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A Política Nacional de Resíduos Sólidos e a “Catação” de Lixo: Uma Relação Sinérgica?
O Social em Questão, vol. 21, núm. 40, pp. 229-252, 2018
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Artigos



Resumo: Este artigo analisa a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e o papel que nela têm os catadores de materiais recicláveis. O artigo se baseia em pesquisa empíri- ca com quatro associações de catadores em Minas Gerais. Iniciamos apresentando pontos centrais da PNRS e a figura do catador. A seguir, discutimos relatos dos ca- tadores sobre as dificuldades encontradas, os riscos à saúde, bem como os confli- tos com o poder público. Concluímos argumentando que, se para o poder público os catadores são atores subalternos no tratamento de resíduos, surge dos próprios catadores a possibilidade de superação, via os instrumentos propostos pela própria PNRS: associações e cooperativas.

Palavras-chave: Resíduos Sólidos, Meio Ambiente, Catadores de Materiais Recicláveis, Associativismo.

Abstract: This article analyzes the National Policy for Solid Waste and the role attributed to recyclable waste collectors. Based on empirical research with four associations of waste collectors, the article starts with a discussion of the Policy’s key points and the figure of the waste collector therein. We then move to discussing collectors’ stories about the difficulties they face, health risks, and conflicts with the State. We end by suggesting that, while for the State these collectors are subaltern actors in waste management, it is from the collectors themselves that emancipatory possibilities emerge, along the very lines suggested by the Policy.

Solid Waste; Environment; Recyclable Waste Collectors; Associations.

Keywords: Solid Waste, Environment, Recyclable Waste Collectors, Associations.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305, de 02 de agosto de 2010)

Instituída pela Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, e tendo suas normas para execução estabelecidas no Decreto Nº 7.404, de 23 de dezembro de 2010, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) foi concebida como parte integrante da Política Nacional do Meio Ambien- te no Brasil. Seu foco principal é a percepção de que o manejo inade-

quado dos resíduos sólidos gerados nos processos produtivos do país gera inúmeros problemas não só ambientais, mas também sociais e econômicos e, portanto, precisa ser enfrentado no âmbito das polí- ticas públicas. Dentre outras “inovações”, a PNRS exige que todos os atores envolvidos nos processos tanto de produção quanto de consu- mo, quanto à própria administração pública em suas diferentes escalas (municipal, estadual e federal), participem de tal enfrentamento, seja reduzindo os resíduos produzidos, seja tratando aqueles resíduos que tiverem sido efetivamente produzidos, seja educando diferentes atores na direção de posições mais conscientes de produção e consumo.

Em outras palavras, a PNRS busca coordenar e governar os modos pelos quais o país como um todo e os diferentes atores sociais envol- vidos nos processos produtivos, lidam com o lixo. Como uma de suas principais características, essa Lei insiste na chamada “responsabili- dade compartilhada” daqueles a quem trata por “geradores de resídu- os”; para os propósitos da Lei, estes vão desde os próprios fabricantes (indústrias e empresas em geral), até importadores, distribuidores e comerciantes, passando pelos responsáveis pelos serviços de manejo de resíduos sólidos urbanos (saneamento, coleta de lixo etc.), chegado até o nível de qualquer residente no país que, via suas próprias ativida- des de consumo, também gera resíduos.

Assim, a PNRS se apresenta como instrumento regulatório bastante interessante, pois ao tratar dos fins que devem ser dados a todos os resíduos e rejeitos produzidos pela sociedade como um todo, também atribui responsabilidades a todos, propondo algum grau de integração entre o poder público, o setor privado e os residentes no país.

Para além da questão ambiental, a PNRS nos parece relevante para se pensar questões relacionadas à assistência social, ao serviço social e a reprodução e/ou superação das desigualdades de uma forma ge- ral. Porque algumas populações raramente consideradas como parte integrante das esferas mais centrais da sociedade, exatamente por sua intrínseca marginalidade, é atribuído um papel central, tanto na con-

cepção da PNRS quanto nos mecanismos de sua implementação esta- belecidos no Decreto que acompanha a lei que instituiu a PNRS: os ca- tadores de materiais recicláveis. Estes, de acordo com os preceitos da PNRS, devem ser integrados em todas as ações que envolverem o que a PNRS chama de “responsabilidade compartilhada” pelo ciclo de vida dos produtos. Vejamos, a seguir, como este papel central é concebido.

Os catadores de materiais recicláveis na PNRS

TÍTULO V: DA PARTICIPAÇÃO DOS CATADORES DE MATERIAIS

RECICLÁVEIS E REUTILIZÁVEIS

Art. 40. O sistema de coleta seletiva de resíduos sólidos e a lo- gística reversa priorizará a participação de cooperativas ou de outras formas de associação de catadores de materiais reutilizá- veis e recicláveis constituídas por pessoas físicas de baixa renda.

Art. 41. Os planos municipais de gestão integrada de resíduos só- lidos definirão programas e ações para a participação dos grupos interessados, em especial das cooperativas ou outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda.

Art. 42. As ações desenvolvidas pelas cooperativas ou outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis no âmbito do gerenciamento de resíduos sólidos das atividades relacionadas no art. 20 da Lei nº 12.305, de 2010, de- verão estar descritas, quando couber, nos respectivos planos de gerenciamento de resíduos sólidos.

Art. 43. A União deverá criar, por meio de regulamento especí- fico, programa com a finalidade de melhorar as condições de trabalho e as oportunidades de inclusão social e econômica dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis.

Art. 44. As políticas públicas voltadas aos catadores de materiais

reutilizáveis e recicláveis deverão observar: [...] II – o estímulo

à capacitação, à incubação e ao fortalecimento institucional de cooperativas, bem como à pesquisa voltada para sua integração nas ações que envolvam a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos; e III – a melhoria das condições de trabalho dos catadores.

O texto acima chama a atenção exatamente por se dirigir tão di- retamente à figura do “catador de material reciclável”, aqui conside- rado como um ator social e econômico por sua própria inserção nas atividades mais imediatamente voltadas para a coleta, reciclagem e reutilização daqueles resíduos e rejeitos cujo manuseio apropriado é exatamente o foco da PNRS. Tal importância atribuída a essa ativida- de é, em si mesma, um convite à reflexão: parece-nos significativo que, ao elaborar uma política nacional voltada para o meio ambiente que leva a sério a coparticipação de todos os atores sociais no uso e consumo de materiais e objetos que, por várias vias, acabarão por ser descartados e, de alguma maneira, impactando o meio ambiente; os proponentes da lei e aqueles que a aprovaram reconheceram o “cata- dor” e seu trabalho – “catar” materiais e objetos descartados, “jogados fora” – como atores sociais integrados aos processos produtivos, ao invés de sujeitos meramente excluídos dos mesmos.

Dando sequência a essa inclusão do “catador” na discussão e ações sobre o meio ambiente no espaço nacional, o artigo oitavo, ao elabo- rar sobre como tais objetivos deverão ser cumpridos, estabelece alguns instrumentos; o quarto destes instrumentos se dirige especificamente aos catadores de materiais recicláveis e suas formas de organização: são instrumentos da PNRS, entre outros: “IV – o incentivo à criação e ao desenvolvimento de cooperativas ou de outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis” (BRASIL, 2010).

Obviamente, apenas reconhecer a existência de catadores em tais processos, bem como os modos pelos quais os mesmos se organi- zam em cooperativas, não avançaria muito nem as próprias atividades dos catadores, nem os objetivos em prol do meio ambiente; elencados

pela lei. Assim, com o intuito de detalhar mais, como se deverá desen- volver essa participação dos catadores e suas cooperativas, o artigo 19 – focado nas atribuições relativas ao cumprimento da lei no âmbito municipal – abre espaço para a promoção de: “XI – programas e ações para a participação dos grupos interessados, em especial das coope- rativas ou outras formas de associação de catadores de materiais reu- tilizáveis e recicláveis formadas por pessoas físicas de baixa renda, se houver”, sugerindo ainda que devem ser facilitados “XII – mecanismos para a criação de fontes de negócios, emprego e renda, mediante a valorização dos resíduos sólidos” (BRASIL, 2010).

Assim, parece claro que a noção de que aos catadores e suas co- operativas devem ser oferecidos mecanismos potencialmente faci- litadores de maior inclusão; neste caso, trata-se especificamente de mecanismos geradores de trabalho e renda para as populações mar- ginalizadas (CAMPOS, 2006).

Podemos dizer que, no caso aqui apresentado, reúnem-se numa mesma lógica: (a) a existência e disseminação, na sociedade como um todo, de sujeitos que, ou excluídos do mercado de trabalho ou su- bempregados, muitas vezes moradores de espaços e ambientes ina- propriados e insalubres (possivelmente por conta da proximidade de suas moradias com as grandes indústrias atuantes no Brasil); e (b) a possibilidade de esses mesmos sujeitos retirarem, desse mesmo am- biente, e mais especificamente dos próprios resíduos e detritos gera- dos pelos processos produtivos que ao mesmo tempo os excluem e lhes prejudicam a saúde e o bem-estar, seu sustento – através exata- mente da atividade de “catação de lixo”.

Essa renovada tentativa de valorização desse tipo de trabalho, claro, não veio apenas como parte de uma política de governo: des- de 1999, os catadores vêm se organizando de maneira mais sólida, e já em 2001 foi oficialmente fundado o “Movimento Nacional dos(as) Catadores(as) de Materiais Recicláveis (MNCR)”. Conforme suas pró- prias palavras, desde sua origem, o movimento objetiva auxiliar na

construção de ações e políticas de valorização da categoria, a fim de garantir o que chamam de “protagonismo popular”, o que por sua vez, na visão do movimento, poderia contribuir, “de baixo para cima”, para o desenvolvimento de uma sociedade justa e sustentável (MNCR, 2017). Esta contribuição, por sua vez, se daria, diz o movi- mento, através da organização social e produtiva das catadoras e dos catadores e suas famílias, tendo como base princípios que o mo- vimento valoriza como a autogestão, a solidariedade, e cooperação entre os participantes (MNCR, 2017).

Vejamos, a seguir, como se manifestam essas questões em nosso caso empírico e, por consequência, em que medida pode compreen- der o papel significativo atribuído a catadoras e catadores de materiais recicláveis. Observamos, também, como aparecem tais questões no caso empírico que analisamos para investigar os limites e possibili- dades de se inscrever, no interior de uma política nacional de meio ambiente, essa atividade e essas pessoas.

Catadores e seus Contextos Sociopolíticos e Ambientais: Limites e Possibilidades

A rede de associações de catadores de materiais recicláveis que es- tudamos foi constituída em 2004 com o objetivo principal de atender às demandas dos catadores da região por melhores preços a serem atribuídos aos materiais recicláveis que, após “catados”, buscavam co- mercializar. Mas, especificamente a rede se constrói como instrumento de comercialização coletiva dos materiais coletados por catadores de materiais recicláveis já pertencentes a doze organizações diferentes.

Juntas, as associações participantes da rede possuem cerca de

168 catadores, que atuam em um território de aproximadamente

1.000.000 habitantes, e uma produção média de 255.5 toneladas ao mês. Para essas pessoas, a PNRS (BRASIL, 2010) inclui, dentre suas várias propostas, diversas menções a práticas e processos que afeta- riam diretamente esses catadores, tais como: erradicação dos lixões,

disposição adequada dos resíduos, incentivo à criação e desenvolvi- mento de cooperativas e/ou associações de catadores de materiais recicláveis, inclusive priorizando-os no processo de coleta seletiva – as quais poderiam funcionar quase que como um catalizador e organi- zador das atividades que esses catadores, mesmo antes da interven- ção do Estado via política ambiental, já exerciam.

Em estreita ligação com os tipos de intervenção potencialmente positiva, ao menos em alguns sentidos, propostos pela PNRS, a profis- são do catador já havia sido reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em 2002. Em sua “Classificação Brasileira de Ocupa- ção”, o MTE propunha, como a ocupação de número 5192, o conceito de que os catadores são aqueles trabalhadores:

[…] responsáveis por coletar material reciclável e reaproveitável, vender material coletado, selecionar material coletado, prepa- rar o material para expedição, realizar manutenção do ambiente e equipamentos de trabalho, divulgar o trabalho de reciclagem, administrar o trabalho e trabalhar com segurança (MTE, 2017).

Parece claro que o reconhecimento jurídico e legal dos catadores não é garantia absoluta de que os mesmos sempre se beneficiem de tais pro- postas, uma vez que os obstáculos e limites à atuação dos catadores são sempre múltiplos, como demonstraremos a seguir. Além das contradi- ções e conflitos sociais que se delineiam em torno da própria figura do catador – alvo de preconceitos, estigmas, racismos, e marginalizações diversas –, a própria atividade laboral de “catar lixo” traz, em si mesma, uma série de potenciais dilemas e dificuldades que, a nosso ver, a simples promulgação de uma lei, como é o caso da PNRS, não lograria nunca re- solver por inteiro. Tem-se, assim, o distanciamento entre lei e realidades sociais, estas últimas demarcadas por complexidades e desigualdades entranhadas que, por vezes, só a pesquisa de campo consegue perceber. É nesse sentido que tratamos o papel dos catadores e suas dificuldades cotidianas, portanto, visando contribuir para “um entendimento mais am-

plo desse processo (e de como o mesmo) fez emergir outras abordagens mais complexas que envolvem fundamentalmente novos rumos que apontam para o desenvolvimento sustentável e novas articulações entre o Estado, sociedade civil e o meio” (RODRIGUES e SANTOS, 2017, p.169).

Para tanto, visitamos, como dito anteriormente, quatro associações em ocasiões diferentes. Em termos de metodologia, foram realizadas visitas in loco durante 6 meses, contemplando o segundo semestre de 2016 e primeiro de 2017 e utilizando como uma das ferramentas metodológica a observação participante que, segundo Peruzzo (2017), comporta:

Estudos para compreender comportamentos, estilos de vida, re- ligiões, culturas, consumo do conteúdo midiático, tribos huma- nas e não humanas etc. A estratégica básica é a observação in loco dos fenômenos que se quer compreender. Sempre houve a busca do conhecimento para além daquele oriundo dos cálculos estatísticos (PERUZZO, 2017, p.173).

Um primeiro ponto que chamou nossa atenção foi à própria ques- tão da rede. Em meados de 2016, houve uma reunião, num dos mu- nicípios, com representantes da maioria das associações vinculadas à rede que estudamos. Nesta ocasião foram discutidas, dentre várias questões, a formalização da rede, aprovando-se seu Estatuto, no qual constam vários ideais vinculados à cooperação, solidariedade, auto- gestão e formação profissional. Isto parece indicar que, explicitamen- te, está-se reconhecendo como um movimento alinhado com os ob- jetivos e ideais da economia solidária:

Tais organizações se configuram pela convergência das expecta- tivas de grupos diversificados, cujos motes podem relacionar-se à proteção ambiental, desenvolvimento de cidadania, inclusão social e geração de trabalho e renda (OLIVEIRA et al., 2017, p.5).

Assim, por um lado as associações de catadores, na mesma linha da PNRS, parecem considerar a formação de redes de associações

como fundamentais ao bom desenrolar do trabalho desses catadores. Por outro, porém, na prática esses objetivos quase que desaparecem; não têm espaço nos diálogos que travamos com catadores, nem mes- mo quando perguntados sobre o assunto. Para elas e eles, na visão da maioria dos catadores entrevistados, a rede cumpre basicamente uma única finalidade: a de ajudar a comercializar os produtos. Ou seja, os catadores valorizam a existência da rede, mas só na medida em que a mesma pode lhes ser útil em alguma medida: no caso, ajudando e facilitando a comercialização dos produtos, por exemplo, através de contatos entre as associações/catadores e empresas que possam ter interesse em adquirir os materiais recicláveis para reutilizá-los.

Passamos, agora, a expor alguns dados específicos de cada uma das organizações estudadas, com o intuito de apresentar e discutir algumas das dificuldades e potencialidades que cada uma vem enfrentando. Tal diferenciação é importante de ser feita, porque embora todas estejam atuando de formas semelhantes em contextos similares, há diferenças tanto nos modos de agir quanto nas dificuldades que enfrentam.

A “Associação A”, situada no município de Teófilo Otoni, é uma as- sociação que inicialmente congregava 102 catadores e atualmente é composta por apenas 7 associados. Isto, conforme nos foi explicado, deveu-se a alguns problemas internos, alguns organizacionais, outros comunicacionais, tais como: as falhas e ruídos na comunicação ao se executar as tarefas conjuntamente, a centralização e hierarquização de informações sobre como trabalhar, como lidar com os rejeitos e resí- duos etc., além da má gestão das lideranças, que tinham dificuldade tanto de impor suas ideias quanto em escutar os outros associados.

Em termos físicos e materiais, a sede da associação é ampla e está localizada próxima à região central do município, mas possui uma in- fraestrutura precária tanto física como elétrica. Instalada ao lado de uma universidade particular que pertence a alguns políticos atuantes nos níveis estadual e federal, a associação já sofreu várias tentativas, da parte desses políticos, de lhes retirar a sede e incorporar o terre-

no às propriedades da universidade. Outra dificuldade é que, no mu- nicípio, não há coleta seletiva implantada, o que tem proporcionado poucos materiais com os quais a associação possa trabalhar em sua atividade de “catação”, mesmo tendo sido feitas algumas parcerias com entidades públicas que fornecem um caminhão para realização da coleta semanal em dias organizações específicas.

A lista de limitações ao trabalho dos catadores parece infindável: outro problema é que, embora eles recebam doações de morado- res, essas ainda são tímidas e de pouca valia em termos quantita- tivos na coleta de materiais. Além disso, os catadores têm dificul- dades para executar a catação com os carrinhos de tração humana, pois a maioria tem limitações físicas vinculadas à idade avançada e problemas musculoesqueléticos.

Há também problemas de roubos de peças dos carrinhos utiliza- dos na coleta. Segundo parceiros e catadores, na cidade há um lixão, o qual lhes poderia servir de fonte de matéria prima, mas na verda- de é explorado por uma “coopergato”, ou seja, uma empresa que se auto intitula “cooperativa”, mas é, de fato, administrada por uma pes- soa que contrata os catadores, submetendo-os a forma exploratória de trabalho no lixão.

Alguns associados nos contaram que há uma liderança negativa na associação que, por ter conhecimentos pessoais e boa articulação social e política, exerce uma repressão silenciosa sobre os demais e, consequentemente, gera um clima organizacional negativo. Outra di- ficuldade apontada é que, embora trabalhem com materiais perigosos e possivelmente contaminados, os catadores não usam equipamentos de proteção individual, exercendo suas atividades sem camisa, pren- sando materiais sem óculos de proteção etc.

Como último ponto a ressaltar, percebemos que, embora os ca- tadores demonstrem certo grau de desânimo quanto a suas próprias perspectivas de melhoria no trabalho e resultados, teriam interesse em transferir algumas responsabilidades que não conseguem resolver

sozinhos a terceiros, como o controle financeiro que, devido a pro- blemas em gestões anteriores da associação, estão agora decididos a transferir a um parceiro que melhor saiba administrar suas finanças. Isto porque, com as atuais dificuldades, não estão comercializando seus produtos através da rede, pois não conseguem juntar quantida- des suficientes que cobrissem os valores cobrados, pela rede, pelo frete; uma vez que todos os materiais dessa rede são comercializados em outro município para o qual toda a carga coletada nessa associa- ção específica precisa ser carregada.

Com a última eleição municipal em 2016 e a entrada no poder de novo grupo político, os catadores agora esperam que o prefeito eleito possa ajudá-los mais diretamente, uma vez que o mesmo tem formação e experiência em gestão de cooperativas e economia so- lidária. Isto lhes pareceria uma melhora significativa face às gestões anteriores, pois nelas não foi promovida nenhuma política pública ou de governo voltada para as questões dos resíduos sólidos, a promo- ção social dos catadores ou outras questões relacionadas ao espaço socioambiental do município.

Passando a nossa segunda associação pesquisada, que denomina- mos “Associação B”, situada em Governador Valadares e formada por 48 catadores, sendo 41 mulheres e sete homens, nenhum dos quais realiza a coleta diretamente nas ruas, pois foi contratada pela prefei- tura uma empresa terceirizada para esta tarefa. Esse convênio com a empresa terceirizada se converteu, nos últimos meses que antecede- ram as eleições municipais de 2016, em fonte de conflitos devido a problemas financeiros da prefeitura que, segundo os catadores, esta- va com dificuldades para pagar esse serviço; consequentemente, os terceirizados deixavam de realizar a coleta durante vários dias, o que impactava negativamente na produção da associação.

A atual gestão municipal realizará um novo contrato, dizem, onde dentre as várias exigências tem-se o pagamento da previdência so- cial dos catadores pelos próprios associados, ação que poucos reali-

zam por iniciativa própria. Observa-se, porém, grande dependência desses catadores em relação ao serviço público municipal, inclusive com a disponibilização de uma funcionária para trabalhar no escritó- rio da associação. Esta situação, por sua vez, gera instabilidade, pois, com mudanças de governo sempre podem acontecer revisões desse tipo de ação municipal, bem como seu cancelamento.

Aqui, também, o aspecto da saúde e segurança no trabalho é fator que chama a atenção, pois os catadores também não usam equipa- mentos de proteção individual e há hábitos que contrariam normas mínimas de segurança alimentar, como não lavar as mãos antes de se alimentarem após manusearem os rejeitos. Outro problema é que a cidade de Governador Valadares foi um dos municípios mais atin- gidos pelo rompimento da barragem de resíduos de minério da Sa- marco em Mariana e o município captava água do Rio Doce. A água distribuída na cidade ainda é retirada do Rio Doce e os catadores reclamam da qualidade, mas não têm recursos para comprar água mineral para suprir a demanda dos 48 associados.

No que tange à saúde dos catadores, a região sofreu com surtos de dengue e febre amarela nos anos de 2016/2017. Isto porque, dizem os associados, a prefeitura estava depositando resíduos no lixão que fica ao lado da associação, ao invés de levá-los para o aterro. Cria-se, então, uma situação altamente prejudicial à saúde: nos lixões são de- positados todo tipo de resíduos, há residentes desse município que garimpam materiais e resíduos neste local e, várias vezes ao dia, essas mesmas pessoas visitam a sede da associação para beber água, com suas roupas e calçados contaminados.

Mesmo assim, num teor positivo, as catadoras e catadores que ali entrevistamos dizem gostar de trabalhar na associação, principal- mente as mulheres que, segundo elas próprias, “ao contrário dos ho- mens não escolhem trabalho”. Referem-se positivamente, ao fato de que, segundo elas, realizam reuniões periódicas onde podem con- versar e discutir os problemas da associação; o problema que mais

as aflige é a não valorização dos materiais recicláveis, o que impacta

na receita da associação.

Já a “Associação C”, em Coronel Fabriciano, tem sua sede no distrito industrial a partir de uma parceria com a prefeitura municipal, que lhes custeava aluguel, água, luz, telefone e o motorista do caminhão. Tal parceria, porém, à época de nossa pesquisa, estava ameaçada devi- do às eleições de 2016, quando o candidato vencedor, ao assumir em 2017, pediu para revisar esse convênio com a justificativa de diminuir custos: temia-se que ele transformasse totalmente a dinâmica da par- ceria, ou mesmo que a suspendesse.

Alguns impactos já foram sentidos pelos catadores, como a saída de dois profissionais da prefeitura que acompanhavam e orientavam os trabalhos da associação. Além do receio de perderem o convênio, os catadores são dependentes da prefeitura em relação ao caminhão e ao motorista, pois eles não catam nas ruas e só recolhem os mate- riais em pontos específicos, com auxílio do caminhão. No município não há coleta seletiva e os materiais, geralmente, são doados por empresas ou cidadãos que os entregam diretamente no galpão ou em pontos de coleta específicos.

Nesse processo, dizem os catadores, vêm perdendo alguns parceiros ao longo dos anos, pois não conseguem atender às demandas de coleta nos dias marcados por falta de organização ou de pessoal, ou porque o caminhão não se encontra disponível quando dele se necessita.

Trabalham aqui, ao todo, 11 catadores sendo 10 mulheres e um ho- mem. As catadoras têm idades avançadas, com problemas de so- brepeso e pressão, reclamam muito de dores musculoesqueléticos e quase não usam equipamentos de proteção. Há, inclusive, o relato de uma ex-catadora diabética que, durante o trabalho, pisou em um pre- go e, com o agravamento do ferimento, precisou ter a perna amputa- da, aposentando-se em seguida.

Outros tipos de problemas enfrentados pelas catadoras são refe-

rente a relacionamentos interpessoais, organização interna e exter-

na; problemas esses que, com o apoio da prefeitura, conseguiam ser amenizados e, sem esse apoio, se exacerbam. Tal redução no tipo de apoio recebido pela prefeitura deveu-se, principalmente, ao fato de vários funcionários que auxiliavam as catadoras terem sido dispensa- dos ou realocados, com a mudança de gestão.

Há, ainda, problemas de ordem prática: no galpão há acúmulo de muita poeira e materiais, principalmente, garrafas, pois as catadoras não conseguem acumular uma quantidade mínima que lhes permitiria obter melhores preços. Além disso, não dispõe de recursos para pagar o frete para enviar os materiais para a sede da rede de associações, o que por sua vez lhes permitiria a comercialização dos produtos via rede.

Mais especificamente na esfera política, contaram as catadoras que, com a crise econômica, várias organizações privadas que eram parceiras da associação e lhes cediam materiais, passarem a ver nos resíduos uma oportunidade de complementar suas próprias receitas e deixaram de doar para a associação para que esta pudesse vendê-los. Finalmente, também esta cidade sofreu com os recentes surtos de dengue e febre-amarela. E, num sentido mais amplo, as ativida- des desta associação vêm sendo limitadas em alcance, porque outros setores públicos atuantes no município, como saúde e a assistência social, com a nova gestão municipal se afastaram definitivamente das atividades do coletivo da associação e passaram a atuar de maneira

isolada, em suas próprias áreas.

A última associação, chamamos de “Associação D”, situa-se em João Monlevade, MG, e é composta por 26 associados. É um empre- endimento que tem convênios com a prefeitura para pagamento de água, luz, passagens de ônibus municipal de ida e volta para a sede, e espaço cedido para triagem, armazenamento e comercialização. Em agosto de 2015 a partir de um trabalho realizado entre a associação, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, o Centro Mineiro de Referên- cia em Resíduos (CMRR) e a Incubadora de Empreendimentos Sociais e Solidários da Universidade Federal de Ouro Preto, foi implantada,

através de convênio entre a associação e a prefeitura, a coleta seletiva na região central e em alguns bairros periféricos de João Monlevade.

Apesar de terem recebido, via um projeto do Banco Interamericano de Desenvolvimento, carroças motorizadas para seu trabalho, ainda há catadores que realizam suas atividades com carrinhos de tração humana, pois não conseguiram se adaptar aos carrinhos. A associação realizava, nos últimos anos, reuniões semanais para discutir questões de interesse do empreendimento e alguns meses após a implantação da coleta seletiva, com pressões da prefeitura em relação aos resul- tados para garantir a renovação do convênio e de alguns parceiros, os quais propunham metas sem considerar as particularidades do grupo, os catadores pararam de se reunir.

Isto tem gerado um clima negativo, com problemas de relações interpessoais e de comunicação, além de sobrecarga e alienação do trabalho. Algumas organizações e pessoas realizam doações de mate- riais, porém alguns são entregues contaminados de tal forma que não podem ser destinados à reciclagem, o que aumenta o risco ambiental e de saúde dos catadores, os quais sofrem com problemas ergonômi- cos e psicossociais (como o estresse).

Em linhas gerais, comparando-se as associações, observamos que elas enfrentam situações semelhantes no que tange a relação complicada e desigual do poder público com esses coletivos, uma vez que o mesmo poder público acaba por seguir as lógicas de or- ganizações tradicionais do sistema capitalista, enquanto os cata- dores buscam se pautar pelos princípios das redes, das coopera- tivas e associações e da própria economia solidária. As prefeituras veem esses empreendimentos como empresas tradicionais e deles exigem ações e resultados pautados pelo viés do produtivíssimo e da lucratividade, desconsiderando a proposta de que se trataria de organizações solidárias e autogestionárias: “ao contrário da econo- mia de mercado, os empreendimentos considerados solidários não têm na sustentabilidade econômica e retorno financeiro seu princi-

pal objetivo. […] os indicadores da economia solidária são pautados em sua dimensão social, política, cultural e ambiental” (SIQUEIRA, COSTA e VIEIRA, 2017, p.132).

Por sua vez, as políticas públicas e ou de governo voltadas para os catadores em nível local se orientam quer pela necessidade de cum- primento da lei de resíduos sólidos (PNRS), quer pelo assistencialismo ou paternalismo, praticamente inviabilizando qualquer possibilidade de se atribuir um sentido emancipatório e de valorização profissional e humana do catador. Neste sentido, os supostos ideais da economia solidária acabam sendo engolfados pela economia de mercado: “As- sim posto, a Economia Solidária está voltada para os próprios interes- ses do Estado e do capital e não para os objetivos que a fundamen- tam” (CALBINO; BARRETO e DINIZ, 2011, p.141).

Considerações Finais

Nos relatos acima expostos, procuramos evidenciar um pouco da rotina e dos contextos sociais e políticos vividos pelos catadores nes- ses quatro municípios. Apesar de alguns municípios terem iniciativas de apoio junto aos catadores, essas iniciativas não consideram as particularidades desses sujeitos. Exigindo deles muitas vezes metas, ações e objetivos como se eles fossem uma organização capitalista, cujas necessidades se limitassem ao acúmulo de capital. E isto se dá apenas naqueles municípios onde existe algum apoio aos catadores, pois há também aqueles que não lhes oferecem apoio algum, contra- riando diretamente a PNRS.

Sendo assim, a PNRS pode ser vista como uma política nacional, estatal e municipal de meio ambiente que, por um lado, inclui sujei- tos excluídos, marginalizados e desvalorizados e os concebem como agentes importantes na concretização dos preceitos desta política, mas por outro, ao não conseguir superar os ditames do sistema capi- talista e das estruturas políticas de favores e assistencialismo, acaba por limitar o próprio alcance daqueles objetivos ali propostos.

Curiosamente, porém, e talvez abrindo espaço para futuros mais promissores, os próprios catadores, em seus esforços de construção de coletividades, modos de vida e produção de subjetividades a par- tir da interação não só com o meio ambiente, mas com os resíduos, detritos e rejeitos produzidos pela sociedade capitalista. Estão eles, portanto, e num sentido muito profundo, produzindo exatamente as formas de “responsabilidade compartilhada” e de necessidade de construção conjunta e compartilhada de um novo olhar sobre o meio ambiente e o espaço que nele habita o ser humano que fun- damentam a própria existência da PNRS. Ao atribuir papel signifi- cativo ao trabalho dos catadores e suas formas de organização, a PNRS tal como concretizada nas práticas sociais dos catadores, pode potencialmente chegar muito mais longe na direção de algum tipo de emancipação social do que o permitido pelos percalços do poder público e a mercantilização do social.

Referências

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Notas

1 Pesquisa realizada com apoio da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES como parte da tese dos autores junto ao pro- grama PPSIG/UFF.
2 Doutorando em Sistemas de Gestão Sustentáveis pela Universidade Federal Flu- minense (UFF), professor do Departamento de Engenharia de Produção do Ins- tituto de Ciências Exatas e Aplicadas (ICEA) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em João Monlevade/MG, Brasil. Nº ORCID: 0000-0001-6216-8165. E-mail: jean.mep@gmail.com
3 Doutora em Antropologia, professora do Departamento de Sociologia, do Pro- Importar tabla grama de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, e do Doutorado em Sistemas de Gestão Sustentáveis da Universidade Federal Fluminense (UFF, Niterói/RJ-Bra- sil). Nº ORCID: 0000-0001-5382-8926. E-mail: lveloso.uff@gmail.com
4 Para preservar nossos entrevistados, modificamos os nomes tanto dos catadores entrevistados quanto das associações a que pertencem. Mantivemos apenas o nome original dos municípios onde realizamos a pesquisa.


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