Resumo: Este texto objetiva apreender a história das correntes ambientais, vislumbrando cap- tar as convergências e divergências existentes entre elas, para compreender como se conformou o processo de exploração da natureza no capitalismo com impactos para a “questão social” e para o meio ambiente. Como metodologia, houve o em- prego da categoria de totalidade por meio da aplicação do método dialético ao es- tudo da vida social, buscando a historicidade no interior mesmo do objeto estudado. Conclui-se que atualmente os discursos da Responsabilidade Socioambiental e da Sustentabilidade vêm sendo utilizados como artifícios ideológicos de refuncionaliza- ção capitalista das bandeiras e discursos ambientais contestatórios, culminando no que denominamos de mercantilização da proteção ambiental.
Palavras-chave:Corrente ambientaisCorrente ambientais,Responsabilidade Social e AmbientalResponsabilidade Social e Ambiental,SustentabilidadeSustentabilidade,Serviço SocialServiço Social.
Artigos
A Mercantilização da Proteção Ambiental: a Responsabilidade Socioambiental e a Sustentabilidade em questão
A Mercantilização da Proteção Ambiental: a Responsabilidade Socioambiental e a Sustentabilidade em questão
Gisele Oliveira de Alcantara. Janete Luzia Leite.
Resumo
Este texto objetiva apreender a história das correntes ambientais, vislumbrando cap- tar as convergências e divergências existentes entre elas, para compreender como se conformou o processo de exploração da natureza no capitalismo com impactos para a “questão social” e para o meio ambiente. Como metodologia, houve o em- prego da categoria de totalidade por meio da aplicação do método dialético ao es- tudo da vida social, buscando a historicidade no interior mesmo do objeto estudado. Conclui-se que atualmente os discursos da Responsabilidade Socioambiental e da Sustentabilidade vêm sendo utilizados como artifícios ideológicos de refuncionaliza- ção capitalista das bandeiras e discursos ambientais contestatórios, culminando no que denominamos de mercantilização da proteção ambiental.
Palavras-chave
Corrente ambientais; Responsabilidade Social e Ambiental; Sustentabilidade; Serviço Social.
The Commodification of Environmental Protection: Evironmental responsibility et the question of sustainability
Abstract
This paper aims to understand the history of environmental currents, aiming to cap- ture the convergences and divergences between them, to understand how the pro- cess of exploration of nature in capitalism with impacts to the “social issue” and to the environment was conformed. As a methodology, there was the use of the cat- egory of totality through the application of the dialectical method to the study of social life, seeking the historicity on the inside of the object studied. It is concluded that currently the discourses of Socio-Environmental Responsibility and Sustainabil- ity have been used as ideological devices of capitalist refunctionalization of flags and discourses environmental contestatórios, culminating in what we call the mercan- tilization of the environment.
Keywords
Environmental Currents; Social and environmental responsibility; Sustainability; Social Work.
Artigo recebido: outubro de 2017 Artigo aprovado: dezembro de 2017
Introdução
O avanço do modo de produção capitalista e sua voracidade sobre a natureza foi acompanhado – pari passu – pela eclosão de uma plu- ralidade de pensamentos e organizações ambientalistas, com direções político-sociais diferenciadas sobre as formas de proteção ambiental. A compreensão da origem e da finalidade que estão implícitos nos discursos e nas práticas atuais dos ecologistas e da responsabilidade socioambiental requer o conhecimento da história e da configuração das diferenciadas correntes ambientais para captar as convergências e as divergências existentes entre elas, e tomar para a análise uma linha teórica que possibilite apreender como se conformou o processo de exploração da natureza no capitalismo com impactos para a “questão
social” e para o meio ambiente.
No contexto de crises cíclicas do capitalismo, a classe hegemô- nica vê-se instada a inserir seu projeto de reestruturação neoliberal com um mínimo de resistência possível, buscando legitimidades e aceitação social (MONTAÑO, 2014). Nessa direção, no interior do que foi denominado de crise ambiental, as estratégias capitalistas giram em torno da expansão de uma racionalidade desarticuladora e frag- mentadora da totalidade social a partir da imposição da ideologia da sustentabilidade socioambiental, apresentando-se como vontade popular de uma forma fetichizada e reificada de visão da realidade. Ao lado dessa estratégia ideológica, o capital vem convertendo os elementos de proteção ao meio ambiente em elementos de valori- zação do capital – a despoluição, a gestão de resíduos, a reciclagem e as ditas tecnologias limpas se metamorfoseiam em fonte de ob-
tenção de lucro. Assim, a produção destrutiva segue o seu rumo e expande-se, transformando tudo em mercadoria.
Este estudo objetiva analisar as diversas faces do pensamento am- bientalista, com a explanação sobre os movimentos socioambientais, desde seu surgimento – em nível internacional e no Brasil – e de seus diferentes discursos, bem como das manifestações do novo ecologis- mo que eclodiu nos anos 1960. A compreensão deste pensamento ser- ve como sustentação para o exame do discurso da Responsabilidade Social e Ambiental, pautadas no princípio da Sutentabilidade, utilizado como artifício ideológico de refuncionalização capitalista das bandei- ras e discursos ambientais contestatórios a sua forma de produção. Este processo culmina na mercantilização do meio ambiente, no qual as formas de preservação da natureza são introduzidas no circuito da valorização mercantil em favor do dito “capitalismo verde”, que enco- bre as lutas de classe e a continuidade do modo de produção que tem a natureza e o homem como objetos de dominação e exploração.
Foi realizado um estudo teórico-bibliográfico que adotou a cate- goria marxiana da totalidade como orientação, partindo do exame da história das correntes ambientais para captar seus sentidos e formas de continuidade e transformações na atualidade.
A discussão aqui apresentada se configura como temática de in- teresse para o Serviço Social, notadamente para permear a prática profissional dos assistentes sociais que, direta ou indiretamente, têm as expressões da questão social como objeto de intervenção mate- rializada em conflitos socioambientais e/ou respostas institucionais pautadas em projetos e programas voltados para a temática do meio ambiente e da Responsabilidade Social.
As faces do pensamento ambientalista
Com o avanço da industrialização e a aceleração da urbanização, a vida nas cidades, antes valorizada, passou a ser criticada pela po- luição do ar que o ambiente fabril provocava (DIEGUES, 1996). Esse
cenário impulsionou o aparecimento de correntes de proteção à na- tureza, da vida selvagem e dos animais, denominados de preserva- cionistas e conservacionistas.
As correntes preservacionistas surgiram na Europa, no século XIX (McCORMICK,1992), levando a Inglaterra a adotar uma política de pro- teção face a extinção de algumas espécies animais pela intensificação da indústria e da agricultura.
Os preservacionistas baseiam-se em uma visão biocêntrica, con- templativa e despolitizada, segundo a qual a natureza tem um valor intríseco, não devendo servir aos interesses exploratórios do homem. Para efetiva proteção do meio ambiente, segundo seus princípios, é necessário delimitar espaços em que seja vedada a exploração e uso de recursos naturais, impedindo os impactos causados pelas ações humanas na natureza.. Por isso, defendem que determinadas áreas devem ser protegidas de qualquer utilização que não seja recreativa ou educacional, tendo por objetivo a manutenção de uma natureza estética (DIEGUES, 1996; COMIN VARGAS, 1998).
Já os conservacionistas apregoam o uso racional dos recursos natu- rais, considerando que o ser humano é capaz de utilizar esses recursos de forma controlada, associando-se exploração econômica dos bens e serviços ambientais com a sua manutenção.
O movimento conservacionista teve no engenheiro florestal esta- dunidense Gifford Pinchot, um dos seus expoentes. Pinchot foi trei- nado na Alemanha, segundo uma lógica antropocêntrica, que incluía a apropriação privada e a transformação da natureza em mercadoria. Defende que a conservação deve se basear na prevenção de des- perdícios, se valendo da racionalidade e da melhor tecnologia dispo- nível. Sua atuação acabou inspirando a criação do Serviço Florestal Americano (DIEGUES, 2002).
Ao contrário das ideias de preservação das florestas, os conser- vacionistas detém a concepção da existência ilimitada dos recursos naturais e argumentam que o manejo destes pode acelerar o processo
natural de sua reprodução e torná-los mais eficientes. Baseia-se em uma visão antropocêntrica, segundo a qual o progresso significava o crescimento e a conquista da natureza (COMIN VARGAS, 1998). Assim, esta corrente busca a redução dos resíduos e a eficiência na explora- ção e consumo dos recursos naturais, visando assegurar a produção máxima (SOUZA, 2008), em uma proposta utilitarista. Seus três prin- cípios fundamentais balizaram as ideias do desenvolvimento susten- tável: “o uso dos recursos naturais pela geração presente; a preserva- ção do desperdício; e o uso dos recursos naturais para a maioria dos cidadãos” (DIEGUES, 1996, p. 29).
Do ponto de vista de um movimento mais mundial, em 1906 os preservacionistas europeus voltaram-se para a criação, em Paris, de um organismo internacional de proteção à natureza, com a aceitação e colaboração dos governos da Suíça, da Bélgica, da Grã-Bretanha, da Dinamarca, da Alemanha, da França, da Itália, da Hungria, de Por- tugal, da Noruega, da Rússia, da Espanha, da Suécia e dos Estados Unidos (McCORMICK, 1992).
Em 1913 foi instituída uma Comissão Consultiva para a Proteção Internacional da Natureza, assinada por 17 países europeus em Ber- ne (Suíça), com o objetivo de coletar, classificar e publicar informa- ções sobre a proteção internacional da natureza e fazer a divulgação e a defesa da causa. Todavia, a eclosão da 1ª Guerra Mundial impos- sibilitou a continuidade e o avanço de tais ações. E, mesmo no pós-
-guerra, a Comissão não teve avanço, provavelmente em decorrên- cia de o cenário geopolítico internacional ter sofrido consideráveis mudanças. (McCORMICK, 1992).
Além disso, é imprescindível considerar a ocorrência da Revolução Bolchevique de outubro de 1917, quando o comunismo soviético pro- clamou-se como sistema alternativo e superior ao capitalismo (HOBS- BAWM, 1995), alterando toda a dinâmica econômica no mundo. Com tantas transformações no cenário político e econômico mundial, o meio ambiente era a última coisa que chamaria a atenção das nações
envolvidas em tais conflitos, e muito menos dos demais países diante
do cenário de incerteza em relação às guerras.
A 2ª Guerra Mundial alterou radicalmente a agenda do ambientalis- mo., a partir da transformação de valores e atitudes em nível interna- cional. Tendo em vista a restauração econômica, política e social dos países e a tentativa de garantir o avanço do capitalismo frente à amea- ça do comunismo no auge da Guerra Fria, uma das principais priorida- des da Organização das Nações Unidas (ONU) era o fornecimento de alimentos e a eliminação da fome a partir dos planos de reconstrução civil e assistência. Os princípios conservacionistas tiveram influência sobre este processo, chamando atenção para a necessidade de me- lhor instrução para o manejo florestal e para o estudo sobre os solos tropicais e o abastecimento de madeira na Europa, na América Latina, na Ásia e no Pacífico (McCORMICK, 1992).
Em 1948, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ci- ência e a Cultura (UNESCO), fundada em 1946, foi escolhida para a realização de um congresso em Paris para a definição da melhor forma de uma organização internacional para a proteção da natureza. Re- presentantes de 18 governos, sete organizações internacionais e 107 organizações nacionais instituíram a União Internacional de Proteção da Natureza (IUPN), formada por órgãos governamentais e não-go- vernamentais e destinada a promover a preservação da vida selva- gem, do ambiente natural; do conhecimento público das questões de educação, pesquisa científica e legislação, detendo-se nos princípios da conservação dos recursos. Depreende-se, pois, que a IUPN não emergiu de um movimento popular, mas adveio dos anseios de indiví- duos envolvidos nos meios científicos. Posteriormente, essa Organiza- ção tomou caminhos distanciados da ONU, perdendo a oportunidade, segundo McCormick (1992), de um apoio político e financeiro..
O lapso temporal entre o término da 2ª Guerra Mundial e o início dos anos 1970 foi denominado como a Era de Ouro por Hobsbawm (1995), uma vez que se caracterizou por um crescimento explosivo
da economia mundial, com pleno desenvolvimento de novas tecno- logias e de expansão do modo de produção capitalista, superando a influência do sistema comunista, a partir de um “capitalismo refor- mado” que reconhecia a importância da classe trabalhadora e das aspirações socialdemocratas.
Essa época foi marcada por inúmeros acidentes industriais e conse- quentes desastres ambientais, os quais foram divulgados pela mídia, aumentando a sensibilidade pública para os temores causados pela ação do homem ao meio ambiente e para a maior compreensão das implicações da poluição (McCORMICK, 1992). Nesse mesmo período, a discussão sobre a previsão do esgotamento dos recursos naturais, da guerra nuclear e da superpopulação provocaram uma tensão sobre o futuro da humanidade. A questão da degradação ambiental passou a ser mais evidente, provocando o aparecimento de um “novo ambien- talismo”, nos anos 1960, como crítica à sociedade tecnológica-indus- trial, fosse essa capitalista ou socialista (DIEGUES, 1996).
O Novo Ambientalismo nasceu como uma bandeira de luta no cer- ne das reivindicações estudantis, nos EUA e na Europa, em torno dos direitos das minorias, do antimilitarismo, entre outras questões, com destaque para a resistência ao desenvolvimento da energia nuclear, vinculada à preocupação sobre os perigos da radiação relacionada com a sua utilização militar e civil (McCORMICK, 1992; COMIN VAR- GAS, 1998; DIEGUES, 1996; ALIER, 2012).
Para Alier (2012), o ecologismo ou ambientalismo se expandiu como reação ao crescimento econômico. Contudo, nem todos os am- bientalistas se opuseram a este crescimento; antes, até o apoiaram, sob uma visão utilitarista, segundo a qual qualquer impacto de ativi- dades humanas pode ser revertido pela tecnologia. Tais movimentos não criticavam exclusivamente o modo de produção, mas o modo de vida, partindo de uma situação concreta do cotidiano dos jovens, das mulheres, dos negros etc. (PORTO-GONÇALVES, 2008). Isso os dife- renciava das correntes ambientais anteriores por sua dinamicidade e
por centrar-se na humanidade e em seus ambientes, distanciando-se tanto das visões ecocêntricas e morais, quanto das concepções utili- taristas dos conservacionistas (McCORMICK, 1992).
O movimento ecológico partia do questionamento das condições presentes de vida, incorporando reivindicações dos mais variados tipos: extinção de espécies, uso de agrotóxicos, urbanização desen- freada, desmatamento, erosão dos solos, guerra bacteriológica, ame- aça nuclear, contaminação de alimentos etc. (McCORMICK, 1992). A ecologia, dessa maneira, tem interessado aos mais diferentes grupos sociais, apesar de nem todos partirem da mesma motivação política e ideológica.. É imprescindível considerar que nem todos os ecologistas pensam/atuam do mesmo modo.
Essas diferentes concepções são tratadas por Diegues (1996), a par- tir das características das principais escolas do pensamento ecológi- co vigentes na atualidade: a Ecologia Profunda, a Ecologia Social e o Ecossocialismo/Marxismo.
O termo Ecologia Profunda foi desenvolvido pelo filósofo norue- guês Arne Naess em 1972, com o intuito de ultrapassar a ecologia como simples ciência e alcançar “um nível mais profundo de cons- ciência ecológica” e defender o retorno às ideias neomalthusianas. Apesar do enfoque preponderantemente biocêntrico, tem grande influência espiritualista (cristã e das religiões orientais), aproximan- do-se frequentemente de uma quase adoração do mundo natural (DIEGUES, 1996). É herdeira do preservacionismo do século XIX, po- rém seus seguidores são mais restritos que os “preservacionistas” ao considerar que a natureza deve ser preservada por ela própria, in- dependentemente da contribuição que as áreas naturais protegidas possam fazer ao bem-estar humano..
Mas a ecologia profunda ignora que os problemas ecológicos têm ori- gem social (COMIN VARGAS,1998). Esta corrente recebeu várias críticas dos Ecologistas Sociais, para os quais a causa da degradação ambiental decorre do sistema capitalista, baseado na competição (DIEGUES, 1996).
A Ecologia social porta-se como um ramo da ecologia que vê os seres humanos primeiramente como seres sociais, e não como uma espécie diferenciada (como pretendem os ecologistas profundos), mas consti- tuída de grupos diferentes, como pobres e ricos; brancos e negros; jo- vens e velhos. Segue a linha preservacionista, partindo do pressuposto de que a degradação da natureza se relaciona à acumulação capitalista, e aproxima-se dos marxistas ao visualizar na acumulação capitalista a força motriz da devastação do planeta. Seus seguidores são considera- dos anarquistas e utópicos, ao proporem a construção de uma socieda- de democrática baseada na propriedade comunal da produção e des- centralizada, sem Estado e instituições hierárquicas, e com a utilização das tecnologias sempre a serviço do homem (DIEGUES, 1996).
O Ecossocialismo/Marxismo nasceu nos anos 1960, relacionado ao movimento de crítica interna do marxismo clássico em suas concep- ções sobre o mundo natural, uma vez que, segundo seus idealizado- res, Marx apenas considerava a ação transformadora do homem no processo de trabalho, subjugando a natureza a uma posição estática, considerando-a somente como componente da força produtiva, que deveria ser desenvolvida ilimitadamente. Dentre os autores que parti- lham essa ideia destacam-se Hobsbawm, Gulteman, Skibberg e Mos- covici (COMIN VARGAS, 1998; DIEGUES, 1996).
É preciso, no entanto, considerar que Marx foi contemporâneo de uma época do modo de produção capitalista em que a questão am- biental ainda não se conformava como problemática mundial; restrin- gia-se apenas a alguns grandes centros industriais. Segundo Waldman (2002), para Marx, a natureza deveria beneficiar a humanidade de maneira coletiva, mas isso não significa que seus escritos se voltaram para uma defesa ecológica. Marx não deixou de tratar do meio am- biente, tendo direcionado suas reflexões para a exaustão dos recursos naturais no sistema de exploração capitalista.
Para alguns autores vinculados à tradição marxista, a exemplo de John B. Foster, os escritos de Marx e Engels podem subsidiar ricamente
a discussão sobre a questão ambiental, à medida que partiram de uma ontologia materialista, na qual a natureza era pré-condição da exis- tência humana. Também reconheceram que o desenvolvimento das riquezas do capitalismo foi acompanhado pela pobreza da maioria da população, entendendo, por conseguinte, que a sujeição dos meios naturais ao homem havia sido acompanhada da alienação da natureza. De acordo com Herculano (2006), o Ecossocialismo/Marxismo considera que os conflitos socioambientais derivam da estrutura da economia capitalista contemporânea, na qual a lógica do cres- cimento a todo custo se contrapõe à preservação do meio ambien- te e às demais formas de vida social não-capitalistas (que acabam por ser incorporadas às áreas de expansão em produção, como é o
caso das aldeias indígenas).
Zacarias (2012) esclarece que o ecossocialismo não é uma corrente homogênea, sendo comum aos seus adeptos a defesa do rompimen- to da ideologia produtivista do progresso. Para essa corrente, há um conflito inerente entre economia e ecologia, à medida que há riqueza acumulada e desenvolvimento tecnológico em contraste com a dis- seminação da pobreza e da degradação ambiental que os acompa- nham. O fim do sistema capitalista seria a solução para tal conflito, e as lutas socioambientais um instrumento de construção de uma outra sociedade em uma perspectiva ecossocialista. A principal divergência entre os ecossocialistas está na discussão do papel das forças produ- tivas no novo modelo econômico a ser criado e nas consequências da crise ambiental para o capital. Destarte a mudança não se restringir à produção, mas ter que alcançar o consumo, defendem que a solução não estaria na limitação geral do consumo dos países ricos, mas sim na construção de uma nova ordem social, com a reorganização do conjunto do modo de produção e consumo, pautados na lógica da sa- tisfação das necessidades sociais, do bem comum e da justiça social.
Herculano (2006) ainda esclarece que, embora o ecossocialismo não seja somente marxista, tem no marxismo sua base, pois analisa a
apropriação dos recursos entre empresários capitalistas e as demais populações, como indígenas, camponeses e extrativistas. Ademais, essa corrente considera também a distribuição espacial desigual dos impactos ao meio ambiente urbano e da pobreza das periferias.
Diferentemente das classificações levantadas por Diegues (1996) acima discorridas, Alier (2012) destaca em seu livro A Ecologia dos Pobres, três correntes ambientalistas como as mais importantes da atualidade: a do culto ao silvestre, a do credo da ecoeficiência e a conhecida como justiça ambiental ou, nas palavras do autor, como ecologismo dos pobres.
Importante destacar que os antiecologistas se opõem a estas e as demais ramificações das correntes ambientais, depreciando-as, des- qualificando-as ou simplesmente ignorando suas preceituações.
O culto ao silvestre tem como pilar a defesa da natureza intocada. Não ataca o crescimento econômico, defendendo preservar e manter o que resta dos espaços de natureza original, situados fora da influ- ência do mercado ou da economia industrializada. É respaldada cien- tificamente pela biologia da conservação, que se desenvolve desde 1960, havendo a atuação dos biólogos e filósofos (ALIER, 2012). Como proposta política, defende a manutenção das reservas naturais por meio dos parques nacionais ou similares, livres da interferência huma- na. Essa corrente apela para a religião (panteísmo ou religiões orientais menos antropocênctricas que o cristianismo e o judaísmo), colocando em tela a sacralidade da natureza ou de partes dela. Ressalta-se que, nos termos de Diegues (1996), o culto ao sagrado tem sido represen- tado na cultura ocidental pela citada ecologia profunda.
O evangelho da ecoeficiência desafia o culto ao silvestre, colocando a preocupação com os efeitos do crescimento econômico não só na natureza original, mas também com os impactos ou risco sobre a saú- de humana provenientes do desenvolvimento das atividades agríco- las, industriais e da urbanização. Esta corrente defende o crescimento econômico, mas não a qualquer custo, sendo uma das expoentes do
desenvolvimento sustentável ou da modernização ecológica, aproxi- mando-se da corrente conservacionista. Sua preocupação com os re- cursos naturais frente aos impactos da produção não se dá pela perda dos atrativos da natureza ou de seus valores intrínsecos, mas faz a associação entre natureza e recursos naturais ou serviços ambientais. Os preceitos dessa corrente prevalecem nos debates atuais pelo mote do desenvolvimento sustentável e das melhorias em ecoeficiência no ciclo de vida dos produtos e processos de produção.
O credo da ecoeficiência expressa-se por uma vertente de mo- dernização ecológica – baseda nos impostos ambientais e mercados de licença de emissões – e outra tecnológica, centrada nas medidas voltadas para a economia de energia e de matérias-primas. Sua base científica repousa na economia ambiental, com a participação pre- ponderante dos engenheiros químicos.
Alier (2012) destaca que o culto ao silvestre e o evangelho da eco- eficiência são as duas correntes ecologistas ambientais dominantes nos Estados Unidos e no cenário mundial. Todavia, o autor salienta que, apesar dos ambientalistas conservadores ou empresários “am- bientalizados” não aludirem à articulação entre a degradação am- biental e a injustiça ambiental., novos movimentos sociais emergi- ram, voltando-se para a questão do usufruto da natureza como uma forma de justiça social e ambiental, originando o já citado Movimen- to por Justiça Ambiental.
O Movimento por Justiça Ambiental nasceu nos Estados Unidos, nos anos 1980, a partir da articulação entre lutas sociais, territoriais, ambientais e de direito civil, evidenciando de maneira persuasiva a ligação entre degradação ambiental e injustiça ambiental10. Por Justiça Ambiental entende-se:
O conjunto de princípios que asseguram que nenhum grupo de pessoas, seja grupos étnicos, raciais ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das consequências ambientais negati- vas de operações econômicas, de políticas e programas fede-
rais, estaduais e locais, bem como resultantes da ausência ou omissão de tais políticas, assegurando assim tanto o acesso justo e equitativo aos recursos ambientais do país, quanto o acesso amplo às informações relevantes que lhes dizem respeito e fa- vorecendo a constituição de movimentos e sujeitos coletivos na construção de modelos alternativos e democráticos do desen- volvimento (PORTO, 2005, p. 836).
Para Herculano (2006), o Movimento por Justiça Ambiental teve dois momentos de criação nos Estado Unidos. O primeiro foi em 1978, quando uma comunidade de famílias de operários (brancos) de uma indústria elétrica, em Love Canal, no Niágara, descobriu que suas casas estavam erguidas junto a um canal que tinha sido aterrado com resídu- os químicos industriais e bélicos, e passou a reivindicar direito a infor- mações, tratamento médico e indenizações, dando origem ao Center for Health and Environmmental Justice (Centro pela Saúde e por Justiça Ambiental). O segundo foi em 1982, com a revolta da população negra de Warren Country, na Carolina do Norte (EUA), contra a iminência de instalação de um aterro em sua vizinhança para depósito de material contaminado retirado de outros locais, que se baseou em um movi- mento por direitos civis dos negros, pelo qual surgiu a expressão “ra- cismo ambiental”11, cuja pertinência até os dias atuais é discutida pelos movimentos de justiça ambiental no Brasil (ACSELRAD, 2010).
O Movimento por Justiça Ambiental buscou se internacionalizar para a construção de uma resistência mundial. Ganhou expressão e força no Brasil a partir do início dos anos 1990 e enfatizou o caráter desigual das condições de acesso à proteção ambiental12.
Para Porto & Freitas (2006), a noção de justiça ambiental vem possibi- litando a comunicação entre vários movimentos de resistência frente aos conflitos socioambientais. Dessa maneira, populações de trabalhadores urbanos e rurais contaminados, caiçaras, indígenas, pescadores, mora- dores de áreas contaminadas por resíduos urbanos e industriais vem se mobilizando para um novo modelo de desenvolvimento, que respeite e
preserve a natureza, a saúde das populações e seja adverso a concentra- ção de renda e poder político e econômico nas mãos de poucos.
Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) associaram o conceito de promoção da saúde ao de justiça ambiental e criaram o Mapa de Conflitos e Injustiça Ambiental em Saúde no Brasil com o obje- tivo de tornar públicas vozes que lutam por justiça ambiental de popu- lações (comunidades indígenas e quilombolas, agricultores familiares, pescadores artesanais, comunidades tradicionais diversas) frequente- mente discriminadas e invisibilizadas pelas instituições e pela mídia.
Para McCormick (1992), o progresso da pesquisa científica, o cresci- mento da mobilidade pessoal, a intensificação da indústria, mudanças mais amplas nas relações econômicas e sociais e a maior dispersão dos assentamentos humanos exerceram níveis variados de influência para a emersão de movimentos ambientais mais amplos.
Esse percurso histórico das correntes ambientalistas é essencial para situar a problemática ambiental no espaço e no tempo, possibili- tando identificar nas discussões socioambientais atuais marcadas ora por uma visão antropocêntrica, ora por uma visão ecocêntrica. Não se pode desconsiderar que os adeptos das correntes preservacionistas e conservacionistas permaneceram no que se denominou novo eco- logismo, influenciando o campo acadêmico, social e político. Torna-
-se importante destacar que as concepções das correntes ambientais citadas neste estudo, podem se expressar de forma concomitante, sendo possível observá-las nos discursos dos movimentos sociais, do Estado, do empresariado, das ONGs e dos povos envolvidos nos inú- meros conflitos socioambientais deflagrados pelo desenvolvimento econômico em voga13.
Mister se faz enfatizar que o movimento ecológico não é homogêneo e nem concede uma orientação única para as pessoas que passam a se interessar pelas causas ambientais. Os movimentos ambientalistas ou ecológicos mantêm pensamentos e ações diferenciados, tendo surgido em lugares e tempos diferentes e, em geral, por motivos diversos.
Segundo Mészáros (2011), as diversas nuances de ambientalismo das últimas décadas emergiram de uma orientação de valor distante do socialismo. Em muitos países capitalistas, esses movimentos pro- curavam estabelecer uma base de apoio político por meio dos parti- dos verdes de tendência reformista, que apelavam para os indivídu- os preocupados com a destruição ambiental, deixando indefinidas as causas socioeconômicas subjacentes e sua conotação de classe.
A alternativa proposta pelos partidos verdes como forma de am- pliar seu apelo eleitoral ignorava programaticamente as questões das classes, convidando seus adeptos a mudar “do vermelho para o verde” (MÉSZÁROS, 2011, p. 94). Mas, apesar desses partidos terem conse- guido penetrar na estrutura de poder e nos processos de tomada de decisão da ordem estabelecida, o sistema capitalista se mostrou im- permeável à reforma imperativa da proteção ambiental , explicitando- se cada vez mais feroz em sua fase madura.
Os movimentos ambientais ora apresentados trouxeram uma in- flexão ao desenvolvimento do capitalismo, expondo os limites da exploração dos recursos naturais. Todavia, a conjuntura demonstra que o capital vem apresentando um clichê “verde” para manter sua rota em busca da superação de suas crises cíclicas, cada vez mais frequentes. Os ideiais das correntes ambientais são reconfigurados, refuncionalizados e apropriados para atender aos interesses da gran- de burguesia que vem transformando formas de proteção ambiental em mais uma fonte de lucro.
A mercantilização da proteção ambiental: a Responsabilidade Socioambiental e a Sustentabilidade em questão
Conforme anteriormente explicitado, a eclosão de acidentes in- dustriais ampliados e a iminência de uma guerra nuclear estimularam uma visão mais crítica sobre o modelo de desenvolvimento adotado no capitalismo e suas repercussões para o meio ambiente e para as pessoas, o que levou a eclosão de movimentos ambientais com certo
As Responsabilidade Social e Ambiental foram delineadas nos anos 1960, sendo incorporadas progressivamente ao debate mundial e às prá- ticas empresariais. O avanço das políticas neoliberais, o fortalecimento das empresas multinacionais e das ONGs, a mudança no papel do Esta- do na condução das políticas sociais públicas, e também a emergência de novos movimentos sociais (ecológicos, feministas, étnicos, negros etc.) levaram ao tratamento dos problemas sociais e ambientais para a esfera privada, em substituição às funções públicas estatais.
Nos anos 1990, as empresas passaram a adotar práticas alinhadas aos princípios da Responsabilidade Social e Ambiental como forma de evitar maiores regulamentações por parte do Estado e para prevenir o desgaste de sua imagem diante dos consumidores. Somam-se as iniciativas individuais por parte de alguns governos, como do Canadá, Estados Unidos e Reino Unido, de implantação de normas de condu- ta voluntárias ou de autorregulação, pelas empresas, como resposta às pressões políticas de eleitores, sindicatos, instituições acadêmicas e ONG (VALENZUELA, 2007). Nesse contexto, a ONU e as empresas multinacionais estabeleceram um Pacto Global (Global Compact), du- rante o Fórum Mundial de Davos, por Kofi Annan (Secretário Geral da ONU à época), para a aplicação de princípios de direitos trabalhis- tas, humanos e de proteção ao meio ambiente. Consequentemente,
hoje já está propagado no âmbito das instituições capitalistas o termo Responsabilidade Socioambiental (RSA), que penetra aceleradamente todos os campos da vida cotidiana.
No que se refere à responsabilidade ambiental, as pressões do pú- blico e a maior regulamentação ambientalista, além das exigências do mercado financeiro, estão chamando a atenção das empresas para a importância da gestão de riscos ambientais como ações proativas para minimização e antecipação de riscos e danos à natureza, em prol da sustentabilidade de seus negócios. A legislação ambiental prevê o pa- gamento de onerosas multas para empresas que causam impacto ao meio ambiente, o que, além de requerer medidas de remediação com altos investimentos em valores, também causa custos no que concer- ne à imagem da empresa e pode acarretar um desempenho negativo no mercado de ações financeiras14. Nesse sentido, risco ambiental sig- nifica custos monetários, queda da lucratividade e rentabilidade. Em oposição, atitudes direcionadas à redução de riscos atraem investido- res financeiros pela sustentabilidade do negócio, em um longo prazo. Assim, a sustentabilidade passa a ser vista como uma vantagem com- petitiva, que traz possibilidades de inovações e de captação de novos mercados e formas de financiamento (ANTUNES & SANTOS, 2001).
Para Netto & Braz (2008), o discurso e as práticas em torno da res- ponsabilidade social e das “empresas cidadãs” são um artifício ideo- lógico para ocultar o objetivo central de todo e qualquer empreendi- mento capitalista: o alcance dos lucros.
O discurso ideológico em torno da Responsabilidade Socioambien- tal e da sustentabilidade encobre o processo de obsolescência pla- nejada (encurtamento deliberado da vida útil dos produtos) dos bens de consumo duráveis, possibilitando o lançamento de um contínuo suprimento de mercadorias superproduzidas no “redemoinho da cir- culação acelerada” (MÉSZÁROS, 1989, p. 43).
Todo esse direcionamento ideologizante do capital escamoteia o fato de que, para o capital, o que é vantajoso não é apenas a inten-
sidade com que uma mercadoria é usada, mas o decréscimo de sua taxa de horas de uso, pois essa condição criará a demanda por outra mercadoria similar ou mais avançada tecnologicamente (MÉSZÁROS, 1989), dinamizando o ciclo produtivo.
O filósofo húngaro esclarece que, no curso da história, os avanços na produtividade inevitavelmente aumentam os padrões de consumo e alteram a maneira como são utilizados os bens a serem consumi- dos e os instrumentos com os quais são produzidos, afetando pro- fundamente a natureza da atividade produtiva em si. Evidencia, ainda, a eclosão de uma “sociedade descartável. Concomitantemente, há a extinção de variadas formas de habilidades e de serviços de manu- tenção, a fim de compelir a compra de dispendiosos produtos que poderiam ser facilmente consertados.
Dessa maneira, bens de consumo duráveis são jogados no lixo muito antes de esgotada a sua vida útil, consumindo, destrutivamen- te, imensos recursos materiais e humanos no curso de sua produção, acarretando sérios danos ambientais e sociais e gerando toneladas de resíduos e emissões atmosféricas.
Esse cenário conduz à construção de alternativas para assegurar o processo de reprodução capitalista por meio da implantação de novas formas de organização do trabalho, a exemplo da adoção de novas tecnologias, novos materiais, e de formas de cooperação entre o tra- balho na reciclagem de produtos industrializados, com a refuncionali- zação do consumo da força de trabalho (MOTA et al., 2004).
Observa-se, atualmente, o crescimento acelerado de uma indús- tria do desenvolvimento sustentável. O ecobusiness está rendendo respostas bem promissoras para o capital, com uma lista infinita de propostas para conter ou mitigar a degradação ambiental causada pela produção, tais como reciclagem, energia limpa, uso e reuso da água, agricultura limpa, tecnologias de reposição e reaproveitamen- to, lixo, biocombustíveis, embalagens etc. (VASCONCELLOS, 2007) e, mais recentemente, o mercado de carbono e o retorno aos ali-
mentos orgânicos (que virou mais um dos modismo, com preços al- tos para os consumidores).
A expansão da indústria de reciclagem em todo o mundo é expo- nencial, sendo absorvida como parte da política ambiental. A ma- téria-prima desta indústria é obtida no lixo, por meio da separação de materiais, coleta, seleção, armazenamento e transporte por meio de um processo de trabalho que se inicia na rua e termina na fábrica (SILVA, 2010). Dessa forma, parte do lixo urbano também adquire a forma de mercadoria.
Considerada um ícone do desenvolvimento sustentável, conta com uma legitimidade social crescente por contribuir para a redução do volume total dos resíduos sólidos, amenizar os efeitos da polui- ção e economizar matérias-primas e insumos; apesar de consubs- tanciar-se em processo que mobiliza uma exploração escamoteada. A cadeia de lixo, por integrar a produção mundial e ser controlada pelos grandes grupos econômicos, tem que obedecer às regras do mercado internacional e, por isso, o preço dos seus produtos não é definido localmente. Isto influencia diretamente o preço a ser pago pelos catadores de lixo (SILVA, 2010), incorporados ao processo de reciclagem do lixo como trabalhadores precarizados e não reconhe- cidos pelas indústrias desse ramo e pelas instituições urbanas mu- nicipais como partícipes desse processo de produção (MOTA et al., 2004). No rol de ironias para a expansão do capitalismo, muitas ve- zes os catadores são denominados de agentes ambientais, seja pelo Estado, empresas ou pela sociedade, concomitantemente à sua des- tituição da condição de produtor de riqueza social. Essa atividade é aclamada como possível solução frente ao crescente desemprego e como política voltada para geração de renda.
Frente a escassez da água doce em virtude das variadas situações produtivas (silvicultura, mineração feita em aquíferos nas bacias dos rios, monoculturas como a do eucalipto pelas indústrias de papel e a da cana-de-açúcar, represamento etc.) que consomem demasiada
quantidade de água, o Banco Mundial vem transformando a escassez da água em oportunidade de negócio (SHIVA, 2006).
O Banco Mundial concede empréstimos para vários projetos (irri- gação, água para centros urbanos, energia hidrelétrica, esquema de água em zonas rurais, tecnologia de eletrólise para tratamento, entre outros) que revertem os investimentos com o pagamento de títulos e juros à citada instituição. Este processo é acompanhado pelo fomento do próprio Banco Mundial e de outras agências multinacionais para a privatização e distribuição de água, baseada em critérios do mercado que propugnam como solução para a crise hídrica a sua transferência para regiões de escassez e a sua comercialização a preços elevados, a fim de conservar esse recurso, sem considerar os limites ecológicos impostos pelo ciclo da água, que é insubstituível por outras mercado- rias. Ao lado disso, o mercado de água potável vem rendendo bilhões de dólares aos seus empreendedores e já é alvo de investimentos e disputas futuras entre as nações.
O mercado mundial de água é favorecido pelas Parcerias Público-
-Privadas (PPP), que ampliam a dominação empresarial privada sobre os mananciais de água doce (movimentação por navios rebocadores e aquedutos). No circuito da especulação financeira, a água enquanto commodities integra os mercados futuros, com sobreposição dos in- teresses econômicos aos direitos humanos a água, garantido por nor- mas internacionais e assegurado pela ONU.
A lógica de funcionamento do modo de produção capitalista é de buscar internalizar e intensificar os lucros e desconsiderar o que não considera essencial nos custos para diminuir o valor da produção. As- sim, os custos da poluição, das matérias-primas, das doenças am- bientais e do esgotamento dos recursos são tratados como externali- dades e não são considerados nos cálculos de economistas clássicos. O acirramento da preocupação ambiental em nível mundial em torno da depredação dos recursos naturais e da poluição industrial tem obrigado a economia neoclássica, até então hegemônica, ao de-
senvolvimento de modelos e instrumentos de política econômica para valorar os serviços e sistemas ambientais, atribuindo preço à contami- nação do ar, à poluição dos cursos d´água, à erosão do solo etc. A esta vertente denominou-se economia ecológica ou economia verde15.
A economia verde é um novo campo de estudos criado por ecó- logos e economistas com o objetivo de “levar a natureza em con- sideração” não somente em termos monetários, mas também em termos físicos e sociais (ALIER, 2012). Nessa direção, há a tentativa de internalizar as externalidades ambientais nos sistemas de preços. Seus principais marcos argumentativos são a modernização ecoló- gica, a ecoeficiência e o desenvolvimento sustentável. Assim, diante da escassez de recursos naturais, o capital investe na pesquisa de novas matérias-primas (modernização ecológica), na recomposição da base de fornecimento no caso dos recursos renováveis (ecoefi- ciência) e na alteração das regras mercantis e utilização de artifícios ideológicos (desenvolvimento sustentável).
A economia verde vem sendo amplamente defendida nas reno- madas conferências sobre o desenvolvimento sustentável (Rio-92, Rio+20 etc.). Suas preceituações consideram o recurso que estiver em escassez como um “bem econômico”, promovendo a exacerbação da privatização dos recursos naturais como o melhor caminho para a proteção ambiental. Até o ar está passível de comercialização, como pode ser verificado no Japão, onde se vendem máscaras de ar puro!
A economia verde consiste em nova forma de expandir os merca- dos especulativos dos chamados “serviços ambientais” (aqueles pres- tados pela natureza e que, por isso, devem ser remunerados)16. A ideia é remunerar quem preserva o meio ambiente, direta ou indiretamente, por meio dos Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA)17.
Os que se beneficiam (agentes públicos ou privados) de algum serviço ambiental gerado em certa área realizam pagamentos para os grupos de fornecedores (proprietário ou gestor da área em ques- tão) (ORTIZ, 2012).
Como exemplos dos PSA pode-se citar as bolsas verdes, destina- das às comunidades tradicionais das Unidades de Conservação (UC) de uso sustentável (Reserva Extrativista – RESEX, Reserva de Desen- volvimento Sustentável – RDS e Florestas Nacionais – FLONA) pelo reconhecimento pela política nacional de desenvolvimento socioam- biental do papel desses grupos sociais na conservação da natureza e na promoção de serviços ambientais. O ICM Ecológico é outro exem- plo e consiste em repasse obrigatório de parte de valores do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) a municípios que possuem zonas preservadas, representando uma espécie de prêmio pela prote- ção à natureza. Há também diferentes cobranças no Brasil que, direta ou indiretamente, relacionam-se com recursos hídricos. Nessa mesma direção, os mercados de Reduções Certificadas de Carbono, também denominados créditos de carbono – criados no Protocolo de Kyoto em 2005 – podem ser comercializados diretamente entre os países signatários em bolsas de valores e ações futuras.
No que concerne à discussão da emissão dos gases de efeito estufa, a negociação dos créditos de carbono se concretiza sob a forma de gestão privatizada do nível de poluição da atmosfera. Há a criação, por parte do grande capital, das “bolsas de poluição” (ALTVATER, 2010), a partir da expedição de certificados que permitem a emissão de uma determinada quantidade de CO., que pode ser trocada por dinheiro. Trata-se da negociação do inegociável!
A rota capitalista atual permite que se construa juridicamente o di- reito de propriedade de poder poluir e, quando não exercido, este pode ser transformado em dinheiro. Obviamente, os comerciantes de certifi- cados de CO. jamais terão interesse na diminuição dos gases de efeito estufa, uma vez que este é o objeto de seu negócio e meio de lucro.
No âmbito do imperialismo, os países que possuem grandes áre- as com cobertura florestal que naturalmente absorvem o dióxido de carbono, como o Brasil, podem usar suas florestas como crédito. Já os países mais ricos, para manutenção de sua produção industrial,
poderiam transferir parte de suas indústrias mais poluentes para paí- ses com baixo nível de emissão, ou investir nesses países. Esta é uma realidade com a implantação das multinacionais, e principalmente com a exportação de sua produção mais poluente para os países com menor controle socioambiental.
O problema, então, não seria deixar de poluir ou de poluir em me- nor quantidade, mas pode-se concluir que o objetivo do comércio de certificados preconizado pelo Protocolo de Kyoto é a criação de mais um nicho de mercado voltado para os aplicadores de recursos líquidos no mundo das finanças.
Da mesma forma, foi criada a proposta de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal18 (REED), conhecida como “Redução Compensada de Emissões”, incluída na pauta de negocia- ções internacionais por meio da Coalition of Rainforest Nations, ou Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Uni- das sobre Mudança do Clima19.
A REED20 consiste em um incentivo econômico desenvolvido para recompensar financeiramente países em desenvolvimento por seus resultados no combate ao desmatamento e à degradação florestal e na promoção do aumento de cobertura florestal por meio da: (i) re- dução das emissões provenientes de desmatamento; (ii) redução das emissões provenientes de degradação florestal; (iii) conservação dos estoques de carbono florestal; (iv) manejo sustentável de florestas; e
(v) aumento dos estoques de carbono florestal (MMA, 2014).
Argumenta-se que os países tropicais são responsáveis por esta- bilizar o clima por meio de suas florestas, e por isso poderiam rece- ber financiamentos para reduzir o desmatamento de diversas fontes internacionais, em particular do Fundo Verde para o Clima (GCF, na sigla em inglês) (MMA, 2014). Entretanto, percebe-se claramente que a premiação se destina a quem reduzir o desmatamento, e não para quem continua com florestas intactas. Nesse mecanismo de mercado, os proprietários das áreas poderiam trocar seus negócios de florestas
por atividades mais lucrativas, como assevera Malvezzi (2009). A tôni- ca das discussões da COP está marcadamente centrada no PSA, acen- tuando a visão economicista de tratamento das questões ambientais.
Os mecanismos de desenvolvimento limpo (MDL) fazem parte desse mercado verde, e também foram criados a partir do Protocolo de Kyoto, intercambiando créditos de carbono a partir das emissões evitadas por empresas que, em função de tecnologias ditas “limpas”, deixaram de poluir e vendem para outra empresa que polui e “preci- sa” continuar poluindo.
Propaga-se a ideia de que o núcleo da questão ambiental está no desperdício da matéria e da energia, direcionando a ação das em- presas e dos governos para a “modernização ecológica”, destinada a promover ganhos de eficiência e ativar mercados, com a hegemonia da lógica econômica. Assim, o mercado teria a capacidade de superar a crise ambiental, voltando-se para a economia do meio ambiente e para a inserção das tecnologias limpas21 no mercado, sem abandonar o padrão de modernização e sem a transformação do modo de pro- dução capitalista (ACSERALD, 2010). Todavia, deve-se considerar que as novas tecnologias podem até reduzir a intensidade da utilização de energia e de matérias-primas, mas não representam necessariamen- te uma solução para os conflitos entre economia e meio ambiente22 (ALIER, 2012). Além disso, no seio do capitalismo não é cabível solu- ções parciais para enfrentar os problemas socioambientais vigentes, sendo fundamental a transformação radical do modo de produção.
Tanto os argumentos neoclássicos quanto os da economia verde coincidem ao não analisar as causas da destruição ambiental intrínse- cas ao próprio funcionamento da economia capitalista. Segundo o ci- tado autor, a economia verde faz crítica à produção capitalista, porém parte de critérios físicos-energéticos.
Se a questão ambiental fosse meramente de ordem físico-técni- ca, tais propostas surtiriam resultados positivos. Mas como se trata de uma manifestação da “questão social”, são débeis em suas solu-
ções parciais e de curto alcance. A solução real requer uma revisão das próprias relações capitalistas. Para Foladori (2001), a maioria das análises sobre a questão ambiental parte de uma perspecti- va técnica. Os problemas ambientais são reduzidos a três grupos como elementos externos aos processos produtivos: poluição, de- predação e excesso de população. Todos tendo os limites físicos externos como um mesmo denominador. No caso da poluição, há os limites dos ritmos de reciclagem da natureza serem menores do que é requerido pela sociedade. Na depredação, o limite é imposto pela natureza. No que se refere ao excesso de população, coloca-
-se ao limite da natureza no abastecimento de alimentos e outros recursos a uma população carente. O referido autor não concorda com tais proposições e defende que a sociedade, antes de se depa- rar com limites naturais ou físicos, fica a frente de contradições so- ciais. Afinal, os problemas ambientais da sociedade surgem como resultado da sua organização econômica e social.
A maior parte da discussão sobre meio ambiente e seus respec- tivos problemas, ao invés de considerar a forma social, parte de seu conteúdo material e do resultado da poluição, da depredação e do ex- cedente de população. A produção em relação a sua forma social não é discutida, sendo considerada como elemento técnico e a-histórico. Busca-se corrigir os efeitos da produção capitalista pela via técnica, sem discutir a forma social.
Os citados mecanismos, ao permitir o direito de poluir, geram lu- cros a quem pode pagar por esses créditos, sendo rentável para as corporações e especuladores financeiros. Os serviços ambientais, as- sim, entram no circuito da valorização por vias da financeirização e a natureza é transformada objetivamente em fonte de lucro.
Notas Conclusivas
Segundo Mészáros (1999), no século XX, o capital conseguiu se
adaptar diante das pressões produzidas pelo fim de sua ascensão his-
tórica frente as suas crises cíclicas e aos questionamentos e críticas ao sistema. Nesta direção, as propostas de desenvolvimento sustentá- vel, economia verde, ecoeficiência e as saídas técnicas para o enfren- tamento das problemáticas ambientais aqui discutidas, representam uma certa hibridização do capital para continuar sua hegemonia.
Destarte ter sido possível extrair do capital concessões aparente- mente significativas no período do pós-guerras e no processo de sua autoexpansão; hoje o capital global frustra todas as tentativas de inter- ferência, até mesmo as mais reduzidas.
Observa-se preceituações e normativas internacionais funcionais a manutenção da ideologia capitalista, mesmo que para tanto tenha que assumir uma “faceta verde e humanizada”.
O discurso ideologizante da Responsabilidade Socioambiental e da Sustentabilidade escamoteiam o aprofundamento da exploração do trabalho e das desigualdades sociais. Assim, os problemas emergentes de grandiosos acidentes ambientais, com prejuízo à saúde de diversas pessoas, o adensamento da violência e as demais mazelas sociais são descontextualizados de seu teor político, ocultando a luta de classes e a disputa em torno de projetos societários diferenciados pelos interes- ses do capital e do trabalho.
Segundo Montaño (2014, p. 30), “as palavras hoje têm mais a uti- lidade de esconder do que desvelar” e, nessa direção, os termos da Responsabilidade socioambiental, tecnologia limpa, capitalismo ver- de e desenvolvimento sustentável estão sendo amplamente utilizados para escamotear a destrutividade do capital.
Nesse contexto, a Responsabilidade Socioambiental (RSA) e a Sustentabilidade figuram com forte direcionamento ideológico no tratamento das manifestações das “questões sociais” expressas nas problemáticas ambientais, a partir de sua despolitização e descaracte- rização como conflito entre classes sociais.