos. Portanto, através da experiência estudada, destaca-se que o investimento na família tem favorecido a interrupção do vín- culo entre a criança/adolescente e a situação de rua, uma vez que tal consumo ocorre associado à situação de rua.

Face ao exposto, torna-se relevante declarar que, independente do qua- dro (de consumo de drogas) que se apresente, a presença e a colaboração da família nas diferentes formas de abordagens, vinculadas ao trato do uso pre- judicial de drogas, é fundamental para o cuidado tanto da criança, quanto do adolescente, em situação de rua ou não.

A experiência do Acolhimento Institucional

A unidade de acolhimento trabalhada neste artigo, aqui chamada de unidade X, atuava na modalidade de Acolhimento Institucional4,”especializado” em atender crianças do sexo masculino, de 7 a 12 anos, usuários de substâncias psicoativas. Fora fundada em 2009, como projeto piloto no município do Rio de Janeiro e, ao longo destes anos, foi se “remodelando”5 a partir da necessidade do município, dos apontamentos no Ministério Público e da ONG à qual se vinculara, e de tempos em tempos conforme licitação pública. Localizava-se na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Surgiu a partir da necessidade de pensar em um espaço acolhedor para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade devido ao uso de drogas. Sua relevância foi embasada por dados estatísticos acerca dos atendimentos rea- lizadospela ONG, com o apoio daPromotoria de Justiça da Infância, Adolescên- cia e do Idoso da Capital. Com o projeto pronto, faltavam esforços do governo para efetivar uma prática dessa natureza, dada a complexidade do tema. Mas a dúvida que se gerou nos espaços, ao lançar a ideia da instituição foi: por que um

abrigo e não internação?

A resposta é simples. Não adianta investir em práticas de atenção diurna, quan- do ao retornar para seu espaço de convívio diário, seja a rua (o que é mais frequen- te até para os que possuem vínculo familiar, pois se apresentam com tais vínculos

muito fragilizados) ou a própria residência, o contexto social permanecerá o mes- mo, a droga continuará, os conflitos familiares também, entre outras situações.

Sendo assim, com o avançar da discussão acerca dos impactos gerados pelo uso de crack, a Prefeitura do Rio abriu um edital para licitação de instituições que apresentassem propostas para o enfrentamento do uso de drogas, mais es- pecificamente o crack. Em novembro de 2009, a Unidade de Acolhimento”X” foi inaugurada com o objetivo de acolher crianças usuárias de drogas. Apesar da institutição estar localizada na Zona Oeste, a maior demanda era de crian- ças retiradas, literalmente, do bairro de Manguinhos, conhecido como a maior “cracolândia” do Rio na ocasião.

No que diz respeito à saída dessas crianças de Manguinhos para posterior “encaminhamento” para a unidade de acolhimento, ocorria por meio das cha- madas “abordagens sociais”, que na verdade não passavam do que conhecemos hoje como “recolhimento compulsório”.

Já acolhidos, o trabalho inicial consistia na oferta de cuidados, de ordem física e material. Atendimentos, objetivando o conhecimento da história do sujeito e a produção de relatórios, só acontecia a partir do fortalecimento do vínculo, entre a criança e o profissional. Aqueles que já estavam na instituição, com a ajuda da equipe, recebiam os que chegavam, mas com alguns dias de “estadia”, toda aquela “euforia”, característica de quem chega, tinha de se esgotar, dada a “fissura” que a ausência da droga provocava, bem como o forte vínculo feito com a rua.

Como forma de enfrentar toda essa “efervescência”, eram ofertadas diversas atividades de atenção, previstas dentro de um cronograma diário. Dentre as mes- mas, as crianças participavam de oficinas terapêuticas três vezes na semana, sendo conduzidas de forma lúdica por uma psicóloga; atividades físicas e recreativas, direcionadas por um professor de educação física e instrutor de judô; aulas de capoeira; oficinas voltadas ao aprendizado inicial, uma vez que muitas das crianças que passaram pela instituição interromperam precocemente o vínculo escolar; oficinas lúdicas dinamizadas por uma socióloga; uma “brinquedoteca”, espaço para brincadeiras e jogos livres; a “hora da história”, sendo outra oficina, mas com intervenção de uma psicóloga; além de momentos de recreação, tanto na piscina da instituição, quanto na comunidade, dada a condição de lazer local ser área de praia (embora imprópria para o banho).

A instituição contava com uma equipe formada por profissionais de Educação Física, Psicologia, Serviço Social, Medicina (Psiquiatra), Enfermagem, Sociolo- gia, além de funcionários administrativos, educadores, cozinheiras e auxiliares

de serviços gerais. Atendendo à metodologia proposta no edital de licitação, a unidade mantinha um caráter temporário, sendo a previsão de “estadia” para cada criança um período de 45 dias a 3 meses. Os casos de maior complexidade podem permanecer no espaço institucional por até 6 meses.

A proposta do trabalho era favorecer a integração da criança com sua família nesse período, dada tal necessidade em virtude da fragilização do vínculo familiar. Após o recebimento da criança, era iniciado um trabalho de localização da família. Quando encontrada, essa família era convidada a visitar a criança semanalmente no primeiro mês e, a partir de 45 dias, a criança voltava a ter contato com o am- biente familiar, realizando visitas quinzenais à sua “residência”. O terceiro mês era considerado, na maioria dos casos, como o mês da reinserção familiar. Durante esse período, a criança passava a visitar a família em sua casa todos os finais de semana, até que fosse autorizado, pelo judiciário, o retorno da mesma ao lar. Após esse retorno, a criança deveria ser acompanhada por conselheiros do Conselho Tutelar da região de moradia da família, por assistentes sociais dos equipamentos de Assistência Social e pelos dispositivos de Saúde Mental, como o CAPSi.

Três eram os maiores obstáculos percebidos pela equipe quanto à reinserção familiar: o primeiro dizia respeito ao tempo que a criança deveria permanecer na instituição, que ora era entendido como aliado e ora dificultava o trabalho. Alia- do no sentido da tolerância dessas crianças ser muito curta. Percebia-se que os mesmos não conseguiam se manter “institucionalizados” por muito tempo, o que, em alguns casos, quando ultrapassado esse tempo, favorecia situações de evasão.

Outro fator dificultante referia-se também ao tempo, na medida que questionáva- mos esse período “pré-estabelecido”de três meses, pois, como estabelecer um período padrão, considerando a subjetividade dos sujeitos?Será que três meses é o tempo ne- cessário para a “recuperação” de uma criança que possui um histórico de uso de mais ou menos dois anos, e que se encontra distante dessa família por um período similar? O segundo obstáculo enfrentado era a “fragilidade” da rede de serviços, que embora tentasse se mostrar presente, não conseguia absorver toda sua demanda, não agindo, por vezes, em tempo hábil para aquela criança. Existiram casos em que não foi possível localizar, com o apoio da rede de serviços, a família de deter- minadas crianças, o que gerou um mal-estar muito grande por parte das mesmas, provocando evasões. Grande parte das famílias das crianças residiam em áreas consideradas de risco, o que dificultava a realização de visitas domiciliares por parte dos equipamentos locais. Haviam também casos de famílias que não perma- neciam na residência no período das visitas por parte dos referidos equipamentos.

O último entrave, se assim é possível dizer, tratava-se das famílias, que, em alguns casos, não reconheciam sua importância frente à atenção àquela criança, seja pelo fator cultural, seja pelas condições de vida. Evidenciavam-se famílias que indiretamente “recusavam” seus filhos. Era sabido que essas famílias tinham e têm suas dificuldades, que, de modo geral, estão imbricadas por questões de ordem socioeconômica, entre outras. Entretanto, tornava-se latente a necessida- de daquelas crianças em retornar ao lar, em sentir-se parte de algo, pois, a partir das vulnerabilidades do contexto em que eram inseridos, necessitam da atenção familiar para que os “laços afetivos” fossem reatados.

Percebíamos que, para o enfrentamento da dicotomia vulnerabilidade socioeco- nômica e cuidados a crianças em situação de rua/abandono, torna-se necessária a criação de algum tipo de mecanismo que traga também um suporte para que estas fa- mílias permaneçam com seus “filhos”. Isso vai muito além de benefícios assistenciais.

Deste modo, caracterizando o público atendido na unidade “X”,percebe-se que a maior parte das crianças atendidas, em um universo de 120 crianças, possuem faixa etária de 11 a 12 anos, uma realidade não totalmente revelada nas ruas de Manguinhos, a partir das visitas que eram realizadas à Embaixada da Liberdade6.

Frente à coleta de dados para a pesquisa, grande parte das crianças que já

foram atendidas pelo projeto no período de 2009/2010 faziam uso de múltiplas substâncias (no período em que estavam nas ruas), entre as mesmas, o crack. Fora as crianças que somente faziam uso da referida droga. O interessante é que nenhuma delas iniciou o consumo de drogas através do crack. Segundo o levanta- mento de dados, as crianças tendenciavam a iniciar o consumo de drogas precoce- mente por volta de 7 a 9 anos, tendo como opção de escolha a maconha, seguida do uso de solventes como tiner, cola e loló.

De acordo com a pesquisa realizada, notou-se que vários são os fatores que contribuem para o início do uso. Contudo, chamava a atenção o número de crian- ças que alegavam ter iniciado o consumo de drogas por incentivo de amigos. Fato este também observado pelo CEBRID, em 2003, no Levantamento Nacional so- bre Uso de Drogas entre Crianças e Adolescentes Usuários de Drogas.

Outro fato de destaque frente ao levantamento de dados da Unidade “X”foi o número de familiares dos infantes envolvidos também com uso de drogas, sendo a maioria irmãos, que, em dados momentos, compartilhavam o uso da droga. Genitores também estiveram presentes nesse quadro.

Fazendo uma avaliação acerca dos dados apresentados no período de vigência do projeto, conclui-se que, mesmo mediante da complexidade do tema, o núme-

ro de evasões fazia-se preocupante, uma vez que entre as vinte e três crianças que passaram pela instituição no período, três foram reinseridas à família, duas retor- naram ao lar por não pertencerem ao público-alvo do projeto, treze evadiram e cinco permaneceram acolhidas na instituição.

É de se pensar, como reinserir uma criança usuária de drogas ou não em um contexto familiar em que substâncias psicoativas estão presentes? Tal questiona- mento choca-se com a legislação em vigor, o ECA, ao afirmar que

Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência fa- miliar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. (BRASIL, Lei 8.069, 1990, p. 14).

Também registrou-se um grande histórico de situações que caracterizam violência doméstica (entendida como manifestações de violência física, psicológica, verbal e sexual) no âmbito familiar, na maior parte dos casos cometidas pela genitora.

Face ao público que se apresenta neste estudo, um dos objetivos da Unidade “X” era fornecer para crianças em situação de rua, em conflito com a família ou por ela abandonada, que apresentassem histórico de uso de álcool e/ou outras drogas, um “espaço casa”, onde pudessem, através de acompanhamento social, educativo e psicológico, iniciar uma nova fase de vida, onde nem a rua, tam- pouco a droga, estivessem presentes enquanto agentes prejudiciais. Contudo, um dos questionamentos que se apresentava era: após esse período, para onde retornariam essas crianças?

A intenção da pesquisa realizada foi de contribuir para um trabalho que favo- recesse seu retorno ao ambiente familiar, porém, verificava-se, em alguns casos, as dificuldades que permeavam a manutenção dos vínculos familiares.Desta for- ma, sob grande responsabilidade, a equipe técnica produzia pareceres à com- petência judiciária, indicando ou não o retorno ao lar, assim como sugerindo a reintegração junto à família extensa ou transferência para outra modalidade de acolhimento (família acolhedora), ou, quando esgotadas todas as possibilidades, era proposta a adoção tardia.

Algumas Considerações

É recente a concepção de crianças e adolescentes enquanto cidadãos de direitos no Brasil. Até que os mesmos fossem reconhecidos como sujeitos em condição de

desenvolvimento, a responsabilidade pelos cuidados da criança e do adolescente esteve sob “as mãos” de diferentes instâncias, como aponta Rizzini e Pilotti (2009):

Nas mãos dos jesuítas; nas mãos dos senhores; nas mãos das Câmaras Municipais e da Santa Casa de Misericórdia; nas mãos dos asilos; nas mãos dos higienistas e filantropos; nas mãos dos tribunais; nas mãos da polícia; nas mãos dos patrões; nas mãos dos tribunais; nas mãos da família; nas mãos do Estado; nas mãos das forças armadas; nas mãos dos Juízes de Menores; até que passaram para as mãos da sociedade civil (RIZZINI e PILOTTI, 2009, p. 17).

A partir das possibilidades de organização e participação popular na luta pela garantia de direitos, as crianças e adolescentes deixaram de ser alvo de coibições para ser alvo de políticas sociais específicas, a serem fiscalizadas pelos Conselhos de Direitos.

Os Conselhos Tutelares também assumiram como responsabilidade a fis- calização e a implementação do cumprimento dos direitos das crianças e ado- lescentes, em consonância com o ECA. Contudo, de que adianta um conselho para zelar pelo cumprimento de direitos, quando a violação dos mesmos pode começar no próprio lar, evidenciando o fenômeno da exclusão presente em meninos e meninas em situação de rua.

Durante o período de existência da unidade de acolhimento, não foi proposto por nenhum Conselho Tutelar qualquer tipo de método que realmente pudesse alcançar a dimensão da problemática no que tange a sua família. Percebeu-se que a solução dada se restringia somente ao acolhimento das crianças. As famílias, local para onde as mesmas, teoricamente, retornariam, passado o período do acolhimento (45 dias a 3 meses), não recebiam nenhum tipo de atenção especial. Nos casos de reinserção à família, mesmo face ao encaminhamento de relatórios expositivos sobre o caso, o Conselho Tutelar não realizava como frente de atuação nenhum tipo de visita domiciliar, para assegurar ou fiscalizar as condições de re- torno da criança ao lar. Assim, percebeu-se que, em dados momentos, iniciativas de acolhimento como essa apresentada evidenciavam-se somente através de seu caráter imediatista, como se fosse alternativa para “enxugar gelo”.

Contudo, não se pode deixar de considerar que o referido equipamento, me- diante a grande demanda de atendimento, não possui condições de promover trabalhos mais específicos, embora a criança ainda seja de sua responsabilidade, de modo a perceber a necessidade de algum outro tipo de intervenção.

Uma outra questão presente nesse debate é o consumo de drogas por parte das crianças que estão em situação de risco social, característica cada vez mais presente, de acordo com o CEBRID. Embora se constate, a partir das pesquisas realizadas, dados alarmantes acerca do uso de drogas por parte de crianças e adolescentes que estão em situação de rua, a investigação sobre o tema nos fez perceber que as crianças não buscam as ruas a partir de seu envolvimento com as drogas, mas as drogas surgem como consequências das vivências de rua, ou até mesmo como estratégias para essa sobrevivência e a fugade uma realidade “apa- rentemente” imutável para essas crianças.

Já em outra instância, e partindo do princípio da OMS, que define droga como qualquer substância que em contato com o organismo humano altera uma ou mais de suas funções, as formas como tais substâncias também aparecem no contexto de quem as usa pode influenciar na decisão de manter ou não o consu- mo, ou de que forma ele se coloca.

Logo, para aqueles que desejam algum tipo de intervenção frente ao uso pre- judicial de drogas, duas políticas, consideradas aqui distintas, norteiam diferentes práticas: a Política Nacional sobre Drogas (2005, sucessora da Política Nacional Antidrogas) e a Política para Atenção Integral ao Usuário de Álcool e ou outras Drogas (elaborada pelo Ministério da Saúde).

A Política Nacional sobre Drogas configura-se dentro de uma dimensão focada em práticas de redução da oferta e da demanda, adotando, para tais, perspectivas educativas voltadas para a abstinência total; enquanto a política do Ministério da Saúde reconhece as diferenças entre os tipos de usuários, bem como as formas de consumo associadas a variados tipos de drogas. A mesma proporciona um reconhecimento da autonomia do sujeito que opta em inter- romper ou diminuir a forma como a utilização de drogas ocorrerá. Enquanto perspectiva, adota-se a redução de danos.

O que é importante ressaltar é que nenhuma das políticas, em seu texto, levou em consideração o uso de substâncias psicoativas por parte de crianças e adolescentes. Entretanto, a partir da portaria que institui a Rede de Atenção Psi- cossocial, éque se tema ampliação das ofertas direcionadas para o público adulto e infanto-juvenil que faz uso de álcool, crack e outras drogas. A unidade de aco- lhimento prevista, enquanto acolhimento transitório para esse público, é funda- mental, não só para o cuidado especializado em saúde mental, mas também pos- sibilita um atendimento integral e protegido, saindo de um enfoque meramente assistencial,o que exige ações intersetoriais mais efetivas.

Na atual conjuntura do município do Rio de Janeiro, infelizmente, a Rede de Atenção Psicossocial ainda é insuficiente para a demanda existente. De acordo com Moutinho (2015, p. 90), a RAPS do município é composta por 5 consultórios na rua; 12 CAPS II; 8 CAPSi; 4 CAPS III; 5 CAPS ad; 5 emergências psiquiátricas; 2 unidades de acolhimento para adultos; 49 leitos em hospital geral; 61 residências terapêuticas; e 21 moradias assistidas.Todos esses serviços devem acolher um pou- co mais dos 6.453.682 habitantes (IBGE, 2015, apud Moutinho, 2015, p. 71). Tais dispositivos encontram-se sucateados devido aos impasses existentes, no que diz respeito à privatização da saúde com os convênios com as ONG´s e OS´s.

Nesse caminho, a construção de alternativas que promovam o cuidado inte- gral para crianças e adolescentes que fazem uso de álcool, crack e outras drogas vem sendo fundamental nesse momento em que a alternativa central é o combate de cunho repressivo e proibicionista.Vivencia-se no cotidiano o medo que advém desse modelo que só produz mortes e sofrimento. Portanto, as ações propostas pela Saúde Mental devem ser executadas e promovidas junto com a Assistência Social e demais políticas, já que estamos problematizando o uso dessas substân- cias por parte de um público que se encontra em vulnerabilidade social. Logo, a questão que está em debate não é meramente a droga ou suas inúmeras formas de consumo, e sim o contexto social que envolve todos esses sujeitos, a partir de suas peculiaridades e necessidades. Sigamos adiante com novas propostas e estratégias para pensar um cuidado integral e intersetorial a esse público!

Referências

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Notas

1 Assistente Social; Especialista em Formulação e Gestão de Políticas em Seguridade Social pela UFRJ; Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial com ênfase em Álcool e Outras Drogas pela Faculdade Governador Ozanam Coelho. E-mail: kvieira.seso@gmail.com.
2 Assistente Social; Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/FIO- CRUZ; Mestre em Política Social pela UFF; Doutoranda em Serviço Social pela PUC/SP. Professora Colaboradora da Especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial com ên- fase em Álcool e Outras Drogas da Faculdade Governador Ozaram Coelho. E-mail: rachel. gouveia@gmail.com.
3 Produzido em 2003 pelo CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotró- picas. Brasil, CEBRID, NOTO, 2003.
4 Termo que substitui a palavra abrigo, a partir da efetivação da Lei nº12.010, de agosto de 2009, conhecida como Nova Lei de Adoção.
5 Termo utilizado para pontuar os diferentes momentos da unidade, que até o presente, já foi gerenciada por uma ONG e duas OS (Organizações Sociais). Ressaltamos que a pesquisa ocorreu no período entre 2009 e 2010. No momento, a referida instituição permanece localizada na Zona Oeste do Rio de Janeiro, mas em novo endereço, que para preservar o sigilo da mesma, não será citado aqui.Também já não acolhe mais crianças, atendendo, neste momento, adolescentes.
6 Dispositivo da Assistência Social, inaugurado em dezembro de 2009, objetivando o atendi- mento psicossocial de crianças e adolescentes, de até 17 anos, com capacidade para acolher 25 crianças e adolescentes, trabalhando nos mesmos a perspectiva de redução de riscos sociais e danos à saúde. Artigo recebido em dezembro de 2015 e aprovado para publicação em fevereiro de 2016.


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