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Seção livre: Construção de Acordos de Pesca e Políticas Públicas para gestão de recursos pesqueiros na Região de Santarém, Pará (1990-2004)
O Social em Questão, vol. 21, núm. 41, pp. 327-354, 2018
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Seção Livre



Resumo: Este artigo discute a construção os Acordos de Pesca (APs) nas microrregiões de Santarém, Pará, entre os anos de 1990 a 2004, como tentativa de elaborar gestão de recursos pesqueiros comunitários apoiados por políticas públicas voltadas para este segmento. Foram examinados 42 acordos de pesca que cobrem as microrregiões de pesca: Tapará, Urucurituba, Ituqui, Lago Grande, Arapixuna, Maicá, Aritapera, além de Juá e Área Verde. Concluímos que, o entrelaçamento dos APs e as políticas públicas dirigidas a atingir populações ribeirinhas apontam para um processo social dinâmico, onde ribeirinhos e governo elaboraram agendas a partir de necessidades coletivas – políticas institucionais.

Palavras-chave: Acordos de pesca, Santarém, políticas públicas.

Construção de Acordos de Pesca e Políticas Públicas para gestão de recursos pesqueiros na Região de Santarém, Pará (1990-2004)

Rubens Elias da Silva1

Roberth Rodrigues Ferreira2

Resumo

Este artigo discute a construção os Acordos de Pesca (APs) nas microrregiões de Santarém, Pará, entre os anos de 1990 a 2004, como tentativa de elaborar gestão de recursos pesqueiros comunitários apoiados por políticas públicas voltadas para este segmento. Foram examinados 42 acordos de pesca que cobrem as microrregiões de pesca: Tapará, Urucurituba, Ituqui, Lago Grande, Arapixuna, Maicá, Aritapera, além de Juá e Área Verde. Concluímos que, o entrelaçamento dos APs e as políticas públicas dirigidas a atingir populações ribeirinhas apontam para um processo social dinâmico, onde ribeirinhos e governo elaboraram agendas a partir de necessidades coletivas – políticas institucionais.

Palavras-chave

Acordos de pesca; Santarém; políticas públicas.

Construction of Fisheries Agreements and Public Policies for the fishery resources management in the Region of Santarém, Pará (1990-2004)

Abstract

This article discusses the construction of the Fisheries Agreements (FAs) in the microregions of Santarém, Pará, during 1990 and 2004, in an attempt to elaborate management of community fishing resources supported by public policies focused on this segment. A total of 42 fisheries agreements covering the fisheries microregions: Tapará, Urucurituba, Ituqui, Lago Grande, Arapixuna, Maicá, Aritapera, and Juá and the Área Verde were examined. We conclude that the interweaving of FAs and public policies aimed at reaching riverside populations point to a dynamic social process where riverside dwellers and government elaborated agendas based on collective needs – institutional policies.

Keywords

Fishing agreements; Santarém; public policy.

Dedicamos este texto à incansável Alcilene Magalhães Cardoso, pelo seu incalculável trabalho em prol dos Acordos de Pesca nas comunidades ribeirinhas do Baixo Amazonas

Artigo recebido: outubro de 2017

Artigo aceito: dezembro de 2017

Introdução

Este artigo se propõe a discutir a implementação dos Acordos de Pesca (APs)3 nas microrregiões de Santarém, estado do Pará, no período compreendido entre os anos de 1990 a 2004 como tentativa de elaborar gestão de recursos pesqueiros comunitários, enquanto territórios socioambientais apoiados em políticas públicas voltadas para este segmento da economia compreendido como regional. É necessário pontuar que os APs são um conjunto de regras estabelecidas por sociedades de pesca que definem o acesso e o uso do recurso pesqueiro numa determinada região (CASTRO; McGRATH, 2001 apud RUFFINO, 2005), enquanto que a gestão dos recursos pesqueiros – compreendidas também como manejo comunitário – dispõe de um conjunto de diretrizes estratégicas para administrar os estoques pesqueiros de uma determinada região geográfico-ecológica, através da parceria entre atores sociais locais e instituições públicas (RUFFINO, 2005). O foco deste trabalho é compreender os processos de construção de APs, entendidos aqui como gestão participativa da pesca a partir das partes interessadas (stakeholders) na manutenção dos estoques pesqueiros de lagos e rios e o papel fundamental das políticas públicas na sistematização, operacionalização e consolidação desses acordos em comunidades ribeirinhas em toda a região de Santarém. Acrescentamos, ainda, o papel do protagonismo feminino no delineamento das lutas sociais empreendidas pelos ribeirinhos locais. A relevância da implementação das políticas públicas voltadas para a fomentação de gestões participativas locais – que se faziam mutuamente acordadas e planejadas – deu-se no sentido de que pode assegurar a participação dos comunitários para a discussão coletiva a respeito do uso e acesso dos recursos em contextos imperativos de equilíbrio ecológico, além de permitir produção economicamente sustentável e capaz de gerar bem-estar entre as partes envolvidas no processo (OVIEDO et al., 2015).

Os conflitos socioambientais, em especial na Amazônia brasileira, emergem na discussão da esfera pública a partir de catástrofes ambientais em diferentes escalas, cujos pequenos produtores rurais dedicados à pesca, agricultura, à caça, à coleta engajam-se para promover ações e políticas na tentativa de preservar e conservar os recursos ambientais (ACSELRAD, 2010). É preciso pontuar, no entanto, que a disputa travada entre ribeirinhos e atores sociais diversos foi articulada a partir de noções distintas em relação à racionalidade econômica empregada para obter os recursos naturais e os destinos sociais a eles conferidos, em escalas desiguais para a captura dos estoques pesqueiros (ESTERCI, 2014). Os movimentos sociais dos ribeirinhos passaram a reivindicar políticas públicas voltadas à gestão dos recursos naturais e dos bens coletivos de uso comum dentro de um espaço geográfico (DIEGUES, 2004). Para Ferreira (2011) os movimentos sociais atuantes no período coberto pela nossa pesquisa passaram a pressionar o Estado para que ele atenda às novas demandas coletivas e a exigência de criação de aparato institucional capaz de enfrentar as questões socioambientais e seus atores coletivos.

Figura 1 - Mapa de Localização do Município de Santarém – Pará

Fonte: Roberth Rodrigues Ferreira (2017).

A pesca na região amazônica é uma prática econômica em que boa parte da população ribeirinha está envolvida, direta ou indiretamente, na captura, venda e no consumo familiar nas regiões ribeirinhas que ocorre desde períodos pré-colombianos (SILVEIRA; SCHAAN, 2005), sendo importante fonte alimentícia, dado amplamente reconhecido pelos estudos de Lathrap (1968) e Meggers (1971). Vale frisar que parte da população no território amazônico brasileiro está concentrada ao longo dos rios, a fim de que possa desfrutar das proteínas da fauna aquática, do transporte fluvial e de terras férteis para o plantio (SMITH, 1979). A intensificação da pesca tem aumentado vertiginosamente a pressão sobre os estoques pesqueiros (McGRATH et al., 1998) e esse processo tem levado a construção de APs que visam, grosso modo, ordenar quais atores sociais podem fazer uso do recurso sem colocar em risco a oferta de pesca e a integração socioeconômica das comunidades que sobrevivem, em parte, da obtenção desses recursos.

As políticas públicas voltadas para a pesca amazônica passaram por momentos históricos distintos e que definem, em larga medida, as diferentes abordagens e modelos de desenvolvimento pensados para a região (BECKER, 2006). Ruffino (2005) caracteriza a pesca na Amazônia em três períodos distintos de modelos de desenvolvimento. O primeiro corresponde à pesca antes da década de 1960, cuja atividade era praticada desde o período pré-colombiano, funcionando como uma fonte de subsídio alimentar e de complemento à economia das famílias que com o declínio da borracha e do cultivo da juta passa a ser a principal atividade econômica na região. O segundo período (entre as décadas 1960 a 1980) coincide com a modernização do setor pesqueiro e a criação da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE). Este órgão tinha por objetivo implantar o Plano Nacional de Desenvolvimento da Pesca (PNDP) e impulsionar um aumento na produção de recursos pesqueiros por meio dos incentivos fiscais, que forneciam auxílios técnico e financeiro ao setor pesqueiro, em especial na região amazônica por meio de incorporação de novas tecnologias de captura e armazenamento de pescado – motores a diesel, redes de emalhar de fibras de náilon e instalação de frigoríficos (BAYLEY; PETRERE, 1989). É nesse período que há um aumento na exploração do recurso pesqueiro, a ameaça prevalente da perda dos estoques pesqueiros, bem como o agravamento dos conflitos sociais por divergência de interesses e de capacidade de exploração dos recursos pesqueiros entre a pesca de subsistência e a pesca comercial (ESTERCI, 2014), surgindo às primeiras tentativas de controle da pesca pelas comunidades varzeiras na região. A terceira fase (após 1989) é marcada pelo fim da SUDEPE e criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), o qual trazia uma nova política para a pesca na região, pautada na gestão e no manejo dos recursos pesqueiros. Ainda, é nesse período que ocorre o processo de descentralização e a participação da sociedade (fóruns de discussão) na tomada de decisões iniciando uma gestão da pesca integrada. Com relação à participação popular no debate público sobre as questões ambientais, a autora considera:

Dos trabalhos locais, voltados para a construção de organizações representativas de múltiplos interesses e demandas, as organizações sociais passam a realizar um trabalho de articulação de redes e fóruns agregando novos conteúdos e temas a suas agendas, ampliando objetivos e passando, em alguns casos, a defender as reivindicações de interesses da coletividade e os direitos difusos (FERREIRA, 2011, p. 238).

Neste trabalho, o centro da análise deste artigo repousa no terceiro período de desenvolvimento da pesca na Amazônia e suas repercussões nos movimentos sociais dos ribeirinhos para a construção de APs na região de Santarém. O recorte metodológico analítico-temporal dos registros dos APs elaborados pelas comunidades varzeiras juntamente com instituições organizacionais (Colônia de Pescadores Z-20 e IBAMA) do município de Santarém. Contudo, convém mencionar que na região Amazônica esses acordos tomaram impulso ainda no final da década de 1960 e início da década de 1970 por conta de intensas disputas e conflitos em região de várzea, como a Guerra do Peixe, na região de Manaus, onde pescadores das comunidades Tilheiro e agricultores da comunidade Lago do Italiano entraram em conflito pelo direito ao acesso e uso dos recursos pesqueiros no lago Janauacá (SOARES, 2005). É preciso mencionar, também, o conflito deflagrado entre pescadores ribeirinhos e as geleiras oriundas da região de Belém da região do Lago Grande de Monte Alegre (McGRATH et al., 1991).

Em termos de metodologia, centramos a nossa análise dentro de uma perspectiva mista de enfoque qualitativo e quantitativo, uma vez que foi feita uma exaustiva pesquisa de documentos que assentam esses acordos de pesca, as especificidades deles, tanto em nível de sociabilidades quanto de caráter ecológico estendendo-se ao continuum das mudanças das leis e regras que regiam essas iniciativas de gestão no espectro local – regional – nacional, amparadas por políticas públicas constituídas pós a Carta Magna de 1988. O enfoque qualitativo baseia-se na concepção de que a análise dos documentos sempre exige ou recai na questão da subjetividade e os filtros axiológicos suscitados quando o observador constata e valora os processos externos a sua volta.

Políticas Públicas voltadas para a Gestão dos Recursos Pesqueiros

As políticas públicas voltadas à pesca, no Brasil, sempre estiveram estruturadas num discurso governamental pautado no crescimento econômico vinculado ao desenvolvimento regional. Sem dúvida, houve resistências por parte de atores sociais diretamente atingidos por essas estratégias de governo que fomentam o modelo de desenvolvimento puramente economicista. Com a redemocratização do país, houve uma forte tendência para a descentralização do papel do governo, bem como a criação e execução de políticas públicas voltadas à pesca, não somente como recurso econômico, mas inclusive como vetor de sociabilidades e suas respectivas culturas pesqueiras. Desse modo, o delineamento das políticas públicas, entendidas aqui como o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, “colocar o governo em ação”, analisar essa ação e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (SOUZA, 2006). Segundo a autora em governos democráticos, as políticas públicas são estratégias de governo que visam administrar a ação coletiva racionalmente visada e a de distribuição de bens coletivos e, na formulação da escolha racional, requerem o desenho de incentivos seletivos para diminuir sua captura por grupos ou interesses personalistas. Em contextos de políticas públicas voltadas ao setor pesqueiro, o foco nesse período (1990-2004) foi desenhado mais a nível regional e local, muito embora essa peculiaridade apresentasse, ainda assim, limitações para a implementação/ execução de ações governamentais.

Os APs analisados aqui cobrem o período de 1990 a 2004, que coincide na criação do IBAMA como órgão regulador das interrelações Estado – sociedade civil – espaços naturais e as das primeiras políticas públicas voltadas para atender as necessidades das comunidades ribeirinhas da Amazônia com relação ao acesso aos estoques pesqueiros e sua manutenção ao longo do tempo. Especificamente, como foi dito anteriormente, os projetos Iara e Pró-Várzea apoiados e financiados pelo IBAMA têm papel fundamental nesse boom de acordos de pesca na região. Foram examinados 42 acordos de pesca que cobrem as seguintes microrregiões de pesca de Santarém: Tapará, Urucurituba, Ituqui, Lago Grande, Arapixuna, Maicá, Aritapera, além de Juá e Área Verde.

Segundo Ruffino (2005), a criação do IBAMA, diretamente ligado ao Ministério do Meio Ambiente, encarnou o anseio do Estado em tratar de forma unificada a proteção ao meio ambiente e o uso dos recursos naturais. Ainda segundo o autor, após a criação deste órgão, novas formas de gestão integrada foram desenvolvidas, como o Programa de Pesca Continental/ Gerenciamento por Bacias Hidrográficas. A partir de 1993, foram desenvolvidos fóruns de discussão que aglutinaram diversas esferas institucionais e a sociedade, possibilitando modelos de gestão integrada. O IBAMA, institucionalmente, regulamenta a pesca que, segundo Oviedo et al. (2015), perante a sua fragilidade administrativo-institucional, assumiu um papel mais dinâmico – em relação à extinta SUDEPE – nas mediações sociedade-governo:

O órgão adotou modelos de gestão voltados para a administração integrada ou participativa de atividades realizadas em ecossistemas específicos. Neste contexto, em 1992 o Departamento de Pesca e Aquicultura do IBAMA (Depaq) implantou o Programa de Organização da Pesca em Bacias Hidrográficas. Durante os primeiros anos do programa, não foram criados instrumentos adequados para a sua execução. As ações se concentraram em regulamentos federais para a atividade de pesca. No entanto, surgiu a percepção da necessidade de incluir as instituições federais, estaduais e municipais relevantes e as organizações da sociedade civil no processo de tomada de decisão (OVIEDO et al., 2015, p. 124).

Ainda segundo estes autores (2015), as políticas públicas voltadas para os recursos aquáticos e da pesca na região amazônica tem se polarizado entre o uso de forte intervenção do Estado ou a sua face inversa, a completa omissão estatal frente aos intensos conflitos deflagrados na região, cujas disputas conjugaram as pressões ecológicas com preocupações sociais levou a uma crítica socioambiental que se constitui como marca importante do ambientalismo ribeirinho (ESTERCI et al., 2014). Desde os anos 1970 os ribeirinhos contribuem para a elaboração de políticas ambientais para espaços pesqueiros na Amazônia, reconhecidos como possuidores de um modo de vida que atende aos princípios da sustentabilidade ambiental (PERROTA, 2014).

É neste momento que o IBAMA institui a gestão participativa dos recursos de várzea na Amazônia. Daí nasce o Projeto de Gestão de Recursos de Várzeas Naturais (Pró-Várzea), cujo objetivo era fornecer bases técnicas e políticas para a conservação e a gestão dos recursos varzeiros. Nesse ínterim, segundo Oviedo et al. (2015), o IBAMA criou um Programa de Agentes Ambientais Voluntários, que ajudou as suas atividades nos domínios da educação e gestão de áreas ambientais protegidas sem, no entanto, lograr sucesso nas regiões de várzea em Santarém:

O programa começou com investimentos em treinamento e capacitação de agentes voluntários, mas chegou ao fim após vários conflitos que envolveram IBAMA, agentes voluntários e membros das comunidades (OVIEDO et al., 2015, p. 126).

De 1994 a 2013, uma parceria entre as organizações não governamentais (ONGs) IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e WWF (Fundo Mundial da Vida Selvagem) apoiou o Projeto Várzea no desenvolvimento de um sistema de cogestão da pesca na região do Baixo Amazonas. Este esforço passou por três fases que se sobrepõem. Na primeira, o pessoal do Projeto Várzea trabalhou com o IBAMA para desenvolver critérios e procedimentos para a transformação de acordos comunitários de pesca em regulamentos formais (OVIEDO et al., 2015).

O IBAMA, por meio da Instrução Normativa nº 29, de 31 de dezembro de 2002, define Acordo de Pesca como um conjunto de normas específicas, decorrentes de tratados consensuais entre os diversos atores (stakeholders) dos recursos pesqueiros em uma determinada área definida geograficamente (RUFFINO, 2005). Eis aí o Marco Legal que normatiza esses acordos sob a responsabilidade de atores sociais e institucionais, tendo o IBAMA como órgão fiscalizador e regulador, representante do Ministério do Meio Ambiente. Os acordos anteriores ao Marco Legal, instituído apenas em 2002, eram acordos informais que sistematizam e regulamentavam o uso dos recursos pesqueiros em lagos comunitários sob a observância do IBAMA. Daí, vemos o impasse de atribuições institucionais e sociais dos atores coletivos envolvidos na construção e manutenção dos acordos de pesca: nem o IBAMA, nem a Colônia de Pescadores tinham poderes para administrar os lagos comunitários vistos como territórios de pesca. O Marco Legal veio com o objetivo de preencher esse “vazio de atribuições” que, em termos práticos, significou a ratificação legal-jurídica dos acordos mediante a esfera do Governo, mas que na dimensão microssociológica, a vigilância dos lagos e a consequente punição a possíveis infratores ficaram a cargo da responsabilidade dos comunitários.

Em conjunto com o IBAMA, os Conselhos Regionais de Pesca, criados pelo Projeto Várzea, tiveram um papel importante nas políticas de comando e no controle, presentes em grande parte dos Acordos de Pesca na região de Santarém. Segundo Oviedo et al. (2015) o IBAMA resistiu a esses acordos, considerando-as uma ameaça à sua autoridade institucional, porém, em virtude do número crescente de conflitos, o órgão concluiu que uma abordagem mais participativa não só era aceitável, mas necessária. A Portaria nº 29/2003 do IBAMA reconheceu iniciativas de gestão comunitária de pesca e abriu o caminho para a sua integração na estrutura regulatória formal (OVIEDO et al., 2015). Realizado pelo IBAMA, o Projeto IARA – Gestão dos Recursos Pesqueiros do Médio Amazonas – foi importante para alcançar melhorias na gestão dos recursos pesqueiros e no tracejamento do perfil socioeconômico das populações diretamente beneficiadas com o manejo pesqueiro. O projeto foi implementado no Pará e Amazonas, de 1991 a 1995. Um dado relevante é a participação de Colônia de Pescadores e seus usuários, criando um importante banco de dados socioeconômicos e ambientais e fortaleceu as instituições locais (OVIEDO et al., 2015).

O município de Santarém, no contexto socioeconômico e político da Amazônia, possui importância central nas complexas interações entre dinâmicas econômicas, políticas e dos conflitos socioambientais, já que as mobilizações políticas dos ribeirinhos na região expõem as intensas disputas entre empresas, poderes instituídos, judiciário, polícia, ONGS, milícias (PEREIRA, 2009) que implica em acordos, adesões, confrontos, alianças e novas formas de ação coletiva entre atores sociais historicamente marginalizados. Pensamos o conceito de mobilização política, a partir da análise feita por Gohn e Bringel (2014), como movimento social, porque estabelecem trânsitos de atores e fluidez nas trocas de informações em espações não consolidados das estruturas e organizações sociais. Na maioria das vezes os ribeirinhos estão questionando estas estruturas – Estado, estrutura jurídica e suas formas fixas de legitimação de poder sobre os territórios – e, propondo novas formas de organização a sociedade civil. Por isso, eles são inovadores (GOHN; BRINGEL, 2014). A abordagem apresentada por estes autores centra seu foco em interpretações no caráter determinante do contexto e suas oportunidades, criando todo um corolário de noções de apoio para o confronto político, estruturando das oportunidades, mobilização de quadros, repertórios de atuação dos atores sociais (GOHN; BRINGEL, 2014).

Sendo assim, o declínio da produtividade pesqueira fez com que comunidades ribeirinhas tenham sistematicamente tentado, através de construção de acordos de pesca, proibir a entrada de barcos-geleiras e pescadores comerciais nos lagos e trechos de rios regidos por esses acordos. Em certa medida, a ameaça externa tem sido um elemento nodal na afirmação de direitos comunitários (DIEGUES, 2001). Destruição de apetrechos de pesca, de barcos e ameaças de violência física entre as partes envolvidas eram recorrentes e problematiza, sem dúvida alguma, a ausência do Estado (McGRATH et al., 1998) em termos de garantir a segurança de todos os atores sociais envolvidos na questão. Os acordos de pesca, na Amazônia, desde sua instituição em meados dos anos 1970, tinham sua legitimidade em termos de comunidade, sendo gerenciado pelos próprios ribeirinhos. Em certa medida se explica pelo fato de que as organizações atuavam na esfera local e regional, adotando medidas pontuais, sem repercussões em políticas públicas (FERREIRA, 2011). Daí percebe-se uma falsa contradição no fato de os APs já serem amplamente utilizados nos anos 1970 e somente foi amparado juridicamente pelas instituições governamentais a partir de 2002, conforme veremos a seguir. Mesmo sistematizado em 1990, apenas em 1999 o IBAMA passa a reconhecer formalmente os acordos comunitários de Pesca através da Portaria nº 16/1999. Esse entrave foi devido uma concepção jurídica que considera o peixe como res nullius e os lagos como corpos d’água públicos com acesso livre (CERDEIRA; CAMARGO, 2006). Consoante os documentos analisados dos acordos de pesca, entre 1985 e 1987, apenas três acordos de pesca foram construídos na região de Santarém: Aritapera (1985 e 1987) e Ituqui (1988). Após a sistematização e reconhecimento do IBAMA, a região santarena sofreu um boom na criação e sistematização desses acordos, no total de 31 catalogados em nossa pesquisa, o que perfaz um crescimento de 1000%. Dentre as regiões, o Tapará e o Aritapera foram as que mais construíram territórios para manejo de pesca para conservação de estoques pesqueiros, perfazendo o total de quinze acordos.

As determinações ecológicas e normativas desses acordos, conforme observamos, tem uma variabilidade considerável, porque a várzea é extremamente diversa em seu território, o que alguns autores a classifica como mosaico (McGRATH et al., 1998). Esse mosaico, ressalvada a conceitualização feita pelo autor anteriormente citado, é visualizado nos acordos investigados através da diversa gama de reivindicações dos atores sociais da várzea santarena, tanto em termos ecológicos quanto de sociabilidades desejáveis em termos comunitários e intercomunitários. Sendo assim, os acordos dispõem de normas e punições para quem cria búfalos (Urucurituba, 1993-1994; Área Verde, 1994), captura de quelônios (Tapará, 1993-1995; Lago Grande, 1992-1993; Aritapera, 1995), captura de acari (Aritapera, Instrução Normativa nº 11/2004), sardinha, aracu e pacu (Urucurituba, 1998) até a proibição sistemática de certos apetrechos de pesca, a exemplo da malhadeira (todas). O uso de malhadeiras em árvores frutíferas é um item recorrente e que suscita a proibição do uso entre os comunitários regidos pelo acordo (Urucurituba, 1993).

TABELA 1 – MÊS/INÍCIO DA VIGÊNCIA DOS ACORDOS DE PESCA NAS COMUNIDADES

Fonte: Instituto de Pesquisa da Amazônia

TABELA 2 – MÊS/TÉRMINO DA VIGÊNCIA DOS ACORDOS DE PESCA NAS COMUNIDADES

Fonte: Instituto de Pesquisa da Amazônia

Um item interessante a ser pontuado nesses acordos analisados é a preocupação e entendimento, por parte das comunidades ribeirinhas, de que não se pode pensar em acordos de pesca e o subsequente manejo dos recursos pesqueiros sem pensá-los em termos mais amplos, em termos ecossistêmicos: ainda no início dos anos 1990, acordos já atentam para a necessidade de se preservar a vegetação no entorno do lago e das comunidades. Devido a pressões internas e também das formas como as comunidades estabelecem acordos e coalizões com atores sociais e coletividades, percebe-se o curioso dado de que as comunidades de Lago Grande de Curuai (1999) permitem a entrada de geleiras para a captura de pescado, lavrado em acordo de pesca firmado em reunião comunitária. Outro protagonismo interessante foi o estabelecimento da relação entre comunidade e lideranças neopentecostais na comunidade de Santarém-Miri, região de Ituqui (1994), constituindo novas formas de mobilização política popular. Tradicionalmente, essa liderança era construída sob a tutela da Igreja Católica.

Segundo Oviedo et al. (2015), as políticas públicas que visam a conservação dos recursos aquáticos e da pesca na região amazônica têm-se delineado sob duas perspectivas: a intervenção do Estado na implementação de leis e ordenamentos estranhos às populações locais ou na omissão sistemática dele. Dada essa omissão, verdejaram as iniciativas locais em ordenar os territórios pesqueiros e sua natureza comunitária, excluindo das regras e dos acordos quaisquer indivíduos embarcados estranhos à comunidade. Desnecessário frisar que essa peculiaridade dos acordos, até hoje, gerou insatisfação aos pescadores que ou ficaram de fora desses ordenamentos (os de fora) ou os barcos geleiras que foram impedidos de entrar no território regulado pelo acordo.

As peculiaridades dos acordos de pesca na região de Santarém, Pará

Historicamente, a ocupação da várzea santarena tem sido baseada na estratégia do uso múltiplo do território, envolvendo práticas agrícolas, a pesca, o extrativismo e a pecuária, no entanto, nas últimas décadas houve declínio das atividades extrativistas e o colapso da agricultura como atividades econômicas que geravam renda na região (McGRATH et al., 1991; PERROTA, 2014). Esse panorama socioeconômico tornou as disputas de territórios aquáticos para fins de captação de recursos pesqueiros mais intensos, envolvendo disputas entre diversos atores individuais e coletivos. Sendo assim, a visão idílica de que a várzea amazônica seria uma das últimas regiões pesqueiras do mundo ainda pouco explorada pela lógica do capital é posta em xeque, por conta dos intensos conflitos entre ribeirinhos e pescadores comerciais nos últimos quarenta anos (McGRATH et al. 1998; DIEGUES, 2001). A intensificação da captura dos estoques pesqueiros, bem como a tentativa de mobilização política dos ribeirinhos de preservá-los redimensionam a problemática do acesso e legitimidade de quem pode e em quais condições usufruir dos estoques de peixes em lagos e rios na região Amazônica e, em especial, na região de Santarém.

Figura 2 - Mapa das microrregiões de pesca do município de Santarém-Pará

Fonte: Roberth Rodrigues Ferreira (2017).

Segundo Alain Touraine (1965), os movimentos sociais são ações sociais que permitem um relativo progresso social, pois somente aquelas podem criar, inovar e atribuir sentidos às lutas sociais. O autor estabelece distinções entre as noções de “ação social” que é relativa aos atores dos “movimentos sociais”, referentes à mudança. Para que o movimento social exista, é necessário ter bastantes atores sociais envolvidos e que compartilhem uma identidade comum. Neste sentido, Touraine (1965) e Gohn e Bringel (2014) se aproximam como intérpretes para os problemas pós-coloniais na América Latina, cujo vetor de grande parte dos movimentos sociais é o estabelecimento da noção de identidade e suas relações com o território: a noção de ribeirinho e a estrita relação com o território ambíguo da extensão terra-água é útil para pensarmos essa teoria social macrossociológica à nossa questão. Esses movimentos sociais podem ser pensados sob a visão de que a preservação dos estoques pesqueiros está estritamente relacionada à ação social dos sujeitos diretamente envolvidos com os eventos ligados a pesca.

Os acordos estão distribuídos conforme a tabela a seguir:

Tabela 3 - Distribuição dos acordos de pesca de Santarém conforme as regiões de pesca.

Fonte: Instituto de Pesquisa da Amazônia.

O recurso pesqueiro pode ser pensado como um “recurso comum”, conjunto de recursos para os quais é difícil excluir outros e o uso por um indivíduo pode por em risco a quantidade disponível para outros usuários (FEENY et al., 1990). A propriedade de livre acesso é amplamente contestada pelos ribeirinhos no oeste paraense, porque abre possibilidades de qualquer um ter acesso ao interior dos lagos para a pesca comercial. Diegues (2001) afirma que, os sistemas tradicionais de acesso a territórios e recursos de uso comunitário no Brasil sofrem constante ameaça ao avanço da lógica da propriedade privada, nesse ponto percebe-se o risco permanente de indivíduos colocarem em xeque pactos comunitários que assegurem o acesso e usufruto de recursos percebidos como de apropriação coletiva, porém, exclusiva a determinado conjunto de atores sociais envolvidos – no caso, os moradores de determinada comunidade.

Nesse sentido, buscamos compreender esses agenciamentos sob a perspectiva da teoria da ação coletiva, em que um número considerável de indivíduos tem um interesse comum ou coletivo e mobilizam-se para alcançar benefícios coletivos e extensíveis a todos (OLSON, 1999). Nas disputas travadas localmente, os atores sociais passaram a ambientalizar seus discursos, cuja ação coletiva é articulada tendo em vista a constituição de conflitos sociais, questionando desde técnicas de pesca e seus apetrechos até como apropriar-se dos territórios, seus recursos e a distribuição de poderes sobre eles (ACSELRAD, 2010; FERREIRA, 2011). A partir disso, pensamos ser pertinente argumentar que, ao longo dos últimos quarenta anos, a mobilização política dos ribeirinhos na Amazônia equaciona novas formas de reforma “agrária” em termos de territórios aquáticos, resguardadas suas especificidades em termos de construção de espaços, temporalidades, ações e formas de associação entre atores sociais.

Ainda segundo McGrath et al. (1998), o manejo comunitário da pesca baseia-se em acordos comunitários que especificam as medidas a serem tomadas e as sanções a serem usadas contra possíveis infratores. Dentro dessa lógica, os acordos de pesca analisados buscam especificar que medidas devem ser tomadas caso um comunitário infrinja as regras formalizadas em reuniões comunitárias, geralmente presididas pelo presidente da Colônia de Pescadores Z-20 de Santarém, ou a pescadores comerciais embarcados em barcos-geleiras. Em diversos acordos observados é possível perceber a constante reclamação de entrada de barcos-geleiras nos lagos, principalmente na região do Lago Grande, e a incapacidade física de manter uma permanente vigilância dada à extensão territorial do lago ou a reduzida quantidade de comunitários para monitorar o lago durante o dia.

A disputa dos territórios dos lagos e a instituição de acordos de pesca por comunidades varzeiras – ribeirinhas em Santarém no período retratado aqui apontam numa ambientalização das lutas sociais, processo esse caracterizado por um discurso e prática sociais que mobilizam determinados contextos socioeconômicos e momentos históricos dados (ACSELRAD, 2010). Percebemos que essas lutas, presentes nos documentos analisados, transcendem a disputa pelo território meramente pesqueiro: já nos primeiros acordos, implantados nos fins dos anos 1980 e início dos anos 1990, as comunidades enxergavam a necessidade de ampliar o debate acerca da complexidade do território cujos recursos pesqueiros são encontrados, entrando em cena os ecossistemas florestais e faunísticos mais amplos. Concordamos com as autoras que consideram a territorialidade como pré-requisito para qualquer forma de manejo comunitário, pois as regras estabelecidas só têm validade numa área dominada por aquela comunidade, onde a mesma teria força para fazer valer seus acordos (CERDEIRA; CAMARGO, 2006). Esses territórios socioambientais são extremamente complexos, porque compreendem os canais principais dos rios, os diques permanentes que margeiam esses canais, os lagos permanentes e as pastagens sazonalmente inundadas que cobrem a zona de transição entre diques e lagos (OVIEDO et al., 2015).

Para Esterci et al. (2014) a ideia de territórios socioambientais advém do processo historicamente constituído de reivindicações coletivas de pequenos produtores que reagiram a diversos tipos de expropriação a que vinham sendo submetidos. Posto isso, esses atores sociais passaram a exigir e organizar seu modo de vida baseado e articulado através de territórios de uso coletivo e ambientalmente protegidos.

Podemos pensar a construção e constituição dos manejos comunitários dos recursos pesqueiros na região santarena como movimento político que exige, tomando por empréstimo as palavras de Pereira (2009), a produção de um conhecimento crítico a respeito dessas lutas ambientalistas para a formulação de políticas públicas democráticas que possam ouvir os diversos atores sociais nas arenas de negociação, permitindo a criação de novas formas de relação entre governo e sociedade. Sem dúvida, a mobilização política para a proteção do meio ambiente se inscreve em um quadro de valores a respeito da motivação para conservá-lo (PERROTA, 2014, p. 138).

Os acordos analisados não possuem um tempo físico para determinar o início e fim da implementação dos acordos, podendo identificar que a maioria entra em vigor no período de descida das águas. Um dado relevante encontrado na análise conjunta desses documentos é a significativa participação de mulheres nas reuniões para a construção dos respectivos acordos comunitários, o que contradiz a literatura consagrada da área de que as mulheres pouco participam sejam da produção pesqueira ou das preocupações inerentes à atividade como fator integrador da vida social comunitária. Muito ainda precisa ser estudado sobre esse aspecto social das relações de gênero na pesca no Baixo Amazonas, bem como o protagonismo feminino numa sociedade ainda ideologicamente assentada na concepção machista de que as atividades laborais são reservadas ao universo masculino. Dentro do recorte total dos 42 acordos estudados, um total de 930 homens assinaram os acordos (81,08%) e 217 mulheres (18,92%), contabilizando 1147 atores sociais engajados na implementação dessa gestão participativa para a manutenção dos estoques pesqueiros.

Considerações Finais

As populações tradicionais – dentre elas, os ribeirinhos – desenvolveram um complexo e extenso conhecimento dos processos ecológicos e físicos das paisagens amazônicas (HARRIS, 2006), cotejados por práticas próprias de manejo adaptados às regiões tropicais, muito embora, historicamente, esses atores coletivos têm sido negligenciados no tocante à elaboração de políticas públicas (ARRUDA, 2000), que articulem demandas sociais de regime de propriedade comum, de compensação econômica em período de defeso e a inclusão do gênero feminino na categoria social da pesca e, consequentemente, aos direitos inerentes a tal inclusão.

A diminuição dos cardumes de peixes nos rios e lagos, presença de novos atores com práticas distintas de exploração dos recursos pesqueiros e a total ausência de regulação efetiva por parte do Estado levaram, segundo Perrota (2014), ao surgimento das primeiras articulações políticas de moradores em sua área de pesquisa, comunidade ribeirinha do Amazonas. Esse conjunto de fatores também levaram ao surgimento de atores coletivos na região santarena, nas diversas microrregiões de pesca, propondo normas de acesso e uso dos recursos pesqueiros, consolidados através dos APs e o manejo dos recursos pesqueiros.

Falar de APs e manejo dos recursos pesqueiros remete, imediatamente, à questão da propriedade comum como parte do ordenamento jurídico. Sendo assim, a propriedade comum ganha expressão territorial, social, ambiental e jurídica no contexto amazônico no contexto atual (BENATTI, 2011). Expressão essa evidente no período amostral que dedicamos o estudo aqui apresentado: o efervescente período de 1990-2004 que culminou na ampla construção de APs nas microrregiões de pesca em Santarém, apoiados por políticas públicas instituídas pelo Ministério do Meio Ambiente e representada pelo órgão governamental para o setor, o IBAMA; a relevância dos projetos IARA e Pró-Várzea são incontestáveis e que vem reverberando nas ações coletivas de comunidades ribeirinhas na região do Baixo Amazonas ainda nos dias atuais. Pensamos que, a implementação desses acordos, no período aqui estudado e analisado, possa ser elemento chave para a compreensão das dinâmicas sociais que vem se processando hoje e articulando sujeitos coletivos.

O entrelaçamento dos APs e dos programas governamentais e políticas públicas dirigidas a atingir populações ribeirinhas apontam para um processo social dinâmico e fluído, onde sociedade civil e governo elaboraram agendas a partir de necessidades coletivas – políticas institucionais. Com base na análise dos APs da região de Santarém é evidente o ajustamento do discurso ambientalista dos signatários de modo a legitimar, no nível da proposição de políticas públicas para o setor, as demandas exigidas pelos ribeirinhos. É oportuno mencionar que o efeito cascara da construção dos acordos começa em 1990 e sofre o boom no período pós Rio-92. Esse fato sintomatiza o quanto o discurso ambientalista dos ribeirinhos (SCHWEICKARDT, 2014; PERROTA, 2014), na época, sofrera interferências externas de várias naturezas. Não queremos afirmar que vigorou uma causalidade, mas múltiplos processos sociais e institucionais que convergiram para o desenvolvimento do ordenamento pesqueiro na região (RUFFINO, 2005). A forte influência de setores da Igreja Católica na várzea santarena (HOUTZAGER, 2004; NEVES; GARCIA, 2015) ajudou a formar líderes locais sintonizados com a ideia de que, os APs e o manejo dos lagos transpuseram as lutas historicamente construídas dos camponeses para o acesso a terra às lutas pelos varzeiros ao acesso, uso e usufruto dos recursos aquáticos dos lagos considerados de propriedade comum, daí usarmos o termo de reforma agrária aquática.

Schweickardt (2014) descreve o protagonismo dos atores sociais na luta pelo acesso a terra, à água e à floresta como sujeitos políticos amalgamados numa identidade coletiva capaz de mobilização, convergindo interesses específicos de grupos sociais não necessariamente homogêneos, mas que se associam a partir de critérios político-organizativos. Nas análises das regras e normas dos APs percebemos uma vasta gama de interesses específicos descritos nos documentos: comunidades que impedem a entrada de embarcações de comunidades vizinhas, comunidades que permitem/ proíbem a entrada de geleiras, acordos que evocam um ambientalismo mais holístico, que cubra não somente os lagos, mas a cobertura vegetal circundante; outros que mencionam fofocas, disputas entre vizinhos, criação de animais domésticos. É possível tracejar, no entanto, que os APs são elaborações de normas consuetudinárias – naquele momento histórico – que dispõem sobre quem, quando, como e em que quantidade pode entrar nos lagos e ter acessos aos recursos pesqueiros. Por isso, defendemos, neste artigo, que os APs dispõem mais sobre a natureza social das lutas ambientais, criando normas para serem aplicadas sobre os atores sociais e não precipuamente sobre os estoques pesqueiros. São os atores sociais que precisam acatar determinadas regras de acesso e uso dos recursos pesqueiros do lago para que se possa garantir a oferta, a longo prazo, desses recursos para a comunidade.

O ambientalismo ribeirinho, claramente disposto ao longo dos textos dos APs, defende suas formas tradicionais de ocupação e uso dos ambientes da várzea (PERROTA, 2014). Ademais, a defesa da propriedade comum do território aquático – além da terra – assegura aos grupos sociais diretamente envolvidos a sua permanência em terras de propriedade intergeracional, bem como o baixo risco de degradação ambiental dos recursos naturais no entorno (BENATTI, 2011). E esse ambientalismo ribeirinho se opôs, historicamente, aos novos modelos de pesca artesanal, lutou em favor não apenas para a garantia de sua reprodução social, mas também cultural que confere um modus vivendi próprio (NEVES, 2003). Emerge nesse movimento social e ambientalista, o protagonismo das mulheres como importantes atores sociais construindo espaços de fala, representação e exigência de garantias de direitos, conforme debatemos anteriormente. Como historicamente as sociedades de pesca estiveram assentadas sob a unidade familiar e de relações de compadrio (MALDONADO, 1993; SILVA, 2011), acreditamos que a presença significativa do gênero feminino na construção dos acordos seja pelo fato de que os arranjos de gênero (HEILBORN; SORJ, 1999), nesse caso em questão, são desempenhados no sentido de assegurar a coesão das unidades familiares em torno de comunidades historicamente baseadas na produção familiar na pesca (ALENCAR, 1991). Sendo assim, os movimentos sociais dos ribeirinhos, sob a égide dos APs, reconstruíram novas formas de relação de gênero, cujo protagonismo feminino é numericamente incontestável.

As normas sociais e jurídicas foram fundamentais para a preservação e conservação dos estoques pesqueiros, consolidados pelos APs efetuaram pressão sobre a atuação dos múltiplos atores nos lagos na região de Santarém. Soma-se a isso, a relevância da pesca enquanto processo sociocultural indissociável à vida social dessas comunidades, gerando agenciamentos, sociabilidades e processos sociais, culturais e distribuídos ao longo de uma história local; em parte baseada e construída através dos ritmos e fluxos dos rios amazônicos. Desse modo, se faz necessária e urgente à ampliação do debate acerca das sociabilidades dos povos ribeirinhos em Santarém, protagonismo político, relações de gênero como fundamentais para a consolidação de direitos individuais e coletivos. Soma-se a isso, a necessidade de se compreender, dentro de uma agenda macrossociológica, como a construção desses atores coletivos pode oferecer elementos para o delineamento de uma reforma agrária aquática e as relações e alianças que são estabelecidas/ construídas/ imbricadas nessa interrelação sociedade civil e Estado.

Referências

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