Resumo: O presente estudo tem como objetivo apresentar uma análise das famílias do DEGASE, com uma breve abordagem do cenário institucional. Traz o recorte teórico adotado na pesquisa desenvolvida no ano de 2017, referente ao Movimento de Mães que se organizaram ao longo das duas últimas décadas, a partir da dor, do sofrimento de terem seus filhos acusados de autores de atos infracionais e que enfrentam a dura realidade das instituições fechadas. Famílias que fazem parte de uma parcela da população que vivencia a desigualdade econômica e social, possuindo gênero, raça, cor e com um acesso restrito às políticas públicas.
Palavras-chave:Movimento de MãesMovimento de Mães,FamíliasFamílias,SocioeducativoSocioeducativo.
Artigos
O Movimento de Mães do DEGASE – luta e dor
O Movimento de Mães do DEGASE – luta e dor
Ida Cristina Rebello Motta1
Resumo
O presente estudo tem como objetivo apresentar uma análise das famílias do DEGASE, com uma breve abordagem do cenário institucional. Traz o recorte teórico adotado na pesquisa desenvolvida no ano de 2017, referente ao Movimento de Mães que se organizaram ao longo das duas últimas décadas, a partir da dor, do sofrimento de terem seus filhos acusados de autores de atos infracionais e que enfrentam a dura realidade das instituições fechadas. Famílias que fazem parte de uma parcela da população que vivencia a desigualdade econômica e social, possuindo gênero, raça, cor e com um acesso restrito às políticas públicas.
Palavras-chave
Movimento de Mães; Famílias; Socioeducativo.
The Mothers Movement of DEGASE - struggle and pain
Abstract
The present study aims to present an analysis of the families of DEGASE, with a brief approach to the institutional setting. It brings the theoretical cut adopted in the research developed in the year 2017, referring to the Mothers Movement that have organized over the last two decades, from the pain, the suffering of having their children accused of authors of infractions and facing the tough reality of closed institutions. Families that are part of a portion of the population that experiences economic and social inequality, possessing gender, race, color and have restricted access to public policies.
Keywords
Mothers Movement; Families; Socioeducational.
Artigo recebido: agosto de 2018
Artigo aprovado: outubro de 2018
Introdução
A organização das mães dos adolescentes do sistema socioeducativo do estado do Rio de Janeiro iniciou-se nos fins da década de 1990 e início dos anos de 2000, na busca por atendimento digno e baseado nos princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A questão que impulsionava a organização dessas mulheres centrava-se nas condições de maus tratos, pelas quais seus filhos constantemente eram submetidos nas unidades de privação de liberdade dentro do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE) do estado do Rio de Janeiro (LIRA, 2004).
Esse contexto propiciou um processo de organização das famílias – em sua grande maioria mães – surgindo ao longo dos anos 2000 a Associação de Mães com Filhos em Conflito com a Lei (AMÃES), o Movimento de Mães pela Garantia dos Direitos dos Adolescentes no Sistema Socioeducativo (Movimento Moleque), posteriormente, a implantação no Rio de Janeiro, da Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco (AMAR-RJ).
Desta forma, o cenário do presente artigo tem como pano de fundo a história institucional do DEGASE, do qual estaremos fazendo uma breve abordagem. Trata-se de uma instituição jovem, porém tendo como legado os estigmas oriundos da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e Fundação Centro Brasileiro para Infância e Adolescência (FCBIA). Instituição essa que a partir de 2007 foi intitulada de Novo Degase, com o intuito de romper com a lógica de ser reconhecida como um lugar carregado de estigmas e de histórias de vida marcadas por violência. Devendo deixar no passado a sua origem: a herança das concepções com base na Doutrina da Situação Irregular, preconizada pelo Código de Menores, com um histórico de ações coercitivas e violentas, numa linha correcional e punitiva. Apontando um novo caminhar institucional, baseado em diretrizes da socioeducação, em uma perspectiva sociopedagógica, dentro da Doutrina de Proteção Integral, demandando novas metodologias, novos paradigmas e equipes qualificadas com esse perfil diferenciado.
A base para o presente estudo foi a pesquisa desenvolvida ao longo do ano de 2017 sobre o movimento de organização das mães dos adolescentes a quem se atribui autoria de ato infracional no estado do Rio de Janeiro, onde entrevistamos as lideranças desses movimentos, além do vasto levantamento bibliográfico e documental pertinente a área socioeducativa, sendo identificados dados que subsidiaram a pesquisa em tela.
Este artigo objetiva apresentar o recorte teórico adotado na referida pesquisa que propiciou a análise das famílias do DEGASE, enquanto sujeitos sociais que estabelecem suas próprias identidades e ocupam espaços na sociedade, com um histórico de construção de lutas e conquistas, caracterizando um movimento organizado. Famílias maciçamente chefiadas por mulheres, negras e com suas trajetórias de lutas.
Do outro lado da mesa, a instituição
Teria atualmente o Novo Degase uma prática voltada para a socioeducação? Em que bases foram moldadas as novas diretrizes estabelecidas para essa instituição? Que tipo de prática socioeducativa vem sendo desenvolvida em suas unidades? Poderíamos afirmar que é uma instituição onde ainda se depara com uma prática pautada no viés do castigo, na linha correcional, no atendimento de massa, longe da garantia dos direitos humanos? Com ações incipientes de socioeducação? Um lugar institucional onde, ainda, não é desenvolvido um trabalho sistemático com as famílias – mães – dos “adolescentes a quem se atribui autoria de ato infracional”, passados vinte e cinco anos da criação desse espaço?
Iniciamos algumas dessas abordagens contando um pouco da história institucional, a partir do olhar do Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE, pois assim essas mães se identificam e se denominam.
Tivemos inúmeros desafios e dentre eles, um foi o exercício de desvelar esta instituição – DEGASE –, como pesquisadora, a partir do lugar desse movimento de mães, como bem salientou Dias (2007). Portanto, trazemos os relatos colhidos na pesquisa desenvolvida com as lideranças desse Movimento de Mães como forma de demarcar o cenário institucional visto de outro ângulo, do outro lado da mesa:
E uma das coisas que para as mães é importante, é ela saber que não é só ela que está passando por isso. Não é só uma mãe, porque outras já passaram, sobreviveram, então se ela está passando até hoje, [...], eu não sei porque a gente tem que passar por essas coisas. Se eu fosse olhar para mim [...] eu sempre pedi a Deus para isso nunca acontecer comigo, mas aconteceu e aconteceu em dose tripla. Três vezes aconteceu a mesma coisa e eu fico sempre perguntando porque essas coisas acontecem, o porquê. Só que no meio de tudo isso eu olho para mim e vejo que eu ainda estou viva, estou viva, estou bem, não estou mal, tão mal assim a ponto de ter ficado assim dependente de um remédio, minha pressão está bem, não tenho diabetes, não tenho doença nenhuma, então eu passei por isso e eu sobrevivi. Às vezes eu acho até que é um milagre, mas eu sobrevivi, eu estou aqui, então se eu sobrevivi, o que é que eu vou dizer para ela? “Você também pode sobreviver”. (GLÓRIA)3.
Que instituição é essa que marca tão significantemente a vida das pessoas? Como descrever esse lugar? Quem nunca ouviu falar do Instituto Padre Severino?
Poucos cidadãos conhecem o DEGASE, mas muitos o associam ao antigo Instituto Padre Severino. Lugar temido por muitos e completamente ignorado por outros. Por vezes, lembrado quando vivenciamos situações de comoção pública, envolvendo assassinatos brutais com adolescentes ou com incidentes bárbaros atingindo números expressivos desses jovens.
Quando em 2007 o DEGASE torna-se o “Novo Degase” (assim intitulado até os tempos atuais), se apresenta com a proposta de romper com essa lógica. Dessa forma, abarca novas produções conceituais que são elaboradas: a construção do Plano de Atendimento Socioeducativo do Rio de Janeiro (PASE); o Projeto Pedagógico Institucional do Novo Degase (PPI); os Projetos Políticos Pedagógicos de todas as unidades – os novos Centros de Socioeducação. Caracteriza-se, nesse período, um direcionamento sociopolítico ao sistema socioeducativo; uma era de avanços nas referências teóricas, trabalhando novos conceitos pertinentes à socioeducação.
Esse “avançar” estará respaldado no contexto nacional, como no documento da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, baseado na matéria4 do prof. Antônio Carlos Gomes da Costa, um dos expoentes da socioeducação no País, como também, na aprovação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), em 2006.
Assim, dentro dessa linha, são elaborados em 2013 os “Cadernos de Referência de Atuação das Categorias no âmbito do Novo Degase” – Assistente Social, Psicólogo, Pedagogo e Agentes socioeducativos, através de Grupos de Trabalhos das respectivas categorias; alicerçado pelos projetos de intervenção profissional, no caso, do Assistente Social. Também é produzido por um Grupo de Trabalho de profissionais, o Programa de Atenção às Famílias do DEGASE, que foi concluído em 2016.
Propostas que teriam como meta o processo da construção de um novo “fazer” profissional, deixando para trás o “viés da punição” num cenário de espaços precarizados, superlotados e totalmente sucateados, passando para uma prática pautada numa visão crítica/reflexiva, de co-responsabilização, na construção de um sujeito de direitos.
Após vinte e cinco anos nos deparamos com uma instituição que ainda vive o seu grande desafio: como colocar em prática uma nova proposta metodológica, com base nos preceitos da socioeducação, delineando uma política pública de atendimento aos adolescentes autores de atos infracionais? Como fazer parte de um Sistema de Garantia de Direitos com práticas coercitivas? De que forma desenvolver uma prática socioeducativa quando atendemos maciçamente?
As indagações são inúmeras, pois estamos falando de uma instituição que ainda não conseguiu avançar além do papel, que apresenta iniciativas pontuais de práticas dentro da socioeducação e que precisa responder a uma demanda de atendimento onde a superlotação é a sua realidade; uma instituição que precisa romper com estigmas, através de ações que sejam humanizadas e efetivamente com base nos direitos humanos e sociais.
Uma instituição onde o confinamento é a palavra de ordem, com iniciativas incipientes de ações socioeducativas. O confinamento tira das pessoas o seu poder de autonomia, de ser responsável por seus atos do dia-a-dia, do cotidiano (ZAFFARONI, 1990). Assim, os adolescentes institucionalizados e, consequentemente, confinados por um longo período não estabelecem por eles mesmos suas rotinas, interferindo no desenvolvimento desses sujeitos de direitos.
O Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE – do outro lado da mesa – continua em prol de condições dignas dentro das unidades, onde o convívio familiar e comunitário deveriam ser a tônica, considerando a socioeducação, como diretriz dos marcos legais da Política Socioeducativa.
Mães, Mulheres, Famílias e suas organizações
O som das palavras de Marias, Antônias, Joanas, Clarices e muitas outras ecoa como se tivesse acabado de ser pronunciado. Passaram-se muitos anos e ainda é muito nítido! Cada uma de sua forma, ecoando um som de busca de novos caminhos de ajuda; um som de luta, de acesso a direitos, de garantia de vida!
Mulheres que se perguntam “onde foi que errei?”, “o que faltou na educação de meu filho, para que cometesse um ato infracional?”, apontando inflexões sobre o lugar dessas mulheres na família, na sociedade e nas relações sociais.
As abordagens aqui explicitadas tomaram por base o entendimento que estamos falando de mães, mulheres, enquanto sujeitos sociais, do processo de construção de suas identidades dentro de uma família, de uma sociedade, culturalmente emanada por significados onde a maternidade se apresenta como um grande elo dessa “rede de significados” (GEERTZ, 1989).
Podemos hipoteticamente dizer que essas mulheres apresentam algo em comum: fortalecer o direito de exercerem a maternidade junto aos seus filhos que estão privados de liberdade, lutando por atendimento socioeducativo que deve estar pautado na convivência familiar e comunitária. É identificar a maternidade como um elo na “rede de significados”, apontado por Geertz (1989). Sua percepção é de que a cultura é uma “rede significados”, um conjunto de valores e crenças que sistematicamente estão sendo modificadas pelas pessoas que fazem parte de uma determinada sociedade. Analisando a inserção das mulheres na sociedade, devemos levar em consideração o aspecto cultural, a “teia de significados” que foi tecida por essas mulheres nos diferentes tempos.
Verificamos isso na história das mulheres do ocidente ao longo do século XIX, quando nos deparamos com um movimento de apropriação por parte dessas mulheres dos espaços públicos, na busca de um lugar na sociedade, de uma posição política, buscando um “tecer de significados”, de uma nova cultura, na construção de uma consciência de gênero (PERROT, 1999).
O Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE exemplifica o que Perrot (1999) aponta em seu estudo sobre a história dessas mulheres do ocidente: apresentando um histórico de construção de lutas, marcadas por episódios de perdas nos diferentes contextos, culminando em formas de organização como as instituições AMÃES, Movimento Moleque e AMAR-RJ e, demais formas com as quais vêm se fortalecendo, como sujeitos sociais, constituindo-se como grupo a partir de suas identidades.
Sujeitos sociais que no mundo pós-moderno apresentam não uma identidade fixa, mas uma variedade de identidades, indo para além das apontadas enquanto classe social, de acordo com Hall (2006). O autor destaca a importância do movimento feminista, trazendo para o campo político e público temas próprios da esfera privada, como a família, o trabalho doméstico e a sexualidade.
Estamos falando de sujeitos sociais que apresentam uma história de luta para garantia do exercício da maternidade, do seu espaço na família e na sociedade, buscando novas formas de relações sociais, com alicerces nos direitos humanos e sociais.
Falamos de mulheres, mães que encontraram uma nova forma de exercer a maternidade (FREITAS et al., 2009) indo para as ruas, para a vida pública, através da luta e dos seus movimentos de grupos, transformando suas angústias, tristezas e incertezas – suas dores – em plataformas de organização.
O Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE retrata o que Freitas (2000) denominou “Mães em Luta”, onde a figura materna se destaca como o ator principal das lutas políticas, caracterizando a politização da maternidade. Desta forma, podemos enumerar alguns movimentos sociais mais recentes onde as mulheres estiveram à frente do processo de organização dos grupos, tendo com o grande elo, a maternidade: as Mães de Acari, as Mães da Cinelândia, as Mães de Crianças Desaparecidas de São Paulo5, as Mães contra a violência6, e ainda, as próprias “Mães do DEGASE” (assim intitulada pela autora) – através da AMÃES, do Movimento Moleque e da AMAR-RJ.
Essas mães iniciaram suas histórias de luta há cerca de dezoito anos atrás, em prol de melhores condições no atendimento socioeducativo de seus filhos que se encontravam privados de liberdade; fato esse que motivou a organização das mães enquanto grupo, denunciando as situações de maus-tratos e buscando o direito desses adolescentes na garantia da convivência comunitária e familiar, assegurado pelo ECA.
Mulheres que criam como estratégia uma rede protetiva, como possibilidade de encarar as atividades próprias da vida moderna, onde assumiram os diferentes papéis que lhes foram impostos. Mulheres que “saíram” à luta (PERROT, 1999). Que se organizaram através de entidades, na busca de garantir condições mais dignas no atendimento socioeducativo, na busca de seus direitos enquanto mães, mulheres responsáveis por suas famílias.
Mas, o que entendemos por Famílias? Como caracterizar a constituição de uma Família? Porque nos expressamos de uma forma plural: “Famílias”? Para se constituir uma Família é necessário que os membros tenham laços consanguíneos?
Conforme já evidenciado anteriormente, a entrada da mulher em cena pública consolida novas bases nas relações sociais, a partir de sua inserção nas transformações do mundo do trabalho, abalando e fragilizando o modelo de família patriarcal, propiciando aparentemente uma igualdade entre os sexos. No período da democratização no País, as mulheres são elementos fundamentais nas organizações das lutas operárias, de bairros, fortalecendo movimentos organizados em prol de saneamento básico, educação, saúde, entre outros.
Todo esse processo de “sair” das mulheres (PERROT, 1999) permitiu a passagem do mundo privado para o mundo público, implicando com que as famílias também desvelassem situações tidas como privadas, em ações no cenário público. O estabelecimento de novos papéis sociais para mulher, assim como a aproximação das relações pais e filhos, o fortalecimento da instituição “família” frente a outras instituições como a igreja e a medicina, demarcam no início do século XVIII, o surgimento da família moderna – a separação entre o mundo privado e público (ARIÉS, 1981; FREITAS et al., 2010).
Portanto, quando pensamos em falar de famílias dentro de uma realidade moderna, precisamos compreendê-la em sua complexidade e pluralidade, como sujeitos capazes de mudanças e transformações constantes e contínuas, entendendo que falamos de uma multiplicidade de tipos de famílias; por isso, nos referimos “FAMÍLIAS”, no plural “[...] significa pensá-las em suas relações tanto com a sociedade mais ampla onde se inserem quanto, também, nas formas como estas se atualizam na vida diária das pessoas que lhe dão concretude” (FREITAS et al., 2010, p. 16).
Entendemos que a família moderna e, consequentemente, as famílias que compõem o Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE apresentam uma diversidade de arranjos familiares (AFONSO; FILGUEIRAS, 1995) e, são sujeitos sociais, sendo necessário situá-los historicamente enquanto sujeitos, em um contínuo processo de transformação. Assim, quando pensamos em “famílias” é necessário relacionarmos com as diferentes realidades, para além de “vínculos de parentesco”7. Por isso, nos reportamos ao que entendemos por este termo, lançando mão do que Freitas et al. (2010, p. 20) definem “[...] enquanto um processo de articulação de diferentes trajetórias de vida, onde se entrecruzam as relações de classe, gênero, etnia e geração. Além do lugar de reprodução biológica – e também social e afetiva”.
São famílias que precisam ser compreendidas a partir das possíveis construções de relações familiares que possam tecer com a base no seu cotidiano e não de uma realidade “nuclearizada” (FREITAS et al., 2010). Sarti (1994, p. 52) define bem o que é família para o pobre: “[...] são da família aqueles com quem se pode contar, isto quer dizer, aqueles que se retribuem ao que se dá, àqueles, portanto, para com quem se tem obrigações”.
Por sua vez, a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social8 (BRASIL, 2005, p. 90) define o conceito de família “[...] como núcleo afetivo, vinculado por laços consanguíneos, de aliança e de afinidade, que circunscrevem obrigações recíprocas e mútuas, organizadas em torno de relações de geração e gênero”. Podemos entender que a realidade das famílias do DEGASE – mais ainda, das famílias pobres brasileiras – é da necessidade de coletivizarem o cuidado de seus filhos, caracterizando o que é denominado como “circulação de crianças”9 por Fonseca (1990; 2002).
São famílias que em sua grande maioria apresentam dificuldades econômicas, com novos rearranjos conjugais (novas uniões), contando com uma “rede protetiva” que passa pelo cuidado das crianças pela vizinhança e amigos ou pela própria circulação das crianças nas casas de parentes (FREITAS et al., 2010).
Ao nos reportarmos a história brasileira, verificamos que a família esteve sempre muito distante das intervenções estatais, cabendo a essa instituição a construção de caminhos para sua sobrevivência, sem qualquer suporte de mecanismos e serviços públicos. Para alguns autores, como Freitas et al. (2010), a família só ocupará uma posição de destaque na proteção social brasileira, a partir do Estado Novo, com ações estatais mais interventivas. O que Freitas et al. (2010, p. 29) destacam dentro desta análise é o quão foi importante, dentro da história da proteção social brasileira, as solidariedades grupais para as famílias mais pobres, como forma de sobrevivência, como também a instituição família sempre foi e ainda é foco de intervenções estatais. Fato este também evidenciado por Pereira (2006, p. 29) “[...] a instituição familiar sempre fez parte integral dos arranjos de proteção social” e ainda, “[...] os governos brasileiros sempre se beneficiaram da participação autonomizada e voluntarista da família na provisão do bem-estar de seus membros”. Mas, o que entendemos por proteção social?
Tomaremos a definição de proteção social de Carloto e Castilho (2010). As autoras colocam que:
[...] proteção social em síntese são formas de proteção institucionalizada em uma dada sociedade, que envolve bens materiais, culturais, cuidados aos membros mais fragilizados e as normativas de proteção. E como já apresentado, a família é parte integrante na garantia desta proteção social aos seus membros, dentro dos desenhos das políticas sociais e seus modelos protetivos no Brasil. (CARLOTO; CASTILHO, 2010, p. 16).
Sendo pertinente entendermos dentro dessa análise que a instituição família, elemento fundamental para as intervenções do estado, ganha maior fortalecimento com a entrada das políticas sociais baseadas em programas de transferência de renda, passando a ser o principal foco da proteção social. Como exemplo desses programas, podemos citar o Programa Bolsa Família (PBF), o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), assim como o Benefício de Prestação Continuada (BPC); todos com a família como foco de intervenção ou como referência para sua execução, como é o caso do BPC que atrela o recebimento do benefício ao cálculo da renda familiar. Entendendo-se política social como Pereira10:
Política de ação que visa, mediante esforço organizado e pactuado, atender necessidades sociais cuja resolução ultrapassa a iniciativa privada, individual e espontânea, e requer deliberada decisão coletiva regida por princípios de justiça social que, por sua vez, devem ser amparados por leis impessoais e objetivas, garantidoras de direitos. (PEREIRA, 2006, p. 172).
Pereira (2008) apresenta contribuições importantes quando sinaliza que a partir dos anos de 1990 as políticas neoliberais trazem um modelo de proteção social onde é veiculada a parceria Estado, mercado e sociedade. Neste esquema o mercado ocupa-se em proteger os que possuem empregos estáveis e com boa remuneração e o Estado “abre mão” do papel de principal provedor de bem-estar social (CARLOTO; CASTILHO, 2010).
É importante entendermos que os modelos protetivos das políticas sociais brasileiras, tendo a família como elemento de intervenção central dessas políticas, deve considerar o que evidenciamos anteriormente quanto à pluralidade e heterogeneidade das “famílias” que apresentam diferentes arranjos e rearranjos familiares, requerendo ações protetivas e estratégias que deem conta de novas demandas sociais que eclodem e causam impacto nessas famílias (SUNKEL, 2006). Portanto, pensar política social com a centralidade na família requer cuidado em relação a essas “complexidades”. De acordo com Carloto e Castilho (2010, p. 14), por parte de todos os atores responsáveis pela política social, de forma a não responsabilizar a família, em especial a mulher “[...] pelas mazelas sofridas, tendo que buscar estratégias de superação por meio da sua rede de sociabilidade e de solidariedade, reforçando a desigualdade de gênero, à medida que aumenta a sobrecarga feminina e reforça os papéis ‘historicamente’ construídos de ‘cuidadora’”. De acordo com as autoras, este modelo protetivo denominado “neoliberalismo familiarista” por De Martino (2001 apud CARLOTO; CASTILHO, 2010, p. 18) compreende que “[...] a proteção social cabe preferencialmente à família e que o Estado pode reduzir os serviços públicos enquanto proteção. [...] E à medida que delega à família em primeira instância a proteção de todos os seus membros”.
O modelo de proteção social onde o pilar central está baseado na família é denominado “modelo familista”11. De acordo com Mioto:
As políticas familiares, de caráter familista, tendem também a reforçar os papéis tradicionais de homens e mulheres na esfera doméstica e condicionar a posição de homens e mulheres no mercado de trabalho. Isso se traduz numa presença ‘secundária’ da mulher nesse mercado, quer seja pela forma (tipo de atividade, salário) como se inserem ou ainda pela dupla jornada de trabalho que as penalizam com o alto custo emocional. (MIOTO, 2008, p. 14).
Importante ressaltarmos que este modelo de proteção social denominado familista, onde cabe ao Estado à intervenção somente a partir da “falha” da família, potencializa e reforça as desigualdades de gênero, aumentando a responsabilidade da mulher na proteção de seu grupo familiar, não contando com o suporte necessário das intervenções estatais; o que caracteriza a desresponsabilização do Estado e a culpabilização das famílias.
Quem são as famílias atendidas pelo Novo Degase? Será que são famílias monoparentais? Essas mulheres que se apresentam dentro de um movimento organizado são responsáveis por suas famílias? Estamos falando de famílias em sua maioria chefiadas por mulheres? De qual recorte racial falamos? São famílias que se encontram abaixo da linha da pobreza? Nosso estudo é referente às famílias atendidas pela política de assistência social? São famílias em sua maioria residentes em favelas do estado do Rio de Janeiro?
O que você não entende você não percebe, você não sabe, né, então quando eu fui entender o que era, quando eu fui me ver enquanto uma mulher negra, que eu não me via enquanto uma mulher negra, então quando eu fui me enxergar enquanto uma mulher negra... então assim... então eu fui abrindo meus horizontes, né, e aí o que acontece... (MÔNICA CUNHA)12.
Trazemos para o presente estudo os dados de uma pesquisa denominada “Agentes da Transformação”, realizada em agosto de 2016 através da parceria do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), do Instituto Pereira Passos (IPP) e o Novo Degase (através da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire).
A pesquisa que na edição de 2016 do IPP teve por objetivo traçar o perfil dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação, isto é, com privação de liberdade. Foi aplicada em três unidades de socioeducação do Novo Degase no município do Rio de Janeiro: Educandário Santo Expedito (ESE) por amostragem, Escola João Luiz Alves (EJLA) por amostragem, e Centro de Socioeducação Professor Antônio Carlos Gomes da Costa (PACGC) na totalidade de adolescentes atendidas, sendo esta última unidade feminina e, as outras duas unidades para atendimento de meninos. “[...] Foram entrevistados, no total, 448 jovens internados: 202 no ESE, 189 na EJLA, e 57 no PACGC” (CADERNO DA JUVENTUDE CARIOCA, 2016, p. 13).
A pesquisa “Agentes da Transformação” trouxe dados fundamentais que nos permitiram algumas análises sobre as famílias que são atendidas no Novo Degase.
No caso dos adolescentes que estão cumprindo medida socioeducativa, a estrutura familiar sugere maior participação da figura materna, uma vez que 76,3% reside no mesmo domicílio que a mãe, e destaca-se o fato de a unidade feminina ter um percentual menor do que as masculinas. Observamos, ainda, menor presença da figura paterna, pois 31,9% moram no mesmo domicílio que o pai. (ARMAZÉM DE DADOS, 2016, p. 19).
Em relação ao nosso cenário de estudo, não possuímos dados comparativos, contudo, os dados identificados reiteram a fala das mães entrevistadas na pesquisa referente ao Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE no ano de 2017: falamos em sua grande maioria de famílias monoparentais femininas, onde a presença da mãe prevalece como a responsável pela família, dentro desse universo atendido pelo Novo Degase.
Não possuímos dados estatísticos em relação à cor e raça das famílias acompanhadas pelo sistema socioeducativo, contudo os dados dos adolescentes atendidos por esse sistema reproduzem o perfil racial delineado pela população carcerária em nosso País. Desta forma, trabalhando com os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN, 2014): 61,67% da população por raça e cor no sistema prisional é composta por negros/pretos e pardos. Os dados reiteram que a população encarcerada, seja ela do sistema penal ou do sistema socioeducativo, em sua grande maioria é negra/preta e parda, atingindo dentro do sistema socioeducativo 78,5% dos meninos e 68,4% das meninas, de acordo com os dados da pesquisa do IPP “Agentes da Transformação”.
Outro dado significativo da pesquisa do IPP é de que a maioria dos jovens (69,4%) possui alguém no domicílio que recebe pelo menos um benefício, incluindo aposentadoria ou pensão. O Programa Bolsa Família (56,7%) e o Cartão Família Carioca (21,7%) apresentam maior número de famílias beneficiárias atendidas, permitindo concluirmos que a grande maioria dessas famílias também é acompanhada pela política de assistência social de seus municípios, portanto, apresentam um perfil de alto índice de vulnerabilidade social e abaixo da linha da pobreza.
Ainda sobre os dados coletados na pesquisa “Agentes da Transformação”, os adolescentes do sistema socioeducativo, atendidos nas unidades de internação, apresentam o perfil de residirem em moradias onde o adensamento domiciliar encontra-se acima da média, isto é, a proporção de domicílios com média superior a três moradores por dormitório, atingindo um percentual de 31,47% de adolescentes que moram em domicílios com três ou mais pessoas por dormitório.
As famílias de quem falamos, famílias atendidas pelo DEGASE, constituídas em sua maior parte por mulheres, negras e chefes de famílias, apresentam, em sua maioria, um quadro de vulnerabilidade social; isto é, falamos do mesmo contingente populacional que deveria estar sendo atendido pela política de assistência social, através de seus programas e benefícios.
Considerações finais
As pessoas que transitam nos quarteirões das ruas do bairro da Ilha do Governador, mais precisamente no sub-bairro do Galeão, onde estão instaladas algumas unidades do Novo Degase – recepção e triagem, internação provisória e internação – comumente verificam um cenário com filas de mulheres (das mais diversas idades), sentadas nos meios fios das calçadas à porta desses espaços, esperando atendimento ou a hora da visita. São mães, tias, avós, muitas consanguíneas outras chamadas “de consideração”, por fazerem parte da história de vida daqueles adolescentes que ali estão, privados de liberdade.
Nos dias de visitas, podemos observar que muitas estão carregadas de pacotes: biscoitos, materiais de higiene e demais objetos que são permitidos entrar nessas unidades. Algumas vêm de lugares longínquos, chegando cedo para não atrasar o horário da visita, uma vez que passam por um procedimento de “revista” onde precisam se desnudar se quiserem estar por algumas horas ao lado de seu “filho” (LOPES, 2015).
Elas constituem as famílias do sistema socioeducativo no Rio de Janeiro: mulheres, negras, oriundas de espaços segredados; estas são algumas das características que estão presentes na fala das representantes do Movimento das Mães dos Meninos do DEGASE, quando indagadas sobre suas histórias de vida. Suas compreensões identitárias congregam outras identificações, como mães de adolescentes autores de atos infracionais, mães que se organizam a partir da dor da perda de seus filhos. Diferentes identificações dão transparência em demais trechos das entrevistas como: histórias de violências domésticas, referência de territórios de origem, histórias de perdas de seus filhos, etc. São marcadores importantes que permitem que essas mulheres se percebam enquanto grupo, com suas identidades próprias, com questões comuns que impulsionam suas organizações na luta por objetivos em comum.
Buscou-se, portanto, estudos e reflexões para entender de que família estamos analisando.
Contudo, continuamos com algumas indagações: o que motiva essas mães a permanecerem na luta por tanto tempo, como é o caso de algumas lideranças? O que leva essas “mães” suportarem uma rotina de se desnudarem frente a desconhecidos. Seja fisicamente numa “revista” dentro de uma unidade, ou seja, diante de um “atendimento técnico”, quando revelam as histórias de suas vidas. Talvez ainda não tenhamos respostas concretas para isso e sim hipóteses que vão desde o amor materno, passando pela moral, pelos valores sociais e religiosos, chegando até ao desespero em ter a certeza de que seus filhos estejam vivos.
[...] somos mães, apenas mães, pretas, pardas, brancas, amarelas, gordas, magras, apenas Mães. (GLÓRIA)13.
Este é um lugar de pertencimento que, mesmo com toda dor que traz, permite que essas mulheres se identifiquem e se vejam enquanto grupo, com anseios próprios de grupos, construindo suas histórias e lutas.