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Família, trabalho do cuidado e uso do tempo: desafios para mulheres de baixa renda

Tassiane Antunes Moreira
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil
Liliane Moser
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Brasil

Família, trabalho do cuidado e uso do tempo: desafios para mulheres de baixa renda

O Social em Questão, vol. 21, núm. 43, pp. 67-94, 2019

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Resumo: Inúmeros são os desafios que se apresentam para as mulheres, sobretudo para as de baixa renda, na tentativa de conciliar as responsabilidades familiares e as demandas do trabalho remunerado. A ausência e/ou oferta limitada de serviços dificultam ou retardam a entrada das mulheres no mercado de trabalho, produzindo tensionamentos e demandas para as políticas sociais. Com base em pesquisa qualitativa realizada com famílias usuárias da Política Nacional de Assistência Social em Florianópolis/SC buscou-se analisar como estas famílias se organizam em relação ao uso do tempo de maneira a articular as responsabilidades entre trabalho remunerado e trabalho não remunerado, sobretudo nas tarefas que dizem respeito ao cuidado.

Palavras-chave: Trabalho, Família, Cuidado, Uso do tempo.

Família, trabalho do cuidado e uso do tempo: desafios para mulheres de baixa renda1

Tassiane Antunes Moreira2

Liliane Moser3

Resumo

Inúmeros são os desafios que se apresentam para as mulheres, sobretudo para as de baixa renda, na tentativa de conciliar as responsabilidades familiares e as demandas do trabalho remunerado. A ausência e/ou oferta limitada de serviços dificultam ou retardam a entrada das mulheres no mercado de trabalho, produzindo tensionamentos e demandas para as políticas sociais. Com base em pesquisa qualitativa realizada com famílias usuárias da Política Nacional de Assistência Social em Florianópolis/SC buscou-se analisar como estas famílias se organizam em relação ao uso do tempo de maneira a articular as responsabilidades entre trabalho remunerado e trabalho não remunerado, sobretudo nas tarefas que dizem respeito ao cuidado.

Palavras-chave

Trabalho; Família; Cuidado; Uso do tempo.

Family, care work and time use: challenges for low income women

Abstract

There are many challenges for women, especially those with low incomes, in an attempt to reconcile family responsibilities and the demands of paid work. The absence and / or limited supply of services hinders or slows the entry of women into the labor market, producing tensions and demands for social policies. Based on qualitative research carried out with families using the National Policy of Social Assistance in Florianopolis/SC, it was sought to analyze how these families organize themselves in relation to the use of time in order to articulate the responsibilities between paid work and unpaid work, tasks that concern care.

Keywords

Work; Family; Care; Time-use.

Artigo recebido: agosto de 2018

Artigo aprovado: outubro de 2018

Introdução

As pessoas desenvolvem suas atividades de acordo com o tempo de que dispõem. Toda atividade custa tempo. Há um tempo objetivo, que permite classificar e medir temporalmente os acontecimentos, porém pouco sabemos sobre a experiência subjetiva do tempo. Todas as pessoas, homens e mulheres, têm noções diferentes de tempo e, por isso, tendem a dispor de seu tempo de maneira distinta (ARRIAGADA, 2005).

Com o advento do capitalismo, a industrialização produziu uma divisão entre trabalho na fábrica e trabalho na casa (MORAES, 2015). Nessa conjuntura, família e trabalho passaram a ser tratados como esferas distintas, ou seja: a família, vinculada à ordem da reprodução, e o trabalho, à ordem da produção. A partir dessa separação, vislumbrou-se também a divisão sexual do trabalho, onde a mulher foi associada ao trabalho de reprodução e de cuidados com o lar, e o homem, ao trabalho na fábrica e de provedor da família.

No Brasil ainda predomina a norma de que a responsabilidade pelos cuidados com a casa e com a família e as demais atividades realizadas na esfera do privado são atribuições das famílias, incidindo na responsabilização das mulheres (SORJ et al., 2007).

No século 21, as mulheres , em sua grande maioria, continuam respondendo pela compra e preparo dos alimentos, pelo cuidado com crianças, idosos, enfermos e pessoas com deficiência, pela manutenção e higiene do espaço doméstico e das roupas dos membros da família, além de zelar pelos cuidados de saúde e educação de todos.

Todas essas atividades cotidianas exigem grande esforço físico, demandam muito tempo e, apesar de “invisibilizadas”, são indispensáveis para a reprodução social e econômica de nossa sociedade. As reduzidas possibilidades de conciliação entre todas essas tarefas, referidas como trabalho remunerado e trabalho não remunerado, trazem importantes impactos não somente para as mulheres, que geralmente passam a ter uma sobrecarga laboral, mas também para homens e crianças, vindo a repercutir de maneira significativa na estruturação de serviços e políticas públicas.

Historicamente, o Estado se organizou com base num arranjo familiar, que conta com o trabalho feminino para suprir as lacunas dos serviços públicos, e as políticas sociais que, nesse cenário, conforme aponta Fontoura et al. (2010), acabam sendo calcadas num modelo tradicional de família e, com isso, em tradicionais convenções de gênero.

Essa configuração, no entanto, vem sendo colocada em xeque à medida que as mulheres ocupam, a cada dia, mais espaço no mercado de trabalho. A tradicional divisão sexual do trabalho, com um homem provedor encarregado do trabalho para o mercado e uma mulher cuidadora, responsável pelo trabalho reprodutivo, dá lugar a um arranjo no qual homens e mulheres realizam o trabalho no mercado, enquanto o trabalho reprodutivo continua, em sua grande maioria, a cargo das mulheres.

No cuidado da casa e da família, as mulheres assumem uma dupla jornada, intensificando seu tempo de trabalho. Enquanto isso, os homens não assumiram da mesma forma a sua parte na responsabilidade das tarefas domésticas. A diferença de gênero no uso do tempo se aprofunda nos grupos socioeconômicos mais pobres, onde as mulheres pobres são as que gastam mais tempo com as tarefas do domicílio. De acordo com as análises de pesquisas sobre a divisão do trabalho doméstico no Brasil, Ribeiro (2005, p. 199) conclui: “não resta dúvida de que as mulheres são as principais responsáveis pelo trabalho doméstico. Fica comprovado que as mulheres brasileiras de todas as classes sociais enfrentam realmente jornadas duplas”.

Nas camadas sociais mais pobres, os conflitos para a conciliação entre trabalho familiar e trabalho remunerado se agravam, por disporem de menos recursos econômicos para comprar serviços de apoio nas tarefas domésticas ou por terem de atender um número maior de crianças. Ribeiro (2005) também reflete que os estudos sobre a divisão sexual do trabalho mostram a rigorosa relação entre trabalho remunerado e não remunerado, o que, associado à esfera da produção econômica e da reprodução social, revela o efeito das obrigações domésticas na vida das mulheres, limitando seu avanço profissional. Assim, com carreiras interrompidas, baixos salários e empregos de baixa qualidade, as mulheres terminam por priorizar a esfera da vida privada.

Inúmeros são os desafios que se apresentam para as mulheres, sobretudo para as de baixa renda, na tentativa de conciliar as responsabilidades familiares e as demandas do trabalho. A ausência e/ou oferta limitada de serviços, como creches, pré-escolas, programas de contraturno escolar, entre outros, dificultam ou retardam a entrada das mulheres no mercado de trabalho, produzindo tensionamentos e demandas para as políticas sociais.

Com base na problematização exposta, realizou-se pesquisa qualitativa com famílias usuárias da Política Nacional de Assistência Social em Florianópolis (SC) com o objetivo de analisar como estas famílias se organizam em relação ao uso do tempo de maneira a articular as responsabilidades entre trabalho remunerado e trabalho não remunerado, sobretudo nas tarefas que dizem respeito ao cuidado.

A abordagem assumida busca desnaturalizar e dar visibilidade ao trabalho do cuidado realizado no espaço doméstico, bem como refletir sobre a necessidade de instauração de mecanismos públicos que proporcionem às mulheres e às famílias condições para gerir o trabalho de reprodução social e para enfrentar os problemas advindos da precarização do mundo do trabalho.

A complexidade dos elementos apontados abre inúmeras possibilidades de pesquisa. Instigar essa reflexão no campo do Serviço Social é indispensável, pois os assistentes sociais se defrontam cotidianamente com os conflitos gerados nas relações entre o mundo do trabalho e o mundo da família. A explanação realizada visa mostrar o solo que propiciou o desenvolvimento das ideias e categorias de estudo, elementos que serão explicitados no decorrer deste artigo.

Trabalho, família e as tensões entre essas esferas

Nas últimas décadas, cresceu o interesse pelo tema do equilíbrio entre trabalho e responsabilidades familiares. Cada vez mais se reconhece que os conflitos entre vida laboral e vida familiar têm efeito negativo sobre a qualidade de vida dos indivíduos. Nesse sentido, o equilíbrio entre trabalho e responsabilidades familiares constitui um tema de grande desafio na sociedade contemporânea e tem sido abordado por ângulos distintos.

Trabalho e família constituem-se aparentemente como duas esferas regidas por lógicas distintas – uma pública e outra privada – mas que, no entanto, se afetam mutuamente. As pessoas precisam trabalhar para satisfazer suas necessidades econômicas e pessoais e, ao mesmo tempo, cuidar da família e desempenhar tarefas domésticas não remuneradas em seus lares. O uso do tempo, na maioria das vezes escasso, torna a relação entre essas duas esferas tensa e conflituosa.

No Brasil, as últimas duas décadas foram marcadas por mudanças no mercado de trabalho e na estrutura das famílias. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais (IBGE, 2016), a configuração das famílias tem se modificado em razão da dinâmica social, de mudanças no perfil demográfico e na legislação vigente. Muitos fatores têm efeito sobre a formação das famílias, tais como, entre outros, o aumento da esperança de vida, o declínio da fecundidade, a migração para áreas urbanas, o aumento da escolaridade e da inserção das mulheres no mundo do trabalho, a atualização na legislação sobre divórcio, separação, união estável e casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A queda da fecundidade, o aumento da escolaridade e da inserção das mulheres no mercado de trabalho são alguns fatores que produzem alterações nos arranjos familiares. Uma dessas mudanças foi o aumento, de 2005 a 2015, da proporção de mulheres que se encontravam na condição de pessoa de referência da família.

Outra mudança notória observada no mesmo período é a diminuição do tipo de família tradicional nuclear. Sobre esse assunto gostaríamos de ressaltar que, durante muito tempo, a família nuclear com presença de ambos os pais e filhos foi considerada – e ainda é – o paradigma da família ideal e o modelo de família sobre o qual se planejam as políticas públicas. No entanto, a nova configuração dos lares sugere a necessidade de novas políticas dirigidas tanto para homens quanto para mulheres, assim como para as instituições sociais, as quais devem apoiar as famílias no atendimento de suas necessidades em dupla perspectiva: políticas orientadas para conciliar trabalho e família e políticas eficazes para dar o apoio necessário para o cuidado de filhos, idosos e demais dependentes.

Tradicionalmente, a maioria das políticas governamentais é orientada a partir de um conceito de família em que há a presença de pai e mãe vinculados pelo matrimônio, com perspectiva de convivência de longa duração, onde os papéis de gênero estão perfeitamente definidos: as mulheres responsáveis pelos trabalhos domésticos e de cuidados, e os homens, pelos trabalhos extra domésticos. Esse modelo pressupõe obrigações e direitos definidos, bem como uma interação constante entre os membros do grupo familiar, no qual se visualiza um modelo de responsabilidades assimétricas com relações pouco democráticas (ARRIAGADA, 2007).

Atualmente, a partir das diversas transformações sociofamiliares e à medida que as mulheres ocupam cada vez mais espaço no mercado de trabalho, essa configuração vem sendo questionada. Porém, apesar dos notórios avanços com relação à inserção das mulheres no mundo do trabalho, as desigualdades nas relações de gênero dentro das famílias e em famílias de diferentes classes ainda persistem. Apesar de as mulheres terem menos filhos, seu papel de cuidadoras mantém-se como uma importante causa de desigualdades, transmitidas geracionalmente pela socialização dos filhos na divisão sexual do trabalho (ITABORAÍ, 2016).

Os estudos sobre o uso do tempo permitem investigar essas desigualdades. Eles ilustram um retrato do cotidiano das pessoas e, com isso, configuram-se como uma das maneiras de avaliar como o recurso tempo é utilizado de maneira distinta entre homens e mulheres, entre os grupos etários, entre pessoas de variados grupos raciais e de diferentes classes sociais. Este tipo de pesquisa é crucial para a compreensão das desigualdades de gênero e para evidenciar o trabalho do cuidado, sobretudo no interior das famílias. A alocação das horas no trabalho remunerado e não remunerado influenciam nas diferenças de papéis sociais e de poder desempenhados por homens e mulheres. Há uma injusta distribuição de tarefas do trabalho doméstico familiar e de cuidado que precisam ser mais bem compreendidos.

Os estudos sobre o uso do tempo e as contribuições para a formulação de políticas públicas

O tempo é um recurso fundamental, que é distribuído igualmente entre todos, mas pode ser usado de diferentes maneiras. A forma como as pessoas organizam e distribuem seu tempo afeta o bem-estar econômico e social e tem impactos sobre a família e a comunidade onde vivem. No cenário internacional da produção de estatísticas sociais e econômicas, tem-se tornado consensual a ideia de que medidas de uso do tempo devem ser incluídas na formulação de indicadores para avaliar as condições de vida da população (CAVALCANTI; PAULO; HANY, 2010).

As pesquisas sobre o uso do tempo configuram-se como uma das maneiras de elaborar esses indicadores e avaliar como o recurso tempo é utilizado de maneira distinta entre homens e mulheres, entre os grupos etários, entre pessoas de variados grupos raciais e de diferentes classes sociais. Esse tipo de pesquisa busca informações sobre as diversas atividades que os indivíduos realizam ao longo de um determinado período, geralmente um dia (24 horas). Com isso, ilustram um retrato do cotidiano das pessoas, abrangendo todas as atividades humanas realizadas.

Para a temática de gênero, as pesquisas de uso do tempo são excepcionalmente importantes, uma vez que as atividades a que homens e mulheres se dedicam refletem os papéis sociais e as desigualdades de condições e oportunidades entre os sexos.

Conforme informações disponibilizadas por Cavalcanti, Paulo e Hany (2010), nos países desenvolvidos as pesquisas sobre o uso do tempo vêm sendo realizadas regularmente desde a década de 1960. Na América Latina, alguns países adotaram o estudo do tema a partir da década de 1990. Nessa época, a Divisão de Estatística da Organização das Nações Unidas (ONU) começou a sistematizar modelos e métodos para a realização desse tipo de pesquisa, criando um manual para a produção de estatísticas de uso do tempo com o intuito de facilitar a comparabilidade internacional de dados. A ONU também criou em 1997 uma classificação de atividades própria, a International Classification of Activities for Time Use Statistics (ICATUS), adotada por alguns países.

No Brasil, até o início da década de 1990, as instituições oficiais de estatística do País não geravam qualquer tipo de informação que pudesse subsidiar o debate político sobre o uso do tempo, especialmente sobre as desigualdades de gênero no exercício das tarefas domésticas e de cuidado e sobre seus impactos na qualidade de vida da população nacional (FONTOURA et al., 2010).

Como resultado, em 1992, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) incluiu em sua principal pesquisa domiciliar – a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) – duas questões relacionadas ao uso do tempo e à reprodução social: a primeira questionava a realização de afazeres domésticos por parte de todos os membros do domicílio, e a segunda indagava sobre o tempo médio gasto semanalmente no deslocamento casa-trabalho-casa.

Quase uma década depois, em 2001, o IBGE incorporou mais uma pergunta à PNAD, relacionada ao tempo médio dedicado semanalmente à realização dos afazeres domésticos. Tal temática assumiu novos contornos quando foi criada em 2003 a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM).

Em 2008, ao contemplar o crescente debate do tema no contexto internacional, o governo brasileiro instituiu o Comitê de Estudos de Gênero e Uso do Tempo com o objetivo de aprofundar a discussão no País. Esse Comitê foi composto por representantes da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), do IBGE e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Foram convidados permanentes do Comitê o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). A partir da criação do Comitê, o IBGE e as demais instituições envolvidas se comprometeram oficialmente com a questão. Diante do apoio e incentivo do grupo, possibilitou-se a realização da primeira Pesquisa de Uso do Tempo no Brasil, realizada pelo IBGE em 2009.

As pesquisas sobre o uso do tempo realizadas no Brasil, bem como em outras partes do mundo, utilizam-se de distintos tipos de metodologia de investigação, dentre as quais podem-se destacar: o emprego de diários para registro do que é realizado no decorrer do dia; o uso de perguntas para estimar o tempo despendido em atividades determinadas, por meio de uma espécie de diário estilizado; a utilização de observação de atividades desenvolvidas pela população estudada para o seu levantamento em um dado intervalo de tempo; o uso de aparatos computacionais para pesquisar atividades, utilizados como principais instrumentos de registro, ou em combinação com diários ou questionários.

Apesar dos avanços, a experiência brasileira com diários do uso do tempo ainda é recente, possui caráter localizado, e as perguntas relacionadas às tarefas desenvolvidas referem-se a um número restrito de atividades.

Em comparação com outros países que apresentam similar desenvolvimento econômico, como Uruguai, México e Venezuela, o Brasil ainda possui escassa produção de pesquisas sobre o uso do tempo. Ademais, vale lembrar que tal escassez se encontra em todos os campos de conhecimento correlatos, como a Demografia, a Sociologia e principalmente no Serviço Social.

Para Fontoura et al. (2010), há um consenso de que a produção estatística sobre o uso do tempo no Brasil ainda é insuficiente para subsidiar a formulação de políticas públicas de conciliação entre trabalho e vida familiar e para uma discussão mais aprofundada de metodologias de contabilização do trabalho reprodutivo na economia nacional.

Contudo, acredita-se na potencialidade desse tipo de estudo e, assim, com base nas metodologias de estudos sobre o uso do tempo e apoiado em revisão bibliográfica de literatura, pretende-se neste artigo, a partir de uma abordagem qualitativa e por meio da apresentação de dados prospectados em pesquisa de campo, pontuar aspectos referentes ao uso do tempo e o trabalho do cuidado entre famílias de baixa renda em Florianópolis (SC).

O Trabalho do Cuidado: a pesquisa em questão

De maneira geral o cuidado tem sido apresentado pelos estudiosos europeus como um conceito polissêmico, vinculado à reprodução e desenvolvido na família, e tem seguido diferentes tendências teóricas (LETABLIER, 2007 apud MIOTO, 2017).

Gama (2014) aponta que, em termos gerais, o cuidado pode ser compreendido como uma atividade feminina geralmente não remunerada, sem reconhecimento nem valoração social. Compreende tanto o cuidado material como o imaterial que implica um vínculo afetivo e emocional. Supõe vínculo entre quem presta e quem recebe cuidado.

Para a autora, o trabalho do cuidado inclui:

[...] (a)o cuidado direto às pessoas como alimentá-las e limpá-las; (b) o cuidado indireto onde uma pessoa é responsável por e supervisiona as necessidades de cuidado de uma pessoa, mas sem interagir diretamente e (c) serviços de suporte tais como cozinhar e limpar que provê as condições para o cuidado mais direto. [...] O trabalho do cuidado pode ser remunerado e não remunerado. (GAMA, 2004 apud RAZAVI; STAAB, 2008, p.5).

Aguirre (2007) classifica o cuidado em duas categorias: o cuidado proporcionado a crianças e adolescentes – em que, junto com a obrigação, há uma fonte de gratificação – e o cuidado que se destina àqueles portadores de enfermidades, crônicas ou agudas, denominado de cuidado assistencial.

Carloto (2015) aponta que há uma dimensão comum aos estudiosos do tema, que tem sido a questão de dar visibilidade à dimensão emocional e afetiva dos cuidados. Para a autora, estabelece-se um vínculo emocional entre o que cuida e o que recebe cuidados, um vínculo pelo qual o indivíduo que propicia os cuidados se sente responsável pelo bem-estar do outro e faz um esforço tanto emocional quanto físico para poder cumprir essas responsabilidades. Assim, o cuidado é resultado de inúmeros atos pequenos e sutis, conscientes ou inconscientes que não se pode considerar que sejam realizados de forma natural ou sem esforços.

Razavi e Staab (2008) diferenciam o trabalho não remunerado e o trabalho do cuidado. Ao desenvolverem uma análise socioeconômica, assim definem o trabalho do cuidado:

Trabalho do cuidado – inclui: (a) o cuidado direto às pessoas, como alimentá-las e limpá-las; (b) o cuidado indireto onde uma pessoa é responsável por e supervisiona as necessidades de cuidado de uma pessoa, mas sem interagir diretamente e (c) serviços de suporte, tais como cozinhar e limpar, que provê as condições para o cuidado mais direto. Aqueles com intensas necessidades de cuidado incluem crianças pequenas, idosos fragilizados e pessoas com variados tipos de doenças e incapacidades, também requerem e recebem cuidados. Cuidados diretos e indiretos algumas vezes são vistos como separados de outras atividades que proveem as condições para o cuidado pessoal, tais como a preparação de refeições, as compras, lavar roupas e limpar a casa (trabalho doméstico). Porém, tais fronteiras são arbitrárias, especialmente se as pessoas que necessitam de cuidado intensivo são incapazes de realizar tais tarefas. O trabalho do cuidado pode ser remunerado ou não remunerado. (RAZAVI, STAAB, 2008, p. 5).

Para Carrasco (2003 apud CARLOTO, 2015), é difícil distinguir o trabalho doméstico do trabalho de cuidados, já que, nos bens e serviços produzidos dentro do lar, é mais complicado separar os aspectos afetivo-relacionais da atividade em si, porque envolvem elementos pessoais, diferentemente dos bens mercantis.

Perfil das Mulheres Entrevistadas

Do público entrevistado, todas eram mulheres, com idade entre 16 a 60 anos. Quatro se declararam brancas, enquanto uma se declarou negra. Das cinco entrevistadas, três eram casadas ou viviam em união estável, enquanto uma era viúva e uma solteira. A idade das respondentes corresponde, em ordem crescente, a 16, 30, 33, 54 e 58 anos de idade.

Uma primeira representação sobre o público que acessa o CRAS é que ele é composto em sua maioria por mulheres. Ao nos questionarmos sobre essa constatação, buscamos os aportes teóricos que evidenciam a centralidade da família como protagonista de suas próprias demandas sociais na Política de Assistência Social e que realça os papéis de gênero historicamente atrelado às mulheres.

Para Freitas, Braga e Barros (2010), o contato da família para acessar os serviços públicos disponibilizados pelo Estado continua acontecendo em grande parte pela figura materna. As políticas sociais dirigidas a esse público tomam como pressuposto a presença de alguém em casa para cuidar dos dependentes, e esse lugar é naturalmente identificado como lugar da mulher. Nesse contexto, elas surgem como agentes de reprodução social, administradoras de conflitos e mediadoras das expressões da questão social; são responsáveis pelos cuidados com as crianças e adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, contraditoriamente os principais usuários de atendimento da política de assistência social. Não obstante, reafirmam-se as construções históricas de gênero e as diferenças entre homens e mulheres na condução das relações sociais.

Com relação à ocupação, das cinco entrevistadas, apenas uma delas exercia trabalho remunerado com carteira de trabalho assinada, ou seja, estava inserida no mercado de trabalho formal. As outras afirmaram exercer cargos na informalidade, como diarista e vigilante de estacionamento, fazendo bicos nos horários disponíveis, ou seja, no horário em que não estavam dedicando seu tempo ao trabalho familiar no espaço doméstico.

Uma usuária afirmou estar desempregada, enquanto duas são donas de casa, dedicando-se exclusivamente ao trabalho doméstico, ao trabalho do cuidado e ao trabalho de acesso aos serviços públicos e de relação com as instituições.

A participação feminina no mercado de trabalho tem crescido nos últimos anos. Segundo informações divulgadas no site do IBGE (2018), em 2007 as mulheres representavam 40,8% do mercado formal de trabalho; em 2016, passaram a ocupar 44% das vagas.

Embora se observe esse aumento expressivo, as responsabilidades familiares, sobretudo aquelas relacionadas ao trabalho do cuidado, constituem uma barreira importante para o acesso ao trabalho remunerado e podem restringir opções de emprego e limitar a capacidade de gerar renda. Elas afetam particularmente as mulheres, já que, historicamente, essas responsabilidades recaem proporcionalmente sobre elas.

Esse problema se agrava quando inserimos a variável “filhos” no cruzamento e análise dos dados coletados. Gama (2014, p. 21) ressalta que “[...] a grande desvantagem das mulheres no mercado de trabalho ocorre quando suas crianças são pequenas”. A autora salienta que a taxa de participação feminina no mercado de trabalho é muito mais sensível ao tipo de arranjo familiar no qual estão inseridas do que para os homens. Independentemente da estrutura familiar, a taxa de participação dos homens no mercado de trabalho nunca é menor do que 84,7%, enquanto que, para as mulheres, dependendo da estrutura da família, a taxa de participação pode variar entre 86,9% e 55,3% (SORJ; FONTES; MACHADO, 2007 apud GAMA, 2014).

Em suas análises, Moser (2013) observa que as mulheres que têm filhos apresentam menor ingresso no mundo do trabalho, principalmente nas situações em que não há o compartilhamento dos afazeres domésticos e dos cuidados com as crianças. Conforme aponta a pesquisa do Dieese:

A presença de filhos pequenos não parece impedir a mulher de procurar trabalho, mas acaba por prejudicar, tornando mais difícil seu acesso a uma ocupação, seja por limitar sua escolha de trabalho por um local mais próximo à sua residência ou por um tipo de jornada de trabalho menor ou mais flexível, ou ainda, pelo lado do empregador, por preferir contratar mulheres que não têm filhos pequenos. (DIEESE, 2011, p. 13).

As responsabilidades familiares das mulheres com filhos atuam como obstáculos ou desincentivos à inserção das mulheres no mercado de trabalho e confirmam a urgência da atenção por parte dos gestores de políticas públicas para ampliação da oferta de vagas em creches e ensino infantil, sobretudo no caso de famílias monoparentais de referência feminina.

Quando questionadas sobre a estrutura familiar, três entrevistadas declararam estar casadas ou vivendo em união estável, enquanto uma se declarou viúva, e uma, solteira.

Entre as entrevistadas não foram identificadas mulheres inseridas em arranjo familiar monoparental de referência feminina com filhos pequenos.

Duas participantes declararam ser a pessoa de referência da família. Destas, a primeira referiu ter dois filhos adultos, que não estão inseridos no mercado de trabalho e se declarou responsável pelas despesas financeiras deles. A segunda, por sua vez, relatou estar na posição de cuidadora de uma pessoa com deficiência e de uma pessoa idosa.

Três entrevistadas têm filhos pequenos, na faixa etária com até seis anos de idade, sendo que uma delas também é mãe de uma adolescente de 12 anos. Esse dado é relevante, uma vez que o cuidado com crianças e adolescentes resulta em uma grande carga de trabalho para a mulher – que é historicamente responsabilizada pelo cuidado doméstico e familiar.

Somada à histórica responsabilização da mulher como única responsável pelo cuidado com os filhos e a ausência e/ou negligência de cuidados pelos homens, problematiza-se a desresponsabilização do Estado pelas políticas públicas de cuidado com as crianças e jovens. Exemplos são citados por Carloto (2015), que aponta a carência de instituições gratuitas e acessíveis de ensino infantil e a inexistência de escolas públicas em período integral – o que tiraria parte da carga imputada às mulheres na questão do cuidado com as crianças e possibilitaria que elas pudessem se capacitar e ingressar no mercado de trabalho para exercer um mínimo de autonomia.

As taxas de desemprego e a inserção precária no mercado de trabalho das mulheres que têm filhos, principalmente filhos pequenos, sugerem que elas tendem a diminuir suas exigências profissionais, já que estão em condições de cuidadoras da família e dispõem de pouco tempo livre para concorrer as vagas que exigem maiores qualificações profissionais e, consequentemente, ofertam remuneração mais alta.

Chamou-nos atenção a quantidade de pessoas que compõem o arranjo familiar. Em relação à quantidade de pessoas que moram na casa, a maior parte se concentra entre três a quatro moradores. Essa questão mostra a diminuição no tamanho das famílias entre as classes mais pobres e vai ao encontro da PNAD de 2013 feita pelo IBGE, na qual se constatou declínio desde 2003 de 15,7% no número de filhos entre os 20% mais pobres.

Quanto à escolaridade das entrevistadas, das cinco mulheres que participaram da pesquisa, uma concluiu o ensino fundamental, três finalizaram o ensino médio, e uma possui ensino superior completo com formação em administração.

No Brasil, a média de anos de estudo, o nível de instrução e a taxa de analfabetismo proporcionam um retrato da escolaridade acumulada ao longo de gerações de brasileiros. A escolaridade média da população de 25 anos ou mais de idade aumentou de 2005 a 2015, passando de 6,5 para 7,9 anos de estudo completos, indicando uma baixa taxa de alfabetização. Essa média, no entanto, apresenta algumas diferenças regionais. Segundo dados coletados no Censo Demográfico do IBGE (2010), a Região Sul é a que apresenta o maior nível de escolaridade no País, fato que possivelmente justifique o nível de instrução das respondentes.

Quando questionadas sobre a renda mensal, as usuárias da Política Nacional de Assistência Social do CRAS Ingleses do Rio Vermelho informaram qual a sua contribuição financeira para o núcleo familiar no qual estão inseridas. Das cinco entrevistadas, apenas uma não possui renda, duas declararam ganhar até um salário mínimo, uma afirmou receber o valor mensal entre um e dois salários mínimos, e uma referiu ganhar o equivalente a três salários mínimos.

Quanto aos dados relativos ao recebimento de benefícios sociais mensais, três das interrogadas afirmaram não receber benefício mensal, uma delas recebe uma pensão por morte no valor de um salário mínimo e uma recebe o Bolsa Família. Importante ressaltar que uma das entrevistadas não recebe benefício e está desempregada, no entanto afirmou que, em seu núcleo familiar, a mãe idosa e o irmão deficiente recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Finalizando a apresentação dos dados relativos ao perfil das entrevistadas, no próximo item, serão apresentados elementos relativos ao tempo despendido pelas famílias com o trabalho do cuidado.

Famílias referenciadas no CRAS Ingleses do Rio Vermelho: o tempo gasto com o trabalho do cuidado

A questão do tempo gasto pelas mulheres em atividades relativas ao cuidado foi um dos temas abordados nesta pesquisa. Quando questionadas sobre os sujeitos que compõem o núcleo familiar e que residem na mesma casa, todas as entrevistadas afirmaram conviver com pessoas que necessitam de cuidados, em cujo perfil se destacam crianças, adultos e pessoas com deficiência.

Foram entrevistadas famílias com arranjos familiares distintos. Dentre eles destacam-se, casal com filhos, mulher sem cônjuge e com filhos e mulher sem cônjuge e sem filhos. Quanto à faixa etária desses sujeitos, ela varia entre 10 meses a 79 anos de idade.

Ao serem interrogadas sobre os tipos de cuidados que são prestados, as participantes relataram realizar as seguintes atividades: dar de comer ou ajudar; dar banho e vestir ou ajudar; dar medicamentos; fazer alguma terapia especial e ajudar a fazer exercícios e acompanhar a consulta médica.

Das cinco entrevistadas, quatro relataram realizar atividades de cuidado a algum familiar que necessita de cuidados em sua residência. Uma respondente relatou auxiliar em terapias e ajudar a fazer exercícios, e uma mencionou o acompanhamento a consulta médica.

Todas as entrevistadas referiram gastar muito tempo com atividades de cuidados. Dentre as participantes, nos chamou especial atenção uma mulher que tem uma filha com deficiência – paralisia cerebral, de 10 meses de idade, a qual necessita de cuidados especiais diariamente. A criança realiza acompanhamento com fisioterapeuta duas vezes por semana e hidroginástica uma vez por semana. Ela necessita consultar a nutricionista três vezes ao mês e tem consulta com neurocirurgião e neurologista a cada dois meses. A entrevistada é mãe de uma adolescente de 12 anos de idade que também demanda cuidados, sendo que a participante é a principal responsável pelo trabalho doméstico em sua residência.

Outra respondente relatou ser cuidadora da mãe idosa, que tem 79 anos de idade e está com demência, e do irmão de 41 anos que é deficiente visual. Nesse caso, a entrevistada teve que abrir mão do emprego formal com carteira assinada para assumir as responsabilidades de cuidado dos familiares.

As demais entrevistadas comentaram sobre o trabalho de cuidados com crianças, e uma delas relatou ser a principal responsável pelo cuidado dos filhos adultos de 27 e 29 anos, que não estão inseridos no mercado formal de trabalho e não auxiliam nas tarefas referentes ao trabalho doméstico.

Ao contabilizar as horas gastas com atividades relativas ao cuidado, constatamos que as participantes da pesquisa consomem uma média de três horas por dia para a realização das referidas atividades. Contabilizando a carga horária semanal, a média é de 21 horas e 30 minutos.

Para Moser e Dal Prá (2016), as tarefas relativas ao trabalho do cuidado voltam-se, principalmente, àqueles familiares que se encontram em situação de dependência, notadamente crianças, idosos, doentes e pessoas com deficiência. O cuidado, quando incorporado como responsabilidade domiciliar, reforça as atribuições da família na provisão de bem-estar social. Ou seja, na tônica do cuidado são articuladas diferentes estratégias de imposição ou de transferência dos custos de natureza financeira, emocional e, em especial, do trabalho no cuidado às famílias. As responsabilidades que envolvem o cuidado de familiares exigem grande esforço físico e mental e disponibilidade de tempo e recursos.

Na maioria das famílias, uma única pessoa assume a maior parte da responsabilização do cuidado, sendo geralmente a mulher – são as esposas, filhas, noras, irmãs, avós. A partir do momento em que se tornam cuidadoras, as mulheres assumem inúmeras funções que não somente a de cuidar especificamente de outra pessoa no processo saúde/doença. Acabam desenvolvendo diversas outras atividades no espaço doméstico, ou seja, no espaço de reprodução, como cuidar da casa, dos filhos, do marido etc.; o que, por inúmeras vezes, traz sérias consequências a seu cotidiano, como conflitos nas relações familiares, reações emocionais e consequências sobre a saúde, sobre a vida profissional, relacionadas à diminuição de atividades de lazer, entre outras delas (MOSER, DAL PRÁ, 2016).

O cuidado com os filhos é uma das atividades que mais consome o tempo de trabalho doméstico das mulheres. Quando se trata do binômio saúde/doença, os cuidados requerem atenção especial e uma dinâmica diferenciada, que muitas vezes implica o auxílio em diversas atividades diárias e pode exigir a prática de terapias especiais, auxílio no uso correto de medicamentos e acompanhamento às consultas médicas, entre outras.

Moser e Dal Prá (2016) consideram:

O significado ou o sentido de cuidado está relacionado não somente ao processo saúde/doença, mas sim a um aspecto mais abrangente que diz respeito a “doar” parte de sua vida para outra pessoa, estando ela doente ou não. O cuidado remete a zelo, atenção, responsabilidade, dedicação e compromisso, principalmente por parte da figura feminina. (MOSER; DAL PRÁ, 2016, p. 386).

Dessa forma, o cuidado é compreendido como trabalho familiar, sendo realizado principalmente pelas mulheres e normalmente fazendo parte do trabalho doméstico, sem remuneração (BARCELOS, 2011).

Dialogando com Carloto (2015, p. 186), percebe-se que insuficiência de serviços públicos na esfera dos cuidados penaliza mais as mulheres de famílias mais empobrecidas, na medida em que “atrapalha” a inserção delas no mercado de trabalho, e aumenta o tempo de trabalho (não remunerado), na reprodução dos membros da família e ainda limita a cidadania feminina, pois inviabiliza sua inserção e permanência qualitativa no mercado de trabalho e na participação de decisões coletivas.

Carrasco (2003) aponta uma característica sobre o trabalho do cuidado, que é não ser linear, pois segue o ciclo da vida, intensificando-se quando se trata de cuidar de pessoas dependentes: crianças, idosas ou doentes. Outra característica destacada pela autora é que os tempos de cuidados diretos são mais rígidos no sentido de que não podem ser agrupados e muitos deles exigem horários e jornadas fixas e, em consequência, apresentam maiores dificuldades de combinação com outras atividades. Como exemplo, podem-se citar os horários de funcionamento das Unidades Básicas de Saúde (UBS), das escolas e das dificuldades das mulheres que trabalham em horário comercial fora do lar, trata-se, portanto, do tempo gasto com o acesso aos serviços públicos.

Cuidados pessoais e de atenção à saúde: como ficam as mulheres cuidadoras?

Neste item, buscamos refletir sobre os cuidados pessoais e de atenção à própria saúde das entrevistadas.

Ao responderem questões referentes às horas de sono, as entrevistadas referiram dormir de três a sete horas diárias.

Quanto às horas gastas com higiene e cuidados pessoais, como tomar banho, escovar os dentes, cortar as unhas, etc., as entrevistadas afirmaram gastar de 20 minutos a uma hora diária.

No tocante à prática de exercícios físicos, as respondentes relataram não praticar nenhum exercício físico, exceto andar de bicicleta, que, nesse caso, configura-se como uma necessidade, pois se trata do meio de locomoção disponível, dada a ausência de transporte público eficiente e de qualidade em Florianópolis.

Quando questionadas sobre as horas de descanso, todas as entrevistadas afirmaram não dispor de tempo para descansar, pois estão sempre articulando estratégias de diferentes tipos a fim de conciliar as demandas entre trabalho e responsabilidades familiares.

Nota-se, a partir da reflexão sobre o trabalho do cuidado – especialmente ao se considerarem as horas gastas com cuidados pessoais –, que a vida e o cotidiano das mulheres entrevistadas são para os outros, de tal maneira que elas não podem se ausentar, pois os demais integrantes do núcleo familiar necessitam de seus cuidados. Carloto, Nogueira e Damião (2017), ao discutirem o uso do tempo das mulheres beneficiárias do Programa Bolsa-Família, questionam se é possível as mulheres com responsabilidades familiares cuidarem e pensarem em si mesmas e buscarem trabalho e autonomia financeira, sendo que passam o dia inteiro no cuidado dos familiares.

As autoras consideram que a mulher, historicamente destinada aos cuidados domésticos familiares, sem ter essas atividades compartilhadas em esfera microssocial com homens e em esfera macrossocial com o Estado, são impossibilitadas de alcançar o mínimo de autonomia, mesmo quando recebem benefícios sociais.

Esse contexto nos permite refletir sobre a dimensão emocional que está relacionada ao trabalho do cuidado na esfera domiciliar. Sobre esse assunto, Aguirre (2007) destaca as dimensões que essa categoria de trabalho envolve, as quais podem ocasionar transtornos mentais, dado seu nível de exigência e dedicação.

A partir dos dados expostos, nos perguntamos: onde fica contabilizado o tempo pessoal? Qual é o tempo que essas mulheres dispõem para cuidar de sua saúde, do lazer, da sexualidade e dos estudos?

Considerações finais

Por meio dos resultados obtidos neste estudo, buscou-se contribuir para o aprofundamento da temática proposta, colocando em evidência o trabalho do cuidado. Para contemplar os objetivos propostos, optamos por uma abordagem de natureza qualitativa e apostamos nas metodologias de pesquisa sobre o uso do tempo.

De forma resumida, as pesquisas de uso do tempo têm como objetivo mensurar o tempo dedicado aos distintos tipos de atividades que as pessoas realizam. Esse tipo de instrumento permite dar maior visibilidade a todas as formas de trabalho que se realizam tanto fora como dentro do domicílio, sejam elas remuneradas ou não. O uso do tempo dos indivíduos também está relacionado a práticas culturais e condições materiais e financeiras das classes sociais (CARLOTO, 2015).

As evidências empíricas revelam que não há transferência, por parte das mulheres, das responsabilidades pela execução das atividades relativas ao trabalho de cuidado para outros membros da família. Os dados obtidos mostram que a renda familiar é uma variável importante para um menor quantitativo de horas dedicadas ao trabalho familiar. As mulheres pobres são as que executam maior jornada de trabalho total e são as que têm menos tempo livre. A situação socioeconômica, que permite maior acesso aos serviços de apoio, age como elemento diferenciador entre as mulheres no tocante ao trabalho do cuidado realizado no âmbito doméstico.

Nas famílias pesquisadas é perceptível a presença do padrão que mantém o homem na posição de provedor principal, pois, na maioria dos casos, é o homem que se mantém no trabalho formal, sendo responsável pela renda familiar. As mulheres, por sua vez, dedicam-se às atividades informais e aos cuidados com os filhos e com os dependentes, evidenciando as desigualdades de gênero.

A relação entre trabalho, família e uso do tempo nos permitiu a reflexão acerca das relações de gênero que se estabelecem no interior das famílias. Notadamente, as mulheres entrevistadas deixam de lado o acesso a um trabalho remunerado formal para assumirem as responsabilidades concernentes ao trabalho familiar. Os dados nacionais indicam que são as mulheres as principais responsáveis pelo trabalho do cuidado. No contexto da pesquisa, essa afirmação se confirma, configurando-se como um dos obstáculos para o acesso ao mercado de trabalho. As mulheres entrevistadas não dispõem de tempo nem de recursos para investirem na formação profissional, para o acesso ao lazer e para adquirirem serviços de apoio nas tarefas domésticas, o que dificulta o acesso ao trabalho remunerado.

Considerando os sujeitos da pesquisa, usuários da Política Nacional de Assistência Social uma questão que chama atenção e precisa ser problematizada é a majoritariedade de usuárias mulheres que acessam os serviços e programas ofertados pela Política de Assistência Social. Nessa perspectiva, explicitamos a reflexão a respeito da tendência de feminização dos processos de proteção social, onde está presente a reprodução dos condicionantes de gênero nas políticas sociais. Esses condicionantes presentes em nossa sociedade extrapolam o âmbito privado e marcam a vida de milhares de mulheres, que são naturalizadas em suas funções, tendo seus direitos de cidadania historicamente negados.

A feminização da pobreza no contexto do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) é reforçada pelos programas de transferência de renda ao elencarem a titularidade da mulher para esses benefícios e ao instituírem a seletividade dos mais pobres entre os pobres. Na Política de Assistência Social, as mulheres são as responsáveis pelos cadastros sociais, por responder às condicionalidades dos programas sociais e por participar das reuniões de grupos de convivência e fortalecimento de vínculos familiares, assim como responder às demais demandas da saúde e educação familiar. Os programas de transferência de renda, ao focalizarem sua atenção na mulher, apresentam caráter contraditório, pois, se por um lado a mulher, como receptora dos benefícios, pressupõe certo protagonismo e a superação da feminização da pobreza, ao mesmo tempo configura-se como estratégia para administrar as expressões da questão social, legitimando a ideologia capitalista e perpetuando a produção e reprodução das classes sociais (CISNE, 2007).

Carloto (2015) reflete que as políticas públicas têm convertido a responsabilidade das mulheres em obrigações exclusivas e excludentes. Para superar essa condição, os desafios ainda são muitos. É preciso desnaturalizar e desconstruir as atribuições de gênero que historicamente foram criadas pela divisão sexual do trabalho – que são reafirmadas pelas políticas sociais e reproduzem a mulher-mãe dona de casa, sem reconhecer essas atividades como trabalho –, assim como fortalecer o acesso ao emprego com igualdade de oportunidades. Outro aspecto importante diretamente relacionado às horas gastas com o trabalho do cuidado é a educação infantil. O tempo de permanência na creche/pré-escola e o acesso à alimentação escolar gratuita também apresentam forte correlação com a diminuição do tempo de trabalho das mulheres. Dessa forma, verifica-se a relação entre o acesso às políticas sociais e a diminuição do tempo despendido no trabalho do cuidado, principalmente entre as famílias mais pobres.

Acordando com Carloto (2015), fundamentalmente demandam-se mudanças no modo como as políticas públicas interpelam a participação feminina. É preciso analisar até que ponto as políticas sociais têm efetivado a autonomia e emancipação da mulher em vez de responsabilizá-las pela proteção social, reforçando ainda mais a discriminação e a desigualdade de gênero nas várias esferas da vida social.

Percebe-se que há um leque de questões suscitadas a partir dos estudos sobre o uso do tempo que passam pela determinação das atividades que dizem respeito ao trabalho familiar, pela discussão do universo do trabalho feminino, pela discussão em torno da redução da jornada de trabalho e pela inclusão das questões relativas a gênero na formulação das políticas públicas, questões que merecem ser aprofundadas. Coloca-se a necessidade de ampliar esse debate no âmbito da sociedade brasileira. O aprofundamento dessa discussão torna-se impreterível ao se considerarem os limites desta pesquisa, apesar de acreditarmos na contribuição que ela pode oferecer aos estudos nessa área, sobretudo no campo do Serviço Social.

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