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A imigração de bolivianos e haitianos no Brasil: o subimperialismo brasileiro em foco
A imigração de bolivianos e haitianos no Brasil: o subimperialismo brasileiro em foco
O Social em Questão, vol. 21, núm. 41, pp. 87-110, 2018
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar a correlação entre o subimperialismo brasileiro e a imigração de haitianos e bolivianos no século XXI. Neste caso, observar a formação econômico-social da economia dependente, a transformação na hierarquia da economia e da geopolítica global na qual alguns países dependentes passam de meros espaços de recepção de capital exportado a exportadores de capital. Ademais, compreender os limites e as possibilidades de expansão do Brasil como nação subimperialista perante as potências imperialistas e os entraves provocados pelo caráter dependente de sua expansão.
Palavras-chave: Migração, Subimperialismo, Superexploração, Força de trabalho.
A imigração de bolivianos e haitianos no Brasil: o subimperialismo brasileiro em foco
Hugo Cordeiro Mota Pinheiro1
Resumo
Este trabalho tem por objetivo analisar a correlação entre o subimperialismo brasileiro e a imigração de haitianos e bolivianos no século XXI. Neste caso, observar a formação econômico-social da economia dependente, a transformação na hierarquia da economia e da geopolítica global na qual alguns países dependentes passam de meros espaços de recepção de capital exportado a exportadores de capital. Ademais, compreender os limites e as possibilidades de expansão do Brasil como nação subimperialista perante as potências imperialistas e os entraves provocados pelo caráter dependente de sua expansão.
Palavras-chave
Migração; Subimperialismo; Superexploração; Força de trabalho.
The immigration of Bolivians and Haitians in Brazil: Brazilian sub-imperialism in focus
Abstract
This paper aims to analyze the correlation between the Brazilian subimperialism and the immigration of Haitians and Bolivians in the 21st century. In this case, to observe the economic-social formation of the dependent economy, the transformation in the hierarchy of the economy and the global geopolitics in which some dependent countries go from mere spaces of reception of exported capital to exporters of capital. In addition, to understand the limits and the possibilities of expansion of Brazil as a sub-imperialist nation before the imperialist powers and the obstacles provoked by the character dependent of its expansion.
Keywords
Migration; Sub-imperialism; Overexploitation; Workforce.
Artigo recebido: dezembro de 2017
Artigo aceito: fevereiro de 2018
Introdução
Os fluxos migratórios são fenômenos imanentes ao processo do desenvolvimento sócio-histórico humano, pelos quais os seres humanos ocuparam os continentes e, por conseguinte, os espaços no globo. Contudo, a emergência do capitalismo como modo de produção e suas faces social, política e econômica alteraram a dinâmica dos processos migratórios. Tal assertiva pode ser atestada pelo sócio-metabolismo do sistema capitalista, o qual exige, em seu âmago, dar condições de manutenção à lei geral de acumulação capitalista.
É na conjuntura de exaurimento da capacidade de dar manutenção à lei geral de acumulação do capital que transformam algo presente em todo processo histórico humano numa crise global. Além disso, incentivado por boa parte dos países imperialistas, sobretudo no pós-Segunda Guerra, a imigração foi fulcral na reconstrução desses países que, assolados pela guerra, precisavam de substancial força de trabalho, normalmente alocadas nos setores de base da produção. Essa grande massa de trabalhadores chegou para suprir também o quantitativo de homens natos dos países centrais que morreram na empreitada imperialista, a fim de garantir matérias-primas e mercado consumidor.
A partir do exposto, cabe ir ao âmago da questão, que envolve a base pela qual fora dada condição à acumulação capitalista, condição sine qua non para sua materialização: a acumulação primitiva. Karl Marx ([1867] 2013) aponta que, para objetivar a acumulação do capital, há como pressuposto a extração da mais-valia ou mais-valor; este, por sua vez, pressupõe a produção capitalista.
[...] A produção de mais-valor, ou criação de excedente, é a lei absoluta desse modo de produção. A força de trabalho só é vendável na medida em que conserva os meios de produção como capital, reproduz seu próprio valor como capital e fornece uma fonte de capital adicional em trabalho não pago (MARX, [1867] 2013, p. 695).
Assim, ainda que o modo de produção capitalista garanta condições mais favoráveis à venda da força de trabalho (com as devidas mediações sobre se mais ampliadas ou reduzidas), essa venda é a mola propulsora desse sistema produtivo, é também instrumento da reprodução da riqueza como capital de forma mais ampliada, sendo necessária sua ininterrupta utilização nas relações sociais de produção (sua constante revenda). Tais elementos sintetizam o movimento pelo qual se objetivam a acumulação capitalista, apontando para a acumulação primitiva não como desdobramento da acumulação do capital, mas, ao contrário, como seu ponto de partida.
A questão da crise migratória, que teve como marco inicial o ano de 2015, momento no qual diversos trabalhadores africanos e asiáticos, a fim de superar a situação de instabilidade política e econômica, bem como vislumbrar melhores condições individuais de trabalho, migraram para os países imperialistas. Contudo, este movimento teve de lidar com a repressão dos Estados europeus, cada vez mais intensificada e seletiva à imigração, associada ao crescimento do discurso xenofóbico na Europa. Há uma reprodução, por parte de alguns países, de práticas realizadas pelos Estados Unidos no âmbito da restrição de imigrantes com baixa qualificação técnico-científica e pauperizados que tentam entrar no país.
Haja vista a importância do tema atualmente, o Serviço Social brasileiro, por meio de sua entidade representativa, o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), construiu um evento intitulado Seminário Nacional, Relações Fronteiriças e Fluxos Migratórios Internacionais, ocorrido nos dias 6, 7 e 8 de julho de 2016, em Belém, estado do Pará. O debate sobre imigração, ainda incipiente no conjunto da categoria profissional de assistentes sociais, será abordado, neste artigo, sob a ótica do subimperialismo brasileiro no Haiti e na Bolívia como fator central para o crescimento do número de imigrantes haitianos e bolivianos no Brasil.
O subimperialismo brasileiro
De acordo com Ruy Mauro Marini ([1972] 2007), as mudanças ocorridas no sistema capitalista mundial entre as décadas de 1960 e 1970 provocaram o surgimento do subimperialismo como uma etapa inaugural do capitalismo dependente, na qual uma formação econômico-social distinta foi amadurecida no Brasil. O subimperialismo é, ao mesmo tempo, um nível hierárquico do sistema capitalista e uma etapa do capitalismo dependente, isto é, uma etapa superior de certas formações econômico-sociais que se tornam interlocutoras do imperialismo ao se apropriarem do valor de nações de capitalismo ainda mais dependentes e transferi-lo às nações imperialistas (LUCE, 2013, p. 130).
As nações subimperialistas, entretanto, não superam a condição de dependência, de forma a se constituírem nelas formações econômico-sociais que deslocam as contradições inerentes ao capitalismo dependente, a fim de garantir a reprodução ampliada do capital e de atenuar os resultados da dependência via formas específicas de reprodução do capital e de cooperação antagônica com o imperialismo. Os Estados subimperialistas, assim, se constituem pela ausência de questionamento à sua condição de dependência, pela busca de uma autonomia relativa sob a permissão dos Estados imperialistas (LUCE, 2013, p. 130).
O subimperialismo é constituído pela entrada da economia dependente na etapa dos monopólios e do capital financeiro, algo que, decerto, produz novas tendências no grau de acumulação do capital em escala global. Ademais, para alcançar tal patamar na hierarquia do capitalismo mundial, os países subimperialistas necessitam de um Estado forte, uma burguesia que tenha projetos próprios e interesse de converter esses projetos de expansão econômica e política em projetos nacionais, subornando ou persuadindo outras frações da burguesia e outras classes sociais, nos âmbitos interno e externo (LUCE, 2013, p. 133).
De acordo com Mathias Luce (2013), ainda que algumas economias dependentes tenham ascendido, no sentido de alcançar uma composição orgânica média do capital e ao grau de exportadores de manufaturados e de capitas, nem todas tinham a condição de ditar uma divisão sub-regional do trabalho, a fim de satisfazer as demandas de suas burguesias. Alguns Estados dependentes amadureceram nos marcos de uma formação social subimperialista e, para isso, foram necessários alguns elementos que, mediados pela intervenção do próprio Estado, concretizando uma política expansionista com relativa autonomia:
a) a ascensão de um país dependente – dentre aqueles tipo A, na tipologia da industrialização elaborada por Vania Bambirra (2012) – para a condição de subcentro regional respondendo pelas pautas da acumulação mundial, ao se converter em subcentro da indústria pesada com certa escala da produção interna e certo grau de operação do capital financeiro; b) a unidade entre frações burguesas, através do deslocamento de suas contradições internas; c) a formulação de um projeto nacional subimperial; d) a formação de trustes capitalistas nacionais, com a atuação do Estado como instrumento de intermediação na vinculação da economia dependente ao imperialismo; e) a condição de economia dependente que apresenta não apenas cedência de valor para as economias imperialistas, mas que também se apropria de valor das nações mais débeis (LUCE, 2013, p. 134).
O Brasil, na América Latina, é o único a reunir esses elementos e, por isso, se torna uma nação subimperialista, pela qual foi formulado um novo padrão de intercâmbio desigual a partir da formação de trustes capitalistas brasileiros. O fato de a burguesia dos países dependentes serem subsumidas à dos países imperialistas cria óbices para que negocie diretamente com o imperialismo, com o objetivo de adquirir condições mais favoráveis no processo de integração global do capital definido pelos Estados imperialistas. O reforço do Estado nacional, assim, é escolhido como agente dessa negociação, permitindo concentrar e organizar suas forças (LUCE, 2013, p. 134-135).
O quadro de atividades do Estado subimperialista se situa na garantia da reprodução do capital imperialista nele investido e na negociação por uma autonomia relativa em relação aos grupos capitalistas estrangeiros, a fim de munir as burguesias locais de meios que as deem condições mais favoráveis ao seu desenvolvimento num capitalismo associado e integrado ao capital internacional. O Brasil se transformou num exportador de manufaturados e de capitais, por meio da formação dos trustes de capital nacional e da ação do Estado brasileiro na formulação de um projeto nacional subimperial – gestado na Escola Superior de Guerra, no Itamaraty, entre outros – e que chancelou a unidade entre as frações burguesas do País (LUCE, 2013, p. 136).
O subimperialismo adota características semelhantes às do imperialismo, no sentido de tentar inibir ou superar temporariamente a lei da queda tendencial da taxa de lucro; circunscrito a um padrão de reprodução que se situa na interação entre as leis específicas da economia dependente e a divisão internacional do trabalho – que orienta o período correspondente da economia mundial (LUCE, 2013, p. 136).
A estrutura imperialista surge das demandas do capital em garantir maiores possibilidades de exploração da força de trabalho mais imediata, bem como da busca de novos mercados pelo capital. Assim, essa estrutura:
[...] tinha que atuar em duas frentes: complementar o mercado interno através do consumo público e abrir as portas do mercado externo. No primeiro caso, e dado que não se cogitava estimular o consumo popular, esse complemento se centrou menos em obras de benefício social que em obras relacionadas diretamente aos interesses do capital, seja com o objetivo de criar maiores facilidades para sua reprodução, seja com a finalidade de absorver parte daquilo que não podia ser destinado ao consumo popular. Algumas dessas obras, como os investimentos na ampliação do sistema de produção de energia elétrica, cumpriam ambas as intenções, aumentando a oferta energética e absorvendo bens produzidos por diferentes setores industriais; outras, como as compras de material bélico e o impulso dado à indústria aeronáutica, satisfaziam principalmente o segundo objetivo, cumprindo também com as ambições das forças armadas, que formam a coluna vertebral do esquema subimperialista (MARINI, [1969] 2014, p. 165-166).
A expansão das nações subimperialistas para o mercado externo está submetida aos interesses dos monopólios internacionais, mas, no caso brasileiro, dependia também da capacidade da elite econômica brasileira de competir nesse mercado, em que havia a necessidade de superexplorar de forma incisiva e constante o conjunto dos trabalhadores. Neste caso, a hegemonia dos grupos da indústria pesada no interior da coalizão das frações da elite brasileira orientou a expansão para as economias de maior grau de dependência que pudessem absorver sua produção, resultando no incremento do nível tecnológico da indústria leve nacional. “Esta, por certo, se via obrigada a coadjuvar na expansão externa mediante a aquisição de maior capacidade competitiva e também a se converter num mercado mais dinâmico para a indústria de bens de capital” (MARINI, [1969] 2014, p. 166).
O subimperialismo surgiu com o movimento de capitais que ocorreu no interior da nova divisão internacional do trabalho do pós-Segunda Guerra, na qual alguns países dependentes experienciaram a formação de trustes por meio da aglomeração entre capital e o Estado. Alguns países, a partir dessa dinâmica, se tornaram subimperialistas, nos quais foram formados os monopólios, a aglomeração do capital financeiro em trustes, o alcance de um determinado grau de industrialização, além de contar com a unificação das frações das elites brasileiras em um projeto de expansão capitalista de caráter nacional (MARINI, [1972] 2007, p. 76).
O subimperialismo surgiu quando alguns países dependentes congregaram a condição de exportadores de capitais à manutenção da situação de dependência, bem como pela pilhagem de matérias-primas e fontes de energia nos países de capitalismo de maior grau de dependência, resultante do embate por mercados no exterior. O Brasil seguiu na esteira do subimperialismo a partir da ditadura empresarial-civil-militar de 1964, momento no qual ingressa na fase dos monopólios e do capital financeiro sem romper com o caráter dependente. O subimperialismo não se resume a um tipo de política externa orientada conforme o governo do momento, mas é condição estrutural do capitalismo brasileiro desde a segunda metade da década de 1960 (MARINI, [1972] 2007, p. 76-77).
Essa política expansionista é uma característica central do subimperialismo que foi pregada pela Escola Superior de Guerra, como o coronel Golbery do Couto e Silva. Sua biografia é uma espécie de síntese da aliança entre o grande capital e a elite militar: completou sua formação militar nos Estados Unidos e depois se integrou à Força Expedicionária Brasileira, que combateu na Segunda Guerra Mundial na Itália incorporada ao V Exército estadunidense. Integrou-se ao Estado-Maior do Exército, participou da missão militar brasileira no Paraguai durante três anos e, em 1952, foi nomeado adjunto do Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra. O governo nascido do golpe de Estado de 1964 o nomeou chefe do Serviço Nacional de Informação, sendo o organizador e o primeiro titular do novo serviço de inteligência até o fim do governo de Humberto Castelo Branco (em 1967); tornou-se um dos homens fortes do regime. Retornou depois à atividade privada, contratado pela multinacional estadunidense Dow Chemical como presidente para América Latina. Contando com Couto e Silva, a multinacional se tornou uma das empresas petroquímicas mais importantes no Brasil (ZIBECHI, 2012, p. 37-38).
Com o advento do século XXI, os governos Lula entre 2003 e 2010 praticaram uma política externa que, ora se alinhava ao imperialismo dos Estados Unidos, ora possuía um caráter mais contestador a interesses estadunidenses. Nessa esteira, o Brasil passa a constitui uma forma mais atualizada de subimperialismo na América do Sul – mais especificamente, em relação à Bolívia – e cria uma nova forma de sua expressão no Caribe – no caso do Haiti.
As consequências para a Bolívia não se apresentaram tardiamente após o governo Lula, diversas manifestações de cunho popular aconteceram em 2011, a exemplo das marchas indígenas em defesa do Territorio Indigena y Parque Nacional Isiboro (Tipnis) – área de proteção do território indígena boliviano – e do bloqueio de estradas que davam acesso às suas principais cidades. Tais manifestações ocorreram em protesto à condescendência do governo Evo Morales em relação à forte intervenção das empresas brasileiras no país, questionando a empreiteira OAS e a construção de rodovias com o crédito concedido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) (ZIBECHI, 2012, p. 31-32).
Assim, “[...] Os conflitos mantidos por grandes empresas brasileiras em países vizinhos pequenos (Petrobras na Bolívia, Odebrecht no Equador, entre outros), evidenciaram o papel do Brasil na região” (ZIBECHI, 2012, p. 32). O subimperialismo não é um fenômeno estritamente econômico, não se resume apenas à exportação de manufaturas e capital, bem como à disputa por recursos naturais, matérias-primas e fontes de energia. Além desses elementos, o subimperialismo também produz ideologia e valores.
O Estado subimperialista brasileiro se expandiu inicialmente na América do Sul via uso da violência direta associada a investimentos de empresas brasileiras – estatais ou não. O caso do subimperialismo brasileiro na Bolívia data do começo da década de 1970, com a participação direta no golpe militar de 1971, liderado por Hugo Bánzer, contra o governo de Juan José Torres – golpe defendido pelas instâncias oficiais das relações exteriores do governo brasileiro (ZIBECHI, 2012, p. 37).
A participação brasileira no golpe militar boliviano não viria sem uma contrapartida e, assim, foram assinados inúmeros acordos pelos quais a Bolívia repassava ao Brasil petróleo, gás e certos tipos de minérios a baixo preço. Além disso, houve um planejamento por parte do Estado e do empresariado brasileiro na infraestrutura boliviana, com o objetivo de atender aos seus interesses, principalmente no acesso ao Pacífico, por meio da construção da ferrovia entre as cidades de Cochabamba e Santa Cruz, com a possibilidade também de ligação com o Atlântico via porto de Santos e a outro ponto do Pacífico, mais especificamente, na cidade de Arica, norte do Chile (ZIBECHI, 2012, p. 40). A Bolívia também cedeu territórios ao Brasil, entre 1974 e 1976, além de ter sido invadida pelo Estado brasileiro e ocupada por brasileiros.
Todos esses elementos do subimperialismo brasileiro vêm sendo articulados a um crescente fortalecimento de uma política militar, alocada principalmente na orientação da Missão de Paz das Nações Unidas no Haiti, tendo o Brasil como o formulador de estratégias de intervenção direta ou não nas regiões conflituosas do país (ZIBECHI, 2012, p. 48). A Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH) se torna uma das frentes da intervenção subimperialista brasileira em território haitiano, visto que o comando da Missão de Paz também serviria como laboratório para que o Brasil comprovasse sua influência geopolítica e garantisse uma vaga como membro permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), legitimando-se como candidato à expansão do Conselho.
O subimperialismo brasileiro no Haiti também tem como objetivo produzir – assim como outras nações subimperialistas e imperialistas – ideologia, valores e consenso. O “Jogo da Paz” é um dos exemplos mais fortes disso, no qual a seleção brasileira de futebol chegou ao país no dia 18 de agosto de 2004 para fazer um amistoso contra a seleção local, houve grande adesão e festa por parte da população haitiana, em que a “pátria de chuteiras” criou entre os cidadãos locais uma breve suspensão do cotidiano de uma situação de desastres naturais advindos dos terremotos e da condição geral de miséria do país mais pobre das Américas.
Imigração haitiana e boliviana no Brasil
O fortalecimento geopolítico e econômico brasileiro na Bolívia e no Haiti criou no imaginário da população desses países o entendimento de no Brasil existir mais oportunidades de emprego, renda e melhoria nas condições objetivas de vida. Entretanto, pelo fato de o Brasil ser uma nação subimperialista, há na formação socioeconômica nacional o caráter da superexploração e ainda em níveis mais intensos com relação aos imigrantes, mais especificamente, empreendidas aos haitianos e bolivianos.
As transformações ocorridas nos fluxos migratórios internacionais são, em geral, resultantes do desenvolvimento socioeconômico dos países de destino e dos países de origem dos migrantes. No caso brasileiro, sua política de expansão subimperialista é decisiva para influenciar a entrada de imigrantes oriundos de países fronteiriços como a Bolívia. Além disso, de acordo com Duval Fernandes (2015), o Brasil não aloca somente um projeto migratório de permanência prolongada, mas se torna também uma etapa para um projeto migratório maior, isto é, que levará alguns imigrantes aos países capitalistas imperialistas.
A crise econômica é uma das questões a serem consideradas para essa mudança nos fluxos migratórios com destino ao Brasil, mas é preciso também compreender a transformação socioeconômica brasileira ocorrida nos últimos 20 anos. Neste período, houve uma inflexão na gestão das políticas neoliberais, com ampliação vasta e programada de políticas de privatização de empresas públicas, articulada a uma plataforma de governo norteada pela financeirização das políticas públicas e sociais, bem como a apresentação de um caráter residual dessas políticas – ainda que, contraditoriamente, houvesse também maior diálogo com a sociedade civil e maior atenção com a questão migratória no País. Ademais,
[...] Quando acontece a crise mundial em 2008, o país estava em plena efervescência econômica, via investimentos privados e governamentais na área da construção civil pesada e prospecção de petróleo. Ao mesmo tempo, a política de transferência de renda e inserção laboral de uma parcela da população que se encontrava marginalizada contribuiu para a criação de um considerável mercado interno que ampliou o poder de compra da população. Essa situação permitiu que o impacto da crise econômica mundial fosse pouco sentido e que, nos anos seguintes, as taxas de crescimento do PIB levassem o país a ocupar um lugar de destaque no cenário da economia mundial (FERNANDES, 2015, p. 24).
Tais elementos formam um conjunto de condições favoráveis à migração internacional com destino ao Brasil, num contexto de crescimento econômico que demandava mais força de trabalho qualificada para atender aos setores de infraestrutura e indústria, bem como de força trabalho com menor qualificação técnico-científica para substituir os trabalhadores locais em determinados ramos. Este panorama tem como precedente uma nova política de internacionalização da economia brasileira da década de 1990 (FERNANDES, 2015, p. 24).
Neste caso, a imigração de bolivianos e haitianos tem no subimperialismo brasileiro o seu caráter comum, mas se diferenciam no tempo de duração e no contexto histórico de sua inauguração e continuação. Em termos de políticas migratórias, de acordo com Duval Fernandes (2015), o fluxo migratório de haitianos se iniciou após o terremoto que ocorrera no Haiti em 2010, associado à relevância internacional alcançada pelo Brasil até então. A migração dos bolivianos resulta da integração econômica e dos acordos de livre trânsito e regularização dos imigrantes entre Brasil e demais países da América do Sul (FERNANDES, 2015, p. 28).
A presença do Brasil no Haiti comandando a MINUSTAH, a partir de 2004, foi decisiva para inserir o Brasil entre os destinos mais procurados pelos haitianos para fugir da instabilidade de ordem político-econômica e social no país. Os imigrantes vindos do Haiti adotam algumas táticas, tanto para entrada quanto para permanência no Brasil como, por exemplo:
Os principais pontos de entrada no Brasil são as fronteiras do Peru com os Estados do Acre e Amazonas. Ao chegarem à fronteira, estes imigrantes apresentam uma solicitação de refúgio, alegando as péssimas condições de vida no Haiti e a impossibilidade de continuar vivendo naquele país, após o terremoto. Sendo o Brasil signatário das convenções sobre o acolhimento de refugiados, as autoridades na fronteira registram estas solicitações e as encaminham ao órgão competente: o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), do Ministério da Justiça, para análise. Enquanto aguardam a tramitação do pedido de refúgio, os imigrantes recebem uma documentação provisória (Cadastro de Pessoa Física – CPF e Carteira de Trabalho) que lhes permite circular pelo país na busca por trabalho (FERNANDES, 2015, p. 29).
A política externa brasileira também é outro fator que explica a imigração de haitianos, que passou por transformações desde o primeiro ano do governo Lula, e pela qual a liderança das forças de paz no Haiti divide sua inserção no país com a forte presença de empresas brasileiras no mercado local – principalmente empreiteiras e grandes construtoras que se encarregam de reconstruir o Haiti. Tais ações expressam a estratégia do Brasil de criar um modelo suficientemente integrado dentro da América Latina para alocar a expansão das empresas brasileiras, servindo para mostrar a capacidade de arbitragem e de intervenção em conflitos armados, com o objetivo de garantir assento permanente no Conselho de Segurança da ONU (MAGALHÃES, 2017, p. 122).
[...] embora a atuação brasileira no país se dê no sentido das forças de estabilização e de contenção dos movimentos sociais e populares, no resguardo da estrutura de classes interna e na manutenção dos interesses capitalistas na região (cooperação com o capitalismo mundial, especialmente com o imperialismo norte-americano), existe um alto grau de especificidade dos próprios interesses nacionais brasileiros no país (antagonismo com outras forças imperialistas, como Estados Unidos e França). Essas especificidades apontam, sobretudo, para o acesso a fontes de matérias-primas, a construção de estradas, portos e refinarias e desenvolvimento de projetos nas áreas de comércio, saúde e educação (MAGALHÃES, 2017, p. 124).
A visita do ex-presidente Lula ao Haiti e a ida da seleção brasileira de futebol ao país caribenho atraíram os haitianos a migrarem para o Brasil, no sentido de fugir de um contexto de crise econômica e política. A fuga de muitos haitianos de seu país é motivada também por uma antiga tradição de emigração. Há, também, a construção da imagem sobre o Brasil pelos coiotes que compõem uma rede de tráfico humano no Haiti, propagando a ideia de o Brasil estar imune à crise econômica internacional, de haver no país abundância de trabalho e facilidades de entrada e permanência (MAGALHÃES, 2017, p. 129-130).
Os megaeventos no Brasil, caso da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, fizeram do país um destino preferencial para os haitianos. Ademais, o discurso do ex-presidente Lula no Haiti, ao dizer que o povo haitiano seria bem recebido no Brasil, se tornou também um convite à imigração e a certeza de uma entrada segura e permanência prolongada. Articulada a um discurso conciliador, a influência brasileira no Estado haitiano se insere com a formação de parcerias para a capacitação de membros da Polícia Nacional do Haiti pela Polícia Federal brasileira, bem como com a participação de institutos públicos e de empresas públicas e privadas brasileiras no Haiti, a exemplo da EMBRAPA, OAS, entre outros (MAGALHÃES, 2017, p. 131).
Outra iniciativa brasileira, mas que envolve o Ministério das Relações Exteriores do Brasil (MRE), é o Centro Cultural Brasil-Haiti, que desenvolve cursos esporádicos e permanentes de língua portuguesa, além de cursos sobre a cultura brasileira, com o objetivo de gerar um diálogo intercultural. Ainda que não apresente um caráter estritamente ligado ao viés militar e econômico, este projeto segue vinculado ao fluxo migratório Brasil-Haiti, oferecendo cursos normalmente procurados jovens haitianos de Porto Príncipe que planejam migrar para o Brasil de forma menos vulnerável e precária que a usual (MAGALHÃES, 2017, p. 133-134).
A imigração boliviana no Brasil, especialmente com destino a São Paulo, teve seu início em 1950, com a entrada de estudantes bolivianos por meio do programa de intercâmbio cultural Brasil-Bolívia criado à época. Esse fluxo migratório tem seu acirramento na década de 1980, com um perfil constituído por uma população de ambos os sexos, solteiros, nível mediano de escolaridade, oriundos predominantemente de La Paz e Cochabamba, embora não sejam as únicas regiões (Cf. FERNANDES, 2015, p. 32). Entretanto:
Até recentemente, uma parcela considerável dos bolivianos que adentrou o território brasileiro não estava legalizada, porque o Estatuto do Estrangeiro só permite a entrada de mão de obra especializada e de empreendedores. Aqueles que não apresentavam essas características tinham como opção, para a regularização, casar-se com brasileiro ou ter um filho nascido em território brasileiro (SILVA, 2008). Contudo, o Brasil buscou criar mecanismos para facilitar a regularização destes e de outros imigrantes. Em 2009, por meio do Decreto nº 6.893/2009, promulgou-se lei que concedeu anistia aos estrangeiros que entraram no país até 1º de fevereiro de 2009 e aqui residiam de forma irregular. No mesmo ano, entrou em vigor o acordo de livre trânsito de pessoas na área do MERCOSUL, Chile e Bolívia (Decretos n. 6.964/2009 e n. 6.975/2009). Uma avaliação preliminar da anistia aos 33 imigrantes irregulares aponta que, até o final de 2009, foram realizadas, aproximadamente, 42 mil solicitações e destas, 17 mil tinham como solicitantes imigrantes bolivianos (OIM, 2010) (FERNANDES, 2015, p. 32-33).
Os imigrantes bolivianos não se concentram de forma homogênea, mas habitam, majoritariamente, áreas metropolitanas – sobretudo São Paulo –, além de regiões fronteiriças – caso de Corumbá e Porto Velho (FERNANDES, 2015, p. 33). Mesmo com um histórico de imigração, o Brasil ainda não constituiu uma política sólida o suficiente para recepcionar contingentes de trabalhadores cada vez maiores e cada vez mais pauperizados que chegam irregularmente ao País. Tal condição faz dos imigrantes haitianos e bolivianos trabalhadores mais propensos à superexploração, mais intensificada que a estrutural empregada aos trabalhadores brasileiros, inclusive.
O Brasil é o único país da América do Sul a não reconhecer o direito dos imigrantes de votar e serem votados em nenhum nível da administração política, direito vedado pela Constituição Federal de 1988, resultante dos resquícios do Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980). Este estatuto, criado na ditadura militar, proíbe a participação dos imigrantes em sindicatos, associações profissionais, fazendo da figura do imigrante uma ameaça à soberania do país e à manutenção da empregabilidade do trabalhador brasileiro (Cf. REVISTA POLI, 2012, p. 4-5). O Estatuto do Estrangeiro foi revogado pela nova Lei de Imigração (Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017), que regulamenta, entre outras coisas, entrada e permanência dos imigrantes.
Entretanto, o crescimento do número de imigrantes no Brasil, a partir de 2009, veio acompanhado da histórica falta de uma política sistematizada para receber o imigrante. Assim, haitianos e bolivianos desenvolvem novas formas de permanência e acesso ao mercado de trabalho – quando não entram na informalidade.
Muitas vezes descrito como liberal e acolhedor após 2010, a política de migração do Brasil em relação aos recém-chegados haitianos tem sido impulsionada pelos interesses econômicos do setor corporativo brasileiro, bem como o reconhecimento da natureza complexa e híbrida dessa migração após o terremoto e os seguintes furacões que afetaram a economia haitiana. Em resposta às primeiras chegadas ao Brasil (2010-2012), os haitianos têm permissão para solicitar o asilo, um processo legal que ofereceu acesso temporário ao mercado local de emprego. No entanto, a situação da maioria dos haitianos não se enquadrava na categoria dos refugiados, tal como definida pela Convenção de Genebra (AUDEBERT, 2017, p. 66 – tradução livre).
No caso dos haitianos, em 2012, o Governo Federal concedeu vistos humanitários com a Resolução Normativa 97 (RN 97) para confrontar os coiotes e as rotas migratórias por eles usadas. No ano de 2013, houve a prorrogação anual do período de validade da RN 97, concedendo vistos a 48.000 haitianos (AUDEBERT, 2017, 66-67 – tradução livre). Com a entrada dos imigrantes haitianos pelos estados da região amazônica e o atendimento de suas demandas básicas como saúde e acomodação, um número substancial de empresas do Sul passou a recrutá-los diretamente para empregá-los posteriormente (AUDEBERT, 2017, p. 66 – tradução livre).
A maioria dos imigrantes, de forma subsequente, segue em direção aos estados do Sul e ao coração econômico do país em busca de oportunidades de emprego. De acordo com o RAIS/MTE, a maioria dos 30 mil cidadãos haitianos que possuíam uma autorização de trabalho no Brasil em 2014 concentravam-se em três estados: Santa Catarina (25%), São Paulo (24%) e Paraná (22%). Geralmente mais precarizados, se concentram na construção civil, abate e processamento de carne, restaurantes e bares, agricultura (produção de maçãs) e limpeza (AUDEBERT, 2017, p. 67 - tradução livre)
Outra questão a ser tratada são as remessas, produzidas pela economia dos salários – ainda que mediadas por condições precárias de assalariamento e gasto elevado com aluguel, mantidos por duplas jornadas de trabalho – são recursos poupados do consumo e do lazer, destinados majoritariamente a familiares para garantir condições de subsistência à família. A forma de envio de remessas é feita em sua maioria por transferência bancária (MAGALHÃES, 2017, p. 247-248). Também:
[...] Com isso, tais recursos, originados no processo de trabalho na cidade de destino e que justificam, em grande medida, a aceitação de níveis adicionais de exploração da força de trabalho e de renúncia a consumo e lazer na sociedade de acolhida, não são utilizados para alterar significativamente as situações econômicas e sociais das famílias receptoras. Embora permita um nível de consumo adicional, essencial muitas vezes para a própria subsistência material e sobrevivência destas famílias, elas apenas aliviam mas não alteram a situação de vulnerabilidade em que se encontram essas famílias. No sentido em que esta situação não é um subproduto das remessas, mas sim de uma situação econômica e social que a condiciona e engendra relação de dependência destes recursos, podemos avaliar de forma mais concreta a relação entre migração, remessas e desenvolvimento no caso haitiano (MAGALHÃES, 2017, p. 251).
A chegada ao Brasil não representa, assim, boas condições de trabalho e de qualidade de vida. Os imigrantes haitianos e bolivianos, por conta da falta de uma política elaborada para os imigrantes, estão mais suscetíveis ao aliciamento de coiotes antes mesmo de sua entrada, além da subsequente superexploração de sua força de trabalho. Os imigrantes mais pauperizados, majoritariamente, são submetidos a uma jornada média de 14 a 16 horas de trabalho por dia2, além de, em alguns casos, receberem cerca de R$ 200 a R$ 300 por mês – considerando que alimentação e moradia são descontadas diretamente do pagamento desses trabalhadores. Alimentos com prazo de validade vencido e condições inóspitas de habitação dessas moradias fazem parte da realidade desse perfil de imigrantes que chega ao Brasil (Cf. RIBEIRO, 2011).
Esses imigrantes se dirigem majoritariamente para o estado de São Paulo, haitianos e bolivianos são encontrados em cidades como Osasco, Americana e, até mesmo, na região central da cidade de São Paulo, submetidos a condições análogas à escravidão. São superexplorados em oficinas têxteis ligadas a empresas de vestuário nacional, como Marisa e Unique Chic3, além de empresas estrangeiras do mesmo ramo, como a espanhola Zara. As condições das moradias fornecidas pelos donos das oficinas se enquadram em superlotação, com colchões em péssimo estado de conservação e colocados no chão, péssimas condições de higiene, mofo e infiltrações – habitações compartilhadas, inclusive, com crianças pequenas (Cf. WROBLESKI, 2014a).
Os haitianos têm sido recrutados para trabalhar nos setores da mineração e da construção civil, a exemplo do conglomerado britânico Anglo American e uma construtora por ele contratada chamada Diedro Construções e Serviços Ltda., em Minas Gerais. No caso dessas empresas, os haitianos foram encontrados em situação análoga à escravidão, com hemorragias no estômago, alimentando-se com produtos de baixa qualidade – com produtos vencidos, inclusive – obrigados pelas empresas a pagar entre 200 e 400 reais com transporte para chegar ao local de trabalho4.
Outros ramos, como o da carvoaria e de frigoríficos, também alocam exploração da força de trabalho de forma degradante. Segue-se, em muitas vezes, jornadas de mínimo de 9 horas nas carvoarias em troca de um salário de 950 reais, ou um salário de mil reais em frigoríficos com temperatura de cerca de 9 graus Celsius – 3 graus abaixo do estabelecido pelo Ministério do Trabalho. Um haitiano, de acordo com uma pesquisa da ONU, já custa menos que um trabalhador chinês (Cf. SANCHES, 2014).
Por fim, uma das mais conhecidas formas de ganho pelos trabalhadores imigrantes – que, neste caso, se especifica com os bolivianos – é a venda de produtos artesanais, tais como pulseiras, cordões, anéis e afins. Normalmente, as notícias mais encontradas sobre esse tipo de trabalho informal se inscrevem em lugares turísticos, como a praia do Arpoador e de Botafogo5, na Zona Sul do Rio de Janeiro – embora boa parte dos bolivianos já esteja, até mesmo, na Zona Oeste da cidade. Disputam espaço nas calçadas com camelôs locais (com a licença da Prefeitura ou não) e seguem sob constante ameaça de terem seus materiais apreendidos pela Guarda Municipal do Rio de Janeiro, gerando embates com esses comerciantes.
Considerações finais
Os fluxos migratórios Haiti-Brasil e Bolívia-Brasil têm como caráter comum o subimperialismo brasileiro, advento da ditadura empresarial-civil-militar de 1964, como aponta Marini. A ditadura empresarial-civil-militar abriu o projeto de poder brasileiro que se apoiava na formação de uma estrutura que comportasse a expansão da influência brasileira na América Latina, leia-se: a expansão das empresas brasileiras, públicas ou privadas, bem como a participação militar via apoio a ditaduras em outros países.
As relações migratórias mais próximas com a Bolívia, no entanto, se iniciam na década de 1950 com o programa de intercâmbio cultural que trazia jovens estudantes bolivianos ao Brasil, principalmente para São Paulo. O caso do Haiti se apresenta de forma distinta à da Bolívia. A imigração haitiana tem sua expressão mais contundente logo após o terremoto em 2010, em que se pese também a intervenção ativa brasileira no Haiti desde 2003 com a MINUSTAH; o crescimento econômico e a estabilidade político-social brasileiros, além da intensificação do controle da imigração nos Estados Unidos, foram decisivos para estabelecer as rotas migratórias de haitianos rumo ao Brasil.
O Brasil, ao instaurar uma influência na América Latina, provoca também no imaginário do conjunto dos trabalhadores bolivianos e haitianos a idealização de uma realidade distorcida provocada pela ação conjunta de militares, autoridades civis do Estado e empresas brasileiras (públicas e privadas).
Aos imigrantes, em sua maioria, se apresentam trabalhos degradantes e análogos à escravidão ou bastante precarizados e sem garantia de direitos trabalhistas. Associado a isso, não há uma construção de políticas planejadas de imigração, são apresentadas apenas normativas muito deficitárias em relação à garantia de direitos civis, políticos e trabalhistas dessa população. Faz desta, por conseguinte, um setor suscetível a condições pouco organizadas de entrada e permanência, bem como a condições inóspitas de trabalho que implicam situação de suprexploração na cadeia produtiva brasileira.
A resultante dessa superexploração também é consequência da terceirização – em que se pese, igualmente, o regime de subcontratações de microempresas –, bem como do pouco controle do Estado brasileiro em relação ao trabalho análogo à escravidão. Articula-se a isso a forma branda pela qual as empresas inscritas neste tipo situação são submetidas, com multas irrisórias comparadas aos seus lucros líquidos e a inimputabilidade dos proprietários e dos gerentes dessas empresas.
As reações dos imigrantes, entretanto, podem ser totalmente distintas: tanto podem querer permanecer no país – mesmo com a situação de trabalho degradante – como podem buscar a volta para seu lugar de origem. A nova Lei de Imigração, aprovada em 2017, ainda é muito recente, mas já representa algum avanço em relação ao Estatuto do Estrangeiro, no que se refere ao reconhecimento de certos direitos dos imigrantes, combate ao tráfico de pessoas e à xenofobia. Contudo, como a realidade é um espaço de disputa constante, o avanço do conservadorismo e a retórica de “roubo” dos empregos dos trabalhadores locais em períodos de crise podem fazer com que o pouco do avanço conquistado seja perdido.
Referências
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