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Migrar «com a cara e a coragem...». Estudo de caso sobre jovens trabalhadoras brasileiras no setor de limpeza e serviços domésticos em Bruxelas
O Social em Questão, vol. 21, núm. 41, pp. 45-64, 2018
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Artigos



Resumo: O artigo estuda, através de uma revisão da literatura seguida de uma pesquisa de tipo qualitativo, a situação de jovens brasileiras que migram para Bélgica para trabalhar enquanto empregadas domésticas. Essas mulheres são inseridas em nichos étnicos situados na base do mercado de trabalho belga. São em geral imigrantes irregulares e trabalham clandestinamente nos setores de limpeza e serviços domésticos em Bruxelas. Se essa situação as leva a experimentar condições de vida e trabalho precárias, em geral, elas passam de um projeto migratório temporário a um projeto de instalação permanente. Nosso objetivo é compreender quais fatores que, na Bélgica, influenciam nessa decisão de permanecer. Nossa principal hipótese é que elas encontram melhores condições de vida.

Palavras-chave: Migração, Brasileiras, Bélgica, Empregadas Domésticas, Mercado de trabalho.

Migrar «com a cara e a coragem...». Estudo de caso sobre jovens trabalhadoras brasileiras no setor de limpeza e serviços domésticos em Bruxelas

Julia Petek1

Resumo

O artigo estuda, através de uma revisão da literatura seguida de uma pesquisa de tipo qualitativo, a situação de jovens brasileiras que migram para Bélgica para trabalhar enquanto empregadas domésticas. Essas mulheres são inseridas em nichos étnicos situados na base do mercado de trabalho belga. São em geral imigrantes irregulares e trabalham clandestinamente nos setores de limpeza e serviços domésticos em Bruxelas. Se essa situação as leva a experimentar condições de vida e trabalho precárias, em geral, elas passam de um projeto migratório temporário a um projeto de instalação permanente. Nosso objetivo é compreender quais fatores que, na Bélgica, influenciam nessa decisão de permanecer. Nossa principal hipótese é que elas encontram melhores condições de vida.

Palavras-chave

Migração; Brasileiras; Bélgica; Empregadas Domésticas; Mercado de trabalho.

Migrate «com a cara e a coragem...». Case study on young Brazilian workers in the cleaning and domestic services sector in Brussels.

Abstract

The article studies, through a review of the literature followed by a qualitative research, the situation of Brazilian young women who migrate to Belgium to work as maids. These women are inserted into ethnic niches situated at the base of the Belgian labor market. They are generally irregular immigrants and work clandestinely in the cleaning and domestic services sectors in Brussels. If this situation leads them to experience precarious living and working conditions, they usually move from a temporary migratory project to a permanent installation project. Our objective is to understand what factors in Belgium influence this decision to remain. Our main hypothesis is that they find better living conditions.

Keywords

Migration; Brazilian; Belgium; Maids; Job market.

Artigo recebido: dezembro de 2017

Artigo aceito: fevereiro de 2018

Introdução

Neste artigo vamos apresentar os resultados de um estudo de caso feito em 2015 sobre as imigrantes brasileiras na Bélgica e a sua inserção no mercado de trabalho. Os dados oficiais nos mostram a existência de uma grande população de migrantes brasileiros ilegais no país. Segundo a Eurostat (2015), cerca de 12.000 brasileiros viviam legalmente na Bélgica em 2013. Esses dados diferem daqueles apresentados pela Organização Mundial das Migrações (OIM) e pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil (MRE), que, incluindo as estimações de habitantes ilegais, chegam ao número de 50.000 brasileiros residentes no território belga no mesmo período (MRE, 2013; OIM, 2007/2009). Nesse contexto, o estudo de caso teve por objetivo estudar a trajetória de vida de jovens brasileiras que migraram sozinhas para Bélgica, e que se encontram ou se encontraram em situação de residência ilegal. Independentemente da situação regular ou irregular, essas mulheres são inseridas na base do mercado de trabalho belga, na maioria dos casos no setor de limpeza enquanto empregas domésticas.

Nós escolhemos uma abordagem pelo mercado de trabalho, porque estudos feitos anteriormente sobre essa população afirmam que a parte feminina da migração brasileira migra, em parte, para responder a uma forte demanda do setor belga da limpeza e dos serviços domésticos (OIM, 2007/2009, p.81).

A questão central que orientou a pesquisa foi saber quais fatores próprios à Bélgica, mas, também, em relação à biografia dessas mulheres, explicam a presença contínua de brasileiras no território belga, apesar de uma situação de aumento de vulnerabilidade. Um ponto importante do atual trabalho é considerar as imigrantes enquanto protagonistas dos seus próprios projetos migratórios, visto que as razões de imigrar são múltiplas, mas consistem essencialmente em motivações individuais.

A maioria dessas brasileiras chega à Bélgica pelo “overstaying”, o que significa que elas têm acesso ao território enquanto turistas e passam o limite de 90 dias previsto por lei. Na maioria dos casos, as brasileiras encontram uma única possibilidade de emprego, empregadas domésticas informais, pois não possuem uma permissão/visto de trabalho. Esse visto é muito difícil de obter depois, porque os nichos de trabalho étnicos reservados aos imigrantes que elas ocupam não permitem uma regularização pelo trabalho. Além disso, esses postos de trabalho na economia informal são particularmente precários, especialmente em contexto de crise (OIM, 2011, p.3-20). Estudos como o de Mônica Pereira (2008), mostram os múltiplos desafios aos quais os imigrantes brasileiros já enfrentavam antes da crise econômica de 2008 na Bélgica. São eles: ausência de “permis de séjours”, de permissão/visto de trabalho e de seguridade social; medo da deportação e dificuldade face à incerteza do cotidiano; além de forte exploração no trabalho (PEREIRA, 2008, p.13-19).

O foco analítico deste trabalho é a passagem de um projeto migratório inicialmente temporário e de curto prazo para um projeto migratório de instalação permanente. A questão de pesquisa se apresenta da seguinte maneira: “quais são as razões na Bélgica que explicam a presença contínua de jovens brasileiras trabalhando nos setores da limpeza e dos serviços domésticos, apesar de sua situação de irregularidade de ‘séjour’ e de precariedade no mercado de trabalho?”

Como principal hipótese em resposta à questão, acreditamos que as brasileiras entrevistadas encontram melhores condições de vida na Bélgica do que no Brasil. Essa hipótese supõe três outras, que representam os fatores que podem influenciar na decisão delas. Primeiramente, as oportunidades ligadas ao mercado de trabalho na Bélgica são melhores que no Brasil, no que se refere aos salários e oportunidades de emprego. Em segundo lugar, fatores pessoais e biográficos influenciam na decisão de ficar na Bélgica. Por último, as mulheres brasileiras experimentam na Bélgica um sentimento de segurança, em contraste a um sentimento de insegurança no Brasil, consequência de altas taxas de violência. Nesse estudo de caso nos propomos a testar essas três hipóteses.

A imigração brasileira na Bélgica

Antes de apresentarmos os resultados do nosso estudo de caso, vamos expor dados sobre evolução da imigração brasileira na Bélgica, com o objetivo de contextualizarmos nossa pesquisa em um quadro mais geral sobre esse fluxo migratório.

Sobre a história da imigração para Bélgica, Martiniello et al. (2013) afirmam que durante muito tempo os brasileiros não representavam uma população estatisticamente relevante no país. Eles eram compostos, sobretudo, por pessoas altamente qualificadas, membros das classes mais elevadas e eram na sua maioria estudantes, artistas ou refugiados políticos da ditadura militar (1964-1985). Nos anos 1990 esses fluxos se intensificam, assumindo proporções importantes no início dos anos 2000. Muitos fatores podem explicar esse aumento, mas vamos destacar a crise econômica dos anos 1980 no Brasil e o fechamento das fronteiras dos Estados Unidos após os atentados de 2001, este último como principal destino de imigração de brasileiros. A escolha da Bélgica como destino dentre outras possibilidades também pode ser explicada por diferentes fatores. Destacamos aqui os acordos entre a União Europeia e o Brasil, que permite aos brasileiros entrar e permanecer 3 meses na Bélgica, somente com a apresentação do passaporte e sem a necessidade de um pedido de visto. Uma vez sobre o território os brasileiros com a intenção de migrar praticam o chamado “overstaying”, passam o limite de 3 meses e se instalam na Bélgica ilegalmente. Além disso, existe uma forte demanda por mão-de-obra em certos setores informais do mercado de trabalho belga (como a construção civil e os serviços domésticos e de limpeza) que garante emprego aos imigrantes nessas áreas (MARTINIELLO et al., 2013, p.121-123).

No que se refere ao estoque de brasileiros na Bélgica, notamos uma grande diferença entre os dados oficias sobre os imigrantes legais e as estimações de organizações como a OIM sobre a população total de migrantes (legais e ilegais). Enquanto a Eurostat afirma a existência de 12.404 brasileiros vivendo legalmente na Bélgica em 2014, órgão como “les services fédéraux de l’inspection du travail” da Bélgica estima uma população brasileira entre 40 e 50 mil pessoas (PEREIRA, 2008, p.2). O MRE expõe a existência de 60 mil brasileiros morando na Bélgica em 2013. Observamos uma população ilegal de brasileiros na Bélgica de quatro a cinco vezes maior do que a população legal (MRE, 2013).

Em relação ao perfil geral dos imigrantes brasileiros, a OIM produziu um estudo quantitativo entre 2007 e 2009 sobre as características da imigração brasileiras na Europa em três países (Irlanda, Portugal e Bélgica) (OIM, 2007/2009). Sobre essa população observamos primeiramente uma forte concentração na capital Bruxelas (72%). Além disso, 53% dos imigrantes brasileiros eram mulheres. A parte feminina dessa migração é considerada como independente da imigração masculina (as pessoas migram individualmente e não em casal), e está ligada a uma demanda dos setores de limpeza e serviços domésticos. A maioria das pessoas é jovem e em idade de trabalhar. Como principal região de origem do Brasil temos o estado de Goiás (33%) e em segundo lugar Minas Gerais (24%). A maioria dos imigrantes tem nível de escolaridade relativamente baixo e imigrou para Bélgica por questões econômicas. Eles imigram sozinhos e uma grande parte se encontra em situação irregular (66%). Todos praticaram o “overstaying”. Os principais setores de emprego são a limpeza e os serviços domésticos (36%) e a construção (34%). Além disso, o setor informal aparece como central, 70% dos imigrantes trabalhavam na economia informal belga. Para terminar, é importante notar que, se a maioria possuía um projeto inicial de curta duração, em muitos casos, este se transforma em uma vontade de ficar.

Assim podemos concluir que, essa imigração que passou a ser significativa a partir dos anos 2000, tem um caráter eminentemente econômico. Ademais, uma grande parte da população brasileira encontra-se em situação irregular, trabalhando no setor informal do mercado de trabalho, sendo os homens na construção civil e as mulheres no setor de limpeza e serviços domésticos.

Imigrantes brasileiras em Bruxelas

A metodologia empregada neste estudo foi uma revisão da literatura seguida de uma pesquisa de tipo qualitativo, que se concretizou com entrevistas semiestruturadas de dez imigrantes brasileiras na Bélgica. Após a transcrição integral do material, produzimos o quadro de análise a seguir sobre o perfil das brasileiras entrevistadas:

O perfil socioeconômico das imigrantes entrevistadas nos mostra mulheres jovens. Metade da nossa amostra tem entre 15 e 24 anos, e a outra metade entre 25 e 34 anos, sendo a idade média de 25,2 anos. Além disso, todas chegaram à Bélgica quando tinham entre 17 e 23 anos. Elas imigraram sós e a maioria tinha como destinação final a Bélgica (80%). São majoritariamente solteiras e a metade têm filhos, em todos os casos moram junto com elas no país de destino. Dessa forma, notamos que estas imigrantes não fazem parte do fenômeno da “maternidade transnacional”, como é o caso de muitos coletivos migratórios latino-americanos na Europa. Os filhos que são deixados no Brasil no momento da primeira migração são rapidamente enviados ao território belga para junto de suas mães.

Ainda sobre o perfil socioeconômico das entrevistadas, notamos que no Brasil essas mulheres faziam parte de uma classe média/ média baixa, ocupando postos de trabalho como secretárias e vendedoras, ou ainda estudantes do ensino superior. A maioria completou o ensino secundário e teve acesso aos estudos universitários, mesmo se somente uma delas possui um diploma de ensino superior. Como já apontava a literatura, é essa classe social que constitui a principal fonte de migrantes para a Bélgica (CAMARGO, 2010, p.62). Essas mulheres procuram na Bélgica uma melhora de suas condições de vida e oportunidade pessoais que não lhe são acessíveis nas suas regiões e meios sociais de origem.

No que concerne o trajeto migratório, todas praticaram o que chamamos de “overstaying”. Isso significa que elas tiveram acesso à Bélgica enquanto turistas e ultrapassaram o período de 90 dias permitido por lei. Dessa forma, todas residiram na Bélgica enquanto imigrante irregular por pelo menos um período, tendo atualmente a metade das mulheres conquistado a sua regularização. As imigrantes entrevistadas habitam atualmente em Bruxelas e chegaram à Bélgica sem o conhecimento precedente da língua francesa. A metade delas continua até hoje com níveis muito baixos de francês. Apesar dessas condições de vulnerabilidade, todas afirmam não se sentirem decepcionadas com as condições de vida encontradas na Bélgica. Elas afirmam ter a consciência das condições difíceis que encontrariam no novo país, não tendo idealizado demasiadamente o estilo de vida que teriam.

As motivações que incentivaram essas mulheres a migrar são diversas, mas majoritariamente individuais. Ao contrário do que se observa na literatura, onde as motivações à migração são na maioria dos casos de caráter familiar, essas mulheres migraram acima de tudo por questões pessoais. Na nossa pesquisa identificamos motivações de tipo financeiro, para aprender novas línguas e viajar, por questões sentimentais e/ou relacionais, etc. Elas consideram essa migração como uma oportunidade de investir nelas mesmas, como uma possibilidade de desenvolvimento pessoal. Sandra, uma das entrevistadas, afirma:

“Depende, cada um tem seus objetivos. Tem gente que está aqui para trabalhar e conseguir uma casa no Brasil, para conseguir alguma coisa no Brasil, entende? O meu objetivo nunca foi esse [...] Era investir em mim mesma, na minha educação. Esse foi meu investimento: eu mesma. Não foi um bem material.” (Sandra, 26 anos).

Essa é uma primeira inovação do nosso trabalho em relação à literatura existente. Essa individualização do projeto migratório é percebida também na questão do envio de remessas de dinheiro. No caso das nossas entrevistadas, esses envios não são regulares e não visam sustentar a família que ficou no Brasil, mas sim consistem em presentes e ajudas pontuais. Essa individualização das mulheres entrevistadas cria conflitos entre elas e a família que ficou no Brasil, porque esses últimos pedem por remessas de dinheiro maiores e mais regulares. Esses conflitos se devem a uma idealização positiva da vida na Europa por parte dos parentes e amigos que ficaram no Brasil, mas também por ignorarem certas dificuldades vividas pelos migrantes em termos de condições de vida e trabalho.

Sobre a maneira como as entrevistadas chegaram à Bélgica e se inseriram no país, nós destacamos a importância das redes. Todas vieram pelo intermédio de uma pessoa conhecida, membro da família ou amigos, que já morava na Bélgica. Esses intermediários vão ajudar na organização logística da viagem, por exemplo: emprestando dinheiro para comprar a passagem de avião, fornecendo informações de como efetuar a passagem das fronteiras e a estratégia do “overstaying”. Estes mesmos vão ser responsáveis pela primeira inserção das imigrantes na Bélgica, organizando a moradia, o trabalho e os contatos sociais, por exemplo. Nesse contexto, a comunidade brasileira na Bélgica que frequentemente é descrita pela literatura e pelas entrevistadas como sendo pouco solidária, joga igualmente um papel importante na inserção dos migrantes após sua chegada. Freitas e Godin (2013, p. 44) caracterizam a comunidade brasileira como uma “comunidade de rivais”, na qual as disputas e os sentimentos de insegurança predominam. Porém, por meio das entrevistas notamos que a comunidade brasileira se mostra fundamental em diferentes momentos: no primeiro acolhimento dos recém-migrados, em situação de dificuldade financeiras e práticas, nas redes de trabalho que permitem encontrar postos no setor informal e, também, na solidariedade dentro das religiões (evangélicas em sua maioria). Rochely, uma das entrevistadas, afirma:

“Querendo ou não, quem se ajuda aqui são os brasileiros. Às vezes um ou outro falam mal dos brasileiros. Mas querendo ou não a gente vive junto. É sempre um arrumando um trabalho para o outro.” (Rochely, 22 anos).

No que se refere à inserção das entrevistadas no mercado de trabalho, o setor de limpeza e serviços domésticos se mostra como sendo a principal fonte de empregos das mulheres brasileiras imigrantes na Bélgica. Quase todas trabalham no setor de limpeza e dos serviços domésticos, principalmente no setor informal, sendo 9 das 10 mulheres entrevistadas trabalhadoras desse setor. Como afirmou Rochely, é muito difícil para uma brasileira encontrar um emprego em outro setor:

“O nosso ramo de trabalho é muito limitado. É limpeza ou às vezes você acha um babysitter. Esses dias eu estava passando aqui e vi um anúncio para trabalhar em um café. E ai [sic]? Eu não posso! Então é sempre limitado, ou limpeza ou babá. […] É sempre o ramo da limpeza e quem vai te ajudar querendo ou não é um brasileiro.” (Rochely, 22 anos).

Essa situação ressalta o que Rea (2013, p.16-17) denominou de “segmentação do mercado de trabalho belga”, que reserva certos setores a nichos étnicos, setores aos quais dificilmente esses nichos poderiam se desprender.

Nesse contexto, na maioria dos casos, as imigrantes brasileiras combinam múltiplas modalidades de trabalho para aumentar sua renda e a sua seguridade de emprego. Elas exercem tipos de trabalho tais como: empregada doméstica interna e externa, babysitter e trabalhadoras por hora em empresas de terceirização de limpeza. A trajetória de todas as mulheres entrevistadas é relativamente parecida: quando chegam à Bélgica, e ainda não possuem uma vasta rede de relações, elas começam a trabalhar enquanto empregadas domésticas internas e/ou babysitters. À medida que elas se inserem na comunidade brasileira, elas se especializam no trabalho pago por hora de empresas terceirizadas, que oferecem mais liberdade (não precisam habitar junto ao empregador). Essa foi à trajetória descrita também por Yasmin, uma das entrevistadas:

“Eu trabalhei como babá na casa de uma família brasileira. Foi meu primeiro emprego. Depois trabalhei de interna na casa de uma madame. Aos poucos fui me especializando no trabalho de horas e hoje eu to (sic) trabalhando só de horas. Não cuido mais de criança e também não trabalho como interna.” (Yasmin, 34 anos).

Mas esse tipo particular de inserção no mercado de trabalho revela novas formas de precarização do emprego. Essas empresas de terceirização oferecem serviços para todos os tipos de limpeza (casas, escritórios e obras recém-prontas), tanto a particulares quanto a empresas. No caso das mulheres entrevistadas, os patrões eram principalmente portugueses e brasileiros que estavam na Bélgica há mais tempo. Essas empresas contratam imigrantes ilegais que são pagos “au noir”, ou seja, de forma irregular. As mulheres ganham entre 8 e 10 euros a hora, e nunca aumentam o seu salário. A sua renda pode aumentar unicamente se elas trabalharem mais horas por semana. Além disso, por não possuírem contrato de trabalho, elas não têm acesso a qualquer tipo de seguridade social e direito do trabalho: são pagas somente pelas horas prestadas, não tem direito a “congé maladie”, não tem direito ao seguro desemprego (chômage), nem a aposentadoria e tampouco ao seguro de saúde.

Além dessas dificuldades existentes por ocuparem postos de trabalho muito precários, as brasileiras destacam as dificuldades psicológicas dessa realidade. Wanessa, uma das entrevistadas, explica que jamais havia feito esse tipo de trabalho e que foi um verdadeiro desafio se adaptar a tais condições:

“Eu fui trabalhar com a cara e a coragem.” (Wanessa, 22 anos).

Além da questão da precarização do trabalho, é interessante ressaltar a forte demanda de mão-de-obra que existe no setor. As brasileiras entrevistadas afirmam que a demanda de emprego é sempre grande, e que elas dificilmente se encontram em situação de desemprego. Essa ressalva revela uma contradição com a legislação belga que não fornece visto de trabalho para essa profissão, por não considerar em penúria de mão-de-obra. Como essas imigrantes tem dificuldade de encontrar emprego em outros setores, é quase impossível uma regularização pelo trabalho, o que as coloca em uma situação de ainda mais vulnerabilidade.

A satisfação das mulheres entrevistadas em relação ao seu trabalho é paradoxal. Se, de um lado, elas apontam as dificuldades muitas vezes importantes da sua profissão, de outro, elas afirmam que seu trabalho lhes traz certa forma de independência e de conquista de poder. Em geral, elas se encontram satisfeitas com a sua situação. Incontestavelmente, a situação delas na Bélgica permite um maior salário e poder de compra, o que elas não teriam no Brasil. Além disso, elas ressaltam a facilidade de se inserir na base do mercado de trabalho belga, mesmo estando em condição de ilegalidade.

No que diz respeito aos documentos e a legalidade de estadia na Bélgica, apesar de todas terem tido acesso a Bélgica pelo “overstaying” e terem passado por um período enquanto imigrantes ilegais, metade das mulheres entrevistadas conseguiu regularizar sua situação. Dentre as que conseguiram a regularização, temos: duas por reagrupamento familiar, duas por casamento com europeus e uma pela regularização do seu filho nascido na Bélgica. Nenhuma delas conseguiu uma regularização pelo trabalho. Entre as imigrantes que se encontram ainda em situação irregular, duas tentam uma regularização pelo sistema de Portugal. Elas possuem o direito de habitar em Portugal, pelo intermédio de empresas portuguesas que declararam elas oficialmente como empregadas em troca do pagamento de cotizações sociais.

Em relação às condições de vida das imigrantes na Bélgica, as mulheres entrevistadas apontaram várias dificuldades enfrentadas: o risco de uma deportação, a falta de um contexto familiar, a instabilidade social, os preconceitos da população local em relação a elas, a falta de domínio da língua. Apesar dessas dificuldades, elas afirmam estar satisfeitas com a sua vida na Bélgica e possuem a intenção de ficar por mais tempo, mesmo que seu projeto migratório inicial fosse de curto prazo. Elas colocaram em evidência quatro principais vantagens da vida na Bélgica em relação à vida no Brasil (à parte das vantagens de maiores remunerações): a liberdade enquanto mulher, a segurança, a liberdade para homossexuais e a liberdade em relação ao controle parental. Essas liberdades aparecem como sendo centrais na escolha de permanecer na Bélgica. Todas ressaltam essa conquista de poder e de independência, bem como se sentem mais valorizadas e respeitadas enquanto mulheres na Bélgica do que no Brasil.

Por fim, no que concernem as expectativas em relação ao futuro, essas mulheres não possuem ou possuem poucas esperanças de uma evolução profissional. Elas desejam permanecer na Bélgica por causa das condições de vida que elas encontraram, e no caso das mães, pela oportunidade que seus filhos continuarem vivendo na Bélgica. Dito isso, uma grande parte delas desejam viajar pela Europa e querem dar sequência aos estudos, mesmo sabendo as dificuldades de tal escolha. Elas pensam somente em passar férias ocasionais no Brasil.

Melhores condições de vida?

Como vimos anteriormente, a questão de pesquisa que orientou nosso trabalho era saber quais razões na Bélgica explicam a presença contínua de jovens brasileiras trabalhando no setor de limpeza e serviço doméstico, apesar de uma situação de vulnerabilidade e precariedade no mercado de trabalho. A primeira hipótese, a qual afirmava que as oportunidades do mercado de trabalho na Bélgica influenciam na decisão das imigrantes de permanecer na Bélgica é confirmada. Isso é notado em certas questões que ressaltamos tais como: a facilidade de encontrar emprego no setor de limpeza e serviços domésticos, o sentimento de valorização e de conquista de independência financeira pelo trabalho e a questão de uma remuneração mais elevada e de um maior poder de compra que no Brasil. Esses fatores contribuem ao que as mulheres consideram no final como melhores condições de vida na Bélgica.

A segunda hipótese, que elucidava a importância dos fatores pessoais na decisão de permanecer na Bélgica também é confirmada. As mulheres entrevistadas expressam uma vontade de permanecer na Bélgica para dar melhores oportunidades a seus filhos, mas também por questões salariais, de nível de vida e de acesso a saúde. Além disso, elas ressaltam uma vontade de viajar, de continuar os estudos e aprender novos idiomas, o que, segundo elas, é facilitado pelo fato de estar na Bélgica. O conjunto desses fatores constitui uma melhora das condições de vida na Bélgica em relação à vida no Brasil.

A terceira hipótese a qual afirmava que a Bélgica oferece um maior sentimento de segurança que o Brasil é parcialmente confirmada. Se podemos afirmar que as mulheres entrevistadas se sentem mais seguras na Bélgica, essa segurança só faz sentido na medida que autorizam uma vantagem em termos de liberdade: a liberdade de sair à noite, a liberdade de circular sozinha ou entre mulheres sem enfrentar o machismo, o assédio nas ruas, a violência ou a violência sexual, liberdade em relação ao controle familiar ou ainda liberdade de ser homossexual. Nós podemos concluir que a nossa terceira hipótese foi posta de maneira incompleta: o que constitui uma melhora nas condições na Bélgica não é somente o sentimento de segurança, mas sim a liberdade que elas adquiriram.

Considerações finais

Como conclusão desse estudo de caso exploratório, nós podemos afirmar que as jovens brasileiras que trabalham na limpeza e na domesticidade em Bruxelas constituem um coletivo migratório plural, no interior do qual encontramos uma multiplicidade de perfis, de projetos, de situações e de estratégias. Além disso, esses projetos e estratégias não são fixos, eles são complexos e mudam com o passar do tempo.

Mesmo reconhecendo os limites desse trabalho, ressaltamos que ele trata de temas que receberam pouca atenção da literatura sobre migração atual. Dessa forma podemos fornecer algumas contribuições em relação à literatura existente.

Primeiramente, ao contrário do que é assinalado por uma parte da literatura sobre a feminização da migração (e particularmente sobre a migração latino-americana), no presente estudo de caso, constatamos que a imigração não é ou é pouco considerada como uma estratégia familiar (VAUSE, 2009, p.27-28), mas como um projeto individual no qual as jovens migrantes são as principais protagonistas. Diferentemente de outros fluxos migratórios latino-americanos, as mulheres brasileiras, no presente estudo de caso, não imigram para assegurar a segurança financeira de suas respectivas famílias no Brasil, mas para buscar melhores condições futuras para elas mesmas. Todas as motivações de imigrar apresentadas pelas mulheres entrevistadas (financeiras, pessoais, em relação à liberdade) têm um caráter individual, visando investir nelas mesmas, a melhorar suas próprias condições de vida, e quando aplicável, de seus filhos.

A segunda contribuição desse estudo de caso é em relação ao perfil socioeconômico das mulheres entrevistadas. Essas últimas fazem parte de uma classe média baixa no Brasil, e migram para buscar uma ascensão social impossível no seu país de origem (CAMARGO, 2010, p.62). Elas tiveram acesso ao ensino (uma maioria terminou o ensino médio e a metade frequentou universidade), mas não encontraram situações verdadeiramente satisfatórias no Brasil. Elas aceitam uma queda no nível do tipo de trabalho efetuado (empregada doméstica na Bélgica, no lugar de vendedora e secretária no Brasil), em troca de um aumento no seu salário, do poder de compra, mas também, de maneira mais geral, das condições de vida e ambições futuras. Elas passaram de uma classe média baixa no Brasil a uma classe trabalhadora das menos privilegiadas na Bélgica, contudo afirmando terem se beneficiado nessa mudança.

A terceira contribuição, e talvez a principal do nosso trabalho, é que evidenciamos a existência de novas formas de contratação não-declaradas e bem organizada na economia informal para as empregadas domésticas brasileiras na Bélgica. Se, no passado, essas mulheres eram inseridas no mercado de trabalho, principalmente enquanto domésticas internas e externas nos lares belgas; atualmente, essas mulheres se especializam no trabalho pago por hora em empresas terceirizadas no setor de limpeza. Esses postos de trabalho são caracterizados por novas formas extremas de precarização. Trabalhos futuros podem estudar esse assunto, para compreender como funcionam essas empresas e qual é o contexto econômico, político, legislativo e social no qual elas estão inseridas.

Outra temática de pesquisa, que pode se mostrar interessante para desenvolvimentos futuros, concerne as estratégias de regularização dos trabalhadores migrantes (mais particularmente dos brasileiros) na Bélgica, mas também no quadro da União Europeia. Mesmo se as mulheres entrevistadas são caracterizadas pela literatura como imigrantes econômicas, uma regularização pelo trabalho se revela impossível para elas. Para obter uma regularização, elas devem jogar com falhas na legislação e utilizar outros argumentos que não sejam a sua atividade profissional, como o reagrupamento familiar e o casamento. Nessa direção, nós identificamos uma estratégia que permite obter uma permissão de trabalho portuguesa, limitando assim os riscos financeiros em caso de deportação.

Por fim, uma terceira temática de possível investigação futura que nos chama mais atenção é em relação ao sentimento de liberdade sentido na Bélgica pelas mulheres entrevistas, que representa um dos três grandes fatores que motivaram as mulheres a permanecerem na Bélgica. Esse sentimento de liberdade é em grande parte ligado a um sentimento de segurança vivenciado na Bélgica e/ou um sentimento de insegurança sentido no Brasil. Acreditamos que esse sentimento é profundamente ligado a condição das mulheres nesses dois países. Um estudo dessa questão merece mais atenção em pesquisas futuras, através de uma análise comparada efetuada respectivamente na Bélgica e no Brasil.

Referências

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