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Homens e Proteção Social: desafios para a Política Nacional de Assistência Social
Daniel de Souza Campos; Ludmila Fontenele Cavalcanti; Marcos Antonio Ferreira do Nascimento
Daniel de Souza Campos; Ludmila Fontenele Cavalcanti; Marcos Antonio Ferreira do Nascimento
Homens e Proteção Social: desafios para a Política Nacional de Assistência Social
O Social em Questão, vol. 21, núm. 43, pp. 239-256, 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: Este ensaio visa apresentar reflexões sobre os homens na política de proteção social brasileira. Tomando a Política Nacional de Assistência Social como ponto de partida, construímos um diálogo entre os estudos sobre relações de gênero, masculinidades e proteção social. Reconhecemos o papel e importância, historicamente construídos, das mulheres na gestão das famílias. Contudo, pensar os homens como sujeito da/na política de proteção social constitui um desafio, sendo estratégico enfrentar a sua (in)visibilidade no acesso aos programas da assistência social.

Palavras-chave:HomensHomens,MasculinidadesMasculinidades,GêneroGênero,Proteção SocialProteção Social,Bolsa FamíliaBolsa Família.

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Artigos

Homens e Proteção Social: desafios para a Política Nacional de Assistência Social

Daniel de Souza Campos
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/ESS), Brasil
Ludmila Fontenele Cavalcanti
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/ESS), Brasil
Marcos Antonio Ferreira do Nascimento
Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), Brasil
O Social em Questão, vol. 21, núm. 43, pp. 239-256, 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Homens e Proteção Social: desafios para a Política Nacional de Assistência Social

Daniel de Souza Campos1

Ludmila Fontenele Cavalcanti2

Marcos Antonio Ferreira do Nascimento3

Resumo

Este ensaio visa apresentar reflexões sobre os homens na política de proteção social brasileira. Tomando a Política Nacional de Assistência Social como ponto de partida, construímos um diálogo entre os estudos sobre relações de gênero, masculinidades e proteção social. Reconhecemos o papel e importância, historicamente construídos, das mulheres na gestão das famílias. Contudo, pensar os homens como sujeito da/na política de proteção social constitui um desafio, sendo estratégico enfrentar a sua (in)visibilidade no acesso aos programas da assistência social.

Palavras-chave

Homens; Masculinidades; Gênero; Proteção Social; Bolsa Família.

Men and Social Protection: challenges for the National Policy of Social Assistance

Abstract

This essay aims to present reflections on men in Brazilian social protection policy. Taking the National Policy on Social Assistance as a starting point, we built a dialogue between studies on gender relations, masculinities and social protection. We recognize the historically constructed role and importance of women in household management. However, thinking about men as a subject of social protection policy is a challenge, and it is strategic to face their (in) visibility in access to social assistance programs.

Keywords

Men; Masculinities; Gender; Social Protection; Cash Transfer Program.

Artigo recebido: agosto de 2018

Artigo aprovado: outubro de 2018

Introdução

No âmbito da assistência social, há um conjunto de programas articuladores de um expressivo contingente de atores e recursos contemplando a família. Contudo, esses programas organizam-se a partir de uma perspectiva pautada em papéis tradicionais, com um direcionamento funcional de família, incentivando a reinserção da mulher-mãe como responsável pelo cuidado e educação dos filhos e do homem-pai pelo provimento financeiro e exercício da autoridade familiar.

Essa perspectiva reifica polarizações de modelos relacionados ao masculino/feminino, público/privado, cuidadora/provedor, em consonância com convenções sociais ditas tradicionais (CARLOTO; MARIANO, 2012). Diante disso, não é surpreendente, portanto, a afirmação de que as políticas sociais reproduzem, por vezes, um papel de tutela sobre os sujeitos, estigmatizando e afirmando lugares já conhecidos nas performances de gênero para mulheres e homens. Desta forma, as desigualdades de gênero, classe e raça operam na construção da cidadania, limitando seu efetivo exercício pelas mulheres e produzindo disparidades na forma como mulheres e homens a exercem (PASSOS, 2017).

De acordo com o artigo 2º do Decreto 6.135/2007 (BRASIL, 2007), o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) é instrumento de identificação e caracterização socioeconômica das famílias brasileiras de baixa renda, a ser obrigatoriamente utilizado para seleção de beneficiários e integração de programas sociais do Governo Federal voltados ao atendimento desse público. O CadÚnico recomenda que a pessoa indicada como Responsável pela Unidade Familiar (RF) seja preferencialmente do sexo feminino. Dessa forma, segundo os dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, em 2015, 87,3% dos RF cadastrados eram mulheres. Em dezembro de 2015, 93% das famílias inscritas nos programas sociais brasileiros eram chefiadas por mulheres (MDS, 2015).

Assim, é fundamental a reflexão que tal prerrogativa, se por um lado, busca promover o exercício da cidadania por mulheres em situação de vulnerabilidade, por outro, tende a reforçar o papel feminino tradicional de cuidadora da família, tendo sob sua responsabilidade as seguintes tarefas, dentre outras: a) realização de CadÚnico para inclusão da família no programa; b) atualização do referido cadastro sempre que ocorrer alguma modificação na situação familiar; c) recebimento do recurso repassado pelo programa; d) aplicação do recurso de modo a beneficiar coletivamente o arranjo familiar; e) cuidado das crianças e adolescentes tendo em vista o cumprimento das condicionalidades do programa; e f) participação em reuniões e demais atividades programadas pela equipe de profissionais responsáveis pela execução e acompanhamento do programa.

Não é por casualidade que o grupo que tem menor percentual de RF femininos (apenas 11,6%) são as famílias compostas por pessoas em situação de rua, pois esse é um grupo majoritariamente masculino e com famílias unipessoais. Também é significativo o número de homens como RF entre as famílias acampadas, chegando a 40,1% do total (BRASIL, 2016). Dito de outro modo, os homens em situação de vulnerabilidade social e reconhecidos como sujeitos de direitos para a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) são aqueles que ocupam e transitam pelo espaço público, arena tradicionalmente atrelada aos homens e ao exercício da masculinidade (NASCIMENTO; SEGUNDO, 2011).

Dessa forma, pensar sobre o lugar dos homens nas ações da PNAS significa questionar sobre quem seria o sujeito alvo da assistência, já que a Política, ao designar os sujeitos que necessitam de atenção, demarca quem são aqueles reconhecidos como vulneráveis e que serão considerados prioritários para os serviços e benefícios.

Se por um lado, não se pode deixar de reconhecer as diversas situações de vulnerabilidade a que as mulheres estão expostas, como mostram os dados de inúmeros estudos (ALVES; CORRÊA, 2009; PINTO et al., 2011; ZANCAN; WASSERMANN; LIMA, 2013; MARGUTI et al., 2016), por outro, cabe perguntar o que acontece com os homens. No âmbito da proteção social, percebe-se que os homens passam a ser considerados como sujeitos com menor vulnerabilidade social, usualmente vistos como algozes no interior das relações de gênero, não sendo reconhecidos como sujeitos de direitos e com necessidade de proteção assim como as mulheres, crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência (DETONI; NARDI, 2012).

Assim, este texto busca problematizar o lugar dos homens na política de proteção social brasileira, a partir dos seguintes eixos: relações de gênero, masculinidades e proteção social. Destaca-se a reflexão sobre o acesso dos homens ao Programa Bolsa Família (PBF), visto que o seu foco reside na díade mãe-filhos e no não reconhecimento dos homens como possíveis sujeitos de direitos.

Isso leva, necessariamente, a reconhecer as tensões e conflitos presentes no debate teórico-metodológico produzido pelo Serviço Social contemporâneo a respeito do enfoque puramente instrumental do papel das mulheres e do lugar de destaque da família como foco privilegiado e um dos principais pilares de sustentação nas políticas compensatórias de combate à pobreza (GASPAROTTO; GROSSI, 2017).

Nessa direção, a perspectiva relacional de gênero auxilia a compreender a produção e manutenção das hierarquias e assimetrias sociais que afetam mulheres e homens, com destaque para o lugar das mulheres na organização social, levando em consideração ainda as expectativas sociais sobre ambos e os marcadores sociais da diferença (COSTA, 2002).

Homens e Masculinidades: um breve panorama

A masculinidade se relaciona a um conjunto de atributos, valores e condutas que estruturam o significado de ser homem, variando ao longo do tempo, das classes, dos segmentos sociais, contextos sociais, culturais, políticos e econômicos (CONNELL, 1987; 1995; OLIVEIRA, 2004; GOMES, 2008).

A concepção de Raewyn Connell (1987; 1995), socióloga australiana, sobre masculinidade hegemônica – ancorada no conceito de hegemonia de Gramsci – é uma importante referência nos estudos sobre masculinidade. Segundo a autora, a masculinidade hegemônica é definida com base na configuração de práticas generificadas que expressam padrões de comportamento esperados, de acordo com convenções e expectativas sociais vigentes, em dado contexto cultural, para que sejam asseguradas a posição dominante dos homens e a subordinada das mulheres.

Este conceito não se refere necessariamente a pessoas reconhecidamente “mais poderosas”, mas a uma configuração de masculinidade tida como exemplar, expressando ideais, fantasias e desejos que fornecem modelos de relações com as mulheres e com os outros homens. Contudo, não se trata de um modelo fixo e permanente ao longo da história. Como aspecto de uma estrutura social mais ampla, a masculinidade hegemônica não pode ser compreendida isolada de outros marcadores da diferença como classe, cor/raça, idade, orientação sexual, entre outros.

Dessa maneira, mais recentemente, a perspectiva da interseccionalidade tem sido acionada com o objetivo de analisar as distintas formas de diferenciações sociais e desigualdades a partir da coexistência de marcadores da diferença que favorecem a opressão, a discriminação e a exclusão social de mulheres e homens (CRENSHAW, 2001).

Ainda segundo Connell (1995), a masculinidade hegemônica remete a uma posição de distinção cultural e social para os homens, mas não necessariamente universal, uma vez que outras formas de ser homem são produzidas em função desse modelo. Dessa maneira, homens pobres, negros ou homossexuais, em consonância com a dimensão de gênero, ocupam posições sociais subalternas e, portanto, distantes do ideal do modelo de masculinidade hegemônica de homens de classe média, brancos e, sobretudo, heterossexuais.

Modelos de masculinidade que valorizam demonstrações de coragem e de força, a ocupação do espaço público, distante da cultura do cuidado, incluindo o cuidado de si (FOUCAULT, 2006), tendem a fazer com que os homens se exponham mais a riscos, comprometendo sua saúde e a dos demais. Homens atrelados a esses modelos tendem a buscar menos os cuidados em saúde e tem pouca participação na esfera reprodutiva. Além disso, são os principais autores e vítimas de atos violentos, fazendo com que, juntamente com os acidentes de trânsito, sejam as principais causas de mortalidade masculina (GOMES, 2016).

Ao resgatar a trajetória do gênero como ferramenta analítica das relações sociais, nota-se que este conceito se apoia nos posicionamentos críticos referentes ao lugar das mulheres na sociedade (SCOTT, 1990; HEILBORN; SORJ, 1999). O debate sobre gênero não somente dá significado às diferenças entre os sexos e as relações desiguais de poder decorrentes, mas igualmente ilumina as dinâmicas sociais presentes no processo de socialização de meninos e meninas, mostrando que a aquisição da compreensão sobre o que significa ser homem ou ser mulher é socialmente construída e que a atuação da família, da comunidade, da escola, da religião, entre outras instituições sociais, é fundamental.

Portanto, esses construtos ao longo da vida social vão produzir subjetividades, orientar o exercício da sexualidade, o manejo dos afetos, a opção do vestuário mais adequado, a escolha profissional e a divisão sexual do trabalho. Homens e mulheres vão paulatinamente construindo a sua identidade social e produzindo maneiras pelas quais vão se apresentar socialmente, tanto na esfera privada, quanto pública (SCOTT, 1990; GOMES, 2008).

Trabalhar com a perspectiva de gênero possibilita ainda que se considerem as condições que caracterizam as construções sociais acerca dos sexos, se configurando como uma forma mais abrangente e crítica de abordar as relações entre homens e mulheres, entre homens e entre mulheres (GOMES, 2008).

Tomando como exemplo a relação dos homens com o campo da saúde, as discussões acerca das relações entre masculinidades e os serviços de saúde têm mostrado que por muito tempo os serviços de atenção básica focaram sua atuação nas mães e nas crianças e, somente a partir da crítica dos movimentos de mulheres, a saúde feminina começou a ser encarada de maneira integral, não se resumindo à saúde reprodutiva e no cuidado com os outros. O Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), de 1993, institucionalizou essa perspectiva mais global que abrange todas as fases do ciclo vital feminino (COUTO; GOMES, 2012).

Já no que diz respeito aos homens, somente em 2009, o Ministério da Saúde lançou uma política específica para esse segmento social – a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH). A resistência dos homens a buscar os serviços de saúde, principalmente os serviços da atenção básica, pode ser compreendida a partir das noções tradicionais de que as mulheres são mais frágeis, de que a saúde da mulher é mais complicada, de que o cuidado é uma tarefa feminina, de invulnerabilidade masculina ao adoecimento e de superioridade da força física masculina em relação às mulheres (SCHRAIBER et al., 2010). Essas noções tradicionais engendraram a histórica priorização das mulheres e crianças pelos serviços de saúde (MOURA et al., 2014). À luz da PNAISH, questiona-se quais são as estratégias desenvolvidas no âmbito da proteção social básica e especial da PNAS que não reforcem a ideia do cuidado como um atributo feminino e tarefa das mulheres e do homem como um sujeito invulnerável.

Compreender o envolvimento dos homens nas ações da PNAS a partir da perspectiva relacional de gênero significa, dentre outros aspectos, analisar essa temática nas relações estruturadas e estruturantes estabelecidas entre homens e mulheres, que ancoram tanto a definição/exercício de papéis sociais como a construção/reconstrução de identidades (MOREIRA; GOMES; RIBEIRO, 2016). Nesse sentido, os e as profissionais da assistência social desempenham (ou podem desempenhar) um papel estratégico na conquista da presença masculina nos serviços e programas, no apoio às decisões relativas às suas vulnerabilidades e de quem com eles convive.

Homens, masculinidades e a proteção social: uma inserção possível?

Com a Constituição Federal de 1988, a assistência social ganha status de política pública de Estado, destinada aos que dela necessitarem (art. 203 e 204). Em 1993, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) regulamenta os artigos constitucionais, mas diante do recrudescimento neoliberal as mudanças receberam adensamento apenas nos anos 2000 com a organização da assistência social sob a forma de Sistema Único (SUAS).

Com a instituição do SUAS, várias alterações foram introduzidas na Política de Assistência Social, dentre elas, a sua organização em diferentes níveis de proteção social, conforme definido no Art. 6º- A da Lei Nº 8.742/1993, com alterações introduzidas pela Lei Nº 12.435/2011 (BRASIL, 2011).

A proteção social básica tem por objetivo prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários e, nesse sentido, destina-se à população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza e privação e/ou fragilização de vínculos afetivos relacionais e de pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiência, dentre outras). A característica principal dos serviços da proteção social básica é o de se destinar a sujeitos cujos vínculos familiares/afetivos e sociais-comunitários não estejam rompidos. Logo, a proteção social básica associa-se diretamente à prevenção (BRASIL, 2004). São nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) que estes serviços são operacionalizados.

Já a proteção social especial se subdivide em média complexidade e alta complexidade. Esta é operacionalizada nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS). Na média complexidade são atendidas famílias e indivíduos com seus direitos violados, mas cujos vínculos familiares e comunitários não foram rompidos. Estão inseridos neste nível de proteção os seguintes serviços: serviços de orientação e apoio sociofamiliar, plantão social, abordagem de rua, cuidados no domicílio, serviço de habilitação e reabilitação na comunidade das pessoas com deficiência, medidas socioeducativas em meio aberto (Prestação de Serviços a Comunidade e Liberdade Assistida). Por sua vez, a alta complexidade busca garantir serviços de proteção social integral (moradia; alimentação; higienização e trabalho protegido) para famílias e indivíduos que se encontram sem referência ou em situação de ameaça, necessitando serem retirados do seu núcleo familiar ou comunitário por terem tido os seus direitos violados e os vínculos familiares e comunitários rompidos. Os serviços pertinentes a esta proteção são Atendimento Integral Institucional, Casa Lar, República, Casa de Passagem, Albergue, Família Substituta, Família Acolhedora, Medidas Socioeducativas Restritivas e Privativas de Liberdade (semiliberdade, internação provisória e sentenciada), Trabalho Protegido.

Ao preconizar a família como núcleo central na operacionalização da PNAS, atribui-se à mulher-mãe a responsabilidade tradicional do cuidado e do cumprimento dos critérios dos programas sociais existentes. E pouco tem sido feito para superar o esvaziamento da presença masculina nos serviços da rede socioassistencial, a exemplo do PBF.

No contexto da América Latina, com enfoque no debate sobre gênero, pobreza e desenvolvimento, observa-se, desde o início dos anos 90 do século passado, uma proliferação de políticas de transferência de renda, erigida em cenário que prioriza a mulher como titular de benefício para o enfrentamento da pobreza.

No caso específico do Brasil, o PBF teve início em 2003, no primeiro governo Lula, e incorporou algumas políticas de transferência de renda já existentes no governo Fernando Henrique Cardoso, que tinham, no entanto, baixa cobertura. Em pouco tempo tornou-se o maior programa de combate à pobreza no Brasil e um dos maiores do mundo; até agosto de 2018 atendia 14 milhões de famílias.

Em seu plano, o PBF apresenta basicamente dois objetivos: o alívio imediato da pobreza, por meio da transferência direta de renda condicionada para famílias pobres, priorizando as mulheres como responsáveis pelo benefício; e o exercício de direitos sociais básicos relacionados à saúde e à educação, com a finalidade de romper com o ciclo intergeracional de reprodução da pobreza.

Embora o PBF não se configure como uma política de afirmação racial, segundo os dados de MDS, em 2013, 73% dos beneficiários cadastrados eram pretos e pardos. Em dezembro de 2014, 93% de todas as famílias inscritas nos programas sociais brasileiros eram chefiadas por mulheres, e entre estas, 68% eram lideradas por mulheres negras.

A presença mais notável de mulheres negras entre as pessoas pobres é reflexo de um processo histórico de (re)produção de desigualdades sociais, cujos eixos estruturantes são os marcadores de gênero e raça/etnia que orientam a construção da cidadania e a efetivação de direitos. Portanto, sexo e cor são também definidores das desigualdades econômicas e sociais.

No município do Rio de Janeiro, segundo informações do MDS (MDS, 2018), o PBF beneficiou, no mês de julho de 2018, 247.037 famílias, representando uma cobertura de 84,2 % da estimativa de famílias pobres no município. As famílias receberam benefícios com valor médio de R$ 170,88. É interessante assinalar que, para além do número de famílias e grupos tradicionais e específicos presentes no CadÚnico, observa-se que o MDS não disponibiliza informações sobre o número de homens como RF.

O silêncio sobre esses homens que se encontram em situação de vulnerabilidade social pode reforçar traços impostos pelo padrão cultural hegemônico que demarcam concepções referentes à masculinidade (os homens não são confiáveis, não se responsabilizam pelo cuidado com a família e não sabem gerenciar o recurso oferecido pelo programa em prol da satisfação familiar). Em outras palavras, é imprescindível reconhecer a dimensão relacional do gênero que possibilita desconstruir, principalmente, argumentos culpabilizantes sobre o masculino que demarcam o discurso de parte das discussões em torno das relações de gênero e que ainda se faz presente, direta ou indiretamente, nas produções acadêmicas (PORTELLA; MEDRADO; MELO; SOUZA, 2004).

No estudo de Carloto e Mariano (2012) foram analisadas as percepções das beneficiárias do PBF sobre o porquê elas são eleitas responsáveis pelo recebimento do benefício. As autoras constataram que para a maioria das entrevistadas, em comparação com os homens, as mulheres eram percebidas como mais responsáveis e administravam melhor o recurso. Esse tipo de posicionamento dá margem a duas perspectivas de análise: se por um lado, há uma priorização feminina para o recebimento do benefício, sobretudo porque atribui às mulheres o cumprimento das responsabilidades ligadas à função do cuidar; por outro lado, há uma reificação da noção do homem como irresponsável e uma desqualificação dos homens como sujeitos cuidadores.

A noção da irresponsabilidade masculina frente à reprodução, ao cuidado com os filhos e filhas, ao cuidado com a família e com o trabalho doméstico têm sido objeto de análise por diferentes estudos como os de Arilha (1998), Barker e Aguayo (2012), Ávila e Ferreira (2014).

Nesse sentido, sem recorrer a um discurso vitimário que, como aponta Oliveira (2004), coloca os homens na posição de “vítimas” do próprio machismo e de sua condição histórica de gênero, na qualidade de homem provedor e do espaço público, é necessário repensar a participação masculina na esfera do cuidado, por meio de práticas, símbolos e instituições, como apontam Medrado e Lyra (2008). Conforme Passos (2017), as políticas públicas têm fundamental importância na promoção das mudanças culturais em prol da equidade e igualdade de gênero.

De acordo com a Portaria GM/MDS Nº 251, de 12 de dezembro de 2012, as condicionalidades do PBF:

Visam a ampliar o acesso das famílias às políticas de saúde, educação e assistência social, promovendo a melhoria das condições de vida da população beneficiária, assim como a fortalecer a capacidade de o Poder Público oferecer tais serviços. (BRASIL, 2012, p.01).

Vale mencionar que o manual de orientação sobre o PBF na saúde, no que se refere às condicionalidades, explica que as gestantes devem fazer a inscrição do pré-natal e comparecer às consultas; as mães ou responsável pelas crianças menores de 7 anos devem levar a criança à unidade de saúde para realização do acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento; participar de atividades educativas sobre o aleitamento materno e cuidados gerais com a alimentação e saúde da criança e, cumprir o calendário de vacinação da criança, de acordo com o preconizado pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2010).

Em relação à contrapartida educacional, deve ser feita a matrícula de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos na escola e deve-se garantir a frequência escolar de pelo menos 85% do ano letivo para crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos. Para os jovens entre 16 e 17 anos, exige-se a frequência às aulas de no mínimo 75% do ano letivo.

Entende-se que se faz necessário compreender as condicionalidades da assistência pré-natal e de saúde das crianças como um possível espaço para que os homens não só apoiem as suas companheiras na gravidez e parto, mas também cuidem de sua saúde e vivenciem a espera de um filho. Entretanto, o documento não indica ações que envolvam os homens na promoção dessa assistência.

Vale destacar o estudo realizado por Marins (2017), em Itaboraí, município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, em que a autora apresenta duas possíveis explicações sobre por que os homens tendem a se afastar da gestão do recurso do PBF. Por um lado, eles acreditam que seria uma humilhação receber um dinheiro que não foi por eles solicitado; reconhecê-lo ou gerenciá-lo poderia ser compreendido como a constatação simbólica de seu fracasso como provedor financeiro, incapaz de sustentar sua família. Por outro lado, parece que o recurso tem uma perspectiva “materno sagrado” (MARINS, 2017, p.208), que afasta qualquer possibilidade de gestão compartilhada. Logo, para os homens, o recurso é percebido como intocável, pois cabe à mulher participar das condicionalidades referentes à educação e à saúde das crianças e dos adolescentes inseridos no programa.

Nessa mesma perspectiva, o relatório do Observatório da Igualdade de Gênero da América Latina e Caribe enfatiza que os programas de transferência de renda condicionada, ao indicarem a mulheres como principais responsáveis, acabam por reificar o tradicional papel social da mulher como cuidadora. Embora o relatório reconheça que não é o objetivo desses programas modificar os papéis tradicionais de gênero, propõe que os programas não devam reforçá-los, mas sim contribuir para a corresponsabilização do cuidado entre homens e mulheres (CEPAL, 2013).

O estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE, 2008), com os beneficiários do PBF do País, constatou que os homens possuem escolaridade menor do que as mulheres. Entres os homens titulares do PBF 30,2% não sabiam ler ou escrever, enquanto 17,7% das mulheres titulares eram analfabetas. A pesquisa apontou que os homens tinham mais inserção no mercado de trabalho (77,4%) do que as mulheres (41,4%). No entanto, nos domicílios em que o homem era o titular 33,9% apresentaram renda per capita inferior a R$ 60,00 reais, enquanto 28,9% as titulares eram mulheres. Assim, a pesquisa concluiu que: “os titulares do PBF do sexo masculino são tão ou mais vulneráveis que as mulheres titulares, ao menos no que diz respeito à renda e a escolaridade” (IBASE, 2008, p. 137).

Os dados reunidos pelas pesquisas ilustram de forma significativa questões que tangenciam relações entre homens, masculinidades e a titularidade do PBF. Tais dados podem servir de material empírico para discutir a inviabilidade dos homens no PBF a partir de uma perspectiva de gênero. Entretanto, para que seja possível travar esse debate, é preciso, entre outras coisas, avançar nos estudos sobre especificidades da vulnerabilidade social masculina no acesso à renda, ao trabalho, à educação, à saúde.

Conclusão

Os questionamentos aqui levantados são pontos de partida para alavancar o debate sobre homens e masculinidades na PNAS e, em particular, no PBF. Essa reflexão vem ao encontro da discussão que envolve o entrelaçamento das categorias homens, masculinidades e ações dos serviços socioassistenciais.

Nessa direção, falar sobre a invisibilidade dos homens no PBF pode ser vista como uma volta à hegemonia do masculino sobre o feminino, configurando-se como movimento antifeminista. Entretanto, propõe-se que sejam abordadas as especificidades da masculinidade no PBF para que, junto com as mulheres, se construa uma concepção abrangente, voltada para a promoção da visibilidade masculina a partir de uma perspectiva relacional de gênero.

De igual maneira, perceber os homens como sujeitos de direitos, e não somente como sujeitos de privilégios (de gênero), não implica o desconhecimento e a negação das assimetrias entre homens e mulheres no contexto social atual, mas apostar na pluralidade das masculinidades, na promoção da equidade e igualdade de gênero e na direção de um mundo mais justo e democrático.

Para trazer à tona esse debate, é indispensável colocar na ordem do dia a análise crítica da PNAS e do PBF, em volta do qual se articulam os significados sociais da masculinidade e da feminilidade que influenciam diretamente quem serão os sujeitos atendidos pelas ações socioassistenciais.

Material suplementar
Referências
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