Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a atenção à saúde dos imigrantes haitianos em Unidades Básicas de Saúde (UBS) em Chapecó-SC. Foi realizada uma cartografia em seis UBS nos bairros que concentram o maior número de haitianos. Participaram da pesquisa 172 trabalhadores da atenção básica do Sistema Único de Saúde (SUS). Na realidade observada, os haitianos têm garantia legal de acesso e atenção aos serviços do SUS. Porém, percebemos que para muitos trabalhadores os haitianos representam uma ameaça para o SUS. Para que haja um cuidado humanizado ao imigrante é necessário avançar no diálogo sobre preconceito, discriminação social e estigma em saúde.
Palavras-chave:Atenção à saúdeAtenção à saúde,Imigrantes haitianosImigrantes haitianos,Étnico-raciaisÉtnico-raciais.
Artigos
Atenção em Saúde aos Imigrantes Haitianos em Chapecó e suas Dimensões Étnico-Raciais
Atenção em Saúde aos Imigrantes Haitianos em Chapecó e suas Dimensões Étnico-Raciais1
Ana Paula Risson2
Regina Yoshie Matsue3
Ana Cristina Costa Lima4
Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar a atenção à saúde dos imigrantes haitianos em Unidades Básicas de Saúde (UBS) em Chapecó-SC. Foi realizada uma cartografia em seis UBS nos bairros que concentram o maior número de haitianos. Participaram da pesquisa 172 trabalhadores da atenção básica do Sistema Único de Saúde (SUS). Na realidade observada, os haitianos têm garantia legal de acesso e atenção aos serviços do SUS. Porém, percebemos que para muitos trabalhadores os haitianos representam uma ameaça para o SUS. Para que haja um cuidado humanizado ao imigrante é necessário avançar no diálogo sobre preconceito, discriminação social e estigma em saúde.
Palavras-chave
Atenção à saúde; Imigrantes haitianos; Étnico-raciais.
Health care attention to the Haitian immigrants in Chapeco and it’s ethnic-racial dimensions
Abstract
This article aims to analyze the health care assistance to Haitian immigrants in the Basic Health Units in Chapeco-SC. A cartography was carried out in six Basic Health Units in districts that concentrate large number of Haitians. A total of 172 SUS primary care workers participated in the study. Haitians have a legal guarantee of health access and attention from SUS services. However, we realize that for many health workers, Haitians represent a threat to the SUS. In order to provide humanized care to the immigrant, it is necessary to improve the dialogue on prejudice, social discrimination, stigma and health.
Keywords
Health care; Haitian immigrants; Ethnic-Racial.
Artigo recebido: dezembro de 2017
Artigo aceito: fevereiro de 2018
Introdução
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma das dimensões das migrações internacionais que necessita receber atenção é o reflexo deste fenômeno nas políticas de saúde dos países. É de direito dos imigrantes a igualdade ao acesso aos serviços de saúde, de maneira que suas características culturais e étnico-raciais sejam respeitadas (WHO, 2003; 2010). Este acesso e o atendimento em saúde de imigrantes compõem os indicativos para que seus direitos humanos sejam assegurados (RAMOS, 2009; FRANKEN; COUTINHO; RAMOS, 2012).
As migrações referem-se a fenômenos que perpassam a história da humanidade e do próprio Brasil. A primeira imigração para o Brasil foi de aproximadamente quatro milhões africanos, trazidos de maneira forçada e escravizados no país (SEYFERTH, 2011). Em seguida, período de 1819 a 1940 chegaram ao país cerca de cinco milhões de imigrantes, especialmente os europeus e japoneses, atraídos pelas políticas governamentais da época (COGO; SOUZA, 2013). Após este período é registrado um decréscimo de imigrantes chegando ao país. Recentemente, o Brasil se torna novamente o destino de muito imigrantes, mas desta vez é uma migração que se origina no hemisfério sul, principalmente países da África e da América do sul e central.
Em 2010, o Censo Demográfico sinalizou que residiam no país 431.453 imigrantes recenseados (IBGE, 2010). Em 2011, este número cresceu para 1.466.000, de acordo com o Departamento da Polícia Federal (COGO; SOUZA, 2013). Devido a esses intensos fluxos imigratórios a partir de 2010, a estimativa era que em 2015 estariam residindo no país 1,9 milhão de imigrantes, incluindo documentados e indocumentados (ZAMBERLAM et al., 2014). Contudo, a partir do final de 2015, com o agravamento da crise econômica e política no Brasil, este quadro alterou-se novamente, visto que é possível constatar imigrantes retornando ao seu país de origem ou migrando para outros países.
Dentre os fluxos migratórios chegando ao Brasil nos últimos anos, destacam-se os haitianos, uma população migrante oriunda de um contexto marcado por condições de vida precária. O contexto atual do Haiti é resultado de problemas políticos, econômicos e sociais que perpassam a história do país, agravado com uma sequência de acontecimentos climáticos nos últimos anos, especialmente o terremoto de 2010, que atingiu Porto Príncipe, capital do país (LOUIDOR, 2013). A soma destes acontecimentos trouxe graves consequências à população haitiana e em toda a estrutura social e governamental do país. Destarte, o atual cenário do Haiti é entendido como reflexo de uma “violência estrutural” histórica, caracterizada por Farmer (2004) como um conjunto de acontecimentos danosos (desde exploração política e econômica, epidemias, violações de direitos humanos e genocídio, etc.) que expõe os haitianos à condição severa de pobreza e vulnerabilidade.
A fuga do Haiti, portanto, é uma possibilidade de melhoria da vida para o imigrante e para aqueles que permanecem no país e necessitam de remessas de dinheiro para sobreviver. Ao final de 2015, a estimativa era que aproximadamente 60 mil haitianos residiam no Brasil e três mil em Chapecó, oeste de Santa Catarina. No entanto, devido à crise econômica, órgãos oficiais da cidade de Chapecó (Secretaria de Saúde e Política Federal), estimam que em 2017 a população de haitianos tenha reduzido pela metade. Nesta cidade, os imigrantes haitianos ocupam postos de trabalho em que havia falta de mão de obra, em sua maioria de condições precárias. O principal setor empregador dos haitianos nesta região são as agroindústrias, seguido da construção civil (RISSON, DAL MAGRO, LAJÚS, 2017; BERNARTT et al., 2015).
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 e o Sistema Único de Saúde (SUS) preveem universalidade, equidade e integralidade no atendimento a saúde para todos os residentes no país, ou seja, para brasileiros e imigrantes (BRASIL, 1988, 1990). A universalidade garante que todos possam “alcançar uma ação ou serviço de saúde de que necessitem sem qualquer barreira de acessibilidade, seja legal, econômica, física ou cultural” (PAIM, 2009, p. 45).
Contudo, há situações em que ocorrem grandes desigualdades no acesso aos serviços de saúde, pois atender igualmente os desiguais poderia resultar na manutenção das desigualdades e vulnerabilidades. Nesse sentido, torna-se necessário atender desigualmente os desiguais, com o intuito de alcançar a igualdade de acesso e atenção em saúde. Assim, cresce a importância de equidade, que admite a possibilidade de atender desigualmente os que são desiguais, priorizando os que mais necessitam para poder alcançar igualdade na atenção à saúde (PAIM, 2009).
Nesta perspectiva, a atenção integral à saúde, conforme balizam as políticas de saúde do Brasil, implica em compreender os sujeitos a partir de suas necessidades e particularidades, garantidas através de políticas, estratégias de gestão e práticas em saúde. Os haitianos têm direito de acessar os serviços públicos no Brasil, podendo ser considerados os “novos usuários” dos serviços do SUS. Entretanto, na atual conjuntura da atenção básica os imigrantes apresentam novos desafios aos trabalhadores do SUS, uma vez que não foram preparados para o atendimento adequado de tal demanda.
Os imigrantes fazem parte de um grupo vulnerável social e economicamente, pois se submetem facilmente a postos de trabalho insalubres, salários baixos e moradias precárias. Muitas vezes os direitos de tais sujeitos não são respeitados nos espaços públicos, intensificando a sua condição de vulnerabilidade (SANTOS, 2015).
Estas questões nos inspiraram a realizar uma pesquisa sobre a atenção à saúde de haitianos residentes em Chapecó. Optamos pela cartografia como estratégia metodológica, pois permite “acompanhar um processo, e não representar um objeto” (KASTRUP, 2010, p. 32), considerando que em todo campo de pesquisa há um processo em andamento.
Revendo as bases de dados Lilacs, Medline e Scielo, utilizando os descritores “imigrantes”, “imigração” e “saúde” encontramos alguns estudos sobre questão de cuidados em saúde aos imigrantes bolivianos residentes no Brasil, dentre eles destacam-se: Madi, Cassanti e Silveira (2009); Calixto et al. (2012); Goldberg e Silveira (2013); Martes e Faleiros (2013); Silveira et al. (2014) e Aguiar e Mota (2014). Contudo, ao utilizarmos os descritores “haitianos”, “imigrantes” e/ou “saúde”, localizamos apenas o estudo de Santos (2015) − que reflete sobre as respostas do SUS frente às demandas colocadas pelos haitianos no Amazonas. Haja vista a lacuna de pesquisas, bem como a relevância do tema para se pensar a atenção à saúde no Brasil, este trabalho busca analisar a atenção à saúde dos imigrantes haitianos em Unidades Básicas de Saúde (UBS) na cidade de Chapecó-SC.
Metodologia
Optamos pela cartografia como metodologia de pesquisa, pois esta permite a produção do conhecimento considerando as subjetividades presentes no campo, assim como as percepções do pesquisador em acompanhar um processo que está em andamento (ROMAGNOLI, 2009; KASTRUP, 2010), neste caso, o recente acesso e atenção à saúde de haitianos no SUS. Assim, a cartografia possibilita dar visibilidade às relações construídas nos territórios pesquisados, bem como as subjetividades “que se atravessam, a manifestação do diferente, a produção desejante de certos fluxos de cuidado, e também de ‘não cuidado’, o contraditório, o inesperado, desvios, estranhamentos, que traduzem o saber-fazer diante do mundo que produz o cuidado nos seus distintos cenários” (FEUERWERKER, 2014, p. 32).
A produção de dados foi realizada no segundo semestre de 2016, em seis UBS da cidade de Chapecó-SC (identificadas como UBS 1, UBS 2, UBS 3, UBS 4, UBS 5 e UBS 6), localizadas nos bairros com maior concentração de moradias de haitianos. Nestes bairros também estão localizadas as principais empresas contratantes de haitianos, sendo cinco delas agroindústrias.
Nas UBS, a produção de dados se consistiu em 3 etapas. Primeiramente foram realizadas 6 entrevistas semiestruturadas com as coordenadoras das UBS. No segundo momento, realizamos 6 rodas de conversa com os trabalhadores de cada uma das UBS participantes da pesquisa. E por último, 5 oficinas de grupo com os trabalhadores de cada uma das UBS participantes da pesquisa. Cada um destes momentos foi guiado por um roteiro semiestruturado. Em cada encontro com os trabalhadores da saúde, individual ou coletivo, foram utilizados os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e o Termo de Consentimento para Uso de Imagem e Voz (TCUIV). No total, a pesquisa contou com a participação de 172 trabalhadores da saúde, incluindo agentes comunitários de saúdes, auxiliares administrativos, auxiliares de enfermagem, auxiliares de saúde bocal, dentistas, educadores físicos, enfermeiras, farmacêuticos, médicos, nutricionistas, técnicos de enfermagem e psicóloga. Além destas estratégias, realizamos observações no cotidiano (registradas em diários de campo) e uma pesquisa documental (realizada no portal eletrônico da Secretaria Municipal de Saúde de Chapecó). Os dados da pesquisa foram organizados e analisados a partir da lógica rizomática. A interpretação dos dados foi pautada pelo referencial teórico do campo da saúde coletiva.
O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (CEP/ Unochapecó), por meio da Plataforma Brasil, e aprovado para pesquisa com parecer consubstanciado nº 1.175.375/2015.
O contexto de imigração haitiana para Chapecó
O cenário desta pesquisa foi a cidade de Chapecó, localizada na região oeste do estado de Santa Catarina. Chapecó foi colonizada por descendentes de italianos e alemães, emancipada no dia 25 de agosto de 1917 e caracterizada como uma nova unidade política e administrativa da região. Sua expansão econômica deu-se inicialmente pela agricultura e nas últimas décadas por conta do polo agroindustrial que comporta. A população projetada é de 202.760 habitantes (CHAPECÓ, 2014). A região é hoje povoada por grande maioria branca e poucos índios, os quais vivem em condições precárias em suas reservas no entorno da cidade.
Contudo, Chapecó é, hoje, considerada como o centro econômico da região oeste de Santa Catarina, um dos motivos que atrai novos habitantes, vindos principalmente de cidades de seu entorno. Esta cidade é também a que recebe atualmente o maior número de haitianos, dentre os municípios desta região.
A imigração haitiana para Chapecó ocorreu inicialmente pela contratação destes imigrantes para trabalhar nas agroindústrias da cidade, a grande maioria realizada na cidade de Brasiléia (AC), onde os haitianos estavam à espera do protocolo de permanência no Brasil. Na sequência, a chegada de haitianos a Chapecó deu-se pela rede de comunicação entre eles (RISSON, DAL MAGRO, LAJÚS, 2017).
Identificamos que a maior concentração da população haitiana na cidade de Chapecó encontra-se nos bairros adjacentes das agroindústrias (região da Grande Efapi, seguida dos bairros Engenho Braum, Parque das Palmeiras, Jardim América, São Cristóvão e Saic). Compreende-se que estes locais são escolhidos pelos haitianos para fixarem residência por estarem próximos das principais empresas que os empregam e por terem um custo de moradia menor comparado a outros bairros centrais.
Em 2014, a Secretaria de Saúde de Chapecó informou que havia, aproximadamente, 3.000 haitianos na cidade. A partir de 2017, devido aos efeitos da crise econômica, os órgãos públicos apontam que residem na cidade, aproximadamente, 1500 haitianos. Independente do número é notável, ao percorrer as ruas da cidade, que é uma nova população expressiva.
Atenção em saúde de haitianos
Os imigrantes encontram diversas dificuldades de acesso aos serviços de saúde, dentre elas: o desconhecimento da organização do sistema de saúde no país receptor, falta de tempo, medo de utilizar os serviços (especialmente quando estão em condição de ilegalidade), desconhecimento da língua e as diferenças culturais relacionadas ao comportamento sobre as doenças e tratamentos (MARTES; FALEIROS, 2013).
Em primeiro lugar, para que os imigrantes tenham acesso aos serviços do SUS aconteça é necessário o Cartão Nacional de Saúde. As coordenadoras das UBS participantes da pesquisa informaram que para a obtenção deste cartão, o procedimento é o mesmo que para os brasileiros, bem como para o agendamento de consultas:
[...] a gente tenta tratar os haitianos da mesma forma que os outros [brasileiros]. Chega na unidade e faz o cadastro com os documentos. Pertencendo a nossa área, pode agendar consulta. E quando estão com dor o encaixe é feito igual para os outros [brasileiros], a gente orienta vir às 7h30min pra tentar encaixar na vaga de algum faltoso (UBS 4, entrevista: coordenadora).
Identificamos que o cadastro no SUS e a criação do Cartão Nacional de Saúde na UBS, também, podem ser realizados através da visita domiciliar das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS), “atores fundamentais nesse processo, aproximando imigrantes das UBSs e promovendo ações preventivas de saúde” (MARTES; FALEIROS, 2013, p. 155).
Sobre as visitas domiciliares, algumas ACS relataram que foi um processo tranquilo, embora com a dificuldade de comunicação:
[...] na primeira vez que a gente foi para cadastrar eles tinham um intérprete que respondia tudo bem certinho para nós. Os outros imigrantes só ficavam em cima de nós querendo saber o que era, porque que a gente estava fazendo aquilo (UBS 3, roda de conversa: ACS 1).
No entanto, em uma roda de conversa e oficina de grupo realizadas na UBS 4, emergiu o relato de um episódio no qual uma ACS sofreu agressão física de um imigrante no momento da visita domiciliar. O episódio foi relatado na reunião de coordenadores das UBS de Chapecó e a decisão da Secretária Municipal de Saúde foi cancelar as visitas domiciliares a esta população:
[...] por ordem da secretária [de saúde] ficou determinado que não tinha obrigatoriedade de fazer o acompanhamento como se faz para as outras famílias, assim como não precisava fazer o cadastro. A secretária [de saúde] disse que a princípio elas [ACS] não precisam fazer esse acompanhamento mensal como se faz com os outros pacientes. Elas vão quando tem algum recado (UBS 4, roda de conversa: coordenadora).
A decisão de cancelar o acompanhamento mensal domiciliar aos imigrantes não está na direção do que preconiza o SUS e as demais políticas de saúde. O direito de universalidade, equidade e integralidade em saúde desta população foi lesado, uma vez que se estes usuários não dirigirem-se às UBS, ficarão desatendidos em suas residências. Os princípios do SUS, especialmente a integralidade, só têm chances de serem efetivados com o “esforço da equipe de saúde de traduzir e atender, da melhor forma possível, tais necessidades, sempre complexas, mas, principalmente, tendo que ser captadas em sua expressão individual” (CECILIO, 2006, p. 120).
Ainda, sobre o acesso aos serviços de saúde, os participantes da pesquisa sinalizaram que os haitianos têm os mesmos direitos que os brasileiros, no entanto, identificamos que alguns trabalhadores ficaram incomodados em relação a este fato.
O SUS não é nosso, mas é nós que pagamos nossos impostos. Nós que nascemos aqui. O SUS não está sendo só pros brasileiros, o SUS está sendo pro mundo. Chegou aqui no Brasil, tem direito ao SUS, isso é estranho. Eu estou com medo, que a gente vai perder esse SUS porque está acolhendo o mundo, porque a gente não vai ter dinheiro pra isso (UBS 5, entrevista: enfermeira).
Embora exista a igualdade jurídica, prevista na Constituição Federal, entre brasileiros e imigrantes, tal prerrogativa não é aceita por todos os trabalhadores da saúde. Deste modo, conforme Duarte, Junior e Siqueira (2013), a nacionalidade dos sujeitos restringe ou impede os imigrantes de acessarem e utilizarem os serviços de saúde em diversos países. Além disso, pode ser um atravessador nas interrelações estabelecidas entre usuários imigrantes e trabalhadores (GOLDBERG; SILVEIRA, 2013).
A visão da trabalhadora sobre o fato do SUS ser exclusivo dos brasileiros diverge dos princípios de universalidade e equidade garantidos constitucionalmente. Sua percepção está relacionada à crença de que os imigrantes podem ser uma ameaça para o país e para os serviços ou sistemas de saúde (RODRIGUES; DIAS, 2012).
A OMS, a Constituição Federal de 1988 e as diretrizes do SUS asseguram acesso indiscriminado aos serviços públicos de saúde dos imigrantes. No entanto, é necessário avançar no que diz respeito à responsabilidade dos países receptores e suas políticas públicas para atender as necessidades dos migrantes. Embora as singularidades e o acesso aos serviços de saúde para imigrantes estejam previstos na agenda nacional, parece “existir uma lacuna no enfrentamento das singularidades dos grupos de migrantes, que não raro ficam sujeitos à interpretação difusa sobre seu direito ou não ao atendimento pelo sistema de saúde pública no Brasil” (MARQUES, AFONSO; SILVEIRA, 2014, p. 84).
Cabe o questionamento: que implicações têm esta concepção de que o “SUS deve ser somente para brasileiros” na relação entre trabalhador de saúde e usuários haitianos?
Uma possível resposta é de que o vínculo entre usuários haitianos e trabalhadores da saúde pode ser comprometido. Vínculo, neste estudo, é compreendido conforme o que caracteriza a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB): “construção de relações de afetividade e confiança entre o usuário e o trabalhador da saúde, permitindo o aprofundamento do processo de corresponsabilização pela saúde, construído ao longo do tempo, além de carregar, em si, um potencial terapêutico” (BRASIL, 2012, p. 21).
Não sendo possível esta relação de vínculo entre trabalhadores e usuários do SUS a integralidade em saúde pode estar comprometida, pois, é na ação integral em saúde que são gerados efeitos e repercussões de interações positivas, “traduzidas em atitudes, como: tratamento digno e respeito, com qualidade, acolhimento e vínculo” (PINHEIRO; GUIZARDI, 2005, p. 21).
Dimensões étnico-raciais
Ao questionarmos os trabalhadores sobre como compreendem a chegada de haitianos no Brasil, uma profissional falou: “O cara vem pra cá, traz a doença e você tem que tratar.” (UBS 6, oficina de grupo: dentista).
Perceber o outro como alguém com intenção de dolo, por trazer uma suposta doença, aos que aqui estão, impede que o trabalhador de saúde exerça seu papel de cuidador. Ou seja, a criação de vínculo e o atendimento humanizado entre trabalhadores da saúde e usuários – especialmente como idealizado pela Política Nacional de Humanização (PNH) –, estão comprometidos. Neste relato, o haitiano é concebido com uma ameaça para a saúde da população local.
Portanto, se os imigrantes são entendidos como “os de fora”, como um “estrangeiro”, “[...] os profissionais enquanto parte integrante deste contexto sociocultural refletem as divisões sociais e os preconceitos da sociedade mais ampla” (RODRIGUES; DIAS, 2012, p. 7).
Os imigrantes, muitas vezes, são vistos como “bode expiatório no país receptor, ou seja, como objeto de culpa do sistema social, sendo a ele atribuído a causa do desemprego e de outros problemas sociais” (DANTAS, 2015, p. 75). Na direção do que a autora coloca, identificam-se discursos de trabalhadores que entendem o haitiano como o bode expiatório do atual cenário nacional, dentre eles: “o custo de vida encareceu demais depois disso [a chegada de haitianos], e cada vez mais está encarecendo, por isso eu não estou de acordo [com a chegada de haitianos]” (UBS 6, oficina de grupo, ACS 1). Ao associar o aumento da imigração haitiana para o Brasil com a instabilidade política e econômica que o país atravessa, instiga a aversão ao estrangeiro, ao estranho, ao “de fora”. A discriminação se expressa por uma compreensão de que eles são “culpados” das mazelas da sociedade e, assim, se fortalece o estigma do haitiano.
Ao refletir sobre o acesso e atenção em saúde de haitianos no Amazonas, Santos (2015) destaca que os obstáculos para um efetivo atendimento destes novos usuários estão também no plano das ideias e dos afetos dos prestadores de serviços. A autora faz este apontamento, porque encontrou em sua pesquisa a relutância de trabalhadores da saúde em incluir os haitianos nas atividades cotidianas das UBS, cenário este que está próximo ao encontrado em Chapecó.
Tendo em vista este cenário, podemos inferir que os preconceitos e imagens associados ao imigrante haitiano refletem na atenção à saúde do mesmo. Compreendemos que estes preconceitos e imaginários envoltos dos haitianos possuem relação direta com a figura de imigrante e de negro.
Em Chapecó, o fato de o imigrante haitiano ser negro e se encontrar em um território onde a população nativa é majoritariamente branca, estes podem estar sofrendo preconceitos e discriminação na sociedade, com reflexos para a atenção e cuidados a sua saúde.
Nesta direção, destacamos a fala de uma haitiana que relatou suas desilusões em terras brasileiras:
[...] Eu venho daquela terra onde nós não conhecemos que somos negros [...]. Somos seres humanos iguais a todos e temos direitos à vida, a educação e ao bem-estar. [...] Nossa missão aqui é estudar e trabalhar e só pedimos paz, um espaço. Nós não queremos roubar o emprego de ninguém. Os haitianos só querem trabalhar e receber o fruto do seu trabalho. [...] Eu posso dizer que eu me senti negra, eu me senti preta, quando cheguei na região do oeste catarinense. É aquele lugar que quando você senta no ônibus, ao seu lado fica vazio; você vem em busca de emprego mas, muitas vezes, eles nem querem olhar seu currículo. Tem uma vaga que você poderia concorrer, mas essa vaga não serve para você; você só pode trabalhar na agroindústria, na limpeza, que seja bem baixo mesmo, porque você é negro, por que você é haitiano. [...].
Esta haitiana aponta em sua fala o “sentir-se negro” nesta nova sociedade que está residindo e, portanto, esta mulher sinaliza a condição do haitiano ou da haitiana no Brasil. Diante disso, é possível considerar que o preconceito com imigrantes haitianos está fortemente vinculado ao processo de estigmatização do negro.
No Brasil, os negros representam aproximadamente 45% dos brasileiros que sobrevivem em condições desiguais quando comparada à população branca em quase todos os indicadores que adotarmos (SANTOS, 2012, p. 146). Ainda, aqui a raça, ao lado de gênero e classe social, é uma categoria que diferencia, hierarquiza e localiza os indivíduos e grupos na sociedade (SCHUCMAN, 2014; SANTOS et al., 2015). Este processo de diferenciação entre brancos e negros é uma construção social, com origens no passado escravagista do Brasil.
Já em Santa Catarina, ocorreu a invisibilidade historiográfica, pois é o estado em que “os meios de comunicação vêm construindo uma imagem de loira catarina, um pedaço da Europa no Sul do Brasil” (PEDRO et al., 1996, p. 233). Não foi dado ao negro em Santa Catarina vias de expressão de sua cidadania, e que devido a esta ausência a população se enquadra nas categorias de pouco representatividade.
Estes discursos e imaginários estigmatizantes estão na sociedade e, consequentemente nas subjetividades dos trabalhadores da saúde. Isso reflete na maneira destes trabalhadores realizarem a atenção em saúde dos imigrantes. Nesta direção, Santos (2012, p. 150) compreende que “a atitude dos profissionais e a cultura organizacional são determinantes para a sustentação e reprodução ou não das desigualdades raciais e do racismo no cotidiano dos serviços de saúde”.
O racismo é um ameaçador da condição de saúde dos indivíduos à medida que favorece a violação de direitos, além de ferir com todos os princípios do SUS (SANTOS, 2012). O cuidado em saúde “produz e é produzido também segundo os afetos entre os sujeitos. Ou seja, estes ao produzirem o mundo do cuidado em saúde, produzem a si mesmos e se afetam mutuamente, o que vai lhes imprimindo certa identidade subjetiva, na alteridade” (FEUERWERKER, 2014, p. 102).
O imaginário negativo associado ao imigrante haitiano é evidenciado na fala de um profissional de saúde: “se eu ganhar para prefeito eu vou encher o caminhão de haitianos e... [fez com as mãos sinal de mandar embora]” (UBS 2: Oficina de grupo, médico). Este posicionamento de “mandar embora” os imigrantes haitianos, como se estes não tivessem direito de migrar, revela que os imigrantes não são bem vindos e que, por isso, não tem direito de receber cuidados em saúde.
Ignorar falas como esta significa menosprezar a complexa relação que existe entre estigma, racismo e discriminação com processos de atenção e cuidado em saúde. E, para, além disso, é colocar os sujeitos em condições de vulnerabilidade, uma vez que estes processos atravessam diretamente sua atenção em saúde.
Pensar a atenção em saúde por uma perspectiva integral e humanizada requer que os sujeitos sejam cuidados “na singularidade de sua vida, seus devires, sua história, seus anseios, conflitos e delírios, sem tentar enquadrá-las, organizá-las em uma estrutura rígida, burocrática, centrada apenas nos sintomas” (FRANCO; CARVALHO, 2015, p, 875). Por fim, se há o direito universal à saúde no Brasil, este deve ser garantido nos serviços do SUS, com equidade e integralidade.
Considerações finais
Por meio desta cartografia, identificamos que os imigrantes haitianos em Chapecó têm acesso e atenção em saúde legalmente garantidos no SUS. A atenção básica em saúde é realizada da mesma maneira para imigrantes e brasileiros, segundo a fala dos trabalhadores. Porém, compreendemos que estes novos usuários necessitam de estratégias de atendimento específicas, que levem em conta suas especificidades étnico-raciais e culturais.
Entendemos, através dos discursos dos trabalhadores da saúde, que suas percepções acerca dos imigrantes haitianos podem interferir no estabelecimento de vínculo e, consequentemente, no cuidado integral em saúde destes novos usuários. Embora esta pesquisa tenha também identificado algumas estratégias criativas de cuidado em saúde para atender os haitianos, percebemos que para muitos trabalhadores estes novos usuários representam uma ameaça para o SUS.
Para que haja um cuidado humanizado ao imigrante é necessário avançar no diálogo sobre preconceito, discriminação social e estigma em saúde entre os profissionais da área. Identificamos que muitos destes profissionais reproduzem os discursos criados e mantidos em uma sociedade que ainda enxerga os negros como sujeitos inferiores e os imigrantes como pessoas que “trazem doenças” ou que “roubam o emprego dos brasileiros”.
Cuidar e pensar um acompanhamento integral implica em abandonar o atendimento fragmentado, isolado, voltado apenas para as demandas pontuais – a necessidade de realização de vacina, acompanhamentos ou tratamentos. Observamos que para atender de maneira integral estes novos usuários é necessário que os trabalhadores tenham uma postura livre de juízos de valor e uma compreensão macro dos imigrantes.
Por fim, esta pesquisa deparou-se com escassez de estudos que abordem questões relacionadas à atenção em saúde dos imigrantes haitianos, assim como relacionadas às questões étnico-culturais e saúde. Portanto, destacamos a importância de novas pesquisas que abordem esta problemática, bem como questões referentes a condição de vida e de trabalho, diferenças culturais relacionadas à saúde e agravos em saúde específicos desta população.