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Resumo: Considerando as questões que marcam o atual cenário brasileiro, cujas repercussões incidem de maneira significativa nas políticas sociais e nos direitos dos envolvidos com o âmbito da educação (docentes, discentes, pedagogos, assistentes sociais, psicólogos etc.), o trabalho visa suscitar reflexões críticas acerca da educação no Brasil, apontando para o que aproxima o ideário dos Ginásios Vocacionais (1961-1970) – experiência educacional (e curricular) brasileira, pouco conhecida e muito singular frente às mudanças curriculares ocorridas no mesmo período e contexto – e o conceito de “conhecimento poderoso”, desenvolvido pelo sociólogo e teórico do currículo Michael Young. A saber: a proposta de que a atividade educativa institucionalizada necessita pautar-se em uma concepção clara de ser humano (consciente e crítico). Pois, uma educação que se institucionalize sem a referência de uma noção equânime de ser humano tende a se subordinar às relações de dominação (poder) nas sociedades e pouco pode fazer além de as endossar.
Palavras-chave: Políticas sociais, questão social, educação brasileira, ginásios vocacionais, currículo.
Enfim, educar para quê? — reflexões acerca do ensino institucionalizado
Valeria Forti1
Lorena Forti2
Resumo
Considerando as questões que marcam o atual cenário brasileiro, cujas repercussões incidem de maneira significativa nas políticas sociais e nos direitos dos envolvidos com o âmbito da educação (docentes, discentes, pedagogos, assistentes sociais, psicólogos etc.), o trabalho visa suscitar reflexões críticas acerca da educação no Brasil, apontando para o que aproxima o ideário dos Ginásios Vocacionais (1961-1970) – experiência educacional (e curricular) brasileira, pouco conhecida e muito singular frente às mudanças curriculares ocorridas no mesmo período e contexto – e o conceito de “conhecimento poderoso”, desenvolvido pelo sociólogo e teórico do currículo Michael Young. A saber: a proposta de que a atividade educativa institucionalizada necessita pautar-se em uma concepção clara de ser humano (consciente e crítico). Pois, uma educação que se institucionalize sem a referência de uma noção equânime de ser humano tende a se subordinar às relações de dominação (poder) nas sociedades e pouco pode fazer além de as endossar.
Palavras-chave
Políticas sociais; questão social; educação brasileira; ginásios vocacionais; currículo.
Anyway, educate for what? – reflections on institutionalized teaching
Abstract
Considering the issues that mark the current Brazilian scenario, whose repercussions have a significant impact on social politics and the rights of those involved with the scope of education (teachers, students, pedagogues, social workers, psychologists, etc.), the work aims to elicit critical reflections (1961-1970) – Brazilian educational (and curricular) experience, little known and very singular in face of the curricular changes that took place in the same period and context – and the concept of “Powerful knowledge” developed by sociologist and curriculum theorist Michael Young. Namely: the proposal that institutionalized educational activity needs to be based on a clear conception of human being (conscious and critical). For an education that becomes institutionalized without the reference of an equable notion of being human tends to subordinate itself to the relations of domination (power) in societies and can do little more than endorse them.
Keywords
Social politics; social issue; Brazilian education; vocational gyms; curriculum.
Artigo recebido: janeiro de 2018
Artigo aprovado: fevereiro de 2018
Introdução
Antes de tudo, cabe esclarecer que o presente texto, tendo em vista as definições do que sejam artigo e ensaio, apresentadas por Campos (2015), não consiste propriamente em um artigo, mas em um ensaio – do tipo acadêmico, obviamente. Segundo a autora,
O gênero textual artigo científico refere-se à apresentação de um relatório escrito de estudos a respeito de uma questão específica ou à divulgação de resultados de uma pesquisa realizada. [...] Geralmente, tem como objetivo tornar conhecido o diálogo produtivo com o referencial teórico utilizado no estudo, a metodologia empregada, a análise da questão-problema e os resultados obtidos. Promovendo, assim, o intercâmbio de ideias entre os estudiosos de uma área de atuação (CAMPOS, 2015, p. 31).
Diferentemente do artigo científico, o ensaio, por sua necessidade de síntese e por sua exigência quanto ao menor aprofundamento da fundamentação teórica [o que não significa que a fundamentação possa ser rasa ou medíocre. Apenas pode ser mais sucinta que em um artigo],3 permite a análise de casos específicos e a apresentação de reflexão e de posicionamento sobre tais casos de forma mais experimental e subjetiva que o artigo (CAMPOS, 2015, p. 4, grifo nosso).
Além disso, diante do propósito de sugerir uma aproximação entre o ideário dos Ginásios Vocacionais (1961-1970) e o conceito de “conhecimento poderoso”, desenvolvido mais recentemente por Michael Young, e assim poder contribuir para suscitar reflexões no campo da Educação Brasileira, fazem-se necessárias algumas considerações preliminares, que se seguem.
A começar, pode-se afirmar com segurança que menções à educação, considerada como a solução para os problemas mais evidentes da sociedade brasileira, têm sido cotidianas ou, no mínimo, muito frequentes. Comumente, sobretudo na mídia, difunde-se que, por meio da educação, é possível encaminhar/alcançar solução para os fenômenos que mais perseguem e afligem os brasileiros, como a violência urbana, o desemprego, a precarização das condições de trabalho, o mau atendimento nos serviços públicos de saúde e até mesmo os relativos à própria educação, em suma, para os fenômenos de desrespeito aos direitos constitucionais e humanos em geral.
A frequência com que tais menções são feitas, nos mais variados contextos, indica que a palavra ‘educação’ tem sido usada indiscriminadamente, sem deixar claro de que educação se fala exatamente; sem revelar para quem essa ‘educação’ se destina (ou deveria se destinar); sem evidenciar com que finalidade(s) ela é proposta (ou deveria ser proposta) etc.; como se o termo ‘educação’, per si, mostrasse um único (e invariável) conteúdo – quase mágico, haja vista que, na realidade, abarca extensa dimensão de significados e sentidos. Quer dizer, o uso indiscriminado e frequente da palavra educação tem contribuído para torná-la uma espécie de princípio abstrato, passível de grande aceitação, e capaz, inclusive, de dificultar sua própria exequibilidade, como possibilidade histórica, como processo decorrente dos propósitos e das ações dos homens concretos em situações concretas (em determinado: tempo, espaço, condições objetivas e subjetivas); decorrente da relação entre forças materiais e ideológicas.
Ademais, cabe observar que a forma capitalista de organização societária tem produzido, ao longo da história, mecanismos de preservação/expansão, sendo-lhe essencial o recurso à persuasão, ao controle e à coação. Quanto a isso, em linhas gerais, pode-se dizer que as leis, a ciência, os progressos técnicos, a moral e a educação são tomados como alguns dos seus meios reguladores, em prol de condutas compatíveis com seus valores essenciais – tais como: a propriedade privada, a concorrência, a competição e o individualismo – que podem ser entendidos como elementos que compõem a superestrutura própria da produção/reprodução nesse/desse tipo de sociedade.
Sem que se desconsidere a existência de diferentes projetos sociais e educacionais em disputa, cabe observar também que, no Brasil, assim como parece acontecer em grande parte das demais sociedades capitalistas contemporâneas, a história da educação escolar4 se constitui preponderantemente alinhada aos valores indispensáveis à configuração de uma população cônsona com os interesses de manutenção, desenvolvimento e expansão dessa forma de sociedade, cabendo ao Estado, desde a institucionalização, na modernidade, da escola pública, não obstante a coexistência dos estabelecimentos de ensino privados, o papel de fornecer as diretrizes fundamentais para a formação dos cidadãos em geral, especialmente, dos trabalhadores, estes de diferentes matizes, como, por exemplo, operários, gestores, burocratas, intelectuais etc. Obviamente, como já sugerido, em um processo histórico que conta com forças sociais em disputa, os referidos elementos sofrem alterações. Nesse sentido é que não parece razoável se falar em “uma” (somente uma) história do capitalismo, uma vez que não é possível, no movimento de busca por respostas às necessidades e aos interesses próprios desse tipo de organização da sociedade, captar a mesma cronologia, os mesmos estágios de desenvolvimento e as mesmas características nas diversas partes do mundo, nas diferentes regiões de cada país e nos distintos ramos da produção. No máximo, podem-se mencionar semelhanças gerais de formas [ou “morfológicas”], em diferentes períodos, que implicam uma coleção de histórias do capitalismo (DOBB, 1983). Desse modo, faz-se oportuno evidenciar que a abordagem que aqui se segue não extrapola tendências e particularidades do chamado “capitalismo periférico e dependente”.
Diante do exposto, é pertinente a compreensão de que ainda em meio a um período expansivo de produção e de consumo em massa pós-Segunda Guerra, que ficou conhecido como os “Trinta Anos Gloriosos”, o padrão de produção fordista começou a dar sinais de mais uma das crises inerentes ao sistema capitalista. Isto ocorreu em meados de 1960, mostrando-se com mais nitidez a partir de 1970. Uma crise cuja gênese Ruy Braga (1996) localiza na síntese das contradições e antagonismos amadurecidos no âmbito da correlação de forças estabelecidas entre a burguesia, a classe subalterna e o Estado-nação, no decorrer do processo de expansão do imperialismo ocidental em concorrência com o bloco do socialismo real, no período entre os anos 1950 e os anos 1970. Conforme Mattoso (1995, p. 57), a referida crise abalou significativamente a reprodução capitalista, pondo em xeque os compromissos do Estado de Bem-Estar com as políticas sociais.
Reação teórico-política à altura, ancorada primordialmente na ideia de que a crise se deveu, sobretudo, ao uso de instrumentos de regulação da economia e às políticas sociais do Estado, assim como, conforme esclarece Braga (1996), na ideia de que não há interesses de classe, mas interesses universais, válidos para todos (sendo estes, porém, de fato os interesses das classes dominantes), o Neoliberalismo implicou, na prática, um capitalismo mais duro, com maiores encargos para os trabalhadores a quem se destinam as políticas sociais.
Relativamente ao Brasil, país que merece ser observado pela incipiência histórica de suas ações de proteção social em geral, e onde o Estado de Bem-Estar sequer chegou a se constituir, é importante colocar que foi alto o impacto gerado pelo recrudescimento dos ditames do sistema econômico vigente em boa parte do planeta, sobretudo após o Consenso de Washington (1989),5 cujas recomendações de cunho neoliberal foram adotadas pelos Estados Unidos e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como exigências para o fornecimento de ajuda aos países em crise, assim como para a negociação de suas dívidas externas. Tais exigências – a saber: diminuição dos tributos pagos pelas grandes empresas (reforma fiscal), com vistas ao aumento de seus lucros e de sua competitividade; redução das tarifas alfandegárias (abertura comercial), no intuito de aumentar as importações e as exportações; redução da participação do Estado na economia (privatizações); e redução dos gastos do Estado (redução fiscal) por meio de corte em massa de funcionários públicos, terceirização de serviços, diminuição de direitos trabalhistas e do valor real dos salários, no intuito de arrecadar mais recursos para o pagamento da dívida pública – diferentemente do objetivo (propalado pelo Consenso) de combater as crises e misérias dos países subdesenvolvidos, trouxe para esses países, entre eles o Brasil, aumento do desemprego, acentuação da concentração de riquezas e formação de conglomerados. Ainda que o Brasil tenha registrado entre 2003 e 2009 – ano da nova crise mundial – redução significativa da inflação e da pobreza, o cenário econômico logo voltou a se mostrar bastante crítico, com intensificação das expressões da chamada “questão social”, e para o que, como dito anteriormente, dissemina-se a educação como solução. Ressurgem e logo se amalgamam, no senso comum, velhas concepções educacionais hierarquizadas, que restringem a educação escolar de jovens pouco abastados à profissionalização técnica elementar, como se, para as camadas populares, não coubesse o “sonho universitário”; existissem somente preestabelecidas e inquestionáveis possibilidades que lhes negam o direito ao conhecimento mais complexo consoante com postos de trabalho mais valorizados socialmente e/ou bem remunerados. Às camadas populares, sob esse olhar, cabe apenas um saber que as insira, o mais imediatamente possível, no mercado de trabalho. Ou seja, tal destino lhes seria suficiente, salvo raras exceções. Cabe observar, porém, que, apesar de viverem em uma república, com direito ao trabalho, são restritas as vagas de emprego regularizado (formal) que efetivamente as possam absorver.
Devido a essas considerações é que se avalia como premente refletir a respeito de alternativas de educação escolar pública ou, melhor, republicanas, que não se limitem a naturalizar a ideia de submissão da educação escolar aos conhecimentos alinhados meramente aos ditames neoliberais, ou seja, aos limites definidos pelas necessidades do mercado caracterizado pelas condições precárias de trabalho. Evidentemente, desde logo deve ficar claro que aqui não se propõe a apresentação ou o enaltecimento de um modelo, tampouco se vislumbra um tipo de educação escolar alheio aos limites impostos pela ordem social vigente, apesar de não se desconsiderar criticamente a possibilidade de superação dessa ordem. Aqui apenas se propõe uma visita a uma experiência vivida no Brasil, que ousou captar que “a realidade é sempre mais do que o existente porque ela é o existente e mais o possível” (KONDER, 1997, p. 44); que, ao invés de favorecer o desenraizamento de classe dos jovens, buscou permitir-lhes conhecer a realidade criticamente, neles fomentando a autonomia de pensamento e o respeito à humanidade.
Finalizando as considerações introdutórias, registra-se aqui a plena ciência de que a mera reflexão não basta. Entretanto, espera-se, com a apresentação da aproximação sugerida, contribuir para a divulgação e, quiçá, a exequibilidade de um projeto, pouco conhecido, e que, apesar de pertencer ao passado (extinto pela ditadura instaurada em 1964), permanece muito atual.
Proposta educacional: algumas aproximações entre a experiência dos Ginásios Vocacionais e o “conhecimento poderoso” de Michael Young
Partindo da análise empreendida por Daniel Chiozzini (2014) em seu artigo As mudanças curriculares dos Ginásios Vocacionais de São Paulo: da ‘integração social’ ao ‘engajamento pela transformação’, procura-se aqui, como dito anteriormente, estabelecer uma aproximação – considerando a referida análise e outro texto representativo (analisado pelo autor em outra oportunidade) – entre o ideário dos Ginásios Vocacionais e o conceito de “conhecimento poderoso”, desenvolvido pelo sociólogo inglês Michael Young, expoente na área de teoria do currículo.
Embora Young seja contemporâneo da experiência dos Ginásios Vocacionais (1961-1970), supõe-se que, devido a esta experiência ter sido muito localizada (restrita ao Brasil, no estado de São Paulo) e à escassa bibliografia a respeito, o autor não tenha tido ciência da ocorrência dessa proposta educacional em específico. O inverso parece também verdadeiro. Ainda que, como dá a entender o supracitado artigo de Chiozzini (2014, p. 35), tenha havido uma coadunação entre o referencial teórico que marcou o início dos Ginásios Vocacionais – a saber, a produção do americano Ralph Tyler (1902-1994) – e o pensamento de Young, isto só se deu restritamente no contexto da Nova Sociologia da Educação (NSE), da qual o próprio Young se destacou como um dos mais célebres expoentes e à qual ele mesmo lançou críticas tempos mais tarde. Young até faz referência à educação vocacional, mas, quando o faz, refere-se ao ensino técnico/ profissionalizante do Reino Unido, que, diferentemente do Ensino Vocacional da experiência paulista, de fase ginasial, é um curso pós-ensino médio, para alunos com idade a partir dos 16 anos.
Desse modo, a correspondência em nível conceitual que aqui se vislumbra pode ser coerente – cabe destacar, e espera-se conseguir minimamente fundamentar – apenas se comparadas a experiência educacional do estado de São Paulo e o que fora produzido mais recentemente por Young, uma vez que o autor reformula em meados dos anos 1980 o seu pensamento, apontando os limites da análise que ele próprio e outros integrantes da NSE fizeram na virada da década de 1960 para o início dos anos 1970. Por isso, então, a ideia de se fazer uma aproximação (conceitual) e não, o que costuma ser mais usual, estabelecer uma relação.
O surgimento dos Ginásios Vocacionais
Os Ginásios Vocacionais surgiram no estado de São Paulo, a partir da Lei estadual 6.052, de 3 de fevereiro de 1961, que dispunha sobre o Ensino Industrial, o Ensino de Economia Doméstica e de Artes Aplicadas e os Cursos Vocacionais. Os artigos 21 a 25 desta lei criaram formalmente o Ensino Vocacional. “A denominação Cursos Vocacionais correspondia ao ensino técnico, significando cursos de treinamento para desenvolvimento de habilidades manuais ou mecânicas” (MASCELLANI, 2010, p.89). A regulamentação da Lei veio a ocorrer em junho do mesmo ano com o Decreto 38.643. O artigo 302 desse instrumento legal subordinou diretamente os Ginásios Vocacionais ao Serviço de Ensino Vocacional (SEV) da Secretaria da Educação, o que conferiu maior autonomia aos cursos/ estabelecimentos vocacionais (se comparados às demais instituições sob o juízo da mesma lei). A experiência contou com seis unidades escolares nas cidades de Barretos, Batatais, Rio Claro, Americana, São Paulo e São Caetano do Sul.
A Lei estabeleceu condições para a renovação do chamado “primeiro ciclo do ensino de grau médio”, que equivale hoje ao segundo ciclo do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano); instituiu duas etapas de conclusão do Ensino Vocacional (primeiros dois anos do curso, a Iniciação Vocacional; dois anos seguintes, o Básico Vocacional); incluiu nessa modalidade de curso matérias de iniciação técnica (para além de sua equivalência em termos de organização, funcionamento e disciplinas com o primeiro ciclo de grau médio que vigia no país); e permitiu o funcionamento de tais Cursos em unidades independentes de outros centros educacionais, além da subordinação direta dos mesmos, como dito acima, a órgão especializado em educação secundária da Secretaria de Educação:
Artigo 21 - Os Cursos Vocacionais, de 2 ou 4 anos de duração, de 1º ciclo do ensino de grau médio, terão o caráter de curso básico, destinado a proporcionar cultura geral, explorar as aptidões dos educandos e desenvolver suas capacidades, dando-lhes iniciação técnica e orientando-os em face das oportunidades de trabalho e para estudos posteriores.
Artigo 22 - Os cursos vocacionais poderão funcionar em duas etapas:
1) Iniciação Vocacional;
2) Básico Vocacional.
Artigo 23 - O Curso Básico Vocacional, de 4 anos de duração, terá sua organização e funcionamento nos moldes fixados pela legislação que regula o 1º ciclo do ensino secundário vigente no país, correspondendo ao Curso de Iniciação Vocacional as duas primeiras séries desse mesmo curso.
Artigo 24 - Além das disciplinas próprias do 1º ciclo do ensino secundário vigente no país, o Curso Básico Vocacional, bem como o Curso de Iniciação Vocacional terão seus respectivos currículos acrescidos de matérias de iniciação técnica.
Parágrafo único - As matérias de iniciação técnica incluirão atividades de experimentação profissional de várias modalidades e práticas de oficina ou de laboratório, sem preocupação imediata de formar artífices, com o fim de proporcionar orientação profissional e despertar interesse para profissões técnicas e científicas.
Artigo 25 - O Curso Básico Vocacional e o Curso de Iniciação Vocacional poderão funcionar nas Escolas Industriais ou Escolas de Economia Doméstica e de Artes Aplicadas, sujeitos à direção administrativa dos mesmos estabelecimentos.
Parágrafo único - O Curso Básico Vocacional poderá, a critério do Poder Executivo, funcionar como unidade distinta ou integrada em Centro Educacional, diretamente subordinada e orientada por órgão especializado em educação secundária da Secretaria da Educação, passando a denominar-se Ginásio Vocacional (BRASIL, 1961 apud CHIOZZINI, 2003, p. 16, grifo nosso).
O estudo da tramitação da lei na Assembleia Legislativa de São Paulo, empreendido por Chiozzini (2003) em sua dissertação de mestrado intitulada Os Ginásios Vocacionais: a (des)construção da história de uma experiência educacional transformadora (1961-69), abriu portas, como o próprio autor explica, “para entendermos o universo político do estado e do país” (p. 6). Porém, tendo em vista a complexidade da análise conjuntural levada a cabo pelo autor em sua dissertação, o mais importante a se destacar desta análise, considerando o objetivo de fazer uma aproximação conceitual, é a tônica dos debates entre os parlamentares, que era: a necessidade de reformulação não só do ensino industrial, mas de toda a rede educacional, em função da modernização (demanda por industrialização) da economia brasileira (p.17). Ou, como bem coloca Mascellani:
[...] tornavam-se cada vez mais prementes as demandas sociais por uma educação que melhor atendesse não só ao aumento demográfico, sobretudo nas zonas urbanas, mas também às exigências de um novo padrão de desenvolvimento tecnológico e científico que resultavam do avanço no processo de industrialização do país (MASCELLANI, 2010, p. 82).
Importante destacar também, em contrapartida, que “segundo a reportagem da revista Visão, o Secretário da Educação da época, Luciano de Carvalho, se propunha também a romper com uma educação em que o aluno” (CHIOZZINI, 2014, p.26):
[...] desde cedo era predeterminado pelos azares da fortuna e posição dos pais [...] [ou por] [...] contingências fortuitas para a profissão de adulto. Daí a necessidade da escola que se abre em leque para o desabrochar da vocação e dá ao jovem a oportunidade de se descobrir ou realizar (VOCACIONAL..., 1970 apud CHIOZZINI, 2014, p. 26).
Por outra parte, vale atentar para o fato de ter havido, durante os nove anos de existência dos Ginásios Vocacionais, nada menos que nove Secretários de Educação. O que, minimamente, pressupõe uma instabilidade contextual e, consequentemente, a necessidade de forte coesão interna (em termos de proposta e de organização) para a manutenção dos Ginásios.
Ainda que divergências internas, muito bem investigadas por Chiozzini em sua dissertação, tenham contribuído para a extinção dos Ginásios, de todo modo, o que prevaleceu como ideário daquela experiência encontra ressonância na atualidade e – como este ensaio pretende sugerir – nos recentes escritos de Young.
Ora enaltecido como inovador (e guardado assim na memória de seus defensores), ora acusado de subversivo (por seu mais claro opositor: a ditadura iniciada em 1964), o Ensino Vocacional teve, como bem pontua Chiozzini (2003), na própria legislação que o criou:
[...] as condições para que o projeto se tornasse uma experiência educacional que fugiu do “espírito” inicial daquela legislação. Esse “espírito” fica muito claro quando analisamos o conjunto da lei. As tais Escolas Industriais e de Economia Doméstica tinham um caráter nitidamente conservador. É fácil perceber que as mesmas visavam, objetivamente, preparar mão-de-obra qualificada e boas “donas-de-casa” (CHIOZZINI, 2003, p. 17).
As fontes
Dois documentos são representativos da memória que se cristalizou sobre os Ginásios Vocacionais. O primeiro: um texto produzido pelo SEV para o I Simpósio de Ensino Vocacional, que ocorrera durante a 20º Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada em junho de 1968, e que foi analisado por Chiozzini (2014). O autor considera que o referido texto:
[...] pode ser visto como a primeira grande iniciativa de divulgar para um público amplo as concepções, metodologias e técnicas adotadas pelo Serviço de Ensino Vocacional (SEV), já que as reuniões anuais da SBPC são eventos científicos nacionais e de grande porte. [E] não foi encontrado [pelo autor] nenhum outro registro dessa natureza durante a existência dos Ginásios (CHIOZZINI, 2014, p.33).
O segundo documento é a tese de doutorado da professora e pedagoga Maria Nilde Mascellani (que esteve à frente do SEV quase todo o tempo de existência do órgão). A tese, intitulada Uma pedagogia para o trabalhador: o ensino vocacional como base para uma proposta pedagógica de capacitação profissional de trabalhadores desempregados foi defendida em 1999, e publicada em livro em 2010.
Relativamente ao pensamento mais recente de Michael Young, merecem destaque dois artigos: Superando a crise na teoria do currículo: uma abordagem baseada no conhecimento, publicado no Brasil em 2013; e Teoria do Currículo: o que é e por que é importante, fruto de uma palestra proferida pelo teórico na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em 2013, e publicado em 2014. No primeiro, Young defende que a construção do currículo escolar deva partir do direito do aluno ao conhecimento, sendo a escola o lugar, por excelência, onde a criança pode superar o conhecimento derivado da experiência cotidiana e aprender o que precisa para dar sentido ao mundo e melhorá-lo. No segundo artigo, Young enfatiza a necessidade de se investigar em que medida os processos de seleção, sequenciamento e progressão [do conhecimento] – que formam o currículo – são limitados, de um lado, pela estrutura do [próprio] conhecimento e, de outro, pela estrutura dos interesses sociais mais amplos, para que os currículos deixem de ser um fator contribuinte para o privilégio ou a exclusão de pessoas no acesso ao conhecimento.
Como explica Moreira (1990), foi a partir de 1984, quando Young passou a coordenar no Instituto de Educação da Universidade de Londres, o Post-Sixteen Education Centre, estabelecido para promover e encorajar pesquisas no campo da educação vocacional e do treinamento, que:
As atenções de Young (1987c)6 volta[ra]m-se para a discussão do significado de vocacionalização e para a análise das recentes políticas britânicas que vêm procurando ajustar o sistema educacional às necessidades industriais do momento. A Educação não é mais vista, pelos que detêm o poder, como contribuindo para o crescimento e para a produção, mas sim como um custo na produção e como inibidora de crescimento econômico. O currículo tradicional não é mais considerado como o único padrão de julgamento do desempenho educacional, sendo mesmo acusado de não favorecer maiores competitividade e produtividade. Urge adequá-lo às necessidades industriais e ao desenvolvimento tecnológico, clama o discurso contemporâneo (MOREIRA, 1990, p. 79).
O que fora produzido na área do currículo na primeira fase de Young (a qual o próprio teórico veio a criticar posteriormente) é, em linhas gerais, esclarecido por Pacheco (2000, p.16): “[...] a partir da década de setenta, o currículo é teorizado como um artefacto político, cujo processo de desenvolvimento não ocorre de uma forma neutra, mas segundo interesses e conflitos concretos”. Young, em seus escritos recentes, não deixa de reconhecer a contribuição desse entendimento para a Teoria do Currículo, mas passa a reivindicar atenção ao objeto próprio, específico, deste campo do conhecimento, uma vez que:
O foco no ‘conhecimento dos poderosos’ [currículo oculto, que incorpora as relações prevalentes de poder], a despeito de seus pontos fortes, quase inevitavelmente desloca a análise daquilo que se passa na escola para o que está ocorrendo com a distribuição de poder na sociedade em geral e oferece pouco aos professores e aos movimentos sociais que buscam uma abordagem mais equitativa do currículo. Essa tradição parte do princípio de que o atual currículo, baseado no ‘conhecimento dos poderosos’, poderia ser modificado por uma transformação política – mas não oferece nenhuma indicação sobre o que seria o novo currículo. Nos raros momentos históricos em que a esquerda tomou o poder – e em contextos não limitados à educação –, os formuladores de políticas públicas logo descobriram que, sem essas alternativas claras, estavam limitados a alguma variação dos velhos modelos a que antes se opunham (YOUNG, 2013, p. 230, grifo nosso).
O ideário dos Ginásios Vocacionais e o “conhecimento poderoso” de Michael Young
Considerando o objetivo deste trabalho, que é o de suscitar reflexões críticas acerca da educação brasileira, partindo da aproximação do ideário dos Ginásios Vocacionais e do conceito de “conhecimento poderoso” de Michael Young, o que se seguirá são: um trecho do texto preparado para a Reunião da SBPC, que fora analisado por Chiozzini (2014); trechos da tese de Maria Nilde Mascellani; e trechos dos artigos (anteriormente citados) de Young, intercalados por explicações que sugerem a pretendida proximidade conceitual.
É importante observar que o documento preparado para a Reunião da SBPC se subdivide em cinco “temas”, a saber: Importância da fundamentação científica do curriculum; Planejamento de curriculum; Unidade Didática: integração e dinâmica; Avaliação do curriculum como processo; e A orientação vocacional no processo de orientação educacional nos ginásios vocacionais do Estado.
Nos dois primeiros temas, aparece, de forma direta, a definição de currículo dos Vocacionais. No primeiro, especificamente, conforme explica Chiozzini (2017, p. 37), fica clara a preocupação com a formação de um indivíduo que atue de maneira transformadora na sociedade. É refutada, além disso, a utilização de recursos técnicos na educação sem essa perspectiva:
Impõe-se considerar que o estabelecimento de uma direção à aplicação de certos métodos, técnicas e processos depende de determinadas proposições básicas. [...] A direção das técnicas de educação, e do processo educativo de um modo geral, ampara-se na concepção de que o homem é ser do mundo e no mundo, responsável pela sua transformação. Somente o homem considerado como ser consciente poderá assumir a tarefa de construir a história. E construindo a história é que o homem se faz homem com os outros homens. Baseando-se nessa concepção, entende-se a educação como um processo sempre crescente de comunicação e ação transformadora. Nesta mesma linha, o trabalho pedagógico aparece como um conjunto de respostas às necessidades de um desenvolvimento de pessoas e de grupos de uma sociedade num determinado tempo e lugar. A utilização de recursos técnicos em educação deve, pois, prever essa direção. Somente assim, a ação educativa – que é uma ação para a transformação – poderá assumir um caráter profundamente dinâmico e corresponder às exigências de desenvolvimento das pessoas e dos grupos (SIMPÓSIO SOBRE ENSINO VOCACIONAL, 1968 apud CHIOZZINI, 2014, p. 37, grifo nosso).
Young no trecho a seguir também propõe um direcionamento à educação, tendo em conta (respeitando) a “natureza” humana, ou, melhor dizendo, a historicidade intrínseca à “humanidade” do homem,7 própria àquilo que torna o homem exatamente humano (e não outra coisa), àquilo que o define. Vejamos:
Meu ponto de partida, pelo menos na última década (YOUNG, 2009), tem sido ‘o que os alunos têm o direito de aprender, quer estejam numa escola primária ou secundária, frequentando a universidade ou um programa de educação profissional ou vocacional que visa a prepará-los para o mercado de trabalho?’. Essa pergunta não tem uma resposta ‘definitiva’; as sociedades mudam, então cada geração precisa fazer essa pergunta novamente – e ela não é fácil. De um lado, como educadores, temos a responsabilidade de entregar à próxima geração o conhecimento acumulado pelas anteriores. É esse elemento de continuidade entre gerações que nos distingue dos animais; é uma maneira de dizer que somos sempre parte da história. Por outro lado, o propósito do currículo, pelo menos nas sociedades modernas, não é apenas transmitir o conhecimento acumulado; também é habilitar a próxima geração para construir sobre esse conhecimento e criar novo conhecimento, pois é assim que as sociedades humanas progridem e os indivíduos se desenvolvem (YOUNG, 2013, 226, grifo nosso).
Mascellani, no trecho a seguir, critica o modelo de escola instituído no sistema capitalista e enfatiza a importância de se compreender o “princípio educativo” em que este modelo se baseia, com vistas a sua alteração.
A escola deveria ser para a classe trabalhadora, assim como para os demais cidadãos, o espaço por excelência para permitir-lhes a apropriação do saber socialmente constituído. Entretanto, no que se refere aos trabalhadores, ela está impossibilitada de exercer esta função. Não se trata de modernizar currículo e metodologias. Trata-se do fato de a escola ter uma dimensão estrutural, própria de sua constituição no sistema capitalista, que faz com que a democratização do saber não seja sua função. Na verdade, a escola distribui desigualmente este saber, sendo por isso um instrumento de reprodução da desigualdade social. Aliás, não será demais lembrar que a escola atual não está dando conta sequer da educação dos filhos da burguesia, no tocante às novas necessidades colocadas pela sociedade contemporânea. Assim, é preciso compreender qual é o princípio educativo a partir do qual se organiza a escola, se quisermos perceber em que dimensão ele se aproxima ou se afasta do processo de construção social, num projeto de hegemonia que poderia levar a mudanças no quadro atual (MASCELLANI, 2010, p. 55, grifo nosso).
Young, por sua vez, nos dois trechos seguintes, reconhece a importância dessa visão, e complementa, alertando para o perigo de não se considerar o potencial de aprendizado (para além da reprodução) inerente à escolarização (ao ensino institucionalizado):
[...] sugiro que a expansão massiva da escolarização levou, paradoxalmente, à perda de confiança em seu papel potencialmente emancipador. Sob a pressão do capitalismo global, isso se deve em parte ao crescente foco nos “meios” e não nos fins da educação. Desde a mais tenra infância, os alunos são estimulados a pensar no aprendizado em termos de seu futuro profissional ou ainda em termos de sua progressão escolar (do primário ao secundário ou do secundário ao superior). Esse foco nos ‘meios’ desloca a motivação dos alunos dos objetivos internos – o ‘aprender por aprender’, desprezado como elitista, mas crucial para o desenvolvimento intelectual de todos os alunos – para os objetivos externos, como a chance de um emprego no mercado de trabalho. Mas até os próprios estudos da Educação contribuíram para isso, especialmente certas tendências da Sociologia da Educação, que consideram que o papel das escolas na sociedade capitalista é a reprodução das relações de classe. [...] Não é que essas ideias sejam falsas ou que não ofereçam visões importantes sobre a escola. O problema é que elas podem facilmente se tornar descrições unidimensionais sobre ‘para que serve a escola’. Trata-se de uma espécie de funcionalismo de esquerda que deixa muito pouco espaço para considerar as oportunidades de aprendizado que a escolarização pode oferecer a todos os alunos [...] (YOUNG, 2013, p. 232, grifo nosso).
A força dessas correntes de teoria crítica do currículo está em explicitar o currículo oculto, que incorpora as relações prevalentes de poder. Descrevi isso como uma visão do currículo como ‘conhecimento dos poderosos’ (YOUNG, 2008). No entanto, por seu foco unidimensional em quem tem o poder para definir o currículo, essa tradição negligenciou o quanto algumas formas de conhecimento dão maior poder do que outras aos que têm acesso a elas, independentemente da origem social dos produtores desse conhecimento (YOUNG, 2013, p. 230, grifo nosso).
Nesse sentido, propõe que o currículo seja pensado em uma perspectiva não reprodutora, mas aberta à mudança, que instrumentalize o aluno a pensar em alternativas para a realidade:
[...] o objeto da teoria do currículo deve ser o currículo – o que é ensinado (ou não), seja na universidade, na faculdade ou na escola. [...] o currículo sempre é:
• um sistema de relações sociais e de poder com uma história específica; isso está relacionado com a ideia de que o currículo pode ser entendido como “conhecimento dos poderosos”;
• sempre é também um corpo complexo de conhecimento especializado e está relacionado a saber se e em que medida um currículo representa “conhecimento poderoso” – em outras palavras, é capaz de prover os alunos de recursos para explicações e para pensar alternativas, qualquer que seja a área de conhecimento e a etapa da escolarização (YOUNG, 2014, p. 201, grifo nosso).
Embora com uma visão baseada no personalismo de Emmanuel Mounier, um dos autores cujas ideias nortearam a proposta pedagógica do Ensino Vocacional – e frente a quem se observa os limites de idealismo –, na mesma linha de raciocínio que Young, Mascellani explica o propósito dos Ginásios Vocacionais, que pode ser verificado a seguir, e que apresenta importantes possibilidades aos educandos, se comparada às atuais propagadas na atualidade brasileira, grandemente caracterizadas pela adaptabilidade às exigências de lucro, impostas pelo mercado:
[...] o educando, fruto desta escola, sairá com os requisitos básicos, com as noções gerais e específicas, que possibilitarão sua entrada nos vários campos de atividade humana, na sociedade em que vive. A proposta pedagógica que tal educação exige, fortemente enraizada na cultura e no social, nos permite retomar a ideia de que todos os homens nascem para serem pessoas, indivíduos singulares no interior de coletividades situadas e datadas, tornando-se assim seres comprometidos com a transformação de um mundo marcado pela dominação, pela exploração e pelo cultivo da alienação entre os pobres e os mais fracos. Sentir-se chamado a ser pessoa implica superar a visão mecanicista e reprodutivista do mundo e optar livremente pelo papel que lhe cabe, no esforço coletivo de transformação das sociedades, dos homens e das coisas (MASCELLANI, 2010, 63).
No trecho a seguir, Young critica a postura educacional de interpretar como afirmação de identidade cultural (toda e qualquer) manifestação de reação por parte do educando contra o que lhe é proposto para aprender:
[...] se os teóricos do currículo não têm, eles mesmos, uma teoria do conhecimento, não é nenhuma surpresa que os professores interpretem as expressões de resistência cultural dos alunos como uma celebração de suas identidades e de seus significados subjetivos. Isso tem levado a uma abordagem psicologizante da identidade, que pensa o aluno como ser individual e não como ser social (ECCLESTONE; HAYES, 2009), ou a uma politização romântica de algum tipo de pedagogia crítica. Em primeiro lugar, essas abordagens negligenciam o fato de que os professores não podem escapar do elemento instrucional inerente ao seu papel. Os pais matriculam as crianças na escola com a expectativa de que elas adquiram o conhecimento especializado a que não têm acesso em casa. Em segundo lugar, essas abordagens falham em não reconhecer que, embora o conhecimento possa ser percebido como opressivo e alienante, essa não é uma propriedade do próprio conhecimento. Uma pedagogia adequada, que possa comprometer o aprendiz em uma relação com o conhecimento (CHARLOT, 2012), pode ter consequências opostas, ou seja, pode libertar o aluno para novas formas de pensar e até para pensar o ‘impensado’. Concluo que a teoria do currículo e, portanto, o próprio currículo precisa partir não do aluno como um aprendiz, mas sim do direito ou do acesso do aluno ao conhecimento. A teoria do currículo precisa de uma teoria do conhecimento (YOUNG, 2012) se pretende analisar e criticar os currículos existentes e explorar as diferentes formas que eles podem ter. Os teóricos do currículo não fazem os currículos; mas podem, pelo menos, ampliar as possibilidades disponíveis para os elaboradores de currículo (YOUNG, 2013, p. 233, grifo nosso).
Na mesma direção, Mascellani explica o que foi feito em termos de ‘abordagem das turmas’ (o que corresponderia a uma ‘pedagogia adequada’, para Young) e para o planejamento curricular dos Ginásios Vocacionais:
As pesquisas de comunidade foram de capital importância para o planejamento curricular. [...] Ao longo de toda a existência do Ensino Vocacional, essas pesquisas nos forneceram — como forneciam às equipes encarregadas da elaboração do planejamento curricular no momento da implantação de uma unidade do Ensino Vocacional — informações sobre valores, padrões de comportamento, costumes, expectativas e aspirações daqueles que constituiriam a sua futura clientela. De fato, naquele momento inicial, a problemática extraída das pesquisas era largamente discutida pelas equipes de professores e orientadores. Essas pesquisas revelavam também o que os pais pensavam a respeito das áreas do currículo: apegados ao modelo de currículo vigente (1961-1969), tinham dificuldades de aceitar áreas que lhes pareciam inadequadas. Ficava claro também, através das pesquisas de comunidade, que, além dessas dificuldades previstas, outras apareceriam, o que levava as equipes a planejar estratégias de introdução e abordagem das turmas, com vistas à elaboração de um planejamento curricular com base nos dados da pesquisa (MASCELLANI, 2010, p. 105, grifo nosso).
A seguir, Young em trechos dos dois artigos, deixa clara a ideia de que levar em conta o conhecimento anterior do aluno não significa somente ensinar o que, em um primeiro momento, faça sentido para ele.
Poderíamos descrever os teóricos do currículo como especialistas em uma forma específica de conhecimento aplicado – conhecimento que é aplicado para torná-lo tanto “ensinável” como “aprendível” por alunos de diferentes etapas e idades. O conhecimento no currículo é sempre conhecimento especializado e é especializado de duas maneiras:
(i) Em relação às fontes disciplinares: conhecimento produzido por especialistas nas áreas de conhecimento – história, física, geografia. Os especialistas disciplinares nem sempre concordam ou acertam, e, embora seu propósito seja descobrir a verdade, às vezes são influenciados por outros fatores, além da busca da verdade. Contudo, é difícil pensar em uma fonte melhor para “o melhor conhecimento disponível” em qualquer campo. Não há país com um bom sistema educacional que não confie nos seus especialistas disciplinares como fontes do conhecimento que devem estar nos currículos.
(ii) Em relação a diferentes grupos de aprendizes: todo currículo é elaborado para grupos específicos de aprendizes e tem de levar em consideração o conhecimento anterior de que estes dispõem (YOUNG, 2014, p. 199, grifo nosso).
Resulta dessa visão [de que o conhecimento não tem qualquer significado ou validade intrínsecos] que a questão enfrentada pelos professores fica limitada à pergunta ‘Este currículo faz sentido para os meus alunos?’, em vez de ‘Quais sentidos se abrirão para os meus alunos com este currículo?’ ou ‘Será que este currículo leva os meus alunos para além da experiência deles e permite que vislumbrem alternativas com alguma base no mundo real?’ (YOUNG, 2013, p. 233).
Condizente com a ideia de Young, Mascellani explica de que maneira a experiência cotidiana do aluno (o que faz imediatamente sentido para ele) era trabalhada na elaboração do currículo dos Ginásios Vocacionais.
[...] não se trata de colocar o jovem em situações e experiências de pequena amplitude, onde somente alguns problemas básicos possam ser satisfatoriamente resolvidos. As situações e experiências do processo educativo, segundo nossa concepção de currículo, devem supor objetivos determinados, mas de tal modo definidos que em todas as atitudes formadas haja uma dimensão de universalidade; devem incluir também a ideia de que enfrentar problemas é uma condição permanente na vida do homem e que nisto consiste a evolução da humanidade, desde que cada um dê sua contribuição para a construção histórica. Nossa concepção de currículo envolve a admissão de um método para enfrentar problemas.
Estes problemas, que são universais porque são do homem, devem ser discutidos nas relações com o ‘mais próximo’, pois é dentro desta amplitude que cada um de nós poderá interferir. Não são, pois, os problemas cotidianos que devem ser enfocados, mas o reflexo no cotidiano dos grandes problemas universais. Esta abordagem supõe uma consistente interpretação da cultura, concebida em seu sentido antropológico. Todos os problemas serão materiais de análise, análise esta que terá como ponto de referência a concepção de que a cultura é criação permanente (PPA,1968 apud MASCELLANI, 2010, p. 121, grifo nosso).
O que é complementado por um trecho dos Planos Pedagógicos e Administrativos do Ensino Público Vocacional do Estado de São Paulo, documento que é citado na tese de Macellani e do qual a própria foi uma das autoras, como integrante da equipe pedagógica do Ensino Vocacional:
É esse trabalho integrado que permite que o sujeito que aprende elabore conhecimentos novos, modificando seus esquemas anteriores, amplie e aprofunde sua experiência, sendo capaz de ir percebendo a complexidade do mundo em que vive, superando os limites de campo para aprendê-lo no seu todo. À medida que o sujeito penetra na realidade através do conhecimento, descobrindo-a, ele é capaz também de modificá-la pelo seu poder criador, passando a ser agente da cultura e da história (PPA, 1968 apud MASCELLANI, 2010, p. 121).
Ideia que poderia, assim, ser complementada por Young (2013, p. 249): “As crianças precisam do conhecimento poderoso para entender e interpretar o mundo. Sem ele, permanecem dependentes de quem o tem”.
Considerações finais
A experiência dos Ginásios Vocacionais mostra que é possível educar ‘para o trabalho’ (para o emprego) sem que a empregabilidade se torne o fim último da educação. Mostra que: não só a escola pode ser diferente, como ela pode fazer a diferença frente à possibilidade de transformação da sociedade. Além disso, a aproximação dessa experiência com o pensamento de Young – para quem é imprescindível o acesso de todos ao conhecimento, como direito, uma vez que se trata de conquista civilizatória, de conquista da humanidade – favorece vislumbrar como possibilidade uma educação substancialmente crítica, emancipatória. Young ainda previne que de pouco adianta negar o saber socialmente constituído – mesmo que, para a sua constituição, outros fatores concorram além da busca pela verdade. No saber especializado, segundo o autor, pode e deve ser encontrado o poder transformador do mundo, das sociedades, sendo que esse poder somente pode ser acessado e oferecido quando o currículo é pensado tendo como base o direito (de TODOS) ao conhecimento.
Diante do exposto, e tendo em vista a sociedade brasileira se constituir em bases tão desiguais, considera-se que o estudo da experiência dos Ginásios Vocacionais do estado de São Paulo e a sua aproximação com o pensamento de Michael Young possam subsidiar propostas de mudanças da realidade da escola e pela escola, com vistas a contribuir para o que seja possível chamar de educação republicana: uma educação que mire a possibilidade de busca da igualdade de direitos, de justiça social, de equidade. Diz-se isto, cabe advertir, sem se desconsiderar os limites definidos pela sociedade capitalista. Aliás, cabe advertir também, frente aos atuais ataques aos direitos humanos, que a luta pelo resgate dos direitos arduamente conquistados pelos trabalhadores brasileiros e pela sua ampliação se tornou uma exigência (FORTI et al., 2013, p. 29-53).
Referências
BRAGA, R. A reestruturação do capital: um estudo sobre a crise contemporânea. São Paulo: Xamã, 1996.
FORTI, V. et al. Direitos humanos e Serviço Social: debater é preciso. In: FORTI, Valeria; BRITES, Cristina Maria (Org.). Direitos Humanos e Serviço Social: polêmicas, debates e embates. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p.29-53. (Coleção Coletânea Nova de Serviço Social).
BRASIL. Decreto n. 38.643, de 27 de Junho de 1961. Diário Oficial do Estado de São Paulo, 29 de Junho de 1961, n. 144.
______. Lei 6.052, de 3 de Fevereiro de 1961. Diário Oficial do Estado de São Paulo, 4 de Fevereiro de 1961, n. 28.
CHIOZZINI, D. F. Os ginásios vocacionais: a (des)construção de uma experiência educacional transformadora (1961-1969). 2003. 134 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2003. Disponível em: <http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/252358/1/Chiozzini_DanielFerraz_M.pdf >. Acesso em: 06 ago. 2017.
DOBB, M. H. A evolução do capitalismo. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
KONDER, L. O trabalho e a crise da modernidade. O Social em Questão, Rio de Janeiro, v. 1, n.1, p. 39-50, 1997.
MASCELLANI, M. N. Uma pedagogia para o trabalhador: o ensino vocacional como base para uma proposta pedagógica de capacitação profissional de trabalhadores desempregados. São Paulo: IIEP, 2010.