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O mar virou sertão? Um estudo sobre as ilhas de calor no Complexo da Maré
Carolina Hartmann Galeazzi; Oscar Corbella; Patrícia Drach
Carolina Hartmann Galeazzi; Oscar Corbella; Patrícia Drach
O mar virou sertão? Um estudo sobre as ilhas de calor no Complexo da Maré
O Social em Questão, vol. 23, núm. 48, pp. 267-294, 2020
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: O aquecimento produzido pelas cidades, chamado de ilha de calor, acentua as mudanças climáticas e tem impacto na saúde dos cidadãos, principalmente daqueles que vivem em situações de maior vulnerabilidade. O controle das ilhas de calor é possível ampliando o monitoramento das temperaturas urbanas, através da criação de estações meteorológicas de baixo-custo que instalamos, inicialmente, no Complexo da Maré. Acreditamos que através do uso da tecnologia de dados abertos e da ciência aberta, possa-se aproximar ciência e comunidade, empoderar cidadãos e mitigar o aquecimento urbano através de intervenções urbanas pontuais, com foco na melhoria da qualidade de vida.

Palavras-chave:Mudanças climáticasMudanças climáticas,Justiça AmbientalJustiça Ambiental,SaúdeSaúde,Ciência AbertaCiência Aberta,FavelaFavela.

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Artigos

O mar virou sertão? Um estudo sobre as ilhas de calor no Complexo da Maré

Carolina Hartmann Galeazzi
UFRGS, Brasil
Oscar Corbella
Instituto de Física Balseiro, Bariloche, Argentina, Argentina
Patrícia Drach
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Brasil
O Social em Questão, vol. 23, núm. 48, pp. 267-294, 2020
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

O mar virou sertão? Um estudo sobre as ilhas de calor no Complexo da Maré

Carolina Hartmann Galeazzi1

Oscar Corbella2

Patrícia Drach3

Resumo

O aquecimento produzido pelas cidades, chamado de ilha de calor, acentua as mudanças climáticas e tem impacto na saúde dos cidadãos, principalmente daqueles que vivem em situações de maior vulnerabilidade. O controle das ilhas de calor é possível ampliando o monitoramento das temperaturas urbanas, através da criação de estações meteorológicas de baixo-custo que instalamos, inicialmente, no Complexo da Maré. Acreditamos que através do uso da tecnologia de dados abertos e da ciência aberta, possa-se aproximar ciência e comunidade, empoderar cidadãos e mitigar o aquecimento urbano através de intervenções urbanas pontuais, com foco na melhoria da qualidade de vida.

Palavras-chave

Mudanças climáticas, Justiça Ambiental, Saúde, Ciência Aberta, Favela

Did the sea become an arid hinterland? A study of urban heat islands in the Maré Complex

Abstract

The warming of cities, called urban heat island, accentuates climate change and affects the health of citizens, especially those who live in areas of greatest vulnerability. It’s possible to control urban heat islands by expanding the urban temperatures monitoring, through low-cost meteorological stations installed, initially, in Complexo da Maré. We believe that through open data technology and open science, we can approximate science and community, empower citizens and mitigate urban warming through key urban interventions, focusing in the quality of life improvement.

Keywords

Climate change, Environmental Justice, Health, Open Science, Favela

Artigo recebido em março de 2020

Artigo aprovado em maio de 2020

Introdução

A Região Metropolitana da cidade do Rio de Janeiro, habitat de mais de 10 milhões de pessoas, vem se tornando cada vez mais quente. Em 20 anos, as temperaturas do solo urbano aumentaram 15°C (1980-2000) e são, em média, até 7°C mais elevadas que as áreas não urbanizadas vizinhas (LUCENA, 2012).

O aquecimento da cidade, resultante da industrialização e urbanização intensa e desordenada, é chamado de ilha de calor urbana. A ilha de calor urbana é quando o ar no dossel urbano é mais quente do que na paisagem circundante não urbana (OKE, 1987). É a principal manifestação do clima urbano e um dos principais problemas ambientais do século XXI (RIZWAN et al., 2008) diretamente relacionado ao crescimento populacional e às mudanças climáticas (STEWART e OKE, 2012). As ilhas de calor podem ocasionar não apenas desconforto, mas danos maiores à saúde, aumentando as taxas de mortalidade (RYDIN, 2012), além de acentuarem a demanda energética e potencializarem o aquecimento global (VOOGT, 2004).

Saldiva (2018), em seus estudos sobre a saúde urbana e os desafios das metrópoles, indica que as cidades apresentam variações de sua vulnerabilidade com relação às mudanças de temperatura. As alterações de temperatura do ar, que conduzem as cidades além dos limites do conforto térmico da população, podem ocasionar aumentos de 50% da mortalidade em suas zonas extremas, visto que os picos dos dias mais quentes provocam um aumento expressivo da mortalidade, que está camuflada pelas doenças que exacerbou, como os infartos do miocárdio e os derrames cerebrais (SALDIVA, 2018). Crianças, idosos, doentes e as pessoas pobres são particularmente mais vulneráveis aos eventos climáticos extremos (BARATA et al., 2018).

Neste contexto, perguntamos: é possível limitar o aquecimento urbano na cidade do Rio de Janeiro, de forma a evitar que chegue a níveis elevados a ponto de causar impacto negativo na qualidade de vida de sua população?

Uma das maneiras de monitorar essa variação da temperatura intraurbana para compreender a influência da ocupação urbana e das atividades antrópicas, com o intuito de eventualmente prevenir e/ou mitigar as mudanças climáticas, é fazer o recolhimento de dados climáticos como temperatura e umidade relativa do ar de maneira local. Os dados podem ser identificados desde o microclima - que, segundo Monteiro e Mendonça (2003), está relacionado à escala da habitação - até o mesoclima, relacionado à escala do urbanismo.

Os registradores de dados usualmente utilizados em pesquisas de conforto e clima urbano são aparelhos eletrônicos geralmente importados que possuem elevados custos iniciais e de manutenção, dada a necessidade de precisão e acurácia. Este fator inviabiliza o mapeamento de uma região de forma mais detalhada com a coleta de dados em escala territorial (quantidade de amostras x distribuição na área total). A maioria das estações meteorológicas existentes nas cidades não fornecem informações suficientes para simular a distribuição espacial das temperaturas urbanas. Além de existirem em pouco número, em sua maioria estão dispostas em altitude que visam caracterizar o clima regional e evitar influências locais, não representando as temperaturas abaixo do dossel urbano, cujas medidas são feitas na altura do tórax a 1,5 metros do nível da rua (GARTLAND, 2010) e, raramente estão posicionadas em configurações urbanas informais.

As comunidades mais pobres são mais vitimadas pelos processos de alteração do clima. Estão mais expostas às emanações de gases das indústrias poluentes nos microclimas onde vivem, sendo afetadas de forma mais intensa e acelerada do que a média global. O movimento por justiça climática demonstra que a questão ambiental e a questão social estão atreladas e devem ser analisadas conjuntamente (ACSELRAD et al., 2008).

A globalização e as novas tecnologias são promotoras de conflitos e vulnerabilidades socioambientais, mas, ao mesmo tempo, propiciam o reconhecimento do outro em escala cada vez mais planetária. Essa é uma das bases para a constituição de uma nova ética e identidade, que “dentro da diversidade, permitam o avanço de ideais tão modernos – por vezes ainda tão distantes – como liberdade e fraternidade” (FIRPO, 2012, p.16).

Nesse sentido, a ciência e a academia podem vir a ser um instrumento de apoio mútuo, na medida em que cumprem sua função em construir conhecimento de maneira mais abrangente. Firpo (2012) indica que, para isso, é necessário aproximar a academia a quem não tem acesso a ela, através da linguagem acessível e troca de conhecimentos, superando a dicotomia erudito x popular. Os riscos ambientais, decorrentes do desenvolvimento econômico e tecnológico, estão relacionados à forma de entender e fazer ciência. O desafio de superar essas fragmentações é fundamental para estabelecer pontes entre áreas do conhecimento, e sua democratização (FIRPO, 2012).

Desse modo, este estudo se propõe construir e instalar estações meteorológicas de baixo-custo distribuídas, em uma primeira etapa, no Complexo da Maré, com o objetivo de avaliar relações entre o meio urbano e as variações da temperatura intraurbana para, possivelmente, aplicar estratégias de mitigação através de intervenções pontuais urbanas e do conceito de ciência aberta.

Apresentamos, nesse artigo, o modelo de urbanização do Rio de Janeiro e como esse foi determinante na formação dos territórios e ilhas de calor desiguais. A seguir, trazemos algumas experiências de recolhimento de dados no campo da ciência cidadã ao redor do mundo, que demonstram êxitos alcançados. Finalmente, como estratégia de monitoramento do aquecimento urbano, criamos uma metodologia que evidencia alternativas possíveis ao enfrentamento dos problemas ocasionados por mudanças climáticas em contexto metropolitano de territórios desiguais. É importante destacar que esse estudo se encontra, atualmente, em andamento, na fase de coleta de dados.

Rio, um mar de gente

Em 2010, o IBGE contabilizou 6,32 milhões de habitantes na cidade do Rio, sendo 10,79 milhões a população da metrópole, considerada a segunda maior do país. Estima-se que a Região Metropolitana do Rio de Janeiro poderá crescer mais do que 30% em 20 anos (2010-2030), chegando a 14 milhões de habitantes (ONU, 2015). Ademais, a população residente em favelas vem crescendo de modo contínuo: em 1980 era 14% da população total, em 2010 chegou a 22% (IBGE, 2010) e, seguindo as projeções da ONU, este número seguirá aumentando.

Segundo os dados do IBGE (2010), a população do Rio de Janeiro quadriplicou no período de 1870 a 1920, ultrapassando 1 milhão de habitantes. Nos anos de 1880 a cidade se expandiu, principalmente, da região central para as Zonas Norte e Sul. Posteriormente, começou o seu deslocamento para a Zona Oeste e para a região metropolitana como um todo.

O crescimento dos subúrbios da Zona Norte se intensificou com a construção da Estrada de Ferro Dom Pedro II (1858) e as primeiras fábricas ali implantadas (1889) se convertendo, então, no espaço proletário, enquanto a burguesia se deslocava para a Zona Sul, que já possuía ramais de linhas de bondes que chegavam até o Leblon, Jardim Botânico e Copacabana e construíam a imagem do Rio de Janeiro moderno (SEGRE, 2004), o principal cartão postal da cidade. Na Zona Norte, porém, é exatamente onde se concentra, atualmente, a maior parcela da população carioca (40,2%), com densidade média de 11,7 hb/km² (IBGE,2010), que corresponde à Área de Planejamento 3. Justamente para onde convergiu a população de menor poder aquisitivo que se concentrou ao longo da via férrea e das zonas industriais, de rápida densificação urbana, e onde possui ilhas de calor intensas, como pode ser visto na Figura 1.

Figura 1. Mapa da composição das médias da Temperatura de Superfície Continental (TSC) na Região Metropolitana do Rio de Janeiro na década de 2000-2010.

Fonte: Lucena (2012).

O relatório Estratégia de Adaptação às Mudanças Climáticas da Cidade do Rio de Janeiro (FRANCO et al., 2016) indica que a Área de Planejamento 3 (AP 3) se trata de ambiente urbano de médio a alto adensamento construído, forte presença de favelas e carente de áreas verdes intraurbanas e naturais no território, fazendo com que seja a AP mais exposta a altas temperaturas. Além disso,

concentra grande contingente populacional com baixo nível de renda e escolaridade e menor acesso à informação…A perpetuação das condições de vulnerabilidade da AP 3 no futuro poderá agravar os impactos dos perigos climáticos, especialmente aumento de temperaturas. No entanto, o Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro propõe o direcionamento de maior montante de investimentos para essa região. Alerta-se que os investimentos em mobilidade realizados recentemente poderão levar ao adensamento que, se não for adequadamente controlado, poderá potencializar as altas temperaturas (FRANCO et al., 2016, p.37).

A rápida urbanização, referente aos países de industrialização tardia, deu origem a grandes cidades e ao surgimento de favelas no século passado e teve como resultado que “por toda parte, a infraestrutura e a saúde pública perderam para o aumento populacional” ( DAVIS, 2006 p. 159). Atualmente as favelas são parte indissociável da paisagem urbana brasileira e carioca: é construída pelos próprios moradores, geralmente em áreas invadidas, sem a presença de arquitetos, engenheiros ou legislação urbanística: “é a urbanização dos baixos salários” (MARICATO, 2013, p. 21).

Na Zona Norte, estão localizadas duas grandes favelas do Rio de Janeiro, os Complexos do Alemão e da Maré, esta última onde foi desenvolvido este estudo e sua origem é descrita a seguir.

Maré, o mar aterrado

A Maré nasceu entre águas: a ocupação inicial da Maré se deu no Morro do Timbau, que significa Entre Águas, em tupi-guarani (Thybau). Dona Orosina, a primeira ocupante do lugar, se encantou pela paisagem de águas límpidas (VAZ, 1994), que passou por muitas transformações desde então, pois outras comunidades foram se consolidando sobre o mar, afastando o horizonte das águas, formando, ao mesmo tempo, muitas Marés.

Constituído por 17 comunidades, o Complexo da Maré reúne cerca de 130 mil habitantes (estimativa do Instituto Pereira Passos sobre censo IBGE, 2010). O processo de ocupação da Maré se consolidou a partir da construção da atual Avenida Brasil, em 1946, onde se criou um cinturão industrial, desvalorizando a região para a especulação imobiliária. As encostas e as áreas alagadiças existentes naquele trecho da Baía de Guanabara, e a proximidade do centro, tornaram-se condições favoráveis para o surgimento das favelas que cresceram, inicialmente, sobre palafitas (COELHO, 2007).

Logo as palafitas foram substituídas por casas autoconstruídas ilegalmente ou construídas pelo estado, provisórias ou permanentes, transformadas pela necesidade de densificação, formando diferentes morfologias urbanas, das quais três delas são o objeto deste estudo: Baixa do Sapateiro, Nova Holanda e Pinheiros.

As ilhas de calor no mar urbano

Estudos das ilhas de calor (BRANDÃO, 1996; LUCENA, 2005 e 2012; TEZA e BAPTISTA, 2005; entre outros) têm evidenciado que há um aumento considerável da temperatura do ar em diversas regiões da cidade do Rio de Janeiro. Uma das causas das ilhas de calor é a urbanização acentuada (RIZWAN et al., 2008). Ilhas de calor são comuns em grandes cidades e estão relacionadas ao uso do solo - como a metropolização, o modelo de crescimento urbano adotado e a industrialização - e dependem de fatores como o macroclima e a localização geográfica. As temperaturas variam conforme horário do dia e estação do ano, forma e função da cidade (VOOGT, 2004).

Landsberg (1956), Chandler (1965) e Voogt (2004) observaram que as zonas centrais das cidades tendem a possuir ilhas de calor mais intensas do que as áreas residenciais suburbanas. No entanto, Lucena (2012) constatou, a partir de imagens de satélite, que na cidade do Rio de Janeiro, há uma disseminação de núcleos quentes distribuídos pelo perímetro urbano, onde os subúrbios registram temperaturas maiores do que aquelas observadas na região central, como é o caso de muitos bairros da Zona Norte e Zona Oeste da cidade.

Um estudo sobre as ilhas de calor (LUCENA E PERES, 2015), na região metropolitana do Rio de Janeiro, constatou que os lugares mais quentes da cidade são também os que possuem renda mais baixa. Os espaços

com maior desconforto, com maiores focos da ilha de calor, estão situados nas áreas com infraestrutura urbana precária, de material urbano de pior qualidade e ausentes ou distantes das amenidades da natureza, constituindo espaços insalubres, mais comuns nos bairros de periferia e nas favelas (LUCENA e PERES, 2015, p. 204).

Desse modo, a espacialização verificada comprova que a situação social e a renda também definem os espaços de maior conforto e desconforto térmico urbano, estabelecendo a segregação espacial de origem socioambiental. Pode-se perceber na cidade do Rio de Janeiro que o calor, além de atingir áreas da cidade de maneira desigual devido à complexidade de seu quadro geoecológico, é mais forte nas áreas afetadas pela produção antropogênica e por investimentos urbanos diferenciados, tendo suas consequências agravadas em áreas de favela (LUCENA E PERES, 2015). Para Firpo (2012, p.44), as vulnerabilidades sociais

resultam em gradientes ou diferenciais de exposição e efeito entre os grupos que vivem na periferia social e econômica do desenvolvimento e acabam por arcar com as principais cargas ambientais nos ambientes e territórios que trabalham e vivem. Riscos em contextos vulneráveis decorrem de desigualdades sociais, discriminação e racismo e são, portanto, uma questão de (in)justiça ambiental.

Acselard et al. (2008) consideram que o princípio da justiça ambiental corre contra o pensamento dominante, que considera democrática a distribuição dos riscos ambientais e que se atém ao tema da escassez e desperdício, consagrando o mercado como mecanismo regulatório das questões ambientais. Os movimentos de base, ao se verem em situações de proteção ambiental desigual, sentiram necessidade de uma nova definição do movimento ambientalista, que incorporasse as articulações por justiça social.

Uma questão que surge é se o ser humano poderá se adaptar às mudanças climáticas, ou se essas realmente representam um risco. Conforme Saldiva (2018), a adaptação da espécie humana ao clima aconteceu quando a perda dos pelos cutâneos foi acompanhado de mecanismos de adaptação do controle da temperatura e da intensidade de penetração da radiação solar, como as glândulas sudoríparas e produção da melanina. Desde o paleolítico, há evidências de mutações genéticas de adaptação aos diferentes climas, fazendo com que o continente africano tenha maior produção de melanina e maior redução no norte da Europa. A possibilidade de regular a quantidade de melanina “facilitou que a espécie humana pudesse sobreviver em latitudes com menor insolação e, ao mesmo tempo, derruba o conceito de raça, reduzindo o tema da coloração da nossa pele a uma questão de natureza adaptativa e evolutiva” (SALDIVA, 2018, p.85).

Saldiva (2018) conclui que não sabemos a resposta se os mecanismos fisiológicos de adaptação serão tão rápidos quanto as mudanças climáticas previstas. Por isso, é importante que criemos “antídotos” para amenizar tal acontecimento, principalmente para as populações mais vulneráveis que apresentam riscos maiores.

O Movimento pela Justiça Ambiental traz como um dos princípios “poluição tóxica para ninguém”, que luta contra a exportação da poluição para países, cidades ou bairros onde a população esteja menos organizada, colocando em discussão os princípios de justiça que orientam as decisões locacionais dos males ambientais. Acredita-se que a injustiça ambiental cessará com a contenção dos agentes econômicos com maior poder de causar impactos ambientais. O Movimento tem como estratégia, para a democratização dos processos decisórios, o pleno envolvimento e informação das comunidades e organizações sociais, supondo-se a socialização integral das consultas e informações sobre os riscos que os empreendimentos geram. Dentro desse contexto, busca-se a produção de conhecimento próprio, incorporando as questões de participação pública, institucional e política, incluindo as dimensões vivenciadas pelos grupos atingidos (ACSELRAD et al., 2008).

Harvey (2000) afirma que a produção de nossas dificuldades ambientais decorre do projeto de classe hegemônico, de sua filosofia fundada no mercado e das formas de pensamento a ela associadas. Isso requer, como reação, que se organize um projeto político que não repita a retórica de limite e colapso na qual o pensamento ambientalista global é fundado, mas de prevenção e redução do risco, de recuperação e controle de recursos em que a classe trabalhadora, os destituídos e os marginalizados assumam um papel de liderança.

Além disso, Firpo (2012) alega que organizações do trabalho autoritárias bloqueiam processos coletivos de aprendizagem pois não existem espaços para a comunicação das necessidades das pessoas de nível hierárquico mais baixo. A relação local-global da questão ambientalista traz a necessidade da abordagem sistêmica e holística frente à complexidade técnica e social dos ciclos geração-exposição-efeitos dos riscos ambientais modernos. Para tanto, urge a implementação de novas estratégias de análise científica, de prevenção, de argumentação e discussão pública, ou seja, um novo posicionamento ético. A sociedade de risco apresenta um potencial de aprendizado que pode levar a um outro caminho que nos torne mais saudáveis, felizes e dignos (FIRPO, 2012).

Um mar de dados

Nesse contexto, Harvey (2013) lança a questão: como se poderia desejar um mundo alternativo possível ou mesmo imaginar seus contornos, enigmas e charmes, quando se está profundamente imerso na experiência que já existe? Ensaiamos uma resposta: difundindo o conhecimento, desbloqueando os processos coletivos de aprendizagem, estimulando o empoderamento e a resistência.

Para transcender o que já é conhecido, é necessário buscar e difundir outros conhecimentos e realidades possíveis, na construção de novos padrões urbanos, sociais e ambientais. As redes sociais podem atuar como um vínculo, uma porta de entrada, pois estabelecem novos compromissos entre pessoas, movimentos sociais e organizações entre causas comuns, ajudando a pensar de forma sistêmica, solidária e responsável (FIRPO, 2012). Assim, segundo Firpo (2012), é possível produzir

uma ciência mais sensível, que busca continuamente transformar objetos humanos em sujeitos, aliar técnica e coração, aceitar e compreender a complexidade dos problemas [...], as restrições da natureza, a limitação e as incertezas do conhecimento científico como bases para produzirmos decisões sábias (FIRPO, 2012 p.48).

Para Albagli (2015), a complexidade dos desafios científicos e a urgência das questões sociais e ambientais impõem que se facilite a colaboração e o compartilhamento de dados, informações e descobertas. Com esse propósito, o movimento pela ciência aberta

deve ser pensado no contexto dos movimentos sociais que emergem em meio a mudanças nas condições de produção e circulação da informação, do conhecimento e da cultura, e que vêm desestabilizando arcabouços epistemológicos e institucionais vigentes (ALBAGLI, 2015 p.9).

Este novo modo de fazer ciência possibilita experiências de colaboração entre cientistas profissionais e cidadãos interessados – ou pesquisadores amadores - sob o nome de ciência cidadã. Iniciativas orientadas para maior participação e empoderamento de cidadãos, não só nas formas de produção e uso, mas nos próprios rumos da pesquisa. É o caso do desenvolvimento de ferramentas abertas e descentralizadas em favor da democratização e apropriação cidadã da ciência e da tecnologia em favor da inovação social (ABAGLI 2015).

Segundo Kera (2015), a abertura de dados, a colaboração online e o crowdsourcing estão proporcionando a diminuição do custo da pesquisa experimental e do aumento da reprodutibilidade, através da construção de equipamentos de laboratório customizáveis de baixo custo. O hardware aberto é uma plataforma tecnológica para colaboração e criação de protótipos, que influencia a política e a tecnologia, permite a participação do público e o engajamento global em questões de seu interesse, não se prendendo a regras de patentes ou a interesses geopolíticos. O hardware aberto torna as pessoas capazes de construir novas ferramentas e aplicativos, além de transformar as condições e limites sociais (KERA, 2015). No âmbito das comunidades digitais de compartilhamento e produção colaborativa de conhecimento, revela-se uma eticidade intrínseca onde a participação é livre, assim como a apropriação e a disponibilização da informação (ABAGLI 2015).

Existem alguns exemplos envolvendo dados abertos e o envolvimento de cidadãos nas pesquisas ligadas ao monitoramento ambiental vinculado às cidades. Em Tóquio, depois de um forte terremoto e tsunami ter atingido o Japão e levado ao derretimento da usina nuclear de Fukushima, a plataforma web “Savecast” foi estabelecida em 2011 como uma organização centrada para empoderar as pessoas voluntárias a partir da coleta de dados sobre o meio ambiente. O projeto implantou uma rede de 100 sensores fixos em Fukushima, para detectar qualquer variação significativa ao nível de radiação.

Em Chicago, nos Estados Unidos, o “Array of Things” (AoT) é um projeto piloto de sensoriamento urbano, implantado em 2016, com o objetivo de “instrumentar a cidade”, através de uma rede de sensores aberta, flexível e modular que permitirá aos cidadãos “conversarem com a cidade”. A rede de sensores mede temperatura, pressão barométrica, luz, vibração, monóxido de carbono, dióxido de nitrogênio, dióxido de enxofre, ozônio, intensidade do som ambiente, tráfego de pedestres e veículos e temperatura da superfície.

Em Barcelona, segundo Balestrini et al. (2016), o FabLAb do Instituto de Arquitetura Avançada da Catalunia (IAAC), desenvolveu dois programas que envolvem tecnologia de dados abertos à comunidade: “Smart Citizen” (2012) e “Making Sense” (2016). O primeiro, que pode ser traduzido como Cidadão Inteligente, é uma plataforma baseada em geolocalização, Internet, hardware e software livres para coleta e compartilhamento de dados, para a geração de processos de participação social em áreas urbanas. Possui sensores que medem a composição do ar (CO e NO2), temperatura, intensidade da luz, níveis de som e umidade, e uma placa que transmite os dados medidos pelos sensores via Wi-Fi. O objetivo deste projeto é distribuir ferramentas e construir indicadores que conectem as pessoas às suas cidades, de modo que possam colaborar na produção de informação sobre elas, e posteriormente, com a construção coletiva da cidade para e pelos seus próprios habitantes (BALESTRINI et al., 2016).

O segundo projeto, traduzido como “Fazendo Sentido”, mostra como os cidadãos podem usar a tecnologia de código e sensores abertos para agir coletivamente no nível cívico. Da mesma forma que a “Smart Cirtizen”, a “Making Sense” desenvolveu um conjunto composto de um equipamento de medição e de um manual de instruções de fácil instalação, com sensores e uma plataforma de dados, que permitem aos cidadãos coletar, compartilhar e interpretar dados abertos sobre temperatura, umidade, ruído e qualidade do ar. O projeto permite que cidadãos, prefeituras e comunidades produzam e disponibilizem dados para o público, com o intuito de melhorar a conscientização ambiental dos cidadãos, assim como o engajamento na solução de questões ambientais urbanas com as quais eles se preocupam (BALESTRINI et al., 2016).

Da mesma forma, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Alves (2018) desenvolveu um protótipo de monitoramento meteorológico como tecnologia aberta e livre e voltado para a ciência cidadã que chamou de “Estações Meteorológicas Modulares”. Desenvolvida a partir de softwares livres, a estação permite registro de dados e envio a um servidor, a preços acessíveis, que possa ser adquirido por indivíduos e organizações como escolas e associações de moradores de bairro. Apresenta roteiro para quem quiser ampliar uma rede de monitoramento ambiental colaborativo, baseado em atividades educacionais para compreensão dos diferentes elementos da ferramenta e para a emancipação tecnológica.

Acredita-se, assim, que o monitoramento de dados como temperatura e umidade relativa através de estações meteorológicas em rede, poderá contribuir não apenas para estudar e compreender as causas das ilhas de calor e sua relação com o conforto térmico e saúde dos habitantes, mas também para o desenvolvimento de uma ciência mais acessível, aberta e colaborativa.

A seguir, é descrita a metodologia utilizada em nosso estudo para realizar o levantamento e a análise dos dados e compartilhar os resultados obtidos, bem como sua interpretação, com as populações envolvidas, em busca da resposta à pergunta: o mar - da região aterrada do Complexo da Maré – transformou-se em sertão?

O mar virou sertão?

O uso de registradores de dados e demais microestações climáticas pode melhorar a detecção das variações de temperatura e umidade do ar e apontar a formação das ilhas de calor urbanas, pois este fenômeno é uma medida de diferença, principalmente de temperatura do ar (VOOGT, 2002). O aumento da quantidade de estações climáticas devidamente distribuídas no território, pode permitir maior clareza na leitura de variações entre os meso e microclimas.

Desta forma, para viabilizar maior distribuição de medidores, foram criadas microestações meteorológicas e armazenadores de dados de baixo-custo montados a partir da tecnologia de dados abertos (open source), hardware Arduino Uno e/ou Nodemcu ESP 8622 e sensor de temperatura e umidade do ar.

A construção da micro estação meteorológica foi realizada através de peças disponíveis no mercado local, com sensores que apresentem uma leitura e desempenho semelhantes aos registradores usualmente utilizados em coleta de dados de temperatura e umidade do ar utilizado em pesquisas científicas. Disponibilidade do mercado brasileiro, desempenho e preço acessível formaram os pré-requisitos para a escolha das peças de hardware e sensores.

A programação das placas microcontroladoras Arduino Uno e Nodemcu ESP 8622 foi realizada com base nas bibliotecas dos sensores e com a ajuda dos fóruns de discussão e metodologias disponíveis online, como em Santos (2016). Foram fabricados, inicialmente, quatro microestações meteorológicas, que medem temperatura e umidade do ar, e enviam dados diretamente para uma página internet com visibilidade pública. Um abrigo protege os equipamentos eletrônicos das interpéries e dos raios solares diretos, conforme mostra a Figura 2.

Figuras 2 e 3. Estação meteorológica instalada na Redes (Nova Holanda) e na casa de moradora (Baixa do Sapateiro)

Fonte: Autora (2019)

Inicialmente, as estações foram fixadas em quatro territórios de forma urbana distintas. A estação número 1 está localizada no miolo da Nova Holanda, que foi inicialmente planejada para ser habitação temporária, mas cujo traçado e lotes em tamanho regular permaneceram até hoje, apesar das edificações terem se modificado. As casas iniciais de madeira foram substituídas por prédios de até 4 e 5 pavimentos autoconstruídos, em sua maioria, com ruas estreitas. A região não possui espaços verdes, e nela está localizada uma área de transferência de resíduos da Comlurb. Há alta densidade populacional, de 920 habitantes por hectare (Pulicci, 2016). A Figura 4 mostra seu traçado urbano. A Estação 2 também se localiza na Nova Holanda, no Observatório de Favelas, porém próxima à Avenida Brasil. Possui características urbanas mais de galpões industriais em desuso, como mostra a Figura 5. Traçado urbano característico do bairro vizinho, Bonsucesso.

Figuras 4 e 5.Traçado urbano do miolo da Nova Holanda e próximo a Avenida Brasil (Fonte: Google Earth, acessado 27/02/2020)

Fonte: Google Earth, acessado 27/02/2020)

A Estação 3 está localizada na Baixa do Sapateiro. É uma das ocupações mais antigas da região, e se define por ter um traçado resultado da ocupação espontânea, com ruas estreitas e tortuosas, conforme Figura 6. A Baixa do Sapateiro possui prédios de no máximo 5 pavimentos, ruas tortuosas e estreitas e uma densidade de 670 habitantes por hectare (Pulicci, 2016).

Figuras 6 e 7. Traçado urbano da Baixa do Sapateiro e no Pinheiro.

Fonte: Google Earth (acessado 27/02/2020)

A Vila do Pinheiro, onde está localizada a Estação 4, teve construção fragmentada de conjuntos de moradias para reassentar população removidas de outras áreas da cidade. Da mesma maneira que a Nova Holanda, as ruas permaneceram regulares, são mais largas que as duas organizações espaciais anteriores, mas nos lotes as edificações têm características de autoconstrução, como pode-se ver na Figura 7. Possui aproximadamente 3 pavimentos, e possui uma densidade mais baixa se comparada ao seu entorno: 410 habitantes por hectare (Pulicci, 2016). Quando aterrada, a Vila do Pinheiro guardou uma ilha, que é preservado como “Parque Ecológico”.

Acompanhar as variações de temperatura e comparar com estações climáticas existentes pode indicar quais localizações e formas urbanas merecem maior atenção e qual tipo de intervenção é mais apropriada para melhorar o conforto térmico de locais específicos. No caso do Complexo da Maré, será que o aterro, por si só, influencia no conforto daqueles que o habitam? E o que pode ser feito para minimizar o impacto das ilhas de calor?

Colaborar e Mitigar: uma brisa de mar no sertão

Ao falarmos sobre as ilhas de calor com os moradores, chegou-se à conclusão – através da experiência do morador de viver a transformação que o asfaltamento de ruas, anteriormente cobertas com paralelepípedo, teve como reflexo o aumento da temperatura urbana. Quando as moradias eram palafitas então, o conforto térmico era muito maior, o que vem ao encontro do suporte teórico desse trabalho.

As quatro estações instaladas revelaram situações climáticas específicas, apresentando diferenças entre si, e com relação a uma estação municipal de referência localizada em São Cristóvão (estação municipal mais próxima da área em estudo), indicando que há influência do entorno construído no microclima.

Os moradores observaram, também, que quando a favela não era tão densamente construída, havia a brisa do mar que penetrava nas ruas aliviando o calor. Naquela época, a vegetação que hoje é escassa pois não há mais espaços para plantar – também ajudava: através do sombreamento e da evaporação, que retira calor do ambiente para a realização da fotossíntese. De fato, a área que se observou mais quente é a área mais densa, em que o vento não perpassa, e que possui pouca vegetação. O que alivia a sensação térmica nessas áreas, é o sombreamento das edificações entre si, e na rua.

Segundo Gartland (2010), entre outros autores, há, principalmente, três práticas que podem ser aplicadas para mitigar o calor urbano:

Uso da vegetação: através do sombreamento das árvores, as superfícies sombreadas aquecem menos, reduzindo o calor que é transferido para o ar. Além disso, no seu processo de fotossíntese, o gás carbônico é capturado, colaborando com purificação do ar, e pela evapotranspiração, as temperaturas do ar que entram em contato com as plantas, diminuem.

Coberturas frescas: possuem duas características principais: refletância solar alta - entre 40% (coberturas coloridas) e 70% (coberturas claras) - e alta emissividade térmica (acima de 80%). A alta refletividade, como o nome diz, irá refletir a energia do sol e dos comprimentos de onda infravermelhos, ou seja, quanto mais o material refletir, menos calor ele absorve. O material com alta emissividade térmica retorna o calor para o ambiente externo em forma de radiação térmica, mantendo-se com menores temperaturas do que aqueles que possuem baixa emissividade.

Pavimentos frescos: possuem refletância térmica maior que 25%, são normalmente os materiais que possuem tonalidade cinza claro e bege. Não devem ser tão refletivos quanto as coberturas para evitar o ofuscamento. Geralmente, os materiais para pavimentação já possuem alta emissividade térmica. Além disso, superfícies porosas também são consideradas frescas, pois permitem o escoamento das águas da chuva para o solo, que pode ser posteriormente evaporada, minimizando a sua temperatura sob o sol.

É consenso, entre os diversos autores, que o uso da vegetação, como arborização, jardins e naturação de coberturas e fachadas, as superfícies refletivas, assim como a valorização da ventilação natural em se tratando do clima tropical, são estratégias importantes para a mitigação das ilhas de calor e melhoria do conforto térmico. Sem a necessidade de grandes transformações urbanas, são estratégias viáveis economicamente, que poderiam eventualmente ser implementadas na área de estudo.

Construir este conhecimento coletivamente, através dos dados coletados, embasamento teórico e das experiências locais, e, sobretudo, da troca de saberes, é importante para que esta “ciência sensível” possa ser mais um instrumento na luta pela igualdade, por melhorias nas condições de vida nas cidades, pelo direito à cidade e à justiça ambiental. Para Lefevbre (1999), a transformação da cidade moderna à cidade humanista deve ocorrer a partir do fim da alienação e de uma abordagem revolucionária da vida cotidiana e da produção de espaço. Segundo Harvey (2013), o direito à cidade não é apenas um direito condicional do acesso àquilo que já existe, mas sim um direito ativo de fazer a cidade diferente, de formá-la mais de acordo com nossas diferenças coletivas. A cidade não é apenas o palco de lutas, mas aquilo por que se luta: “que erradique a pobreza e a desigualdade social, e que cure as feridas da desastrosa degradação ambiental” (HARVEY, 2013).

Harvey (2000) milita para deixarmos de ser objetos da geografia histórica para nos tornarmos sujeitos ativos, que exploram conscientemente, ao limite, as possibilidades humanas. Temos pela frente o desafio de construir uma ciência sensível, aberta ao diálogo e que promova, através do empoderamento, o direito à vida, à igualdade, à liberdade, à cidade.

Segundo Firpo (2012), um novo paradigma político, econômico e civilizatório terá que lidar com pelo menos dois desafios: de um lado, a preservação material e simbólica dos ecossistemas, cuja degradação afeta a própria sobrevivência; e de outro, a disponibilidade de informações do mundo globalizado, que sugere a possibilidade de construirmos plataformas mais solidárias de conhecimento e comunicação.

Alguns consideram que a ciência aberta é uma “retomada do verdadeiro espírito da ciência”, para outros é uma revitalização “contra o endurecimento dos regimes de propriedade intelectual” (ALBAGLI, 2015. p.14). Para Albagli (2015) são, na verdade, “novos modos de pensar e de exercer a cientificidade, com repercussões diretas sobre os compromissos, normas e arcabouços institucionais que interferem diretamente na prática científica e nas suas relações com a sociedade” (ALBAGLI, 2015. p.14), cujo grande desafio ético é o do diálogo com o outro, o estabelecimento de vínculos e da diversidade de saberes.

Encontramo-nos em um momento da história no qual a abertura e a democratização dos protocolos técnicos e da própria tecnologia favorecem a pesquisa, bem como a ciência e o desenvolvimento (KERA, 2015) e, como decorrência, as relações sociais e cidadãs.

Considerações Finais

As ilhas de calor e as mudanças climáticas podem causar sérios riscos para a população metropolitana, sobretudo as mais vulneráveis. No entanto, é possível prever e mitigar as mudanças graduais e drásticas de temperatura. Relacionando os resultados à forma urbana, é possível identificar as principais causas das ilhas de calor e, então, propor estratégias de mitigação através de intervenções pontuais locais. Por exemplo, na área densa com medições de temperatura mais alta, onde não há possibilidade de plantio, pode-se pintar algumas superfícies como telhado e a própria rua, com cores mais refletivas que o asfalto existente. Esta é a próxima etapa desta pesquisa.

A possibilidade de fazer a própria estação meteorológica aliada às intervenções pontuais de mitigação, traz maior autonomia aos agentes envolvidos e contribui para a construção de conhecimento de maneira colaborativa com os moradores e instituições locais, o que poderá contribuir para melhorar a saúde e as condições de vida da população.

As estações, porém, podem apresentar algumas deficiências: instabilidade com relação à cobertura de internet, possível mau contato dos cabos de ligação e instabilidade no recebimento de energia elétrica. Precisam de testes contínuos para eventuais trocas de sensor, que podem se deteriorar com o tempo. São estações que devem ser utilizadas como complemento de estudos que tenham equipamentos calibrados, servindo como apoio para a expansão territorial. No presente, ainda não se dispõe de tecnologia que possa ser utilizada de maneira independente na pesquisa científica, mas são potentes instrumentos para a compreensão, ampliação e divulgação dos fatores que interferem nas condições ambientais e climáticas, sobretudo em contexto de aquecimento global.

Como visto, através da medição de temperatura, é possível identificar alterações climáticas e tomar providências como intervenções no meio urbano, o que poderá contribuir para prevenir doenças e promover a saúde. Além disso, a medição contínua, antes e após possíveis intervenções urbanas, permite verificar a eficácia de estratégias adotadas, bem como a possibilidade de replicar as soluções em contextos urbanos semelhantes e, ainda, divulgar orientações com formas de mitigação do calor que poderão ser amplamente adotadas. Somado a isso, dados online poderão ser veiculados por rádios e comunicadores comunitários, servindo de alerta à população das temperaturas extremas, com orientações sobre os cuidados que devem tomar para evitar desconforto, contribuindo diretamente na promoção da saúde.

A ciência aberta, os dados abertos, o “faça você mesmo” são oportunidades para se democratizar o conhecimento e a prática da ciência também em outras áreas. Da mesma forma que no urbanismo, as estações e sua construção a partir dos dados abertos são oportunidades de democratização do conhecimento na área da educação. Por exemplo, a estação pode aproximar tanto a tecnologia dos equipamentos quanto os dados climáticos coletados à realidade escolar, por ser de fácil construção e de baixo custo. Igualmente, pode servir como apoio para o desenvolvimento de pesquisas nas áreas da geografia e climatologia. Popularizar a ciência é não apenas empoderar cidadãos, mas possibilitar que sejam protagonistas das transformações ambientais e urbanas.

Facilitar o diálogo na busca de soluções aos problemas comuns, associando diferentes áreas do conhecimento, abre perspectivas ao desenvolvimento sustentável, em suas dimensões éticas e sociais, colocando o bem comum como eixo condutor do progresso humano. O conhecimento e a experiência locais atrelados à pesquisa teórica têm potencial para construir um mundo resiliente, minimizando os riscos climáticos e suas consequências.

Dessa forma, (podemos sonhar?) o ser humano que aterrou o mar para construir a cidade, quando empoderado coletivamente, terá condições de modificar a sensação térmica de seu entorno como se fosse transformar de volta o sertão - urbano - em mar.

Material suplementar
Referências
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