Resumo: O artigo analisa as legislações que regulamentam a extração de minério de ferro em Mariana-MG, antes e depois do rompimento da barragem de rejeitos da empresa Samarco/Vale/BHP Billinton em 05 de novembro de 2015. A partir do direcionamento teórico-metodológico marxista e das técnicas de pesquisa documental e de análise de conteúdo, foram selecionados documentos de domínio público, que consistiram em legislações e decretos federais, estaduais e municipais. A análise documental busca identificar qual a definição de mineração é preconizada nas legislações e quais são as regulamentações ambientais que dispõe à atividade minerária.
Palavras-chave:Questão AmbientalQuestão Ambiental,MineraçãoMineração,Marco legalMarco legal,Mariana (MG)Mariana (MG).
Artigos
Marco legal e mineração em Mariana - MG
Marco legal e mineração em Mariana - MG
Tamires da Silva Cipriano1
Raquel Mota Mascarenhas2
Resumo
O artigo analisa as legislações que regulamentam a extração de minério de ferro em Mariana-MG, antes e depois do rompimento da barragem de rejeitos da empresa Samarco/Vale/BHP Billinton em 05 de novembro de 2015. A partir do direcionamento teórico-metodológico marxista e das técnicas de pesquisa documental e de análise de conteúdo, foram selecionados documentos de domínio público, que consistiram em legislações e decretos federais, estaduais e municipais. A análise documental busca identificar qual a definição de mineração é preconizada nas legislações e quais são as regulamentações ambientais que dispõe à atividade minerária.
Palavras-Chave
Questão Ambiental, Mineração, Marco legal, Mariana (MG)
Legal framework and mining in mariana-mg
Abstract
The article analyzes laws extraction iron ore in Mariana-MG, before and after rupture of tailings dam by Samarco/Vale/BHP Billinton on November 5, 2015. From marxist theoretical-methodological and techniques documentary research and content analysis, selected public documents, consisted federal, state and municipal laws. A documentary analysis identify definition mining and environmental regulations.
Keywords
Environmental question, Mining, Legal framework
Artigo recebido em março de 2020
Artigo aprovado em maio de 2020
Introdução
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
Lira Itabirana - Carlos Drummond
O cáustico 05 de novembro de 2015 em Mariana-MG3, em que se deu a ruptura da barragem de Fundão na unidade industrial de Germano da empresa mineradora Samarco, controlada pela Vale S&A e BHP Billinton, foi aferido como o maior desastre envolvendo barragens de rejeitos4 de mineração no mundo, considerando os registros a partir de 1915. Expressa no relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) – intitulado Mine Tailing Storage: Safetyis no Accidente divulgado em 2018 –,essa aferição mensura como desastre de alta gravidade o rompimento de barragem que apresenta vazamento de mais de 1 milhão de metros cúbicos e/ou afete ao menos 20 km e/ou cause cerca de 20 mortes (ONU, 2019). A ruptura da barragem de Fundão gerou vazamento de 33 milhões de metros cúbicos de rejeitos que percorreram mais de 650 km (ONU, 2019). Além disso, são 20 pessoas mortas nesse acontecimento – dentre as quais o corpo de uma vítima continua desaparecido –, uma vez que uma das atingidas do distrito marianense de Bento Rodrigues, teve um aborto quando foi levada pela lama – porém, o feto não consta dentre as vidas ceifadas contabilizadas oficialmente (PAES; FIÚZA; MARQUES, 2019)
Ante a esse ocorrido, desenvolvemos uma pesquisa exploratória cujo objetivo central foi analisar os marcos legais que regulamentam a extração de minério de ferro em Mariana, antes e depois do 05 de novembro de 2015. Esta investigação científica foi desenvolvida a partir do direcionamento teórico-metodológico marxista (NETTO, 2011) e das técnicas de pesquisa documental (GIL, 2002) e de análise de conteúdo (BARDIN, 1979). A seleção dos documentos de domínio público6 se deu a partir do levantamento junto a Câmara Municipal de Vereadores de Mariana, via seu website7 e de forma presencial em sua sede8, das legislações a nível municipal, estadual e nacional. Os documentos analisados, dispostos em ordem cronológica, foram:
Quadro 1 – Marco legal regulatório da mineração em Mariana-MG
Fonte: elaboração das autoras (2020).
Na análise, buscamos identificar i) qual a definição de mineração é preconizada nas legislações e ii) quais são as regulamentações ambientais que dispõe à atividade minerária. São as principais aferições que constituem a terceira e quarta parte deste artigo, seguida das considerações finais. Na seção seguinte, expomos os pressupostos teórico-metodológicos dessa investigação científica.
Ruptura de barragens de mineração: crime ou desastre?
Sendo utilizada pela ONU (2019), a definição dos eventos de ruptura de barragem de mineração como desastre é incutida aos Estados nacionais, que passam a empregá-la como diretriz na criação e/ou implementação de políticas públicas voltadas à gestão dos territórios atingidos pelo atual modelo de mineração. Observamos esse modus operandi no Brasil9, conforme expresso na Instrução Normativa nº 1/2012, quando classifica os desastres. No que tange à sua origem ou causa primária do agente causador, os desastres são considerados naturais – “aqueles causados por processos ou fenômenos naturais” – e tecnológicos – “aqueles originados de condições tecnológicas ou industriais, incluindo acidentes, procedimentos perigosos, falhas na infraestrutura ou atividades humanas específicas”. Em relação à periodicidade, os desastres são classificados de duas formas: esporádicos – “aqueles que ocorrem raramente com possibilidade limitada de previsão” – e cíclicos/sazonais – “aqueles que ocorrem periodicamente e guardam relação com as estações do ano e os fenômenos associados”. Em suma, o documento define:
Art. 1º - Para os efeitos desta Instrução Normativa entende-se como:
I - Desastre: resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um cenário vulnerável, causando grave perturbação ao funcionamento de uma comunidade ou sociedade envolvendo extensivas perdas e danos humanos, materiais, econômicos ou ambientais, que excede a sua capacidade de lidar com o problema usando meios próprios [...] (BRASIL, [2012] 2020).
Visto este entendimento, refutamos o conceito de desastre como diretriz para tecer a análise teórico-metodológica da ruptura de barragens de mineração. Primeiramente, pois está comprovado que a ruptura da barragem de Fundão da empresa Samarco/Vale/ BHP Billinton – que varreu do mapa o distrito de Bento Rodrigues e mudou forçadamente e para sempre a vida na Bacia do Rio Doce10 – não tem origem em processos e fenômenos naturais; não é decorrida de acidentes ou falhas, seja no que tange às tecnologias, infraestruturas e/ou as ações humanas envolvidas; tanto quanto sua ocorrência é consumadamente previsível e não se relaciona com fenômenos climáticos11.
Por isso, adotamos o entendimento de que se trata de um crime contra a vida humana, bem como contra a natureza. Primeiramente, a definição de crime é aqui utilizada como ratificação de um posicionamento político, enquanto atingidas e trabalhadoras, no campo nomeado de conflitos socioambientais12, que se dá no bojo da luta de classes no capitalismo, isto é, entre “dois campos opostos, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia [proprietários dos meios de produção] e o proletariado [trabalhadores destituído dos meios de produção]” (MARX; ENGELS, [1848] 1998, p. 41). Assim, corroboramos que o 05 de Novembro de 2015 foi um acontecimento totalmente evitável, mas que é consequente ao funcionamento do atual modelo de mineração13. Esse é aqui entendido como uma forma historicamente instituída da ação de minerar, que passa a ser circunscrita ao objetivo de produzir mercadoria, commodities de minério de ferro, visando primordialmente a produção de valor14, em detrimento da vida humana e da natureza. As rupturas de barragens de mineração, portanto, expressam a forma/conteúdo do modelo capitalista de mineração que, no atual momento histórico, imperam nos territórios15 controlando-os a partir do sociometabolismo do capital16.
Além disso, a compreensão de crime, também, é literal17, visto que a ruptura da barragem e toda a destruição humana e ambiental que acarreta é, em suma, o resultado do descumprimento à insuficiente legislação estatal por parte das mineradoras – apoiadas pelo Estado e sua política intencionalmente inapta de regulamentação e fiscalização da extração mineral, bem como a corrupção e negligencia do setor empresarial18.
Ou seja, provocar perdas sociais e ambientais a terceiros e à coletividade é constituinte do processo produtivo dos setores extrativos e industriais. Sobretudo, são atos concebidos estrategicamente como mecanismos de não se arcar privadamente com custos mais altos de manutenção, prevenção, qualificação do trabalho e qualidade dos materiais empregados e das obras executadas. Além disso, para manter seus ganhos e evitar prejuízos, as empresas se aproveitam da morosidade e benevolência da justiça e do Estado, utilizando de todas as artimanhas para não ressarcir e mitigar ao público as perdas causadas, de maneira justa. (GONÇALVES; PINTO; WANDERLEY, 2016, p. 140).
Essa concepção de crime, em sua dupla dimensão, é ratificada pelo Movimento das/dos Atingidas/os por Barragens, atuante no território da Bacia do Rio Doce, quando afirma que “continuará denunciando esses crimes e lutando pelo direito dos atingidos por barragens em todo o Brasil”, delatando “a destruição e a apropriação de bens naturais, a exploração dos trabalhadores e o desrespeito às comunidades por parte das grandes empresas para a geração de lucros extraordinários” (MAB, 2019). Ante esse conceito de crime, objetivamos nesse artigo analisar os marcos legais que regulamentam a extração de minério de ferro em Mariana, antes e depois do 05 de novembro de 2015. Sendo que
Esse modo de considerar as coisas não é isento de pressupostos. Ele parte de pressupostos reais e não os abandona em nenhum instante. Seus pressupostos são os homens [e mulheres], não em quaisquer isolamento ou fixação fantásticos, mas em seu processo de desenvolvimento real, empiricamente observável, sob determinadas condições. Tão logo seja apresentado esse processo ativo de vida, a história deixa de ser uma coleção de fatos mortos, como para os empiristas ainda abstratos, ou uma ação imaginária de sujeitos imaginários, como para os idealistas. Ali onde termina a especulação, na vida real, começa também, portanto, a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens. As fraseologias sobre a consciência acabam e o saber real tem de tomar o seu lugar (MARX; ENGELS, [1846] 2007, p. 94-95).
Desse modo, como afirma Michael Lowy (2000, p. 13-14), a ciência não se desenvolve de forma neutra, e sim, “[...] todo conhecimento e interpretação da realidade social estão ligados, direta ou indiretamente, a uma das grandes visões sociais de mundo, a uma perspectiva global socialmente condicionada [...]”. Essa vinculação, como atingidas e trabalhadoras, ao contrário de deslegitimar a cientificidade desse estudo, parte do pressuposto de que a visão de mundo utópica [da classe proletária] é “[...] um melhor ponto de partida e uma melhor perspectiva na busca da verdade objetiva, por certo relativa, mas muito mais integral, muito mais completa, com relação ao nível dado de desenvolvimento do saber humano" (LOWY, 2000, p. 206) . Isso, porque “[...] a verdade é para o proletariado uma arma indispensável à sua auto-emancipação. As classes dominantes, a burguesia [...] têm necessidade de mentiras e ilusões para manter seu poder. Ele, o proletariado, tem necessidade de verdade...” (LOWY, 2000, p. 227-228). Portanto, “é possível fazer ciência a partir de uma relação dialética entre ciência e representação de classe”, pois a ciência não é a verdade em si e, sim, “[...] um processo de produção do conhecimento da verdade” (LOWY, 1991, p. 110).
A partir desse direcionamento teórico-metodológico marxista, apresentamos os principais elementos acerca da análise das legislações que regulamentam a mineração em Mariana, antes e depois do 05 de novembro de 2015, em que buscamos identificar o que define como mineração e quais regulamentações ambientais dispõe a essa.
Regulações da mineração antes de 05 de novembro
No Brasil, país latino-americano de capitalismo dependente (MARINI, [1973] 2011),que é fonte global de força de trabalho e commodities20, situa-se o estado de Minas Gerais onde o ciclo do ouro, que imperou no séculos XVII e XVIII, passou ao ciclo do ferro a partir do século XX. Inserido nesse, o município de Mariana é um dos territórios brasileiros controlados pelo atual modelo de mineração, cujo início da organização para a produção de minério de ferro pode ser aferida na década de 1910, com a emissão do Decreto Estadual nº 3.263/1911, que “Concede a ‘The Brasilian Iron and Steel Company’ o privilégio para construção de uma estrada de ferro que, partindo da Fazenda da Alegria, no distrito de Santa Rita Durão, Município de Mariana, vá a S. José da Lagoa, município de Itabira do Mato Dentro” (MINAS GERAIS, 1911, itálico nosso), atual município de Itabira. Atualmente, a Fazenda da Alegria abriga uma das áreas de extração de minério de ferro pertencente a empresa mineradora Vale S&A – estatal brasileira criada na década de 1940, nomeada de Vale do Rio Doce, e privatizada na década de 1990 (SILVA, 2004).Posteriormente, o Decreto Estadual nº 11.126/1933 (MINAS GERAIS, [1933] 2019) autoriza o prefeito de Mariana a ceder um terreno à estrada de ferro Central do Brasil, necessária à extração de minério de ferro do subsolo marianense. Seguido do Decreto Estadual nº 1.986/1939, que “Concede à sociedade ‘Mineralurgia LTDA’, a lavra, a título provisório, da jazida de minérios de ferro e manganês, situada no lugar denominado ‘Lagoa Seca’, no sítio da Rocinha, na Fazenda do Maquiné, distrito, município e comarca de Mariana, deste Estado” (MINAS GERAIS, [1939] 2019).
Ante o exposto, pode-se aferir que a atividade exploratória das jazidas de ferro se inicia na cidade de Mariana-MG na década de 1940, particularizando esse território na nova fase de mineração no Brasil, que “[...] existe há cerca de 300 anos, marcando particularmente a história de Minas Gerais” (SILVA; ANDRADE, 2016, p. 24) – ainda que as bases para tal, tenha se dado desde a segunda década do século XX, com a anuência à construção da estrada de ferro. Uma vez iniciada, a regulamentação da extração de minério de ferro em Mariana se deu por legislações nacionais e estaduais – visto que não localizamos legislações municipais voltadas a ordenação dessa atividade produtiva até 2017, quando é instituído o Código Ambiental Marianense, via a Lei Municipal Complementar nº 168/2017. O Decreto Federal nº 24.642/1934 (BRASIL, [1934] 2019) institui o Código de Minas brasileiro – que será revogado em 1940, pelo Decreto nº 1.985/1940 (BRASIL, [1940] 2019), e, novamente, em 1967, com o Decreto nº 227/1967(BRASIL, [1967] 2019). Este último, denominado de Código de Mineração e regulamentado pelo Decreto Federal nº 62.934/1968 (BRASIL, [1968] 2019), constitui o marco legal em vigor em 05 de novembro de 2015. Nesta legislação de 1968, pode-se observar:
Art. 1º Este Regulamento dispõe sobre:
I - os direitos relativos às massas individualizadas de substâncias minerais ou fósseis, encontradas na superfície ou no interior da terra, formando os recursos minerais do país;
II - o regime de sua exploração e aproveitamento;
III - a fiscalização, pelo Governo Federal, da pesquisa, da lavra e de outros aspectos da indústria mineral.
Neste Código de Mineração está previsto que “Art. 61. No curso de qualquer medida judicial não poderá haver embargo, arresto ou sequestro que resulte em interrupção dos trabalhos de lavra” (BRASIL, [1968] 2019). O que é ratificado pelo Decreto nº 3.365/1941 que prevê as desapropriações por utilidade pública, onde consta incluída o aproveitamento industrial das minas e jazidas minerais:
Art. 5o Consideram-se casos de utilidade pública:
a) a segurança nacional;
b) a defesa do Estado;
c) o socorro público em caso de calamidade;
d) a salubridade pública;
e) a criação e melhoramento de centros de população, seu abastecimento regular de meios de subsistência;
f) o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia [...] (BRASIL, [1941] 2019, negrito nosso).
Ao prever como utilidade pública o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, que serão extraídas a partir do atual modelo de mineração,a legislação destrói qualquer possibilidade real de garantir, dentre outros:
Art. 5o Consideram-se casos de utilidade pública: [...]
d) a salubridade pública;
e) a criação e melhoramento de centros de população, seu abastecimento regular de meios de subsistência; [...]
k) a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza; [...] (BRASIL, [1941] 2019).
As leis apontadas são cunhadas durante o período desenvolvimentista no Brasil. Esse momento histórico, datado a partir da década de 1930, dentre outros elementos é caracterizado pela promoção da industrialização, considerando o setor mineral como estratégico. A mineração era entendida como fonte fundamental de matéria prima a ser exportada, visando garantir os investimentos necessários para promover a industrialização de base. Nesse sentido, as
[...] leis do período desenvolvimentista costumavam reforçar a importância da extração mineral. Por exemplo, o Decreto-lei 3.365/1941 define a mineração como atividade de interesse público; da mesma forma, o Código Mineral (DECRETO-LEI no 227/1967) estabelece que ‘No curso de qualquer medida judicial não poderá haver embargo ou sequestro que resulte em interrupção dos trabalhos de lavra’ (COELHO; MILANEZ; PINTO, 2016, p. 184).
Sendo assim, “o desenvolvimento do setor mineral [...] se deu em íntima parceria com o Estado, particularmente com o governo federal, uma vez que o subsolo é considerado patrimônio da União” (COELHO; MILANEZ; PINTO, 2016, p. 184).O início da exploração massiva de minério de ferro brasileiro data da década de 1940 – emblematizada na fundação da estatal Vale do Rio Doce em 1942 (SILVA, 2004) –, sendo que a tributação única sobre carvão, combustíveis e lubrificantes, prevista pela Lei Federal nº 4/1940 (BRASIL, [1940] 2019a) foi estendida a todos os minerais pela Constituição Federal de 1946. Duas décadas depois, em nível estadual tem-se a promulgação do Decreto nº 6.132/1961, que dispõe do Código de impostos e taxas sob a mineração (MINAS GERAIS, [1961] 2019). Em nível nacional a regulamentação específica só ocorreu três anos depois, com a Lei nº 4.425/1964 (BRASIL, [1964] 2019) que institui o Imposto Único sobre Mineral (IUM) e o Fundo Nacional da Mineração – sendo revogada pelo Decreto Federal nº 1.038/1969, que estabelece novas normas relativas do imposto único sobre minerais e dá outras providências (BRASIL, [1969] 2019).O IUM é extinto pela Constituição Federal de 1988, que institui o pagamento de uma Compensação Financeira pela Exploração dos Recursos Minerais (CFEM), regulamentada pela Lei nº7.990/1989 – atualmente em vigor.
No que tange à mineração, cabe esclarecer que além do minério de ferro, essa também extrai e utiliza massivamente a água. Como se pode observar no Decreto Estadual nº 16.230/1974, que autoriza a Samarco S.A, a derivar águas públicas do rio Piracicaba e Córrego Germano, ou seja, concede “[...] o direito a uma vazão de 220 (duzentos e vinte) litros por segundo do Rio Piracicaba e 120 (cento e vinte) litros por segundo do Córrego Germano” (MINAS GERAIS, [1974] 2019).Entretanto, como aponta o Centro de Estudos Históricos e Culturais da Fundação João Pinheiro (FEMA, 1998), essa quantidade de vazão não será respeitada, diante ao crescente aumento da atividade mineradora, já que o setor extrativo mineral acendeu 18%, entre 1970 e 1974. Crescimento que se dá no período Pós Segunda Guerra Mundial, marcado pela aceleração da economia global, levando o país a sucumbir ao processo de industrialização a qualquer custo – isto é, crescimento econômico mesmo que sob a degradação ambiental, que culminará em deterioração das condições de vida da população. Desse modo, “o processo de formulação e implementação da política ambiental no Brasil é relativamente recente, tendo como marco o início da década de setenta. [...] em grande parte, determinada pela amplitude mundial da discussão fomentada pelos países desenvolvidos” (FEMA, 1998, p. 43)21.
Anos mais tarde, a promulgação da Constituição Federal de 1988 dedica um capítulo ao meio ambiente, garantindo que seja ecologicamente equilibrado, pois é essencial para qualidade de vida sadia. Dessa forma, define que “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (BRASIL, [1988] 2019). Consequentemente, incumbe ao poder público
[...] preservar, restaurar e gerenciar os processos ecológicos em geral; definir e regulamentar os espaços territoriais a serem protegidos; requisitar o estudo de impacto ambiental para instalação de obra ou atividade potencialmente degradadora do meio ambiente; e controlar a produção, o comércio, e o uso de técnicas e substâncias danosas à vida e ao meio ambiente. O Estado fica responsável também por promover a educação ambiental, proteger a flora e fauna, exigir a recomposição de áreas degradadas por exploração mineral e aplicar sanções penais e administrativas aos que realizarem atividades consideradas lesivas ao meio ambiente (FEMA, 1998, p. 54).
Apesar de a carta magna prevê a proteção ao meio ambiente e o direito à população ao meio ambiente equilibrado, o responsável por garantir a exequibilidade da lei – o Estado – é, também, aquele que autoriza/viabiliza as práticas predatórias do meio ambiente, inclusive amparando-as legalmente, por exemplo, o Código de Mineração, previsto pelo Decreto Federal nº 227/1967, atualmente em vigor.
Tal contradição é fundante no modo de produção capitalista, e que se expressa, por exemplo, na década de 1970 quando se amplia a problematização da “questão ambiental”22 (SILVA, 2010). Em Minas Gerais, a problemática ambiental é vinculada ao desenvolvimento tecnológico, articulada ao conceito de ecodesenvolvimento23, que busca um equilíbrio entre economia e meio ambiente (FEMA,1998). Entretanto, a utilização de tecnologia não renovável em conjunto com uma ideologia de consumo, é um agravante no impacto ambiental, pois não há possibilidade de sustentabilidade ambiental nos marcos da reprodução ampliada de capital.
Maiores mudanças na gestão desse modelo capitalista de mineração ocorreram durante a década de 1990, quando o Estado brasileiro irá alterar a forma de gerir a mineração, abandonando a gestão estatal e implementando a gestão privatizada. Vemos isso na Lei Federal nº 8.031/1990, que cria o Programa Nacional de Desestatização (BRASIL, [1990] 2019), que será revogada pela Lei Federal nº 9.491/1997 (BRASIL, [1997] 2019), em que estabelece:
Art. 1º O Programa Nacional de Desestatização – PND tem como objetivos fundamentais:
I - reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público;
II - contribuir para a reestruturação econômica do setor público, especialmente através da melhoria do perfil e da redução da dívida pública líquida;
III - permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada;
IV - contribuir para a reestruturação econômica do setor privado, especialmente para a modernização da infraestrutura e do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia, inclusive através da concessão de crédito;
V - permitir que a Administração Pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais;
VI - contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, através do acréscimo da oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das empresas que integrarem o Programa (BRASIL, [1997] 2019).
Vários leilões de estatais foram feitos, majoritariamente durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, inclusive da empresa Vale do Rio Doce – privatizada em 1997, estando incluída no Programa Nacional de Desestatização previsto no Decreto Federal nº 1.510/1995 (BRASIL, [1995] 2019).
Em consonância com o cenário mundial, nacional e estadual, de contradição entre crescimento econômico e equilíbrio ambiental, observamos as particularidades das legislações marianenses referentes ao meio ambiente. A Lei Municipal Complementar nº 1.643/2002, que dispõe sobre a Política Municipal de Meio Ambiente de Mariana prevê:
Art. 2º - Para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado a política municipal observará os seguintes princípios:
I – desenvolvimento sustentável das atividades econômicas, sociais e culturais;
II – prevenção aos danos ambientais e às condutas consideradas lesivas ao meio ambiente;
III – função social ambiental da propriedade urbana e rural;
IV – participação direta do cidadão e das entidades da sociedade civil na defesa do meio ambiente;
V – reparação dos danos ambientais causados por atividades desenvolvidas por pessoas físicas e jurídicas, de direito público ou privado;
VI – responsabilidade dos poluidores pelo cumprimento das exigências legais de controle e prevenção ambientais nos processos produtivos e demais atividades econômicas que interfiram no equilíbrio ecológico do meio ambiente;
VII – educação ambiental como processo de desenvolvimento da cidadania;
VIII – proteção aos espaços ambientalmente relevantes, através da criação de Unidades de Conservação;
IX – harmonização da Política Municipal de Meio Ambiente com as Políticas Estaduais e Federais sobre a mesma matéria;
X – responsabilização conjunta de todos os órgãos do Poder Público pela preservação, conservação e melhoria do meio ambiente (MARIANA, [2002] 2019, negrito nosso)
Igualmente, a Política de Desenvolvimento Urbano-Ambiental, previsto na Lei Municipal Complementar nº 16/2004(MARIANA, [2004] 2019), se propõe tratar do desenvolvimento sustentável, entendendo-o como modelo “que alia o desenvolvimento econômico do Município à inclusão social de seus habitantes e à utilização ambiental equilibrada de seu território”. Além disso, prevê o eixo de exploração mineral24 como um dos eixos de dinamização socioeconômica25 do município, vislumbrando à redução de impactos via “planos de manejo sustentáveis e de medidas mitigadoras adequadas” e “exploração sustentável de atividades mineradoras existentes através de fiscalização eficiente”. Outro destaque nessa legislação, são os “Programas Estratégicos de Desenvolvimento Socioeconômico”, no qual estão previstas ações voltadas aos impactos das barragens hídricas, sem menção as barragens de rejeito da mineração.
A ausência de regulamentação municipal específica para mineração, além do que diz respeito as barragens de rejeito, também se dá no que tange à fiscalização do uso da água no processo de extração minerária. Visto que a quantidade de vazão hídrica utilizada pela mineração se deu prioritariamente e em detrimento do consumo humano e animal – portanto, ao contrário do determinado na Lei nº 9.433/97, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos (ALVES, 2010) –, principalmente, diante ao boom das commodities, como aponta Wanderley, Mansur e Pinto (2016, p. 58):
Outro ponto que merece atenção é o crescimento do consumo de água na operação da Samarco nos últimos anos, evidenciando uma sobrecarga nos recursos naturais, resultante da estratégia de diminuição de custos e de ganho da escala de produção. Mesmo durante um acentuado período de estiagem em 2014, a empresa ampliou o seu consumo de água significativamente, aumentando 114%, chegando ao marco de 29,6 milhões de m3 captados em Minas Gerais. No mesmo ano e no ano seguinte, a cidade de Mariana identificou uma redução de 50% no nível da captação de água da cidade, tendo que contar com caminhões-pipa e controlar o fluxo do sistema com a adoção de rodízio para garantir o suprimento do abastecimento na área urbana [...].
São essas, portanto, as legislações em vigor no momento de ruptura da barragem de rejeitos de mineração da empresa Samarco/Vale/BHP Billiton em Mariana. Isto é, essas eram as regulamentações que definiam a mineração como atividade produtiva prioritária e legislavam sobre seus impactos ambientais no território.
E após 05 de Novembro de 2015?
Após a ocorrência do crime minerário, há a emissão do Decreto Estadual nº 517/2015 (MINAS GERAIS, [2015] 2019), um dia após o rompimento da barragem, que trata da homologação do Decreto Municipal nº 8.034/2015, onde o prefeito de Mariana declarou situação de emergência nas áreas do município atingidas pela ruptura da barragem de Fundão. No entanto, é somente em 2017, dois anos após o crime, que se institui o Código Ambiental de Mariana, via Lei Complementar nº 168/2017, que revoga a Lei nº 1.643/2002. Esta nova legislação prevê que
Art. 61. O poder público deverá exigir das empresas efetiva ou potencialmente poluidoras, a título de contrapartidas socioambientais, a realização de investimentos e benfeitorias voltados à preservação ou recuperação do meio ambiente e do bem-estar das comunidades afetadas pelas atividades poluidoras, o que será estabelecido em Termos de Compromisso de Contrapartida Socioambiental, com o objetivo de: [...]
V- Estimular, por meio da melhoria da infraestrutura do município, a diversificação da economia e redução do grau de dependência das empresas mineradoras, de forma que o município alcance condições ideais para manter seu desenvolvimento, mesmo na hipótese de encerramento da atividade de mineração, seja pelo exaurimento dos recursos minerais ou quaisquer outros motivos (MARIANA, [2017] 2019).
Além disso, destaca-se que o Código de Mineração, previsto desde o Decreto Federal nº 227/1967, continua sendo o marco nacional de referência, embora modificado nos anos de 2017 e 2018, via a emissão de decretos pelo executivo nacional. Cabe esclarecer que, no momento do boom mineral das commodities, tem-se o Projeto de Lei Federal nº 5.807/2013 (BRASIL, [2013] 2019), que propunha atualizar o Código de Mineração, ampliando a ameaça aos direitos socioambientais e econômicos das populações atingidas pelo atual modelo de mineração. Visto que previa a autorização de atividades minerárias em unidades de conservação, terras indígenas e quilombolas, intensificando a extração de bens naturais e a exploração dos trabalhadores. A proposta do novo Código de Mineração26, não foi apresentado para debate com a sociedade estimando-se uma aprovação sem obstáculos, porém as discussões e análises foram paralisadas quando aconteceu o crime de rompimento da barragem de Fundão. Apesar da paralisação desse projeto de lei, o então presidente Temer instaurou as Medidas Provisórias nº 78927, 79028 e 79129 , todas em 25 de julho de 2017, conhecidas como Medidas Provisórias da Mineração, alterando vários pontos do Código de Mineração de 1967. E ainda, “[...] para corroborar o fatiamento das normas para o setor mineral, em 12 de junho de 2018, o governo publicou o Decreto nº 9.406 (BRASIL, 2018), que regulamenta o Código de Mineração de 1967 vigente” (LOPES; OLIVEIRA, 2018, p. 40). Este último, portanto, não instaura um novo Código de Mineração e, sim, dá nova regulamentação para aquele instituído no Decreto nº 227/1967, revogando o Decreto nº 62.934/1968.Ou seja,
O Decreto 9.406/18 [...] faz parte do Programa de Revitalização da Indústria Mineral Brasileira, iniciado em julho de 2017, com a publicação das três medidas provisórias da mineração que resultaram em duas leis ordinárias para criação da Agência Nacional da Mineração30 e para alteração na forma de cobrança da compensação financeira pela exploração dos recursos minerais [...] (LOPES; OLIVEIRA, 2018, p. 41).
Diante a análise das legislações apresentada indagamos para que existe e a quem serve o atual modelo de mineração? Afinal, “[...] esses políticos têm buscado alterar a legislação vigente, flexibilizando e fragilizando ainda mais a legislação mineral, ambiental e trabalhista existente, o que tenderá a intensificar o ritmo de extração mineral, possivelmente facilitando a violação de direitos de comunidades e trabalhadores” (WANDERLEY, MANSUR, PINTO, 2016, p. 44 -45).Desse modo, as legislações pós 05 de Novembro de 2015 em nada modifica e, sim, reforça o modelo de mineração existente antes do crime de ruptura da barragem de Fundão. Esse padrão de minerar que contempla “os interesses das grandes empresas mineradoras e a abertura de capital para a exploração mineral no território brasileiro” (LOPES; OLIVEIRA, 2018, p. 46).
Considerações finais sobre o campo de estudo
A pesquisa que originou esse artigo se deu no campo de estudo do crime minerário, considerando a ruptura da barragem de mineração de Fundão, na unidade industrial de Germano da empresa mineradora Samarco, controlada pela Vale S&A e BHP Billinton, ocorrida em 05 de novembro de 2015.
Diante da análise dos marcos legais de regulamentação da mineração em Mariana, podemos aferir que o Estado define a extração mineral como atividade produtiva prioritária nos territórios em que impera o atual modelo de mineração. Visto que, na gerência do território minerado, preconiza os objetivos das empresas mineradoras em detrimento da vida e das formas de viver da população. Desse modo, apontamos que a legislação minerária é propositalmente insuficiente para garantir o bem estar humano e o meio ambiente equilibrado.
A aferição do caráter insuficiente da legislação se dá a partir da visão de mundo da classe trabalhadora, uma vez que o marco legal é contraditório quando considera de interesse público dois pontos que não podem ser assegurados concomitantemente: atual modelo de mineração e sustentabilidade social e ambiental. Essa contradição se formaliza nas legislações analisadas através do direcionamento via desenvolvimento sustentável, que consiste na estratégia hegemônica31 que “elenca a promoção de políticas públicas, a mudança no padrão de consumo e a inovação tecnológica como meio de melhoria socioeconômica e ambiental, sem mencionar a necessidade de transformação das relações sociais capitalistas” (MASCARENHAS, 2018, p.11).O que, longe de ser uma anomia, expressa a verdadeira natureza do Estado, que é zelar pelo funcionamento do modelo de desenvolvimento capitalista cujo objetivo central é a produção de valor.
Ao que tange ao caso aqui analisado, no território da Bacia do Rio Doce é inconteste que o crime de ruptura da barragem de Fundão concretizou o reassentamento (forçado)32 da população do distrito marianense de Bento Rodrigues, o que pode ser observado no relato de uma das atingidas:
Sem “lá fora”. Ouvi essa expressão e fui tomada imediatamente pela certeza de que ela sintetiza muito a saudade que temos: as experiências de troca com a natureza, como sentir o vento no rosto, escutar o som dos pássaros, sentar no chão. [...]Saudade da amoreira! Ainda está lá, coberta de lama, somente as folhas da copa, que, meio, amareladas, mostram um resto de vida. Até quando, não sei, à sua volta só tem destruição (PEIXOTO, [2016] 2019).
É sabido que a saída da população do extinto território originário de Bento Rodrigues era anteriormente almejada, como denuncia o Dossiê Mirandinha33, ao apontar que a empresa Samarco/Vale/BHP Billinton buscou adquirir o território do distrito marianense, por via da compra dos terrenos dos moradores, porém sem sucesso. A verdade é que muitos mineiros e brasileiros alertaram para o atual modelo de mineração, que existe a mais de 300 anos, a partir do crime de ruptura da barragem de Fundão. Mas, como essa barragem há muitas outras “bombas-relógio”34, das quais não se pode atestar não ser de risco. Visto a ruptura da barragem do Córrego do Feijão da Vale S&A, em 25 de janeiro de 2019, no município de Brumadinho-MG, acarretando o escoamento de 12m³ milhões de rejeitos por mais de 45 km (PASSARINHO, 2019), ceifando a vida de 272 pessoas – considerando dois bebês, visto que duas mulheres estavam grávidas (PAES, 2019), sendo que os corpos de 11 pessoas permanecem desaparecidos (LINHARES, 2020).
As aferições da pesquisa aqui desenvolvida, longe de apresentar uma conclusão, visa sinalizar que o estudo do crime de ruptura de barragem de mineração é um campo em construção e que carece de pesquisas comprometidas em desvelar as consequências da destruição social e ambiental em território atingido pelo atual modelo de mineração – cuja supressão requer uma ordem social para além do capital.