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Mulheres Migrantes: invisibilidade, direito à nacionalidade e a interseccionalidade nas políticas públicas
Mulheres Migrantes: invisibilidade, direito à nacionalidade e a interseccionalidade nas políticas públicas
O Social em Questão, vol. 21, núm. 41, pp. 247-264, 2018
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Resumo: Este trabalho visa demonstrar a transformação histórica no decorrer dos tempos em relação ao direito à nacionalidade. Para isso, percorre as referências ao direito à nacionalidade, desde as civilizações mais antigas até as atuais. Além disso, busca resgatar as referências no ordenamento jurídico internacional, que inspira a conformação da nacionalidade no Brasil. O intuito é discutir o recorte de gênero, a partir da Nova Lei da Migração e a ausência desse debate em diferentes esferas.
Palavras-chave: Nacionalidade, migração, direitos humanos, refúgio.
Mulheres Migrantes: invisibilidade, direito à nacionalidade e a interseccionalidade nas políticas públicas
Paula Dias Dornelas1
Roberta Gabriela Nunes Ribeiro2
Resumo
Este trabalho visa demonstrar a transformação histórica no decorrer dos tempos em relação ao direito à nacionalidade. Para isso, percorre as referências ao direito à nacionalidade, desde as civilizações mais antigas até as atuais. Além disso, busca resgatar as referências no ordenamento jurídico internacional, que inspira a conformação da nacionalidade no Brasil. O intuito é discutir o recorte de gênero, a partir da Nova Lei da Migração e a ausência desse debate em diferentes esferas.
Palavras-chave
Nacionalidade; migração; direitos humanos; refúgio.
Migrant women: invisibility, the right to nationality and intersectionality in public policies
Abstract
This paper aims to demonstrate the historical transformation in the course of time related to the right to nationality. Therefore, it goes through references to the right to nationality, from the earliest civilizations to the present. In addition, it seeks to retrieve the references in the international legal order, which inspires the formation of nationality in Brazil. The intention is to discuss the gender cut, from the perspective of the New Migration Law and the absence of this cut in different spheres.
Keywords
Nationality; migration; human rights; refuge.
Artigo recebido em dezembro de 2017.
Artigo aprovado para publicação em fevereiro de 2018.
Introdução
Este artigo busca contextualizar o direito à nacionalidade e refletir sobre a carência de dados, informações, pesquisas, e teorias que abarquem as mulheres nos processos migratórios. A abordagem se justifica pela ausência de visibilidade das questões de gênero na migração, que têm impedido os avanços teóricos sobre o tema, a construção de políticas públicas específicas e uma legislação inclusiva. Sendo assim, tem-se como objetivo fomentar um olhar integral para a migração. Há muito tempo as mulheres são vistas como coadjuvantes no processo de migração, responsáveis por acompanhar os homens – provedores, trabalhadores – que chegam primeiro ao país de destino. Diante disso, é preciso ampliar a visão e contemplar as especificidades da migração de mulheres, bem como as demandas específicas das que chegam ao Brasil.
De acordo com o Censo do IBGE (2010), o Brasil tem sua população composta por 0,4% de imigrantes mundiais. Da população residente, por nacionalidade e sexo, são 200.119 mulheres e 231.200 homens, no total, de estrangeiros. Além disso, há 72.567 mulheres e 88.683 homens naturalizados brasileiros. Apesar de em 2010 o número de mulheres já estar próximo da quantidade de homens, pouco se discutiu o que esse dado diz sobre a experiência de migração no país e as demandas diferentes relacionadas ao gênero. Além desses dados, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) as mulheres e crianças representam, ao menos, metade das pessoas deslocadas no mundo, encontrando-se em situação de vulnerabilidade.
A invisibilidade da mulher migrante
De acordo com Assis (2007, p. 745-746), do século XIX até metade dos anos 1950, Ellis Island foi o lugar onde funcionava o Departamento de Imigração Norte Americano e para onde se dirigia a maioria dos 35 milhões de migrantes que tinham como destino os Estados Unidos. Hoje, o lugar transformou-se no Museu da Imigração e, a partir das fotografias, é possível observar como as mulheres eram representadas na época. Segundo a autora, as imagens que mostram a chegada dos homens possuem uma legenda com a seguinte a pergunta: “Você tem trabalho?”. Já nas fotos em que aparecem mulheres e crianças, consta na legenda explicativa a pergunta: “Você é casada?”.
Esse caso aporta muito para a discussão proposta neste artigo, pois as imagens revelam as expectativas e representações em relação aos migrantes naquele contexto e reforçam que os homens eram representados como aqueles que buscavam trabalho, enquanto as mulheres as que acompanhavam maridos e filhos. A partir dessa representação, percebe-se que as migrantes mulheres não eram percebidas como sujeitos no processo migratório, mas acompanhantes dos homens – que receberam historicamente esse papel produtivo, do trabalhador e provedor. Ainda que o processo de reunificação familiar seja um dos ciclos da migração no Brasil, é preciso considerar a mulher e contemplar suas diferentes motivações, experiências e expectativas. Assis explica, ainda, que a falta de visibilidade também se dava no universo teórico:
[...] as mulheres não se encontravam presentes nas análises empíricas e nos escritos produzidos porque muitos teóricos estavam influenciados pelas teorias neoclássicas de migração. Havia um pressuposto de que os homens eram mais aptos a correr riscos, enquanto as mulheres eram as guardiãs da comunidade e da estabilidade. Essa imagem, favorecida pela teoria push-pull, colocava a migração como resultado de um cálculo racional e individual e relegava as mulheres a um lugar secundário, sem reconhecer o seu trabalho como imigrantes, conforme já foi relatado (ASSIS, 2007, p.749-750).
É por isso, que a abordagem a partir de novos instrumentos metodológicos se faz necessária. Segundo Peres e Baeninger:
O atual contexto dos fenômenos migratórios obriga a construção de novos olhares e perspectivas. Construir uma metodologia para o estudo da migração feminina nada mais é do que buscar uma forma de refletir empiricamente os recentes avanços teóricos resultantes da intersecção dos debates dos estudos de gênero e migração. Neste sentido, as ‘fontes de dados tradicionais’ (Maguid, 1995) muitas vezes, por sua própria concepção, periodicidade, cobertura ou definição de conceitos, não se aplicam a um fluxo migratório feminino. Faz-se necessário, então, lançar mão de outros recursos metodológicos que superem as limitações dos censos demográficos. (PERES e BAENINGER, 2012, p. 9 apud FARIA, FERREIRA, PAULA, 2016, p. 4).
Pesquisas na área de demografia reforçam também essa marginalidade das mulheres migrantes nos estudos teóricos. Isso implica na incapacidade de compreender os fenômenos migratórios em sua totalidade, por excluir as dimensões de gênero, invisibilizar as mulheres, reduzindo suas motivações e sem compreender as especificidades migratórias. Atualmente, os avanços teóricos reforçam a importância de se estudar os recortes por sexo e gênero, conforme diz Boyd e Grieco:
O gênero está profundamente enraizado na determinação de quem se movimenta, como esses movimentos se dão e quais os impactos nas famílias e mulheres migrantes. Se as teorias de migração internacional integram as relações de gênero de maneira adequada e eficaz, devem levar em conta fatores sutis e óbvios que se misturam para criar diferentes experiências ao longo da migração. A definição e compreensão destes fatores melhor fundamentam as teorias de migração internacional e também as experiências individuais de mulheres migrantes em todo o mundo (BOYD; GRIECO, 2003, p. 61).
Ademais disso, é preciso considerar que o diferencial das mulheres migrantes não é apenas o gênero. Para Assis (2007, p. 750-756), a origem nacional tem um grande peso também. A autora aponta uma análise das representações sobre mulheres imigrantes recentes para a Europa, na qual percebeu que as migrantes são categorizadas segundo padrões raciais e origem nacional. Elas foram patologizadas como vítimas (mulheres do Sri Lanka), outras seriam desejadas por sua suposta submissão (mulheres das Filipinas), outras por sua beleza considerada o padrão ocidental (mulheres do Leste Europeu). Diante disso, a autora apresenta que as motivações para a migração da mulher contemplam outro conjunto de fatores de ordem não econômica, como:
[...] a transgressão dos limites sexuais impostos pela sociedade, os problemas conjugais e a violência física, a impossibilidade de divórcio, os casamentos infelizes e desfeitos, a discriminação contra grupos femininos específicos e a ausência de oportunidades para as mulheres (ASSIS, 2007, p. 751).
Sendo assim, a migração de mulheres é movida não apenas por razões econômicas, mas também é usada como forma de romper o vínculo de discriminação pelos quais elas eram oprimidas em seus países, conforme Morokvasic (1984 apud ASSIS, 2007) afirma. Levando em conta esses fatores, nos fluxos contemporâneos as mulheres tendem a migrar sozinhas ou como primeiras em suas famílias, sendo pioneiras em encontrar trabalho, contrariando, portanto, a imagem das que seguiriam os passos dos homens. Isso reforça que há diversos caminhos para a migração e não apenas a via mais divulgada, que é a de que elas acompanham um homem. As redes de contatos, inclusive tem fortalecido o processo de chegada de mulheres, de forma individual.
Nesse sentido, segundo Saquet e Mondardo (2008), a migração é uma experiência integrada, em que as relações e vínculos sociais são fundamentais para o processo:
Atualmente, portanto, as migrações constituem uma “experiência integrada” do espaço sendo, entretanto, possível somente se os migrantes estiverem articulados em rede, através de múltiplas relações que, muitas vezes, estendem-se do local ao global. Entre os territórios de origem e de destino, há várias relações e vínculos sociais realizados pelos migrantes quando percorrem suas trajetórias e quando se reterritorializam (SAQUET e MONDARDO, 2008, p. 120).
O contexto apresentado por Assis (2007) e abordado anteriormente foi à migração para os Estados Unidos, mas, de modo geral, reflete a invisibilidade da mulher dos processos de migração. A falta de dados, pesquisas e políticas públicas específicas pode ter origem em um processo anterior, onde o papel da migração masculina era mais enfatizado do que o papel da mulher nas migrações internacionais. Diante disso, reforça-se a necessidade de não ressaltar apenas a participação das mulheres como coadjuvantes nesse processo, mas contemplar também a perspectiva de gênero nas migrações de forma interseccional, pois quando o gênero é levado em conta nos estudos migratórios, torna-se possível compreender como mulheres e homens vivenciam a imigração de forma diferenciada e como este fato interfere em suas vidas.
a) Breve panorama do direito à nacionalidade
Para falar sobre migração e gênero, faz-se necessário, também, retomar o conceito de nacionalidade e sua origem, para observar o contexto evolutivo desse direito, perceber os processos que ocorriam para obter uma nacionalidade e como isso se deu na sociedade. O direito à nacionalidade surge como conceito com a afirmação de direitos humanos ocorrida logo após a Segunda Guerra Mundial, somente depois das constituições dos Estados Unidos da América do Norte e da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão no século XVIII.
É importante ressaltar que antes de tornar-se um direito, existiam códigos de ordem social que eram aplicados à sociedade e perpassavam as questões da nacionalidade. De acordo com Macedo e Amaral (2006, p. 3-5), o código de Hammurabi3, o código de Manú4 e o código Semita influenciaram todo o sistema de jurisdição no oriente e no ocidente. Essas normas orientavam às diferenças entre as classes sociais, inclusive relacionando às punições dos nacionais. Quem era considerado cidadão tinha vantagens sobre os demais. Apesar de a ideia de nacionalidade dos antigos diferir da concepção atual existia a noção de que alguns indivíduos eram mais ligados à sua cidade ou a sua sociedade do que outros.
Esse pertencimento a um determinado grupo torna-se uma via com sentidos opostos. De um lado, fortalecem-se os laços entre os membros de uma comunidade, e, de outro, o de separação. Isso porque para que pudessem pertencer, os indivíduos repeliam qualquer pertencimento de outros grupos. Diante disso, ao descrever a evolução histórica desse direito, é fundamental buscar a forma que o tema era abordado na Antiguidade Greco-romana, pois tanto a Grécia quanto Roma tiveram importantes contribuições para a evolução das sociedades, seja no campo da cultura, do direito, da educação, entre outros.
Para contextualizar, vale lembrar que, nessa época, não existiam direitos fundamentais válidos para todas as pessoas. A ordem social e econômica estava apoiada na escravidão e dependia, de maneira geral, da estratificação das camadas sociais. Consequentemente, apenas os que eram considerados cidadãos possuíam direitos. Exemplo disso é que somente os cidadãos da Pólis podiam usufruir da igualdade perante o direito (Isonomia), da mesma liberdade da palavra (Isogoria) e do mesmo respeito (Isotimia). Contudo, mesmo no pensamento antigo, é possível encontrar considerações que foram importantes para o desenvolvimento da ideia dos direitos fundamentais.
Rocha (2014, p.6) descreve que para usufruir dos direitos políticos em Roma era necessário que o indivíduo participasse na oração comum, e no sacrifício na chamada cerimônia da lustração, por exemplo. Caso o indivíduo deixasse de assistir tal cerimônia, ele não era considerado cidadão. Com o passar do tempo, a população de estrangeiros passou a ser maior do que a população de nacionais, surgindo à necessidade de fazer um novo regramento para este grupo, que fora chamado de peregrino. Essas normas foram denominadas de Direito das Gentes em oposição ao Direito dos Nacionais, conhecido como Direito Civil. O autor descreve que apenas era considerado cidadão quem tinha participação ativa no culto da cidade, sendo que isso lhe conferia todos os direitos políticos e civis. O estrangeiro, por sua vez, tinha o acesso restrito ao culto e não estava protegido pelos deuses da cidade.
Apesar de os greco-romanos terem em conta que não deviam ceder direitos aos estrangeiros; essas fronteiras nacionais começaram a ser rompidas com o início da comercialização, que foi alterando o olhar para os estrangeiros e flexibilizando a entrada. Apesar de ser um contexto de outra sociedade, muito se replicou no que diz respeito ao direito à nacionalidade.
Retomar o direito à nacionalidade neste trabalho faz-se necessário para compreender que, desde as sociedades antigas, a inclusão e exclusão de determinados grupos é uma realidade. Foi somente após o fim da Segunda Guerra Mundial que os Direitos Humanos começaram a ser debatidos e pautados baseados nos princípios da universalidade e da indivisibilidade.
b) Contexto brasileiro
Ao trazer essa questão para o Brasil, verifica-se que o direito à nacionalidade é contemplado na legislação constitucional brasileira desde a Constituição do Império, de 1824. No entanto, reflete o pensamento da época e um contexto de restrição aos estrangeiros. Milesi (2007, p.1-3) faz um panorama das aplicações dessas legislações e o histórico do Brasil. De acordo com a autora, devido às guerras mundiais ocorridas nas décadas de 1920 e 1930, muitos países passaram a estabelecer restrições aos estrangeiros, o que foi demonstrado nas Constituições de 1934 e de 1937.
A Constituição de 1934 institui o sistema de cotas e vedou a concentração de imigrantes em qualquer ponto do território nacional. Desta forma, cada corrente imigratória não poderia exceder 2% do número total de nacionais daquele país que haviam entrado no Brasil durante os últimos cinquenta anos. Já na Constituição de 1937, a restrição aumenta ao limitar a entrada de determinadas raças ou origens, dando prioridade à imigração europeia. Milesi (2007, p. 1-3) também descreve que um pouco antes da Segunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas editou o Decreto-Lei 406, de 4 de maio de 1938, trazendo por completo a lista de pessoas que não mais seriam admitidas em solo brasileiro, dando ao Governo o poder de limitar a entrada de indivíduos de determinadas raças ou origens e, novamente, priorizando as pessoas de origem europeia.
Após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil começou a expandir e flexibilizar a política de imigração para poder buscar mão-de-obra especializada. Conforme descreve Milesi (2007, p. 1-5), isso levou ao Decreto-lei nº. 7.967/1945 que afirma em seu primeiro artigo que “Todo estrangeiro poderá entrar no Brasil, desde que satisfaça as condições desta lei” (BRASIL, 1945). No entanto, o Art. 2º estabelece que na admissão de imigrantes, deve-se preservar e desenvolver as características mais convenientes como a ascendência europeia. Foi somente a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 10 de dezembro de 1948, que todos os Estados receberam o dever de acolher o direito à nacionalidade em seus ordenamentos jurídicos.
No entanto, embora as normas internacionais sejam norteadoras, ficou sob responsabilidade de cada Estado fazer sua regulação. Isso abriu precedentes para alguns países agirem arbitrariamente. No Brasil, o primeiro Estatuto do Estrangeiro foi estabelecido pelo Decreto-Lei 941/1969, de 18/10/1969, e permitia que as regras de admissão de estrangeiros fossem modificadas, de acordo com os anseios de seus líderes. Em 1980, em pleno Regime Militar, foi aprovada a Lei 6.815 – Estatuto do Estrangeiro, ainda com resquícios da Constituição de 1967. O Estatuto não estava alicerçado nos direitos humanos e até 2017 foi o principal instrumento regulatório dos imigrantes no território nacional. (MILESI, 2007, p. 2-5)
c) O estado atual de proteção dos direitos
Os deslocamentos populacionais perpassam a formação das sociedades. No Brasil, conforme explicitado, a proteção a esse direito teve uma evolução histórica, que englobou mudanças nos principais instrumentos normativos do país. Nos dias atuais, a Lei da Migração (Lei 13.445/2017) é o principal dispositivo que versa sobre a migração, trata sobre a aquisição de nacionalidade brasileira por parte de imigrantes e aborda, também, a questão da proteção e prevenção à apatridia5. Ela substitui o Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980), adotado durante o regime militar do Brasil.
O Artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos versa que “1. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade; e 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade” (ONU, 1948). Ao abordar a questão da nacionalidade, o mesmo documento trata também do direito à migração, em seus artigos 13 e 14, que abarcam, entre outras questões, “o direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado”. O Direito de possuir – e adquirir – uma nacionalidade é universal, bem como o de locomoção e residência entre fronteiras dos Estados. O direito à migração é, portanto, relacionado ao direito à nacionalidade, sendo um importante a ser discutido no âmbito da evolução histórica de garantia dos direitos.
Nesse contexto, a atual Lei de Migração (BRASIL, 2017a) visa tratar os migrantes pelo viés dos direitos humanos. Dentre os principais pontos, a legislação, em seu Art. 3º, versa sobre a acolhida humanitária de imigrantes, refugiados e apátridas, defende a garantia à reunião familiar e apresenta o repúdio à xenofobia. O Art. 3º traz, ainda, a “universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos” como princípios básicos da política migratória brasileira. A “não criminalização da migração” e a “igualdade de tratamento e oportunidade ao migrante e seus familiares” também são pontos abarcados pela nova lei. Trata-se de uma abordagem mais inclusiva, que pretende evitar a visão do migrante como um problema ou como um sujeito que não está a par de igualdade em relação aos nacionais.
Outro ponto importante na Lei da Migração diz respeito à garantia de acesso a serviços públicos de saúde, assistência social e previdência social, além do direito de associação, inclusive sindical. Este último demonstra uma mudança efetiva em relação ao Estatuto do Estrangeiro, que proibia qualquer tipo de exercício de atividade política, e garantia o direito à associação apenas para fins de desportivos, culturais e religiosos.
A questão da opção de nacionalidade e naturalização para os migrantes é desenvolvida no capítulo VI, seções II e III da legislação, em que são tratadas as condições e efeitos da naturalização. Na seção seguinte, o Art. 75 versa sobre a perda da Nacionalidade. Esta ocorre “em razão de condenação transitada em julgado por atividade nociva ao interesse nacional, nos termos do inciso I do § 4º do art. 12 da Constituição Federal” (BRASIL, 2017a). Destaca-se, entretanto, que, segundo o texto do documento, o risco de apatridia deve ser considerado ao se determinar a perda de nacionalidade.
De modo geral, faz-se necessário mencionar, entretanto, que apesar de garantir direitos civis e sociais, a legislação ainda não assegura ao migrante os direitos políticos, que consistem na possibilidade de votar em eleições e/ou se candidatar a cargos políticos e ser votado. Ainda assim, diante de uma legislação que era obsoleta e datada da época da ditadura militar, a aprovação de uma nova lei de migração era urgente para avançar no enfrentamento aos desafios da mobilidade internacional da população.
Há de se destacar, entretanto, que a lei foi aprovada com vetos, que, em certo modo, podem limitar a amplitude dos direitos e deveres dos migrantes no Brasil. Foram vetados dezoito trechos do texto. O primeiro dispositivo barrado está no Inciso I do § 1o do art. 1o, que trata sobre a definição de “migrante”: “I - migrante: pessoa que se desloca de país ou região geográfica ao território de outro país ou região geográfica, incluindo o imigrante, o emigrante, o residente fronteiriço e o apátrida;” (BRASIL, 2017a). A justificativa para o veto é a de que a conceituação de migrante presente no dispositivo é muito ampla, e inclui o estrangeiro com residência em país fronteiriço, o que “estende a todo e qualquer estrangeiro, qualquer que seja sua condição migratória, a igualdade com os nacionais”. Essa igualdade entre o nacional e “todo e qualquer e estrangeiro” viola, segundo a justificativa do veto, o artigo 5º da Constituição Federal, que versa:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...] (BRASIL, 1988).
A alegação para o veto é a de que a Constituição versa apenas sobre os estrangeiros residentes no país, ou seja, a igualdade perante a lei é limitada àqueles que residem no território nacional. Sob a alegação do risco de perda de autoridade do país em definir como será o acolhimento do estrangeiro, outro veto que merece destaque diz respeito à concessão de anistia a imigrantes que entraram irregularmente no Brasil até julho de 2016 e que fizeram o pedido até um ano após a data de vigência da lei. Segundo a mensagem de veto, não seria possível determinar quando o imigrante entrou no país. Outra justificativa para o veto é a de que a aprovação desse ponto promoveria a “anistia indiscriminada a todos os imigrantes” (BRASIL, 2017b).
Outro ponto excluído da Lei de Migração diz respeito à livre circulação dos povos indígenas e populações tradicionais entre as fronteiras, em terras tradicionalmente ocupadas. O veto foi dado ao § 2o do art. 1o, sob a alegação de que este entraria em confronto com a Constituição:
O dispositivo afronta os artigos 1o, I; 20, § 2o; e 231 da Constituição da República, que impõem a defesa do território nacional como elemento de soberania, pela via da atuação das instituições brasileiras nos pontos de fronteira, no controle da entrada e saída de índios e não índios e a competência da União de demarcar as terras tradicionalmente ocupadas, proteger e fazer respeitar os bens dos índios brasileiros (BRASIL, 2017b).
Gênero, classe e raça nas migrações
A Lei de Migração recém-sancionada, também, não abordou de modo sistemático as questões de gênero. Entretanto, há de se destacar que, apesar da invisibilidade das mulheres migrantes, o fator gênero está estritamente ligado ao processo de migração, pois as políticas migratórias e a atuação das autoridades são profundamente influenciadas por esses fatores. Segundo Pierre Bourdieu (1992 apud RANGEL, 2010), as desigualdades são perpetuadas por mecanismos sutis de dominação que naturalizam e legitimam todo tipo de diferença. Percebe-se, portanto, que essas diferenças ficam incorporadas por toda a estrutura de atendimento aos migrantes.
Rangel (2010, p.3) também argumenta que essa questão relaciona-se com a diferenciação extrema entre certos grupos sociais e aponta os conceitos de intra-grupo e extra-grupo de Robert Merton. Segundo a autora, o grupo tomado por referência é o intra-grupo, e o grupo estranho é o extra-grupo. Apesar de não haver nada tão evidente que os diferencie, certos aspectos são reforçados na sociedade e geram marginalização. Desta forma, ela explicita que:
Esse sistema produz a “mágica social” que transforma pessoas em instituições feitas de carne. É o caso do filho mais velho e herdeiro em oposição ao mais novo, do homem em oposição à mulher, do policial europeu em oposição ao migrante latino: são diferenças instituídas que tendem a se transformar em distinções naturais (RANGEL, 2010, p. 3).
Ainda hoje, a lógica dos imigrantes que são escolhidos como indesejáveis e desejáveis, demonstra a divisão e desigualdade presente no cotidiano de cada sociedade e é transportada para o sistema internacional e reproduzida. Na prática, os imigrantes prósperos tornam-se referência e exemplo de cidadão, enquanto os imigrantes com baixa qualificação estão em máquinas de trabalho excluídas do mundo social.
Outro recorte relevante é o racial. Os homens e mulheres migrantes de pele negra têm possibilidades de educação, moradia, saúde e trabalho diferentes dos de cor de pele branca, salvo exceção quando a classe entra nessa soma e favorece o indivíduo. A partir disso, é perceptível como as vertentes de gênero, classe e raça estão ligadas e atravessam a trajetória dos migrantes.
A partir dessas considerações percebe-se que, para que sejam construídas políticas públicas efetivas é preciso que estas sejam interseccionais. Isso significa incluir, por exemplo, os recortes de gênero, classe, raças e etnias em suas estruturas. Silma Birge descreve:
A interseccionalidade remete a uma teoria transdisciplinar que visa apreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais (BILGE, 2009, p. 70 apud HIRATA, 2014).
Enquanto a mulher e a questão de gênero não forem analisadas nos processos migratórios, em sua totalidade e complexidade, as políticas continuarão falhando em compreender a migração e fornecer o acesso – garantido a elas – de seus direitos nos países que as acolherem.
Conclusão
O presente artigo discorreu sobre a ausência de discussões complexas e focadas na questão de gênero no âmbito dos estudos migratórios e da garantia de direitos às mulheres migrantes. Essa invisibilidade da mulher e a imagem desta sempre atrelada a de um homem acabam encobrindo o fato de que o gênero é uma questão relevante a ser considerada, já que o processo migratório é diferente para homens e mulheres.
Nesse contexto, foi debatida, também, a necessidade de que sejam pensadas e adotadas políticas públicas interseccionais para a população migrante, que levem em consideração categorias como gênero, classe e raça.
Num segundo momento do trabalho, fez-se necessário abordar, ainda, o direito à Migração. Entende-se que este é fortemente relacionado ao direito à Nacionalidade, na medida em que seus instrumentos legais abordam o deslocamento entre Estados, a possibilidade de adquirir nacionalidade e situações como a apatridia. Nesse sentido, foi importante apresentar o estado de proteção a esses direitos, que, atualmente no Brasil, está vinculado à recém-sancionada Lei de Migração (BRASIL, 2017a).
Conforme explicitado anteriormente, em relação a esse aparato legal, a Lei de Migração é considerada um avanço no âmbito da garantia de direitos à população migrante, refugiada e apátrida, apesar dos vetos que foram feitos ao texto original. Isso se justifica em razão de a antiga lei ser datada da época da ditadura militar, e ter adotado, ao longo de muitos anos, a visão da migração como uma questão de segurança nacional.
Migrar é um direito humano. Garantir que este seja concedido a todas as pessoas, sem distinção, é papel de todos, tanto do Estado quanto da Sociedade – que se faz relevante principalmente para o acolhimento aos migrantes. Os desafios que se impõem, agora, perpassam questões legais e de enquadramento: é importante observar a efetividade da aplicação da Lei de Migração no país, mas, além disso, garantir que as questões de gênero sejam também discutidas. De modo macro, deve-se partir da legislação, que, entretanto, em nenhum momento cita as questões de gênero, para que os Estados e municípios possam contemplar as especificidades da migração e o gênero em suas políticas, de modo micro.
Referências
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