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Os direitos da criança e do adolescente: um resgate histórico do sistema socioeducativo no Ceará, suas articulações e resistências
Os direitos da criança e do adolescente: um resgate histórico do sistema socioeducativo no Ceará, suas articulações e resistências
O Social em Questão, vol. 23, núm. 46, pp. 167-186, 2020
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Resumo: Historicamente o atendimento oferecido a adolescentes que cometem atos infracionais foi evidenciado pela perspectiva de controle e vigilância institucional e ausência de instrumentos protetivos a família. A situação do sistema socioeducativo no Ceará nos anos 2000, ainda remete ao passado marcado por um contexto repressivo e punitivo, em que a responsabilização é confundida com a negação de direitos. Paralelo a esse cenário, temos movimentos sociais e organizações que lutam pela efetivação de direitos e desenvolvimento da política socioeducativa, através de articulações e resistências.
Palavras-chave: Adolescentes, Atos Infracionais, Sistema Socioeducativo, Ceará, Direitos.
Os direitos da criança e do adolescente: um resgate histórico do sistema socioeducativo no Ceará, suas articulações e resistências
Ana Larisse Santos Barbosa1
Ana Karla Fernandes Medeiros2
Resumo
Historicamente o atendimento oferecido a adolescentes que cometem atos infracionais foi evidenciado pela perspectiva de controle e vigilância institucional e ausência de instrumentos protetivos a família. A situação do sistema socioeducativo no Ceará nos anos 2000, ainda remete ao passado marcado por um contexto repressivo e punitivo, em que a responsabilização é confundida com a negação de direitos. Paralelo a esse cenário, temos movimentos sociais e organizações que lutam pela efetivação de direitos e desenvolvimento da política socioeducativa, através de articulações e resistências.
Palavras-chave
Adolescentes; Atos Infracionais; Sistema Socioeducativo; Ceará; Direitos.
The rights of children and youth: a historical perspective of the socio-educational system in the State of Ceará, its articulations and resistance.
Abstract
Historically care for adolescents was a responsibility based on the criteria of institutional violation and lack of protective instruments for families. The situation of the socio-educational system in the State of Ceará in the present day still refers to past practices, in which the penal system is based on repression and punishment and responsibility is confused with denial of rights. In parallel there was the creation of institutions dedicated to fighting for the implementation of rights and the development of socio-educational policies, through articulations and resistance.
Keywords
Adolescents; Infractions; Socio Educational System; Ceará; Rights.
Artigo recebido em junho de 2019.
Artigo aceito em setembro de 2019.
Um resgate histórico
Diante da relevância de estudos sobre infância e adolescência e a prática do ato infracional, buscamos a partir deste artigo compreender como se efetivava a responsabilização de jovens autores de atos infracionais, em um momento histórico brasileiro anterior ao surgimento do marco legal o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e após o referido Estatuto, que trouxe consigo diversas mudanças, como o reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e destinatários de políticas públicas, bem como à forma de responsabilização de jovens autores de atos infracionais por meio do cumprimento de medidas socioeducativas que objetivam a sua ressocialização. Ademais, também, objetivamos traçar perspectivas acerca das estratégias de resistência e articulações no Estado do Ceará através de instituições que trabalham voltadas à garantia de direitos do público infanto-juvenil.
Inicialmente, é necessário destacar que crianças e adolescentes envolvidos em atos violentos vêm sendo estudados no Brasil desde o século XIX. Nesse período, a questão da menoridade era tratada no Código Criminal de 1830. O Código estabelecia em seu Artigo 10º quais os casos em que os menores de 14 anos não seriam julgados “criminosos”. No entanto, conforme o Artigo 13º, as pessoas com tal idade deveriam passar por uma avaliação de discernimento, na qual seria verificado se possuíam condições de avaliar se seus atos eram criminosos ou não. Durante o século XIX a inimputabilidade no Brasil terminava aos 14 anos (PADOVANI, 2003). No Brasil, o tratamento legal oferecido aos chamados “menores infratores”, já passou por três legislações nos últimos 90 anos, leis que se aperfeiçoaram principalmente pela oferta e garantia de direitos sociais fundamentais.
O primeiro juizado de menores do País foi criado no Distrito Federal em 1923, pelo Governo Federal, por meio de decreto nº 16.273 segundo aponta Saraiva (2003). Em 1927 ocorreu o I Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, motivando atos em prol da assistência social à criminalização da pobreza.
Ainda em 1927, foi sancionado o Código de Menores conhecido como “Código Mello Mattos”3, pelo decreto nº 17.943, durante o governo de Getúlio Vargas4 - caracterizado pelas respostas autoritárias e pelo populismo5 com que tentou conduzir a população.
Eram propagadas noções de “boa conduta” e comportamento por meio de medidas rigorosas, visando o desenvolvimento “positivo” das cidades em um contexto de crescente urbanização e industrialização no Brasil. O Código de Menores determinava que adolescentes menores de 14 anos não poderiam ser julgados judicialmente e, aqueles com idade entre 14 e 18 anos, deveriam ser submetidos à processos judiciais especiais, diferentes daqueles aplicados aos adultos (OLIVEIRA; ASSIS, 1999). A intervenção estatal era, portanto, unicamente repressiva e pontual, considerando a institucionalização, e consequente “penalização” como a solução para um problema já instalado que imbricava fatores sociais, culturais, econômicos e políticos.
Através do Código Penal de 1940 a inimputabilidade plena se estendeu até os 18 anos. Ainda nesse ano, ocorreu também a criação do Departamento Nacional da Criança (CNCr), no contexto da tendência de gestão centralizadora e elitista do governo Vargas. Em 1941 foi criado o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), o que segundo Faleiros (1995) teria sido implantado mais para manter a ordem social que para a assistência propriamente dita. Após a criação destas entidades os Estados passaram a seguir diretrizes nacionais. A partir destes expedientes, a regulamentação e a fiscalização das instituições destinadas ao atendimento de adolescentes autores de atos infracionais seria atribuição dos juízes de menores. As entidades somente receberiam recursos financeiros após atenderem aos critérios do SAM (FALEIROS, 1995).
De acordo com Rizzini (1995), os principais objetivos do SAM eram: orientar e fiscalizar educandários particulares, abrigar e distribuir os “menores” pelos estabelecimentos, promover a colocação de “menores”, investigar os “menores” para fins de internação e ajustamento social6, proceder ao exame médico-psicopedagógico, incentivar a iniciativa particular de assistência a “menores” e estudar as causas do abandono.
O SAM em vez de seguir a finalidade para qual foi criado que era a proteção ou assistência ao “menor”, apresentava péssimas condições de higiene, instalações precárias, ensino deficiente, alimentação insuficiente e muitos castigos físicos. Havendo com isso muitas denúncias de maus tratos ao “menor”, corrupção e despreparo dos funcionários.
Para Vogel (1995) o SAM caracterizou-se pelas práticas repressivas do fracassado dispositivo de controle social. Após o golpe militar de 1964, com o inchaço das cidades e o expressivo aumento das populações urbanas, os militares tiveram que buscar possibilidades para enfrentamento das expressões da questão social existentes, como o crescimento da situação de pobreza, desemprego, falta de escolarização, saneamento, que com o agravo da questão do “menor” chegou a ser considerada uma questão de segurança para o país.
Os militares por sua vez, com o objetivo de atender tal demanda, criaram a Política Nacional de Bem Estar do Menor (PNBEM), e por meio da Lei Federal 4.513 de 01/12/1964 houve a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM)7, em substituição ao SAM. A FUNABEM deveria preocupar-se com o tipo de atendimento que estava sendo oferecido aos “menores infratores” no país. Dessa proposta política, criaram-se as Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor na maioria dos estados brasileiros, com a responsabilidade de observarem a política estabelecida e executarem, nos Estados, as ações pertinentes (PEREIRA; MESTRINER, 1999).
No ano de 1967, por meio da Lei nº 5.258, que dispôs sobre as medidas aplicáveis aos menores de 18 anos pela prática de fatos definidos como infrações penais, o Governo Federal regulamentou as medidas de proteção, assistência, reeducação e vigilância para o atendimento aos “menores” infratores. E, em 1979, foi publicada a Lei nº 6.697, que estabeleceu o novo Código de Menores.
Os Códigos de 1927 e 1979 não diferem muito quanto ao tipo de atendimento dispensado aos jovens que cometiam atos infracionais. No conceito de “menor” utilizado nos recentes Códigos e quando comparados aos Códigos Penais de 1830 e 1890, verifica-se que mantiveram atos de repressão institucional e ausência de instrumentos de proteção e de promoção da família (RIZZINI, 2000).
O segundo Código de Menores do Brasil de 1979 embasou-se na “Doutrina da Situação Irregular do Menor”. Voltado ainda, basicamente, ao problema das grandes cidades, o Código abrangia somente àqueles que se encontravam em situações irregulares: carentes, abandonados, inadaptados e infratores. Caracterizando-se pela imposição de um modelo que submetia a criança à condição de objeto, estigmatizando-a como “em situação irregular”, violando e limitando seus direitos, geralmente, a reduzindo a condição de incapaz.
Não havia o reconhecimento da condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. A institucionalização ou privação não tinham prazos determinados, não havendo sequer a acusação e o direito de defesa. Foi mantida a criminalização da pobreza, a tutela legal através da intervenção estatal e a institucionalização como principais componentes do seu sistema de justiça (SARAIVA, 2003). O juiz, figura com poderes interdisciplinares, tinha o poder de dar sentenças amplas em detrimento de pareceres técnicos, sociais, psicológicos e pedagógicos.
Os “menores” em situação irregular, delinquentes ou abandonados, poderiam ser encaminhados ao juiz de menores por qualquer pessoa ou pelas autoridades administrativas (polícia ou comissariado de menores), e então o magistrado tomaria as medidas que julgasse pertinentes.
Ainda em 1979, através de decreto da Organização das Nações Unidas (ONU), foi marcado como o Ano Internacional da Criança. Após dez anos, em 1989, foi aprovada a Convenção das Nações Unidas dos Direitos da Criança, elegendo como princípio doutrinário de direito “a proteção integral”, princípio esse que deveria ser adotado por todas as nações que assinassem esta Convenção.
A doutrina de “proteção integral” foi afirmada em 1988 pela Constituição Federal, por meio dos Artigos 227 e 228, e regulamentada através do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)8, promulgado em 13 de julho de 1990, pela Lei Federal nº 8.069/90, trazendo consigo várias mudanças, destacando à substituição do termo “menor” pelos termos “criança” e “adolescente”, sujeitos de direitos, direitos estes entendidos em sua totalidade. A lei tem caráter universal, não sendo restrita como as anteriores e reafirma direitos à saúde, à convivência familiar e comunitária e à educação (PEREIRA; MESTRINER, 1999).
O Estatuto tornou obrigatória a existência de políticas, programas e serviços permanentes, como ações públicas e da sociedade civil organizada e representada nos Conselhos de Direitos e Tutelares. Abriu também um novo espaço de manifestação de grupos e movimentos da sociedade, permitindo o fomento do pleno desenvolvimento da vida, da cidadania e do controle social.
Com o intuito de materializar estes princípios, o ECA (1990) previu à crianças e adolescentes a universalidade da “proteção integral”, a autonomia e o compartilhamento das responsabilidades entre a União, Estados e Municípios, maior espaço de participação social através dos conselhos, a descentralização da política de atendimento, a articulação de ações estatais e da sociedade civil, instituindo também o processo para apuração de obrigações e responsabilidades administrativas, bem como para atos infracionais. Determinou a criação de entidades educacionais para a execução de medidas socioeducativas de restrição e privação de liberdade para jovens; exigindo também a atuação em rede, ampliando o número de entidades e agentes públicos em situação de irregularidade.
Através de uma construção coletiva, estratégica e democrática, se teve a proposta de um Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), apresentado como “um projeto de lei de execução de medidas socioeducativas”, através da Resolução CONANDA nº 119/2006, visando concretizar os avanços contidos na legislação brasileira.
O SINASE é compreendido como o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medidas socioeducativas no Brasil. Em 2012, por meio da promulgação da Lei Federal 12.594 de 18/01/2012, a execução das medidas socioeducativas foi regulamentada por força de lei (Fórum DCA, 2017).
É apresentado como uma política pública destinada à inclusão do jovem autor de ato infracional, propondo um conjunto de princípios, regras e critérios de cunho jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo que envolve todas as fases do processo socioeducativo (desde a apuração do ato infracional até o cumprimento da medida socioeducativa). Prioriza a intersetorialidade, em que vários serviços devem se integrar e formar uma rede, aligeirando a proteção e o exercício dos direitos de quem é encaminhado para o sistema.
A política de aplicação das medidas socioeducativas não pode estar isolada das demais políticas públicas. Os programas de execução de atendimento socioeducativo deverão ser articulados com os demais serviços e programas que visem atender os direitos dos adolescentes (saúde, defesa jurídica, trabalho, profissionalização, escolarização etc.). Desta forma, as políticas sociais básicas, as políticas de caráter universal, os serviços de assistência social e de proteção devem estar articulados aos programas de execução das medidas socioeducativas, visando assegurar aos adolescentes a proteção integral (BRASIL, 2006, p. 29).
O SINASE estabelece ainda que é de competência do município criar e manter programas de atendimento para a execução das medidas socioeducativas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade), enquanto é dever do Estado criar, desenvolver e manter programas para a execução das medidas socioeducativas de semiliberdade e internação.
O sistema socioeducativo no Ceará
O ECA (1990) define ato infracional como a “conduta descrita como crime ou contravenção penal”, cuja responsabilidade se dá a partir dos 12 anos (art. 103) e prevê como forma de responsabilizar o jovem, visando uma reinserção social, as seguintes medidas socioeducativas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional.
A advertência (art. 112, I, c/c art. 115) diz respeito ao aviso verbal reduzida a termo e assinada, executada nos autos do processo de apuração de ato infracional. A reparação de danos (art. 112, II, c/c art. 116) se aplica no caso de ato infracional em relação aos bens patrimoniais (furto; roubo; estelionato). Pode consistir na devolução da coisa, ressarcimento do prejuízo ou qualquer outra forma de compensação, também executada nos autos do processo de apuração de ato infracional, pelo juiz da infância e da juventude.
A Prestação de Serviços Comunitários (PSC) (art. 112, III, c/c art. 117) consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente há seis meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como em programas comunitários ou governamentais. As tarefas serão atribuídas conforme as aptidões do jovem, devendo ser cumpridas durante jornada máxima de oito horas semanais, aos sábados, domingos e feriados ou em dias úteis, de modo a não prejudicar a frequência da escola ou jornada normal de trabalho. Na Liberdade Assistida (LA) (art. 112, IV, c/c arts. 118 e 119), a autoridade judiciária indicará pessoa capacitada para acompanhar o caso, que poderá ser recomendada por entidade ou programa de atendimento. A LA será fixada pelo prazo mínimo de seis meses, podendo a qualquer tempo ser prorrogada, revogada ou substituída por outra medida.
Considerando o estado do Ceará, tanto a PSC, quanto a LA são acompanhadas pelos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS). Um dado importante sobre estas medidas é o número insuficiente de unidades de acompanhamento. Segundo o Conselho Estadual de Assistência Social (CEAS), Fortaleza conta com 06 CREAS: CREAS Alvorada, CREAS Conjunto Ceará, CREAS Luciano Cavalcante, CREAS Monte Castelo, CREAS Mucuripe e CREAS Rodolfo Teófilo.
Segundo a Resolução nº 18/2013 do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), os municípios com mais de 200 mil habitantes devem implantar 01 CREAS para cada conjunto de 200 mil habitantes. Quando analisamos essa determinação e comparamos com a estimativa de população de 2018, publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constatamos que Fortaleza tem uma população estimada em 2.643.247 habitantes, e, portanto, deveria possuir 13 unidades do CREAS, ao invés das 06 existentes.
O Plano Municipal Decenal de Atendimento Socioeducativo de Fortaleza, vigente desde junho de 2015 por meio da Resolução nº 51/2015 do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (COMDICA), prevê a implantação de 08 novos CREAS no município até 2025, com a meta de inauguração de 01 CREAS por ano. No entanto, aproxima-se dos quatro anos de vigência do Plano sem que nenhum novo CREAS haja sido implantado em Fortaleza.
No que se refere ao Regime de Semiliberdade, a medida pode ser determinada desde o início ou como forma de transição para o meio aberto. São obrigatórias a escolarização e a profissionalização, devendo, sempre que possível, ser utilizados os recursos existentes na comunidade. O prazo máximo de cumprimento é de 03 anos (analogia com o tempo máximo de internação).
A internação (art. 121) constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Deve ter reavaliação periódica a cada seis meses: (art. 121, § 2°), tem limite máximo para cumprimento de três anos (art. 121, § 3°) e exige liberação compulsória aos 21 anos (art. 121, § 5°). O ECA (1990) aponta ainda que a internação deve ser aplicada somente em caso de violência ou ameaça grave a pessoa, por cometer repetidamente infrações graves ou pelo descumprimento de medida socioeducativa anteriormente sancionada, onde “em nenhuma hipótese será aplicada a internação, havendo outra medida adequada (art. 122 § 2º)”.
No Ceará, tanto a semiliberdade quanto a medida de internação possuem unidades próprias para a execução das medidas. Na região Nordeste, há 96 unidades de atendimentos (20,1% do valor nacional), que abrangem modalidades de atendimento de internação, internação provisória, semiliberdade, internação sanção e atendimento inicial.
O estado do Ceará conta com 16 unidades, 15 masculinas e 01 feminina. Na Grande Fortaleza, tem-se as unidades de internação Centro Socioeducativo Aldaci Barbosa Mota, Centro Socioeducativo Cardeal Aloísio Lorscheider, Centro Socioeducativo Dom Bosco, Centro Socioeducativo Patativa do Assaré, Centro Socioeducativo São Francisco, Centro Socioeducativo São Miguel, Centro Socioeducativo do Canindezinho e Centro Socioeducativo Passaré. Já na semiliberdade, se tem o Centro de Semiliberdade Mártir Francisca e na modalidade de unidade de recepção, se tem a Unidade de Recepção Luis Barros Montenegro.
No interior do Estado, no que se refere à Internação, tem-se o Centro Socioeducativo Dr. Zequinha Parente (Sobral) e o Centro Socioeducativo José Bezerra de Menezes (Cariri). Na medida de semiliberdade, conta-se com o Centro de Semiliberdade de Crateús (Sertão de Crateús), Centro de Semiliberdade de Sobral (Sertão de Sobral), Centro de Semiliberdade de Juazeiro do Norte (Cariri) e o Centro de Semiliberdade de Iguatu (Centro Sul).
O Levantamento Anual do SINASE lançado em 2018 aponta que houve um crescimento de quase 300% em 15 anos da quantidade de jovens internos: de 1999 (8.579) para 2014 (24.620) enquanto no Sistema Penitenciário, eram 232.755 no ano 2000 e aumentou para 622.202 em 2014 (267, 32% de aumento), de acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) do ano de 2016.
Ainda de acordo com o mesmo documento do SINASE, houve 49 óbitos (média de 04 por mês) no ano de 2016. Desses 49 óbitos, 38 foram decorrentes de “conflito interpessoal”, “conflito generalizado” e “suicídio”. A taxa de morte é de 14,3 mortes para cada 10 mil jovens em cumprimento de medida de internação e de semiliberdade. Já a taxa de mortes intencionais no sistema prisional brasileiro é de 13,6 mortes para cada 10 mil pessoas presas (INFOPEN, 2016).
Diante desses dados, é perceptível que a marca punitiva e a perspectiva de controle ainda são evidentes no sistema socioeducativo, que possui dados de morte e de aumento de internos maior que os dados do sistema penitenciário. Esse processo também traz a tona o debate acerca do alarme feito em torno da criminalidade, onde cada vez mais se investem em medidas de segurança e punição, constituindo a lógica do encarceramento. É possível perceber que, no Brasil, a assistência social dá lugar a uma política carcerária ou, como diria Wacquant (2001), o “Estado Providência” é substituído pelo “Estado Penitência” direcionado “aos miseráveis, aos inúteis e aos insubordinados à ordem econômica e étnica que se segue ao abandono do compromisso fordista-keynesiano e à crise do gueto” (WACQUANT, 2001, p.136).
Como resposta a essa situação, o governo do Estado criou através do Decreto Nº 31.988, de 12 de julho de 2016 a Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo (SEAS), vinculada à Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS), com o objetivo de centralizar as ações referentes à gestão e execução da política de atendimento socioeducativo no estado do Ceará.
Porém, a criação da entidade não impediu que acontecessem violações de direitos a estes jovens em cumprimento de medidas socioeducativas, como é o caso da chacina que aconteceu no Centro de Semiliberdade Mártir Francisca, no bairro Sapiranga. Segundo notícia do site G1, publicada no dia 14 de maio de 2018 às 06h04, “[...] na madrugada do dia 13 de novembro de 2017, homens armados invadiram o centro socioeducativo pulando os muros, retiraram quatro adolescentes de lá e os assassinaram a tiros. Os corpos foram encontrados nas proximidades do equipamento. O crime foi motivado pela rivalidade entre facções criminosas”9.
O referido episódio reforçou a discussão acerca da existência de facções criminosas nos centros educacionais, visto que a sua presença já estava estabelecida nos Complexos Penitenciários da Região Metropolitana de Fortaleza. De acordo com Nascimento (2018), as facções criminosas se expandiram no Ceará no ano de 2016, sobretudo, após o desencadeamento de uma sequência de rebeliões nas unidades prisionais do Estado.
As estratégias de resistência
Os dados e informações citados acima traçam um panorama sobre a atualidade do Sistema Socioeducativo e evidenciam as fragilidades desse sistema, onde mesmo com os marcos legais, entidades e documentos regulatórios, permanecem com o traço corretivo e disciplinador de suas origens. A menção ao passado deste sistema é um reflexo da sociedade contemporânea, que pede punição e sofrimento aos jovens, anulando seu lugar de sujeito de direitos. Porém, é preciso ressaltar que durante sua trajetória foram criadas instituições e estratégias de resistência visando efetivar essa política de forma plena que serão citadas a seguir.
Em 1984 foram iniciadas as atividades do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (NUCEPEC)10, que tem como principal objetivo a defesa dos direitos da criança e do adolescente. Desde então, o NUCEPEC vem desenvolvendo atividades em prol da promoção, defesa e garantia dos direitos de crianças e adolescentes.
A partir de outubro de 1988, ocorreu a elaboração e discussão das Constituições Estaduais e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse sentido, integrantes do NUCEPEC participaram de encontros no âmbito nacional, regional e estadual, voltados para o conteúdo do Estatuto. Após a sua implementação, as ações do referido núcleo voltaram-se à divulgação e compreensão do Estatuto.
Atualmente entre as atividades do NUCEPEC estão as de Formação, com o oferecimento de cursos11 e grupos de estudos; Pesquisas12 e de Atuação Política, como no Fórum Permanente das ONG's de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA) e no Fórum Cearense de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes (NUCEPEC/UFC, 2013).
O Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA)13 visando o exercício integral e universal dos direitos humanos, busca a efetivação dos direitos de crianças e adolescentes, especialmente, quando violados por ação ou omissão do poder público. A organização filia-se à concepção do Sistema de Garantia de Direitos (SGD), que compreende uma atuação articulada para a promoção, defesa e controle dos direitos infanto-juvenis pelas instâncias públicas governamentais e da sociedade civil.
Partindo do contexto social e do diálogo com aqueles que sofrem essas violações, o CEDECA Ceará foi experimentando e aprimorando, ao longo dos anos, diversas estratégias de atuação na defesa dos direitos infanto-juvenis. À estratégia de proteção jurídica, comum aos centros de defesa, foram sendo agregadas outras, entendidas como necessárias para uma atuação efetiva em prol desses direitos. Mais do que isso, a estratégia jurídica desenvolvida na organização é tributária da Assessoria Jurídica Popular, que compreende o direito numa perspectiva não tradicional, como um potencial instrumento de transformação social e que tem como base de atuação o tripé: defesa jurídica, educação popular e mobilização social (CEDECA-Ceará, 2013).
No eixo do Direito à Proteção, o CEDECA Ceará atua no enfrentamento a diferentes formas de violências cometidas contra crianças e adolescentes, principalmente quando praticadas por agentes do Estado. Dentre os seus objetivos14, está à garantia dos direitos de jovens acusados da prática de ato infracional e o aprimoramento do Sistema Socioeducativo, com base na Lei nº 12.594/2012 (SINASE).
No tocante a política socioeducativa, o Fórum Permanente das ONG's de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA)15, tem acompanhado e pautado, desde 2006, os direitos de jovens em cumprimento de medidas socioeducativas no estado do Ceará.
Em 2008 lançou o primeiro Monitoramento do Sistema Socioeducativo no Ceará em conjunto com o CEDECA e a Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo (SEAS)16, como forma de mensurar se os marcos normativos que tratam da responsabilização e ressocialização juvenil tem sido efetivados. A cada três anos é efetuado um novo monitoramento, no intuito de promover uma avaliação permanente desta política e analisar conquistas e desafios a serem superados.
Em todos os relatórios o Fórum faz um diagnóstico da política socioeducativa, contemplando a análise das estruturas físicas dos equipamentos, bem como dando voz aos diferentes sujeitos que compõe o sistema socioeducativo (Fórum DCA, 2017, p. 6).
São realizadas oficinas de capacitação e preparação das equipes de monitoramento; visitas às Unidades Socioeducativas e aos CREAS, para verificar as condições de infraestrutura e atendimento nas unidades de internação e aos núcleos de Liberdade Assistida; bem como o monitoramento do Sistema de Justiça e Delegacia na capital cearense. Ao final do monitoramento, é lançada também uma série de recomendações para o executivo e atores do Sistema de Justiça.
As instituições e ações desenvolvidas propiciam uma articulação com outras políticas e com a sociedade de forma crítica, contribuindo para uma projeção de efetivação plena da política do socioeducativo, com base no que preveem as leis que regulamentam esse campo, portanto, é perceptível sua importância na vida dos sujeitos atendidos no Estado do Ceará.
Diante disso, é preciso destacar também que para a concretização da finalidade a qual as medidas socioeducativas se destinam, é primordial a associação à figura dos jovens como agentes transformadores de sua realidade, visto que tais medidas deveriam pautar-se no caráter pedagógico e socioeducativo, e não em um caráter retributivo e punitivo, ainda vigente.
Referências
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