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Resumo: A Constituição Federal de 1988 marca a trajetória democrática brasileira. Diante disto, este artigo discutirá sobre os avanços que ocorreram a partir deste aparato legal, quanto à ampliação do conceito de família. Para tanto, apresentará o acontecimento histórico que repercutiu de forma significativa na sociedade brasileira, bem como nas famílias em geral. Destacará os atores e a correlação de forças que se estabeleceram neste processo histórico brasileiro. Para o desenvolvimento do artigo utilizou-se como metodologia a revisão bibliográfica. Verificou-se o cenário e os atores envolvidos no processo, observando-se o conflito de poderes que margearam o acontecimento, havendo ao final do processo avanços com relação à concepção de família.
Palavras-chave: Família, Constituição Federal, Constituinte.
Avanço legislativo e ampliação do conceito de família pós-Constituição de 1988
Virgínia de Souza1
Carlos Gustavo Cordeiro de Andrade Junior2
Edina Schimanski3
Resumo
A Constituição Federal de 1988 marca a trajetória democrática brasileira. Diante disto, este artigo discutirá sobre os avanços que ocorreram a partir deste aparato legal, quanto à ampliação do conceito de família. Para tanto, apresentará o acontecimento histórico que repercutiu de forma significativa na sociedade brasileira, bem como nas famílias em geral. Destacará os atores e a correlação de forças que se estabeleceram neste processo histórico brasileiro. Para o desenvolvimento do artigo utilizou-se como metodologia a revisão bibliográfica. Verificou-se o cenário e os atores envolvidos no processo, observando-se o conflito de poderes que margearam o acontecimento, havendo ao final do processo avanços com relação à concepção de família.
Palavras-chave
Família; Constituição Federal; Constituinte.
Legislative advance and enlargement of the family concept after the Constitution of 1988
Abstract
The Federal Constitution of 1988 marks the Brazilian democratic trajectory. In view of this, this article will discuss the advances that occurred from this legal apparatus, regarding the enlargement of the concept of family. To do so, it will present the historical event that had significant repercussions on Brazilian society, as well as on families in general. It will highlight the actors and the correlation of forces that have established themselves in this Brazilian historical process. For the development of the article, the bibliographical review was used as methodology. It was verified the scenario and the actors involved in the process, observing the conflict of powers that bordered the event, having at the end of the process, advances in relation to the conception of family.
Keywords
Family; Federal Constitution; Constituent.
Artigo recebido: agosto de 2018
Artigo aprovado: outubro de 2018
Introdução
A família constitui-se o primeiro núcleo social no qual o indivíduo inicia seu processo de socialização, porém, a família como se entende na contemporaneidade, não se estabeleceu de maneira única em todas as civilizações, sofrendo mudanças ao longo do tempo e das culturas (REIS, 2006).
A partir desta definição, pretende-se analisar o tema família, especificamente a família brasileira destacando a Constituição Federal de 1988 (CF/1988). Para tanto, faremos um breve resgate histórico de como era constituída a família no Brasil, anterior a esse aparato legal, sendo apresentadas algumas particularidades que influenciaram no processo de promulgação da CF/1988. Trataremos sobre os atores e as correlações de forças que se deram neste momento histórico brasileiro, que culminou em avanços com relação aos direitos sociais e em destaque a ampliação do conceito de família.
O presente artigo destaca, num primeiro momento, o Brasil Colônia e a constituição da família patriarcal, posteriormente enfoca a família nuclear e a forte discriminação dos relacionamentos extraconjugais. Nos anos 1960/70, alguns fatores alteram substancialmente os padrões sociais de família no Brasil e com eles, houve também uma modificação substancial na própria lei posteriormente.
No processo de democratização do País, mudanças sociais, econômicas e políticas ocorreram diante da mobilização popular. O artigo, aqui empreendido, procura destacar essa trajetória e os avanços legislativos com relação à ampliação do conceito de família após a CF/1988.
Família brasileira – particularidades no cenário nacional
No Brasil, o período de colonização configurou-se em um momento de solidificação da família patriarcal brasileira. Este núcleo familiar era constituído do patriarca, sua mulher, filhos e netos que formavam um grupo principal, e, como núcleo secundário, tinha-se um grupo formado por agregados, parentes, serviçais, filhos ilegítimos e escravos. O patriarca responsabilizava-se pela defesa da honra familiar, detinha propriedades rurais e influência política, e sua autoridade era exercida a todos que se encontrassem sob seu domínio (ALVES, 2009).
A responsabilidade pela manutenção da família pertencia à figura masculina, como também a aquisição de riquezas. “A certeza da paternidade se tornava essencial na manutenção dos bens familiares [...]” (SCHIMANSKI, 2014, p. 23). Com relação aos escravos, formavam suas famílias no interior das senzalas (ALVES, 2009). O matrimônio restringia-se a elite branca, pois demonstrava estabilidade social.
No que diz respeito ao papel do Estado, segundo Alves (2009), este deveria estar acima das questões familiares. Os governantes sabiam que essa família exclusivista era, por sua vez, o sustentáculo do Estado, pois impedia que a população, tão escassa, se diluísse neste imenso País, de proporção territorial gigantesca.
A família patriarcal era, portanto, a espinha dorsal da sociedade, desempenhando o papel de procriação, administração e direção política (ALVES, 2009). Entretanto, o modelo de família patriarcal não era único, pois a cultura e a condição social influenciaram no modo de constituir a família. Neste momento, mudanças históricas, políticas e sociais iniciam-se no País, dando espaço para a família nuclear brasileira ou família burguesa (SCHIMANSKI, 2014).
Neste período, segundo Yazbek (2005), a assistência às famílias mais empobrecidas era realizada pela Igreja, principalmente pelas Santas Casas de Misericórdias, na distribuição de esmolas, providências de caixões para os mortos e ofertas de dotes para os órfãos. Esse modelo vai ampliar-se nos séculos seguintes com ação de outras ordens religiosas que ofereciam ajuda material às famílias mais empobrecidas.
Segundo Schimanski (2014), a função social da família sofre alterações e vai deixando para trás seu caráter de procriação, o qual tinha a hereditariedade e os laços de sangue como valores basilares. A partir daí há um sentimento de valorização dos laços afetivos e de proteção social e econômica, dos membros da instituição familiar, independente da configuração familiar.
Dentre as mudanças ocorridas na sociedade e no núcleo familiar, emerge-se o modelo nuclear de família, composto pelo pai, mãe e filhos, situação que reduziu o tamanho das famílias, bem como demonstrou sua importância no processo de formação da sociedade brasileira.
A dedicação ao trabalho, fora do espaço doméstico, trouxe uma diminuição da autoridade paterna, tendo em vista que o campo de trabalho no início do século XX foi um período de transformação da economia rural para a urbano/industrial, de forma que muitos trabalhadores aderiram a este modelo econômico que se instalava. Nesse cenário, a mulher responsabilizava-se pela administração do lar, cuidando da casa e educando os filhos. Nas camadas mais elitizadas a mulher dedicava-se ao lar, porém, nas famílias mais empobrecidas, as mulheres conciliavam as atividades familiares com o trabalho nas fábricas e/ou como doméstica para contribuir com as finanças da família (ALVES, 2009).
Com o aumento dos postos de trabalho, na segunda metade do século XX, há transformações na sociedade, como também transformações familiares, havendo uma individualização nas relações sociais, o enfraquecimento dos laços de parentesco, o controle sobre a natalidade, entre outros (ALVES, 2009).
Registre-se que nesta época, desde antes do Estado tomar para si a incumbência de celebrar matrimônios (função da Igreja exclusivamente, outrora), o casamento era a única forma de constituição familiar legítima, sendo as relações fora do casamento entendidas como concubinato (ANDRADE JR., 2016).
Havia, assim, uma forte discriminação por parte do Estado, com relação aos relacionamentos extraconjugais, então com respaldo social de uma sociedade altamente conservadora e diante dos interesses da Igreja Católica, o que gerava percalços e injustiças aos integrantes desta relação e à sua prole. Neste sentido:
Durante muito tempo nosso legislador viu no casamento a única forma de constituição de família, negando efeitos jurídicos à união livre, mais ou menos estável, traduzindo essa posição em nosso Código Civil do século passado. Essa posição dogmática, em um País no qual largo percentual da população é historicamente formado de uniões sem casamento, persistiu por tantas décadas em razão de inescondível posição e influência da Igreja Católica. (VENOSA, 2014, p. 37).
Ainda, Stolze e Pamplona Filho (2011, p. 408) dizem que “a união livre simplesmente não era considerada como família e a sua concepção era de uma relação ilícita, comumente associada ao adultério e que deveria ser rejeitada e proibida.”
A mulher, na época do Código Civil de 1916, era, via de regra, doméstica e dependia, portanto, de sustento familiar, seja por laços biológicos ou matrimoniais. Com a dissolução dos vínculos da união estável, esta não teria direito a alimentos por não ser reconhecida essa união como uma família. A solução dos tribunais foi a de concessão de alimentos camuflados como indenização por serviços domésticos prestados (DIAS, 2015).
Cite-se, também, que a união estável, então concubinato, era tratada somente com decisões judiciais esparsas e algumas poucas concessões legais até o advento da CF/1988, ainda com forte ranço discriminatório. Importante ressaltar que o comportamento familiar nem sempre se adequa às normas de um ordenamento jurídico, vindo o fato social primeiro, com a posterior edição de leis, como ocorreu com a união estável (GLANZ, 2005).
A partir do final da década de 1960 presenciou-se o avanço na igualdade entre os sexos e o aumento de separações, mormente pela instituição dos institutos da separação e do divórcio, em 1977 com a Lei 6.515/1977, pois não se assegurou mais relacionamentos insatisfatórios, havendo agora a possibilidade de rompimento destes laços.
Segundo Schimanski (2014), nos anos 1970 mudanças ocorreram no interior das famílias, a pílula anticoncepcional foi um dos fatores que contribuiu para essas mudanças. Para a autora, a propagação da pílula anticoncepcional trouxe a separação entre a sexualidade e a reprodução (a maternidade torna-se uma opção da mulher).
Já nos anos 1980/90, a descoberta das fertilizações “in vitro” e as inseminações artificiais, possibilitaram a separação entre gravidez e relação sexual entre homens e mulheres. Para Schimanski (2014), todos esses fatores alteraram substancialmente os padrões sociais de família no Brasil e com eles, houve também uma modificação substancial na própria lei (maior severidade nos casos de pensão alimentícia).
Quanto às medidas de proteção do Estado sobre a família, esta passa pelo controle de natalidade nas décadas de 1960/70, por meio de políticas de planejamento familiar, na qual a ideia de uma superpopulação poderia desencadear crises no País, de modo que as orientações que seguiram eram da redução no número de filhos (TEIXEIRA, 2010). Desta maneira, buscou-se um modelo de família que fosse adaptado ao desenvolvimento socioeconômico do País.
Conforme Lemos e Vasco (2012), a busca por sustentação política do regime ditatorial evidenciaram ações do perfil autoritário e limitado ao que se refere aos direitos sociais. “No entanto, toda essa repressão não impediu totalmente a organização dos movimentos sociais que foram ganhando força à medida que o governo militar não vinha cumprindo suas promessas que garantissem sua legitimidade e o apoio da população, principalmente a classe média” (LEMOS; VASCO, 2012, p.26).
Nessa perspectiva, o período conhecido como ditatorial desenvolveu ações com base no paradigma da patologia social, com práticas moralizantes de dimensão disciplinadora e normatizadora, na qual a família era vista como incapaz e desestruturada, caso não seguissem o padrão estabelecido (TEIXEIRA, 2010).
No final da década de 1970 e início de 1980 o regime militar juntamente com o “milagre econômico” transparecem sinais de esgotamento, o que contribuiu para o futuro alargamento das entidades legalmente reconhecidas como família. As condições de vida da população agravaram-se de modo que ressurgem os movimentos sociais reivindicatórios com força intensificada. Movimentos das favelas, de luta por creches e em prol do transporte coletivo, são alguns dos inúmeros movimentos organizados que promoveram mobilização social (RIZOTTI, 2001).
A “década perdida” – termo utilizado para evidenciar o período recessivo de 1980 – acarretou inúmeros prejuízos à população brasileira, tais como: a queda na atividade industrial, a desestabilização do real, o acelerado crescimento do desemprego, altos índices inflacionários, entre outros. Assim ocorre, “[...] a geração de uma importante crise fiscal que tornava ainda mais precária a manutenção das políticas sociais conduzidas pelo Estado” (RIZOTTI, 2001, p.50).
Pode-se dizer que algumas das razões que levaram ao golpe militar em 1964 (inflação alta e estagnação econômica), agora ressurgiam e com uma força ainda maior, o que forneceu bases para a transição política (KINZO, 2001).
Segundo Rizotti (2001), a reivindicação de democracia política surgia pela primeira vez na história do País, e consistia num instrumento para o resgate das desigualdades sociais brasileiras. O embate pela democracia e pelo fim do regime militar mostrou-se alternativa possível para a sociedade que almejava reverter o quadro da desigualdade e resgatar as condições dignas de bem-estar social. Para Rizzoti (2001), o papel central desempenhado pelos movimentos sociais no contexto da transição para a democracia, constitui na afirmação de direitos sociais e permitiu a incorporação dos estratos excluídos da sociedade à arena da negociação política. Neste cenário, surgem novos atores na formação da agenda governamental – os movimentos sociais. Concomitantemente, o movimento pelas “Diretas Já” mobilizou a população em prol de eleições presidenciais diretas, mas somente no final da década de 1980 que a população volta a escolher seus representantes e tem-se um retorno gradual à democracia.
Em 1987 inicia-se, então, o processo constituinte, marcado pela democratização e participação da sociedade o que culminou na elaboração da CF/1988, conhecida como “Constituição Cidadã”.
Constituição Federal de 1988: ampliação do conceito de família
A CF/1988 garantiu direitos fundamentais, individuais, coletivos, sociais, políticos, entre outros. Reconheceu-se a igualdade entre homens e mulheres, direitos à educação, trabalho, lazer, alimentação, saúde, segurança, moradia, cultura, etc. Com a CF/1988, a família passou a ser considerada a base da sociedade, conforme esculpido no art. 226.
A importância da família4 é justificada pelo fato de que esta é o ambiente no qual a pessoa nasce e, na tenra idade, aprende um conjunto de normas, regras, valores e ações apropriadas de um indivíduo dentro de uma determinada cultura. É o que se chama de socialização primária, pela ciência da Sociologia (DURKHEIM, 2011).
Voltando nossa análise para a CF/1988, o artigo 226 ampliou o que se pode dizer que é uma família no Brasil. Com efeito, a Constituição de 1969 era clara ao dizer, no artigo 175, que a família era única e exclusivamente constituída pelo casamento. A atual Constituição acrescenta-se que esta é base da sociedade e merecedora de proteção estatal, bem como reconheceu a união estável e as famílias monoparentais (formadas por qualquer ascendente, com seu descendente) como entidades familiares, sendo que é consenso na doutrina jurídica que este rol de famílias citadas é meramente exemplificativo (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011).
Neste contexto é possível vislumbrar novas configurações familiares, como exemplo, as famílias homoafetivas. Destarte, houve, entre estas Constituições, a supressão da antiga expressão “constituída pelo casamento”, a qual segundo Genofre (2006, p. 98) “[...] acarretava injustiças, sobretudo, às mulheres em situação irregular [...]”.
Na verdade, a CF/1988 representou um marco com relação ao conceito de família, não só neste ponto da união estável, mas também com relação à garantia do “status” de família à situação em que a criança está sob a guarda de qualquer um dos pais. Logo, falar em famílias é falar em diversidade e não apenas de uma forma singular, mas de uma forma plural. Diante disto, estudar as famílias é falar também de uma das diversidades existentes dentre tantos arranjos familiares possíveis.
Para Costa (2006), a CF/1988 criou um Estado de Direito com responsabilidades sociais, porém, estas conquistas ocorreram em meio a uma crise fiscal e política do Estado. Acrescenta que a Constituição nasceu num contexto histórico muito peculiar, pois, enquanto na Europa e nos Estado Unidos havia uma luta pelo desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social, no Brasil lutávamos por empreender uma mudança no Estado com ênfase na proposta de direitos sociais (COSTA, 2006).
Indo neste rumo, a Seguridade social passa a ser constituída pelo tripé: Saúde, Previdência Social e Assistência Social. No campo da Assistência Social a Política Nacional da Assistência Social (PNAS) direciona a família enquanto entidade o seu foco e propõe essa instituição como núcleo capaz de oportunizar autonomia para o indivíduo e mostra-se como vertente de proteção social. Nessa política encontra-se também a gestão do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o qual teve seu pacto firmado em 2005.
O processo de gestão do SUAS dispõe sobre eixos estruturantes. O eixo matricialidade sociofamiliar destaca-se no âmbito da PNAS. Esta ênfase está ancorada na premissa de que a centralidade na família e a superação da focalização, no âmbito da política de Assistência Social, repousam no pressuposto de que para a família prevenir, proteger, promover e incluir seus membros é necessário, em primeiro lugar, garantir condições de sustentabilidade para tal. Nesse sentido, a formulação da política de Assistência Social é pautada nas necessidades das famílias, seus membros e dos indivíduos (BRASIL, 2004).
A matricialidade sociofamiliar apresenta as ações da política com intervenção sobre a família, contrapondo-se a lógica individual, que direcionava as intervenções para o indivíduo de maneira isolada. Os processos de exclusão sociocultural, as pressões geradas na sociedade, “[...] determinaram transformações fundamentais na esfera privada, ressignificando as formas de composição e o papel das famílias” (BRASIL, 2004, p.51).
Neste contexto, a centralidade da família “[...] reforça a importância da política de Assistência Social no conjunto protetivo da seguridade social como direito de cidadania, articulada a lógica da universalidade” (BRASIL, 2004, p.53). Portanto, a família é vista como espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização (BRASIL, 2004). “A família, independente dos formatos ou modelos que assume é mediadora das relações entre os sujeitos e a coletividade, [...] bem como geradora de modalidades comunitárias de vida” (BRASIL, 2004, p.52).
Diante disso, são apontadas duas tendências teóricas, ou seja, a “familista”, identificada com o projeto neoliberal que preconiza a centralidade da família, apostando na sua capacidade de cuidado e proteção. A segunda, a tendência “protetiva”, em contraposição afirma que a capacidade de cuidados da família está diretamente relacionada à capacidade das políticas sociais ampararem o núcleo familiar em todas as suas necessidades (TEIXEIRA, 2009).
Entretanto, reconhece-se que a realidade vislumbrada tem apresentado sinais de penalização e desproteção das famílias brasileiras de modo cada vez mais latente. A este respeito, “na sociedade brasileira, dada as desigualdades características de sua estrutura social, o grau de vulnerabilidade vem aumentando e com isso aumenta a exigência das famílias desenvolverem complexas estratégias de relações entre seus membros para sobreviverem” (BRASIL, 2004, p. 53).
Logo, a família acaba sendo culpabilizada por não conseguir desempenhar adequada ou idealmente os papeis esperados, pela condição de sobrevivência, ciclo de vida, tamanho da família, modelo de estruturação, falta de acesso aos serviços públicos, dentre outros (TEIXEIRA, 2009).
Sabe-se que ao longo do processo histórico e no contexto atual, “a família é um meio de o capital reproduzir-se, alimentando-se dela como uma mercadoria que se paga pouco e da qual se apodera tanto objetiva quanto subjetivamente” (SANTOS, 2007, p.06).
Destarte, torna-se vantajoso para o capitalismo que os indivíduos se encontrem em boas condições de vida para mediante o trabalho e o consumo reproduzir o capital. Porém, nota-se uma realidade onde o Estado desempenha a função de Estado mínimo e não dispõem de políticas sociais consistentes que sejam abrangentes a todos os cidadãos, pois são políticas precarizadas, focalistas e segmentadas, insuficientes para sanar todas as mazelas produzidas pelo sistema.
a) Atores marcantes no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988
Convencionalmente, podemos dizer que o processo de elaboração da CF/1988 se iniciou com o então presidente José Sarney, cujo cargo fora assumido em decorrência da morte do presidente eleito Tancredo Neves, com o debate suscitado por este com o Congresso Nacional acerca da convocação de Assembleia Nacional Constituinte, em junho de 1985, dando continuidade ao plano de governo de Tancredo, que envolvia a elaboração de nova Constituição (ARAUJO, 2013).
Para Kinzo (2001), o processo de elaboração da CF/1988 foi transparente e aberto para a sociedade, vez que houve ampla cobertura midiática e houve, também, participação de grupos sociais organizados, direta ou indiretamente. Neste sentido, podemos apontar como outros atores, a sociedade civil organizada, bem como a própria mídia.
Com relação à sociedade civil, veja-se que o então presidente José Sarney instituiu a Comissão Afonso Arinos em 1985, com o seguinte discurso:
Eles não se reunirão para ditar aos Constituintes que textos devem aprovar ou não. Eles irão reunir-se para ouvir a Nação, discutir com o Povo as suas aspirações, estimular a participação da cidadania no processo de discussão da natureza e fins do Estado, e estimulá-la a escolher bem os Delegados Constituintes.
Em fechamento do discurso, José Sarney afirmou:
A Comissão não substituirá o Congresso nem substituirá o povo. Será, na verdade, uma ponte de alguns meses entre a gente brasileira e os representantes que ela elegerá. Servirá como uma área de discussão livre e informal das razões nacionais, submetendo ao debate público teses básicas quanto ao Estado, à sociedade e à Nação.
Os resultados advindos desta comissão foram de claras influências para a elaboração da CF/1988 (LIMA; PASSOS; NICOLA, 2013).
Com base nestes autores chega-se à conclusão que outro ator que merece destaque é, sem dúvidas, Mário Covas, então presidente do PMDB, maior partido à época. A Assembleia Nacional Constituinte era formada em sua maioria por conservadores, mas produziu resultados razoavelmente progressistas.
Mário Covas tinha em mente uma Constituição social e parlamentarista, a qual julgara ser boa e conveniente para o Brasil. Para alcançar seus objetivos e reverter à desvantagem numérica para os conservadores, elegeu comissões e subcomissões que deveriam ter relatores de formação progressista e parlamentarista. Dentre estas comissões, a Comissão VIII trataria da família. Inequivocamente, Covas é um dos responsáveis pelo caráter mais progressista da atual Constituição.
Correlação de forças na trajetória da Constituição Federal de 1988
A CF/1988 foi a “resultante da correlação de forças estabelecida no curso da elaboração do texto constitucional” (ARANTES, 2013, p. 01), ou seja, esta luta constituiu-se contra a ditadura e pela democracia.
Em meados dos anos 1980, com a abertura democrática, um grande contingente de pessoas protagonizaram movimentos populares sem precedentes na história brasileira. Isto desencadeou um processo crescente de reivindicações pelo fim do regime militar, com convocação de uma Assembleia Constituinte. Vários movimentos sociais se destacaram neste processo: A Anistia Ampla, Geral e Irrestrita; Movimentos Diretas Já! (ARANTES, 2013).
No ano de 1985, o presidente Sarney envia ao Congresso uma proposta de Assembleia Nacional Constituinte. Segundo Arantes (2013), a Constituinte era composta de 70% de membros do centro e centro-direita; seis membros eram de origem operária; 80 eram empresários urbanos e 40 empresários rurais. Neste cenário formou-se a “Articulação Progressista” (PMDB, PT, PDT, PSB, PC do B, e PCB). Junto a estes, outro grupo se formou – grupo da direita (PFL, PDS, PTB e setores do PMDB). Havia também um grupo intermediário o qual fazia alianças com os dois agrupamentos. Juntos elaboraram o Regime Interno e posteriormente o texto constitucional.
Com relação à participação popular, esta se deu através das emendas populares. Houve cerca de 12 milhões de assinaturas em emendas populares. Na ocasião, o Congresso foi tomado por grande número de pessoas que acompanhavam os trabalhos da Constituinte, pressionando e defendendo suas reivindicações. Para Arantes (2013), havia um grande número de grupos de pressão: trabalhadores urbanos, rurais, servidores públicos, estudantes, membros do judiciário, Forças Armadas, dentre outros. Vários setores da sociedade se faziam presentes.
Quanto aos direitos sociais, houve forte pressão para que estes fossem restritos. O próprio presidente Sarney chegou a se manifestar alertando para o que chamou de “ingovernabilidade do País”, caso os direitos sociais fossem aprovados. Porém, segundo Arantes “[...] a pressão decisiva foi a popular que assegurou a aprovação de uma Constituição com um conteúdo democrático, apesar de suas limitações” (ARANTES, 2013, p. 03).
No decorrer do processo houve grande exposição pública dos votos dos parlamentares que votaram a favor e contra os direitos dos trabalhadores, o que exerceu pressão sobre a Assembleia Constituinte.
A este respeito é oportuno o comentário de Arantes, “[...] a correlação de forças políticas de um parlamento não pode ser vista de maneira estática. Ela pode se alterar de acordo com o quadro político que se toma no curso da luta, com pressões e contrapressões” (2013, p. 04). Na “luta” por diversos interesses, importantes capítulos foram incorporados à CF/1988 como: cultura, meio ambiente, desporto e inclusive sobre Família.
Vemos então, uma inédita mobilização política de diversas instituições da sociedade brasileira, tanto sindicatos, associações trabalhistas, como movimentos sociais, movimentos feministas, grupos sociais organizados pelos direitos dos negros, indígenas, pessoas com deficiência, idosos, crianças e adolescentes. As manifestações se tornaram “peças-chave”, como estratégias às propostas que se debatiam na Constituinte (BRANDÃO, 2011).
Resumindo o acima exposto, apresenta-se a lição de Cícero Araujo (2013, p. 358):
Escrutinando os principais fatos relativos a essa inflexão no caso brasileiro, pode-se observar que a discreta passagem da distensão para a democratização ocorre justamente com a perda gradativa de iniciativa política do regime – vale dizer, a perda de sua capacidade de concentrar poder político suficiente, a partir da cúpula, para operar sua própria institucionalização. Essa perda, ademais, corresponde a um deslocamento da própria indeterminação do processo, da periferia para o centro nervoso do Estado, movimento que se dá em zigue-zague, intercalado por avanços e recuos.
O autor complementa:
Para apontar sumária e esquematicamente a sucessão dos fatos: ela começa com a derrota da Arena para o MDB na eleição do Senado, em 1974; passa pela crescente incapacidade dos governos autoritários – de Geisel a Figueiredo – de enfrentar a seu modo a crise econômica e os conflitos sociais dela resultantes; pela derrota dos candidatos do regime nas eleições para os principais governos estaduais e a perda de sua maioria na Câmara Federal, em 1982; até culminar com a campanha oposicionista das eleições diretas e a consequente perda da capacidade do regime de fazer unilateralmente seu sucessor presidencial, em 1984-1985. É nesse contexto que, então, se abre oficialmente o processo constituinte, cujo desfecho, isto é, a Carta de 1988, marca também o final da transição, ou, pelo menos, a realização de sua principal tarefa: a superação definitiva do regime autoritário. (ARAÚJO, 2013, p. 358).
A correlação de forças entre os atores que participaram do processo de elaboração da CF/1988 correspondeu a avanços com relação aos direitos sociais, questão ambiental, seguridade social e principalmente com relação à ampliação do conceito de família, havendo, após a CF/1988, legalidade na formação de novas estruturas familiares, como as monoparentais, união estável e posteriormente as famílias homoafetivas.
Destaca-se que no dia 1º de agosto de 1988, o Movimento de Mulheres e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, lançaram a “Vigília Cívica” defendendo vários temas e reivindicações a serem contempladas na Nova Constituição. Dentre as reivindicações o lançamento de 11 itens que consideravam inegociáveis (a licença maternidade de 120 dias, licença paternidade de 8 dias, proibição de diferença salarial entre homens e mulheres, creches nas empresas, igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, igualdade conjugal, reconhecimento da união estável como entidade familiar, dentre outros) (BRANDÃO, 2011).
No mês de setembro representantes do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, comandados pela então presidente Jaqueline Pitanguy, reuniu-se com Ulysses Guimarães para pedir seu apoio às suas causas, sendo na ocasião um grupo constituído por 50 representantes do Conselho (BRANDÃO, 2011). Os movimentos por moradia, organização de professores, Frente Verde, CUT, Movimento Pró-Mulher, Movimentos Ambientalistas, dentre outros, utilizaram de estratégias semelhantes para realizar suas reivindicações na Constituinte e colaborarem com emendas e a nova redação na CF/1988.
Neste processo a correlação de forças tanto progressistas como não progressistas de alguma forma exerceram “pressão” sobre as decisões dos parlamentares, sejam os movimentos ruralistas, sejam os movimentos populares, sejam organizações de minorias etc.
Considerações finais
A análise de conjuntura revela-se como método eficaz para compreender determinado acontecimento, permitindo ao pesquisador aferir mecanismos e ferramentas para contextualizar o objeto da análise com a realidade de fato vislumbrada no período.
Para uma adequada análise de conjuntura se faz necessário observar qual o cenário envolto ao acontecimento que se propõe a pesquisar, observando fatos anteriores e concomitantes. Na sequência é importante constatar os atores envolvidos figuras relevantes, para aquele acontecimento; aqui não se trata apenas de uma pessoa física, é possível que o ator seja uma pessoa jurídica, inclusive um ente despersonalizado.
Ademais, verificado o cenário e os atores, deve-se observar a correlação de forças existente, o conflito de poderes que margeiam o acontecimento.
Partindo dessas premissas a pesquisa definiu a promulgação da CF/1988 como acontecimento a ser submetido a análise, com enfoque na nova concepção de família adotada pelo constituinte, destacando aspectos sociais, econômicos e políticos significativos no período.
O êxito da análise é a discussão da essência da CF/1988, com ponderação do cenário juntamente com nova abrangência da expressão família, colacionando-se para tal ensinamento sobre a evolução histórica do termo família.
A ampliação do conceito de família dentro da Constituição é relevante, pois inaugurou uma nova ordem jurídica e social no País, que presenciou concretamente a sua redemocratização em meio às antigas sombras do regime ditatorial.
O cenário desenhado refletiu a presença de atores marcantes no processo de elaboração da CF/1988, tendo o artigo trazido à tona as figuras mais relevantes de políticos e a sociedade civil, na busca por uma Constituição mais justa e humana, capaz de atender a realidade do País.
Neste contexto, com a sociedade figurando entre os atores principais na elaboração da CF/1988, tem-se que a correlação de forças voltou-se, em boa parte, numa discussão entre militares e democratas, entre os defensores do regime militar e os defensores do regime democrático.
Por conta desse fato histórico e de todo processo que o envolveu, o conceito de família ampliou-se, considerando família a entidade composta por qualquer um dos pais e seus filhos (família monoparental), união estável, homoafetivas, dentre outras. A partir do aparato legal, abriu-se um leque para a legalização de novas configurações familiares, que já existiam, porém, neste momento, respaldadas pela Carta Magna.
Referências
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