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Desenvolvimento e desastres: uma das faces da colonialidade
Gabriela Maria Lema Icasuriaga; Alessandra Nascimento Bernardo
Gabriela Maria Lema Icasuriaga; Alessandra Nascimento Bernardo
Desenvolvimento e desastres: uma das faces da colonialidade
O Social em Questão, vol. 23, núm. 48, pp. 165-184, 2020
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: Recentes acontecimentos de caráter socioambiental têm irrompido no país colocando de manifesto a intrínseca relação entre fenômenos “ambientais” e o modelo de desenvolvimento adotado, provocando sua desnaturalização e exigindo a problematização de alguns fenômenos e conceitos desde outras perspectivas. No presente ensaio compartilhamos algumas reflexões afetas a esta temática tendo como cenário o rompimento da barragem de rejeitos de minério da empresa Vale, no município de Brumadinho/MG, pois evidencia como a escolha por um modelo de desenvolvimento mantem e reproduz formas de exploração e de dominação, seja sobre o ambiente, sobre os sujeitos e comunidades inteiras, ou entre distintas nações.

Palavras-chave:Crime ambientalCrime ambiental,ExtrativismoExtrativismo,BrumadinhoBrumadinho,MGMG.

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Artigos

Desenvolvimento e desastres: uma das faces da colonialidade

Gabriela Maria Lema Icasuriaga
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Alessandra Nascimento Bernardo
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
O Social em Questão, vol. 23, núm. 48, pp. 165-184, 2020
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Desenvolvimento e desastres: uma das faces da colonialidade

Gabriela Maria Lema Icasuriaga1

Alessandra Nascimento Bernardo2

Resumo

Recentes acontecimentos de caráter socioambiental têm irrompido no país colocando de manifesto a intrínseca relação entre fenômenos “ambientais” e o modelo de desenvolvimento adotado, provocando sua desnaturalização e exigindo a problematização de alguns fenômenos e conceitos desde outras perspectivas. No presente ensaio compartilhamos algumas reflexões afetas a esta temática tendo como cenário o rompimento da barragem de rejeitos de minério da empresa Vale, no município de Brumadinho/MG, pois evidencia como a escolha por um modelo de desenvolvimento mantem e reproduz formas de exploração e de dominação, seja sobre o ambiente, sobre os sujeitos e comunidades inteiras, ou entre distintas nações.

Palavras-chave

Crime ambiental, Extrativismo, Brumadinho/MG.

Development and disasters: one of the faces of coloniality

Abstract

Recent socio-environmental events have erupted in the country, revealing the intrinsic relationship between “environmental” phenomena and the development model adopted, causing their denaturalization and demanding the problematization of some phenomena and concepts from other perspectives. In this essay, we share some reflections related to this theme, taking as a backdrop the rupture of the Vale's ore tailings dam, in the municipality of Brumadinho/MG, as it highlights how the choice of a development model maintains and reproduces forms of exploration and exploitation. domination, whether over the environment, over individuals and entire communities, or between different nations.

Keywords

Environmental crime, Extractivism, Brumadinho/MG.

Artigo recebido em março de 2020

Artigo aprovado em maio de 2020

Introdução

O extrativismo, como forma de exploração intensiva dos recursos do subsolo, vem sendo muito questionado em todos os países da América Latina e os argumentos contrários ou favoráveis a ele se fundamentam em posições claramente diferenciadas e mesmo antagônicas sobre desenvolvimento econômico e social; uma polêmica cujas origens remetem ao século XIX e às formas de dependência econômica e política pós-coloniais dos países do subcontinente, aos quais coube um papel determinado pelos centros de poder e suas novas estratégias expansionistas, submetendo as ex-colônias a provedoras de matérias-primas necessárias ao processo de industrialização nos países europeus e a consumidores dos seus produtos industrializados. A inserção das novas nações independentes no mercado mundial se fez hipotecando suas riquezas naturais e persiste até os dias de hoje em meio a conflitos e tensões que expressam a continuidade da colonialidade nas relações de poder que se efetivam nas formas de fazer política tanto internamente como nas relações com outros países (QUIJANO, 2005; BAUTISTA, 2017).

A mineração é uma atividade antiga no Brasil, os diferentes tipos de exploração de minérios datam de 500 anos e Minas Gerais é, desde o século XVII, marcada pela exploração e extração de seus recursos (SANTOS, 2018, p.62). No Brasil há mais de 3 mil minas e 9 mil mineradoras em atividades que se baseiam na extração de minerais do solo e subsolo, podendo ser de tipo “a céu aberto” ou “subterrânea”, considerando também a chamada “lavra garimpeira”.

Somente no ano de 2018, o setor mineral – considerando distintos tipos de produtos – foi responsável por 20,8% das exportações brasileiras, o que dimensiona a importância da atividade para a balança comercial do país (BRASIL, 2019a). Todavia, independentemente do tipo de exploração e dos diferentes efeitos que são gerados a partir dela, as suas consequências são cada vez mais danosas e prejudiciais, tanto para as comunidades instaladas próximas das áreas de mineração, como para o ambiente natural – rios, lençóis freáticos, flora, fauna, etc. (MAIA e MALERBA, 2019).

Não há, nesse sentido, novidade nas polêmicas que envolvem as estratégias de desenvolvimento econômico e a depredação do meio ambiente. O desenvolvimento na perspectiva do progresso e da crescente riqueza econômica da sociedade ocupa papel central nos clássicos da teoria econômica e rende boas reflexões até os dias de hoje.

No Brasil, a adoção de medidas estatais em prol do desenvolvimento nacional acompanhou a formação do moderno Estado-Nação e a intervenção governamental na implementação de uma economia capitalista industrial a partir dos anos 30 do século passado. A passagem de uma economia agroexportadora para uma economia industrial exigiu a formação de uma institucionalidade capaz de induzir as mudanças necessárias à transformação radical da sociedade. Com objetivo de alavancar uma incipiente e inexpressiva indústria nacional, o Estado assume o papel de indutor direto do crescimento, construindo as condições gerais da produção capitalista e criando empresas públicas em áreas estratégicas das finanças e de exploração de recursos naturais, que junto com uma ativa intervenção política na organização do trabalho assalariado, estabeleceu um novo formato às relações entre Estado, setor produtivo empresarial e trabalhadores.

No presente ensaio, utilizamos levantamento de artigos de imprensa, relatórios técnicos de diferentes órgãos públicos e de organizações não-governamentais e bibliografia especializada para subsidiar a compreensão e análise do caso em estudo. A partir da sistematização e descrição dos diversos argumentos relacionados ao rompimento da barragem de rejeitos em Brumadinho/MG, levantamos alguns questionamentos sobre os conceitos de “desenvolvimento” e “crime ambiental” que sustentam as narrativas sobre o ocorrido.

Da companhia Vale do Rio Doce à Vale S.A.

Num lapso temporal de 20 anos, cuja maior parte correspondeu aos governos de Getúlio Vargas, assentaram-se as bases do desenvolvimentismo brasileiro que perdurou no país até os anos de 1970. Entre outras empresas públicas, impulsionadas durante o período getulista, a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) foi criada por decreto presidencial em 1942, como empresa de economia mista, sob controle do governo, objetivando a exploração direta dos recursos do subsolo, em especial o minério de ferro, material de importância estratégica no contexto da Segunda Guerra Mundial e com apoio financeiro dos Estados Unidos e da Inglaterra, então principais países consumidores desse mineral.

Nos anos subsequentes a CVDR, inicialmente localizada no estado de Minas Gerais, foi ampliando-se e estendendo suas atividades extrativas com outros produtos do subsolo brasileiro e em outros estados da federação, convertendo-se em uma das empresas mais ricas e lucrativas do país. A empresa manteve sua natureza pública e, inclusive, fortalecida durante o período da ditadura militar (1964 – 1985); no entanto, mais de 50 anos desta empresa pública foram privatizados, junto com vários outros setores estratégicos e empresas estatais, no período de governo de Fernando Henrique Cardoso, quando foi elaborado um abrangente Programa Nacional de Desestatização (PND), a despeito de constar na Carta Constitucional de 1988 a reafirmação de que os recursos do subsolo constituem bens de exploração exclusiva da União.

Em 6 de maio de 1997 a CVRD foi privatizada em um leilão altamente questionado por amplos setores da sociedade, sendo o vencedor o Consórcio Brasil, integrado pela Companhia Siderúrgica Nacional junto a outras empresas e fundos de pensão, entre elas o banco Bradesco, financiado com subsídios do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDS). Apesar da grande mobilização social contra a privatização da Vale, incluindo manifestações, plebiscito popular e ações populares na justiça, que ainda hoje não foram sequer julgadas, a privatização de uma das empresas mais lucrativas do país foi efetivada por um preço irrisório, sem que nenhum dos governos seguintes questionasse tal ação.

A Companhia Vale do Rio Doce passa então a chamar-se Vale S.A., transformada em empresa privada de capital aberto será a maior mineradora do Brasil, funcionando em 13 estados brasileiros e no Distrito Federal e uma das mais importantes empresas de mineração de metais no mundo, presente em 27 países dos 5 continentes (ARTICULAÇÃO INTERNACIONAL DOS ATINGIDOS PELA VALE, 2015).

As atividades da empresa envolvem todas as etapas da cadeia produtiva, causando impactos à vida humana e ao meio ambiente ainda mais danosos do que antes da privatização. O relatório dos atingidos e atingidas pela Vale demonstra como os danos ambientais são compensados monetariamente a estados e municípios através dos royalties pagos pela arrecadação da “Compensação Financeira para Exploração Mineral” (Cfem), criando uma dependência financeira dos orçamentos públicos nos diferentes níveis da administração pública. Principalmente nos estados e municípios mais pobres os recursos provenientes dos royalties e as atividades de filantropia empresarial da Vale S.A. acabam por subordinar os poderes públicos e a própria população aos interesses da empresa.

Principalmente nos últimos anos a Vale S.A. tem investido para construir uma imagem pública de empresa sustentável para melhorar seus negócios em vários países do mundo. Porém, apesar de uma campanha publicitária de alto nível, e alguns investimentos em ações de “responsabilidade social”, a empresa continua sendo objeto de denúncias e mobilizações em quase todas as regiões onde está funcionando, seja por demandas trabalhistas, por danos ambientais ou por desrespeito às normas. Em 2012 a Vale S.A. foi eleita a pior companhia do mundo pela Public Eye Awards3.

Brumadinho e as barragens do Córrego do Feijão

O município de Brumadinho, nos anos 2000, transformou-se no eixo sul de expansão metropolitana de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, sendo seu principal atrativo a densa rede hidrográfica pertencente à Bacia do Rio São Francisco, cujas nascentes formam afluentes do Rio Paraopeba.

Mapa 1. Trajetória da lama, segundo matéria publicada no jornal “O Estado de Minas”.

Adaptado do Jornal Estado de Minas - postado em 26/02/2019 06:00/atualizado em 26/02/2019 07:39.

As barragens de rejeitos de minério de Córrego do Feijão, na localidade de Brumadinho, são ao todo 6, entre as mais de 24.000 barragens espalhadas pelo Brasil. Essas barragens são enormes lixões de rejeitos de mineração, que são armazenados para evitar uma maior contaminação ambiental. Nas minas onde se realiza o processo de extração e beneficiamento do ferro é preciso separar as impurezas, entre as quais o quartzo na forma de areia e argila, para extrair a hematita que é o minério comercialmente rentável. A parte descartada é armazenada nas barragens de rejeitos, impedindo que essa lama tóxica chegue aos cursos d’água e crie um problema ambiental. Porém, as roturas de barragens acontecem, como foi o caso de Mariana em 2015, e os rejeitos tóxicos acabam arrastando tudo pela frente até chegar a um curso d’água e através dele ao mar, criando enormes prejuízos ao meio ambiente e aos ecossistemas que se alastram durante anos, impedindo o uso dos rios e mares contaminados, matando peixes e outras espécies e alterando a forma de vida das populações no entorno.

A barragem 1 da Mina do Feijão foi construída no ano de 1973 e adquirida pela empresa Vale em 2001. Em 25 de janeiro de 2019, quando houve o rompimento, a barragem estava inativa há vários anos. A sua rotura provocou impactos ambientais ainda difíceis de calcular, 13 milhões de m³ de rejeitos da mineração foram lançados no meio ambiente, porém a maior tragédia se contabiliza nas enormes perdas humanas que, após um mês de buscas atingiram mais de 300 vidas humanas, com mais de 200 corpos localizados e muitos desaparecidos.

Estudo recente (FREITAS et al, 2019) tendo como referência dados do Censo Demográfico de 2010, apontam que a lama de rejeitos atingiu uma população estimada em 3.485 pessoas e 1.090 domicílios, o que representa mais de 10% da população do município atingida de forma direta e imediata e, considerando a lama que acompanhou o leito do Rio Paraopeba, numa extensão aproximada de 250km, afetou um número ainda mais expressivo de comunidades indígenas, quilombolas, silvicultores e pescadores artesanais, com perdas de seus meios de vida e trabalho, além de perdas simbólicas e culturais.

Desastre, risco e crime em Brumadinho

Os efeitos da atividade de mineração são inter-relacionados, sendo sociais, econômicos, políticos, ambientais, e impactam diretamente no aumento de diversas formas de violência nos territórios, com deslocamento forçado de populações e cidades inteiras, problemas de saúde, danos ao meio ambiente e na economia local4. Muito antes do rompimento da barragem de Brumadinho, vários estudos e publicações “oficiais” sobre os impactos da mineração, já alertavam para o fato de que “em diversas partes do território brasileiro a indústria extrativa mineral está entre as atividades antrópicas que mais causam impactos socioeconômicos e ambientais negativos, afetando, portanto, o território onde se realiza a mineração” (ALAMINO, FERNANDES & ARAUJO, 2014) sendo que esses impactos se estendem muito além do tempo de permanência da atividade produtiva no território, deixando um lastro de poluição e destruição nas comunidades e populações que pode durar dezenas de anos ou mesmo séculos.

As normas ambientais, hoje exigidas para a comercialização internacional dos produtos, conhecidas como Padronização de Normas Internacionais (ISO), foram introduzidas somente a partir dos anos de 1970, adotadas pelos diferentes países nos anos seguintes e de maneira muito diferenciada quanto às normativas internas, capacidade de fiscalização dos poderes públicos e adaptação e cumprimento das empresas.

No Brasil, a principal legislação em vigor que disciplina a atividade de mineração é o Decreto-lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967, conhecido como “Código da Mineração”, que estipula a exigência de licenciamento prévio das empresas e atividades que utilizam recursos ambientais, porém somente a partir da Resolução Conama 237 de 1997 se obriga ao prévio Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) para a outorga do licenciamento ambiental.

Para além dos acordos e tratados internacionais no âmbito do direito ambiental, dos quais o Brasil é signatário, desde 1981 o país dispõe de um arcabouço jurídico e institucional de proteção ao meio ambiente. Com destaque para a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei 6.938/81) que tem entre seus objetivos preservar, melhorar e recuperar a “qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana” (art. 2) seguindo princípios que apontam para uma compreensão do meio ambiente5 como um patrimônio público e de uso coletivo.

Também a Carta Magna de 1988, no seu artigo 225, estabelece que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Cabe, portanto, ao Estado estabelecer ações de preservação, proteção e controle às práticas e atividades que têm potencial de degradar e comprometer o ambiente, os ecossistemas, as diferentes espécies, e a vida em geral.

Em 1998, com a Lei 9.605, conhecida como Lei de crimes ambientais, foram estipuladas as sanções penais e administrativas imputáveis às condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, praticadas por pessoa jurídica ou física, observando na aplicação da pena: I - a gravidade do fato, tendo em vista os motivos da infração e suas consequências para a saúde pública e para o meio ambiente; II - os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da legislação de interesse ambiental; III - a situação econômica do infrator, no caso de multa (artigo 6º).

Na esteira da proteção, controle e fiscalização dos recursos minerais foi criada a Agência Nacional de Mineração pelo Decreto 9.587 de 28 de novembro de 2018, em substituição ao Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, que fez a gestão dos bens minerais do Brasil por mais de 80 anos.

No entanto, o que dificulta ainda a avaliação de riscos é a fiscalização e o monitoramento dos empreendimentos, como aponta o Relatório de insustentabilidade elaborado pela Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale em 2015, em resposta ao Relatório de sustentabilidade elaborado pela empresa Vale S.A. no mesmo ano. Enquanto esta última elenca uma série de aspectos que demostrariam o compromisso da empresa com tudo aquilo que destroem e depredam, o primeiro sinaliza e denuncia os subterfúgios utilizados para driblar as normas e fiscalizações, assim como certas manipulações nas ações da empresa junto às populações atingidas.

O certo é que quando “uma falha” não é resolvida a tempo e quando as medidas de prevenção de acidentes não são consideradas como prioridade perante o lucro extraído pela empresa, as consequências para populações e ecossistemas não podem ser consideradas apenas “desastres”, no sentido corriqueiro com o qual a maioria da população, a mídia, ou outros agentes ainda o sinalizam, interpretação decorrente de uma perspectiva geobiofísica, que desconsidera sua dimensão sócio-histórica, mas também crimes humanos e ambientais. Tal o caso que nos ocupa, seja ele abordado na perspectiva jurídica ou analisado na perspectiva economicista do desenvolvimento.

Segundo autores que discutem desastres na perspectiva das ciências sociais e humanas, eles são fenômenos que

articulam prejuízos materiais, morais, físicos e emocionais propiciando à sociedade interrogar-se a si mesma, “em seus meios e propósitos, tanto por aquilo que (não) se fez antes (a prevenção e a precaução), como naquilo que (não) se faz durante (a gestão da crise) ou depois (as transformações necessárias)” (LIEBER & ROMANO-LIEBER, 2005 apud VALENCIO, 2009, p.37).

A caracterização de um evento extremo como desastre ainda é objeto de polêmica no Brasil, assim como também em outros países. Entre nós, a Defesa Civil é a instituição responsável por protagonizar muitas das ações executadas em contextos de desastres, abordando-os a partir da causa ou evento que lhe deram origem, se natural, humana (ou antropogênica) e mista; embora diferentes áreas do conhecimento abordem esses fenômenos com terminologias próprias, é a abordagem da instituição oficial que cumpre um importante papel no momento de o Estado definir suas ações frente aos fenômenos.

Para as ciências sociais há certo acordo em definir os desastres como fenômenos que interagem com o conjunto da sociedade e causam impactos de diversas ordens em muitas dimensões da vida, porém essa conceituação não avança para a tipificação de crime envolvendo o desastre. Nesse ponto, são os próprios movimentos populares que têm pressionado para tal reconhecimento, fundamentando sua posição nas atitudes negligentes da empresa e dos órgãos de fiscalização do Estado para prevenir e evitar os desastres.

No caso de Brumadinho, a magnitude do desastre e a população afetada provocaram o Ministério Público a iniciar uma investigação sobre as causas do “acidente” e que posteriormente passaram a ser noticiadas pela mídia local:

houve um grande esforço por parte da Vale e da TÜV SÜD [empresa responsável por atestar a segurança da barragem] para maquiar os números e omitir o estado crítico da barragem. Mas eles mostram que era do conhecimento de todos a não estabilidade da mesma. “Ocorreu um conluio para apresentar declarações de estabilidade que não refletiam a situação crítica que todos os envolvidos já tinham conhecimento”, ressaltou o delegado Bruno Tasca, que integra a força-tarefa pela Polícia Civil (JORNAL METRÓPOLES, 25/10/19)6.

Ainda na mesma matéria jornalística, o Promotor do Ministério Público tipifica legalmente a responsabilidade da empresa como crime doloso e de homicídio em função dos elementos levantados pela investigação e que apontam

(...) que a mineradora Vale assumiu o risco da tragédia, mesmo sabendo que a estrutura da barragem não era estável. Além disso, e-mails mostram que a empresa tentou chantagear a empresa alemã TÜV SÜD, para a emissão dos laudos que atestaram a segurança da estrutura (JORNAL METRÓPOLES, op.cit).

O rompimento da barragem, neste sentido, é desastre porque é um fenômeno físico (embora não natural) que impactou um sistema social – ceifou vidas, destruiu o meio ambiente, alterou a rotina de uma comunidade inteira. Mas é um desastre criminoso porque poderia ter sido evitado, em razão do reconhecimento dos riscos, e, no entanto, não foi. O dossiê7 elaborado pelo movimento Atingidos por Barragens (MAB) também salienta a dimensão de crime implicada nesse contexto e a fundamenta ao apresentar dados relacionados ao funcionamento da empresa, como as terceirizações, o descumprimento de normas ambientais e corrupção para obtenção das licenças de funcionamento, escolhas técnicas por barragem de tipo à montante8 em razão do seu menor custo em detrimento de barragens mais seguras, dentre outros elementos sinalizados neste dossiê.

A prevalência da lucratividade em prejuízo das condições dignas de trabalho, da proteção ao meio ambiente, do respeito pelas comunidades locais e seus modos de vida e organização, e a opção de escolhas técnicas não seguras, caracterizam a ação criminosa, que ficou, no caso em estudo, bem tipificado do ponto de vista legal, como consta nas ações do Ministério Público e no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado Federal sobre Brumadinho e outras barragens, que após exaustiva investigação sobre os fatos conclui tratar-se de crime o acontecido, tanto no rompimento da barragem de Brumadinho, como no caso anterior relativo à Mariana.

Estratégias de desenvolvimento como face da colonialidade

A construção da colonialidade, enquanto supremacia e dominação de uns povos por outros, surge historicamente com a conquista do continente americano pelos europeus e a elaboração intelectual de justificativas para perpetuar o domínio pela força, extermínio e saqueio da natureza e da vida humana do dominado. A desumanização do outro, baseada em atributos de diferenciação racial, comportamento e organização social, precede e permanece nas relações de dominação econômica e da subjetividade. Razão pela qual predomina nas nossas sociedades uma imagem distorcida da nossa própria visão da realidade, a partir da qual criamos critérios e medimos nossas expectativas individuais e coletivas (BAUTISTA, 2017, p.68). A colonialidade é a perpetuação dos fundamentos e práticas do poder colonial, que se consolidou com a “criação de um conjunto de estados reunidos em um sistema interestatal de níveis hierárquicos” fundado nessa ideologia e que se reproduz tendo o modo de produção capitalista como eixo central a partir do qual se organizam e se determinam todo o conjunto de práticas sociais (QUIJANO; WALLERSTEIN, 1992, p.2 tradução nossa).

A abordagem aos trágicos acontecimentos recentes na localidade de Brumadinho, após o rompimento de uma barragem de minério de ferro da multinacional Vale S.A. é um recurso a um caso exemplar que permite trazer à discussão as abordagens sobre desenvolvimento, que mais que um conceito é uma categoria que remete a uma cosmovisão construída sob o signo da colonialidade, da qual derivam compreensões e abordagens diferenciadas e mesmo antagônicas na leitura do “desastre humano e ambiental” que abordamos ao longo desta exposição. Trata-se, como sustenta BAUTISTA (2017) de um “desenvolvimento regressivo”, cujo futuro é o verdadeiro atraso, um desenvolvimento sustentado numa racionalidade moderna ocidental construída em nome da acumulação de riquezas e para justificar os danos irreversíveis para o resto da humanidade.

A partir de um fato ou acontecimento, que não é um caso isolado, mas se apresenta de maneira recorrente nos últimos anos, tentamos descrever as várias dimensões que o perpassam, contextualizá-lo historicamente e confrontar seus fundamentos e justificativas com outras perspectivas epistemológicas.

Algumas considerações

À luz do caso aqui apresentado não há margem para tratar o rompimento da barragem da Vale como um acidente, trata-se de um desastre criminoso pois, como mostram as denúncias dos atingidos, dos movimentos sociais, e das instâncias públicas responsáveis por apurar o acontecido, foram ignoradas todas as exigências legalmente previstas e identificadas as lacunas da legislação para prevenir e punir atividades deste tipo.

A despeito de todo o marco legal orientando as precauções que deveriam estar envolvidas, desde os estudos e licenças que antecedem o início das atividades, pouco tem sido feito após seus impactos negativos, sobretudo no que se refere à punição dos responsáveis e/ou envolvidos e às garantias à população de que tais crimes não continuarão a se repetir.

A insistente defesa de que o país precisa progredir economicamente e a opção pelas atividades extrativistas como meio para alcançar esse suposto desenvolvimento revelam a persistência de um discurso que coloca os interesses “desenvolvimentistas” acima da proteção ambiental ou da preocupação com as consequências da degradação ambiental (SILVA, 1995, p.27). O caso da mineração reflete essa lógica que é fomentada pelo Estado e por boa parte da população, que aprova e defende a permanência de diversos benefícios – como as isenções fiscais ou flexibilização da legislação ambiental – para atrair esse tipo de investimento, tornando-se corresponsável pelas consequências dessa atividade para os ecossistemas ambientais e humanos.

Entendemos que no caso específico que nos ocupa, a prevalência da tipificação criminal do desastre por parte dos órgãos públicos, em particular do Ministério Público e do Senado Federal, senta um importante precedente para encaminhamentos futuros e para discutir os argumentos que fundamentam o desenvolvimento como progresso para o conjunto da sociedade.

A aprovação do relatório da “CPI de Brumadinho e outras barragens” pelo Senado Federal contêm uma série de recomendações e propostas concretas de alteração e incorporação de leis que endurecem a fiscalização e a punição nos casos de descumprimento das normativas por parte das empresas mineradoras e ainda enfatiza como resultado das investigações o fato inegável de que as pessoas e ecossistemas à jusante de barragens de rejeitos não estão em condições plenas de segurança e que os benefícios econômicos da mineração, apropriados pelos acionistas das empresas privadas, não justificam o ônus que recai sobre as populações e ecossistemas (BRASIL, 2019b).

A questão que se desprende do caso em tela é que não se trata simplesmente de caracterizar o desastre como crime e de endurecer as punições, mas de entender que esse tipo de atividade econômica é altamente prejudicial para o conjunto da sociedade porque coloca em questão as formas de reprodução da própria vida. Os avanços nos instrumentos legais e formas de punição estão ainda muito distantes das causas que geram aquilo que se busca normatizar, como afirmam alguns juristas de reconhecida trajetória:

Os órgãos que atuam nos distintos níveis de organização da justiça penal (legislador, Polícia, Ministério Público, juízes, órgãos de execução) não representam nem tutelam interesses comuns a todos os membros da sociedade, senão, prevalentemente, interesses de grupos minoritários dominantes e socialmente privilegiados. Não obstante, em um nível mais alto de abstração, o sistema punitivo se apresenta como um subsistema funcional da produção material e ideológica (legitimação) do sistema social global, isto é, das relações de poder e de propriedade existentes, mais que como instrumento de tutela de interesses e direitos particulares dos indivíduos (BARATTA, 2003, p.4).

O reconhecimento de que a legalidade burguesa é funcional ao sistema e resolve parcialmente, de maneira seletiva e com certa morosidade os efeitos quase sempre irreversíveis de um desastre, mesmo quando tipificado como crime humano e ambiental, nos conduz a revisar as bases materiais e discursivas que sustentam essas práticas em nome do desenvolvimento.

Ideologicamente se sustenta um desenvolvimento que enxerga o futuro como meta atingível do progresso se seguidas as prescrições patrocinadas pelos centros de poder econômicos através de suas organizações internacionais, encarregadas de instrumentalizar esse receituário. Mesmo quando os resultados historicamente demonstram o contrário. Essa forma de desenvolvimento adotada pelas elites econômicas e políticas locais, intrinsecamente relacionadas aos centros de comando mundial do capital, recriam e aprofundam as bases da dependência, e tendem, sistematicamente, à destruição das capacidades de autonomia dos países do subcontinente (BAUTISTA, 2017).

As evidências do desenvolvimento tido como progresso estão ao alcance de quem queira enxergar. Os indicadores de desigualdade e concentração de renda em quase todos os países da América Latina são os piores do mundo há séculos, no entanto, insistimos em manter e aprofundar as orientações (imposições) cada vez mais destrutivas à nossa principal riqueza.

A força bruta e os subterfúgios do poder que impôs o colonialismo e que mantém a colonialidade nos impedem de fazer leituras mais acuradas da nossa realidade e de traçar outros horizontes que tendam à preservação da vida. Para tal, é preciso estancar o processo predatório dos nossos ecossistemas e das milhares de vidas humanas ceifadas em nome de um desenvolvimento alheio à maior parte da humanidade, não só dos nossos países, ditos atrasados ou subdesenvolvidos, mas também das periferias dos próprios centros de comando do capital, cada vez mais engrossadas pela pobreza.

Insistir em uma aposta ao progresso pelo aumento do consumo, pela melhoria dos indicadores econômicos reduzidos à capacidade de pagamento da dívida pública junto aos organismos do imperialismo internacional, nos transforma sistematicamente em mais pobres e dependentes, pois nossas riquezas naturais, desde sempre tão disputadas, são finitas, e com a sua finitude se extinguem todas as formas de vida das quais formamos parte.

Material suplementar
Referências
ALAMINO, R.C.J.; FERNANDES, R.F.C.; ARAUJO, E. Recursos minerais e comunidade: impactos humanos, socioambientais e econômicos. Rio de Janeiro: CETEM/MCTI, 2014.
BAUTISTA, R. Del Mito del Desarrollo al Horizonte del “Vivir Bien” ¿Por qué fracasa el socialismo en el largo siglo xx? La Paz: Yo soy si Tú eres ediciones, 2017.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações determinadas pelas Emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 91/2016 e pelo Decreto Legislativo no 186/2008. – Brasília: Senado Federal, 2016.
MAIA, M; MALERBA, J. A mineração vem ai... E agora? Um guia prático em defesa dos territórios. Rio de Janeiro: Fases, 2019.
QUIJANO, A. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In.: LANDER, E. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.
QUIJANO, A; WALLERSTEIN, I. La americanidad como concepto, o América en el moderno sistema mundial. In.: Revista Internacional de Ciencias Sociales. Catalunya: UNESCO, 1992.
SANTOS, J. A responsabilidade da Samarco. In.: CALDAS, G. Vozes e silenciamento em Mariana: crime ou desastre ambiental? 2.ed. Campinas: BCCL/UNICAMP, 2018.
SILVA, G.E.N. Direito ambiental internacional: meio ambiente, desenvolvimento sustentável e os desafios da nova ordem mundial. Rio de Janeiro: Thex Ed.: Biblioteca Estácio de Sá, 1995.
VALENCIO, N. et al. (orgs). Sociologia dos Desastres: construções, interfaces e perspectivas no Brasil. São Carlos: RiMa Editora, 2009.
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