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Infância consumidora e comunicação mercadológica: notas preliminares para o debate
Infância consumidora e comunicação mercadológica: notas preliminares para o debate
O Social em Questão, vol. 23, núm. 46, pp. 257-278, 2020
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Resumo: Trata-se de uma análise acerca da comunicação mercadológica dirigida às crianças e suas implicações para estes sujeitos. Neste sentido, resgatamos fundamentos sócio-históricos sobre a infância e a sua conexão com as transformações societárias, com o fito de localizar quando esta fase da vida se torna alvo de um mercado que concebe as crianças como consumidoras. Para tanto, realizamos uma revisão bibliográfica, recorrendo aos principais autores que trazem contribuições para a construção deste debate, bem como análises documentais, a partir da Resolução n° 163 do CONANDA (2014) e do documentário americano Consuming Kids – The commercialization of childhood (2008).
Palavras-chave: Infância, Comunicação Mercadológica, Consumo Infantil.
Infância consumidora e comunicação mercadológica: notas preliminares para o debate
Mizzaely Lacerda1
Resumo
Trata-se de uma análise acerca da comunicação mercadológica dirigida às crianças e suas implicações para estes sujeitos. Neste sentido, resgatamos fundamentos sócio-históricos sobre a infância e a sua conexão com as transformações societárias, com o fito de localizar quando esta fase da vida se torna alvo de um mercado que concebe as crianças como consumidoras. Para tanto, realizamos uma revisão bibliográfica, recorrendo aos principais autores que trazem contribuições para a construção deste debate, bem como análises documentais, a partir da Resolução n° 163 do CONANDA (2014) e do documentário americano Consuming Kids – The commercialization of childhood (2008).
Palavras-chave
Infância; Comunicação Mercadológica; Consumo Infantil.
Consumer childhood and marketing communication: preliminary notes for the discussion
Abstract
It is an analysis about marketing communication aimed at children and its implications for these subjects. In this sense, we rescued socio-historical elements about childhood and its connection with societal transformations, in order to locate when this phase of life becomes the target of a market that conceives children as consumers. To do so, we carried out a bibliographic research, using the main authors that contribute to the construction of this discussions, as well as documentary research, from the American documentary Consuming Kids - The commercialization of childhood (2008) and Resolution 163 of CONANDA (2014).
Keywords
Childhood; Marketing Communication; Child Consumption.
Artigo recebido em junho de 2019.
Artigo aceito em setembro de 2019.
Introdução
Em meados do século XX, surge a noção de criança como consumidora e, a partir disso, são criados diversos bens materiais e culturais para a infância. Dentre estes bens, estão os produtos da indústria cultural: filmes, músicas, novelas, desenhos animados etc. Ao entrar em contato com as mercadorias dessa indústria, abre-se um leque de possibilidades de consumo, uma vez que nela não se consome apenas a mercadoria cultural, mas ainda aqueles correlatos a ela, que trazem a sua marca. Os próprios programas de TV passam a conter em seu interior divulgações de marcas direcionadas ao público infantil, constituindo-se como uma forma de comunicação mercadológica.
Tal questão se inscreve na realidade mundial, sendo perceptível como passível de intervenção, no cenário brasileiro, com a aprovação da Resolução n° 163, de 13 de março de 2014, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que dispõe sobre a abusividade da publicidade e comunicação mercadológica dirigida à criança e ao adolescente, cuja intenção é persuadir o público infanto-juvenil ao consumo de qualquer produto ou serviço, utilizando, para isso, investidas que exploram sua vulnerabilidade e imaturidade, decorrentes de sua condição de pessoas em processo de desenvolvimento físico e psíquico. Há, portanto, uma tentativa do Conanda de inserir esta problemática em um marco regulatório.
Nessa esteira, nossos esforços teórico-metodológicos concentram-se em desvelar, primeiramente, como a criança passa a ser concebida como consumidora, resgatando fundamentos sócio-históricos que permitem afirmar a sua íntima relação com as transformações societárias. Posteriormente, nos direcionaremos para a análise da dinâmica e dos impactos da comunicação mercadológica na infância. Para realizar nossas incursões, realizamos análises de documentos e bibliografias, utilizando como aporte teórico as contribuições de alguns autores, especialmente: Ariès (1981; 2009), Kramer (1984; 2007), Schor (2007; 2009), Levin e Kilbourne (2009), Marx (2014) e Engels (2010). E, como documentos, a Resolução n° 163 do CONANDA (2014) e o documentário americano Consuming Kids – The commercialization of childhood (2008). Com isso, pretendemos contribuir para o aprofundamento desse debate que aparece, ainda, pouco explorado na academia de maneira historicizada.
Da sociedade medieval à burguesa: as raízes sócio-históricas da infância consumidora
Em História Social da Criança e da Família, por meio da pesquisa iconográfica, Ariès (1981) constata que, na sociedade medieval, a infância e a fase adulta correspondiam a duas faces de uma mesma moeda. As crianças, muito cedo, eram misturadas ao cotidiano dos adultos e participavam com eles de trabalhos, jogos, brincadeiras, festas, além de vestirem os mesmos trajes. Havia, dessa maneira, uma ausência do sentimento de infância, expressa, especialmente, no modo de viver indistinto de crianças e adultos, que as caracterizava como “adultos em miniaturas”. Nos seus termos, o emprego da expressão sentimento não está no campo da relação afetiva, mas diz respeito à consciência da particularidade infantil, vejamos:
O sentimento de infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto [...]. Essa consciência não existia. Por esta razão, assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes (ARIÈS, 1981, p. 156, grifos nossos).
Conforme o autor, esse cenário só começa a se alterar entre os séculos XVI e XVII, a partir do surgimento de dois sentimentos de infância: 1) a paparicação surgida no meio intrafamiliar, cujas crianças, devido a sua graça e ingenuidade, passam a ser fonte de distração e divertimento dos adultos; e 2) a preocupação de moralistas e educadores em discipliná-las, inserindo-as no processo de escolarização. Nesse processo de tomada de consciência da particularidade infantil, as crianças começam a se afastar do universo dos adultos, sendo isso perceptível, inicialmente, no fato de passarem a ter trajes específicos. Contudo, os trajes diferenciados eram apenas para aquelas pertencentes às famílias nobres ou burguesas. As crianças pobres, por sua vez, continuavam utilizando as mesmas vestimentas dos adultos e trabalhando intensamente, ou seja, “Elas conservaram o modo antigo de vida que não separava as crianças dos adultos, nem através do trabalho, nem através dos jogos e brincadeiras” (ARIÈS, 1981, p. 81).
Noutro viés, as mudanças na família também contribuíram para novas formas de conceber a infância. Ariès, versando sobre a história da vida privada, destaca que, ao longo do século XVIII,
A família muda de sentido. [...] Tende a tornar-se o que nunca havia sido: lugar de refúgio onde se escapa dos olhares de fora, lugar de afetividade onde se estabelecem relações de sentimento entre o casal e os filhos, lugar de atenção à infância (bom ou mau). Desenvolvendo novas funções, por um lado ela absorve o indivíduo que recolhe e defende; por outro, separa-se mais nitidamente que antes do espaço público com o qual se comunicava (2009, p. 20).
Até meados do século XVII, a dinâmica familiar era vivenciada em público, existindo fortes vínculos de solidariedade entre família e comunidade e, como expressão desse período, a educação das crianças se constituía como uma tarefa coletiva. Todavia, é necessário trazer à baila as mudanças que estavam se processando mundialmente a partir da transição do período medieval para a modernidade, marcada por alterações na estrutura econômica – a consolidação do capitalismo industrial – e, por conseguinte, na superestrutura, comportando uma visão de mundo e um modo de ser e viver inteiramente novos. O individualismo é marca inerente dessa passagem, encontrando solo fértil para se enraizar por meio da supressão dos direitos costumeiros típicos do feudalismo, em meio à correlação de forças de distintos interesses de classe, e da instituição de liberdades e direitos individuais gestados em torno de uma nova concepção de propriedade e modo de produção fundado, doravante, no trabalho assalariado.
Tais transformações também incidem na conformação de uma família privada, recolhida do espaço público. Particularmente, no século XVIII, período em que a burguesia conquista o poder político, econômico e ideológico, o modelo de família nuclear burguesa é consolidado, vindo a substituir as vivências amplas com a comunidade pelo desejo de intimidade e privacidade (ARIÈS, 1981; 2009). A vida privada da família reflete, portanto, um conjunto de mudanças na sociedade que, por seu turno, também rebate na infância, particularmente, quando a criança passa a ocupar um lugar central no âmbito familiar, pois se antes era cuidada por toda a comunidade, agora os pais passam a assumir, sobremaneira, estes cuidados2.
Ademais, há um aspecto fundamental que devemos considerar dentro desse quadro de transformações societárias e a sua incidência na infância. Trata-se do aprofundamento processo de escolarização exigido às crianças. Esse foi apontado em Ariès (1981), mas ainda enquanto desenvolvimento moral. Para Kramer (2007), a escolarização é aprofundada não apenas para desenvolver moralmente as crianças, por outro lado, assume uma perspectiva de preparação para a entrada no mercado de trabalho. Essa autora concebe o surgimento da noção de infância como correspondente à emersão da sociedade capitalista urbano-industrial, À medida que a inserção e o papel social da criança na família e na comunidade mudavam, assim, “[...] na sociedade burguesa, ela passa a ser alguém que precisa ser cuidada, escolarizada e preparada para uma atuação futura” (KRAMER, 1984, p. 19).
No entanto, essa noção aparece de maneira universalizada e com base no padrão das crianças de famílias burguesas, como já havia constatado Ariès (1981). Apesar da percepção da particularidade infantil3 ter surgido, não significou que todas as crianças passaram a ser cuidadas e escolarizadas. Sobretudo com o processo de industrialização entre os séculos XVIII e XIX, houve uma intensificação do trabalho infantil nas fábricas e, consequentemente, uma negação da singularidade das crianças das famílias operárias. Essa realidade foi destacada por Engels ao refletir sobre as condições vivenciadas pela classe trabalhadora na Inglaterra, mais especificamente no século XIX:
[...] boa parte das crianças trabalha durante a semana, nas fábricas ou em casa, o que não lhes permite ir à escola. E as escolas noturnas, a que deveriam comparecer os que trabalham durante o dia, têm poucos alunos, que, aliás, tiram pouco proveito delas. De fato, seria um despropósito pedir a jovens operários, estafados por doze horas de trabalho, que ainda fossem às aulas das oito às dez da noite – aqueles que vão, dormem a maior parte do tempo, como foi constatado por centenas de testemunhos no Children’s Employment Report [Relatório sobre o trabalho infantil] (2010, p. 150).
A dimensão do cuidado e a própria escolarização não existiam para estas crianças e os índices de mortalidade infantil continuavam alarmantes, pois aquelas que acabavam de nascer, facilmente morriam pelo pouco cuidado que lhes era prestado, principalmente, em razão de homens e mulheres ocuparem a maior parte de seu tempo nas fábricas. Já as crianças que conseguiam passar dos primeiros anos de vida, eram inseridas no mundo do trabalho fabril e muitas morriam por se submeterem a condições insalubres. As sobreviventes, por sua vez, continuavam sendo exploradas até seu último resquício de energia humana, com jornadas de trabalho exaustivas e obrigatórias (ENGELS, 2010).
Logo, ao mesmo tempo em que se negou a singularidade das crianças das famílias operárias, essa foi usada como estratégia do modo de produção capitalista para reduzir os gastos com a força de trabalho adulta, mais especificamente dos homens. Segundo Marx (2014, p. 316), “À medida que torna prescindível a força muscular, a maquinaria converte-se no meio de utilizar trabalhadores com pouca força muscular ou desenvolvimento corporal imaturo, mas com membros de maior flexibilidade”, permitindo a utilização de crianças e mulheres para o seu manuseio, a um custo menor.
Destarte, nesse período da história, as crianças das famílias operárias, em maior número, constituíram um grande e rentável negócio para os burgueses. Não é à toa que “A demanda por trabalho infantil assemelha-se com frequência, também em sua forma, à demanda por escravos negros, como se costumava ler em anúncios de jornais americanos” (MARX, 2014 p. 317). Assim como aconteceu com os escravos, a requisição de crianças para o trabalho também passou a ser posta em anúncios, os quais informavam o número de vagas destinadas a este público, o valor a ser pago por semana e o critério para emprega-las: exigia-se que as crianças aparentassem ter treze anos de idade, pois, abaixo disso, elas só poderiam trabalhar até seis horas por dia, conforme a legislação da época. Por outro lado, a partir dos treze anos a jornada de trabalho duplicava para doze horas diárias. (MARX, 2014).
Estava em curso a Revolução Industrial, presente nos séculos XVIII e XIX, tendo como característica principal a transição do trabalho manual – aqui, a família era uma unidade de produção econômica e este formato de trabalho desenvolveu-se estritamente vinculado ao âmbito familiar, com o fito de prover sua subsistência – para o trabalho mecânico e assalariado, marcada pela introdução do maquinário nas fábricas, bem como pela retirada de todos os membros da família do espaço familiar para o âmbito fabril. Essa transição, por seu turno, fez a família perder o seu caráter de unidade de produção para subsistência.
O avanço da industrialização contribuiu, significativamente, para as mudanças na família, principalmente ao torná-la uma unidade de consumo totalmente dependente do salário obtido pela venda da força de trabalho dos seus membros, para a sua sobrevivência. Com a consolidação da família enquanto unidade de consumo, como expressão da entrada do capital industrial, o lugar das crianças nesta esfera também se altera.
Na época em que o trabalho manual e de subsistência era predominante, as crianças significavam a possibilidade de contribuir para a manutenção econômica do sustento familiar, com a utilização de sua força de trabalho. Posteriormente, foram vistas como uma oportunidade de mão de obra barata no trabalho mecânico e assalariado, contribuindo diretamente com a acumulação de capital, ao mesmo tempo em que se reconhecia a particularidade infantil. Agora, soma-se a todas elas, uma nova forma de concebê-las, ao serem consideradas como consumidoras em potencial, ocupando um lugar significativo no orçamento familiar.
No Brasil, este lugar pode ser identificado nos dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE). Referente ao mês de fevereiro de 2019, o valor mínimo necessário para a família de um trabalhador, composta por dois adultos e duas crianças, satisfazer minimamente suas necessidades básicas mensalmente equivale a R$ 4.052,65. Isso nos lança luz para compreendermos que uma família brasileira composta por dez ou quinze filhos, considerada comum até meados do século XX, torna-se insustentável em nosso tempo, pois implica, também, uma questão de sobrevivência, principalmente se levarmos em consideração o salário mínimo instituído no país no valor de R$ 998,00 e o aumento desproporcional do custo de vida.
Ao destacar a noção de criança consumidora e o seu lugar significativo no orçamento familiar, não queremos afirmar que esta visão e tratamento eliminaram a existência de crianças trabalhadoras no tempo presente – a saber, crianças submetidas às diversas formas de trabalho infantil, muitas delas naturalizadas, seja no campo, na cidade e até mesmo nas telas da TV – ou, ainda, aquelas vistas como trabalhadoras do futuro, a partir do investimento cada vez maior na educação escolar, numa tentativa de “garantir” acesso ao mercado de trabalho. Essas realidades são completamente presentes e coexistem em um mesmo cenário.
De fato, queremos chamar atenção para a conformação de uma nova forma de negar a particularidade da infância e, contraditoriamente, utilizá-la como estratégia para fins lucrativos, ao se comunicar mercadologicamente com o público infantil a fim de levá-los ao consumo de bens e serviços. Trata-se de um novo negócio colocado no século XX e intensificado no século XXI, vindo a atingir crianças de diferentes níveis socioeconômicos. E, embora aquelas pertencentes à classe trabalhadora, com rendas limitadas, não consigam acessar inteiramente os produtos infantis, elas também são estimuladas, desde a mais tenra idade, a consumi-los. Ou seja, também estão submersas em uma cultura de consumo4, ainda que de maneira ideologizada. Aqui, encontramos um verdadeiro abismo entre os planos material e ideal para estas crianças, na medida em que suas condições econômicas não acompanham os estímulos ao consumo, marcados pela sua tendência à descartabilidade de produtos quando esses ainda permanecem utilizáveis. Nos termos de Meszáros (1989), trata-se do fenômeno da taxa de uso decrescente.
Mas, além desses indícios históricos apontados anteriormente, houve um momento decisivo na conformação desta visão e tratamento da criança como consumidora. Conforme McNeal (1992), pioneiro do marketing infantil, ela começa a ter importância no mercado e, portanto, essa noção se expande com o fenômeno Baby Boom, que consistiu numa explosão demográfica de crianças nascidas após a Segunda Guerra Mundial, entre 1946 e 1964. Somado a isto, acrescentaríamos a fase madura que o capitalismo vivenciava nesse período, mais conhecida como anos gloriosos ou dourados. Essa fase esteve embalada pela expansão da demanda efetiva, – isto é, a demanda de bens e serviços para os quais há capacidade de pagamento – altas taxas de lucros, bem como pela elevação do padrão de vida da classe trabalhadora, via consumo e acesso às políticas sociais que estavam se generalizando (BEHRING; BOSCHETTI, 2011). Neste momento, no ápice do fordismo, a produção em massa se intensificou, assim como o consumo e, em meio à conformação de um ethos consumista e à ampla produção, cada criança nascida significava uma fonte de consumo para o capital.
Desta forma, o documentário americano Consuming Kids – The commercialization of childhood, lançado em 2008, é relevante ao apontar que nas décadas de 1950, 1960 e 1970 já se fazia presente a publicidade direcionada às crianças, no entanto, esta era muito menor se comparada àquela existente hoje. Especificamente na década de 1970, houve nos Estados Unidos da América (EUA) um intenso debate no Congresso, puxado pela Comissão Federal do Comércio (FTC), a qual defendeu a proibição da publicidade dirigida às crianças com menos de oito anos de idade, se apoiando nas pesquisas que indicavam o não entendimento desses sujeitos quanto à intenção persuasiva da publicidade. Além disso, havia a suspeita em relação aos cereais açucarados divulgados estarem causando cáries.
Ainda em consonância com o documentário supracitado, na década de 1970 a publicidade infantil ficou restrita. Com isso, a indústria de brinquedos e os fabricantes de cereais açucarados sentiram-se afetados e foram ao Congresso, em 1979, defender a continuidade da publicidade infantil, fazendo uso do discurso neoliberal de que na sociedade capitalista democrática dos EUA, cada indivíduo aprendeu a cuidar de si e, sendo assim, ninguém precisa de uma “babá federal” – numa alusão à função estatal de regulação. Em 1980, devido às pressões dos publicitários e marqueteiros, o Congresso dos EUA aprovou uma lei estipulando a isenção de autoridade do FTC para regular a publicidade e o comércio infantil.
Se, depois disso, sobrou algum poder governamental de regulamentar a publicidade infantil, esse foi estilhaçado durante o governo de Ronald Reagan, o qual assume a presidência dos EUA em 1981, permanecendo até 1989. Assim, assentando-se numa política de caráter neoliberal em vias de expansão mundial – que, em um período de crise, encontrava no mercado a solução –, em 1984, o governo de Reagan desregulamentou o setor de publicidade e marketing e a TV infantil. Segundo Levin e Kilbourne,
Até a metade dos anos 1980, a programação de televisão para crianças era regulamentada pela Federal Communications Commission [Comissão Federal de Comunicação] (FCC). As regras limitavam o acesso dos marqueteiros às crianças por meio de um número específico de minutos de propaganda permitidos por horas, durante os programas infantis. Para a FCC, se uma corporação desenvolvia um programa de TV para crianças com uma linha de brinquedos ou outros produtos que o acompanhavam, o programa inteiro se tornava um comercial e por isso estaria violando a regra do governo em relação aos minutos de propaganda permitidos por hora. [...] [Com a desregulamentação,] tornou possível que os marqueteiros desenvolvessem produtos para crianças diretamente ligados aos programas televisivos infantis. E o comercial com a duração do programa, um programa feito com o único propósito de vender produtos, acabava de nascer. Mais especificamente, os programas passaram a ser usados para vender brinquedos às crianças, que copiavam tudo o que viam no programa (2009, p. 38).
Logo, evidencia-se que, na década de 1980, a concepção de criança consumidora será consolidada, mediante o crescimento do mercado infantil verificado após este processo de desregulamentação. De acordo com o documentário americano Consuming Kids – The commercialization of childhood (2008), antes da desregulamentação da TV infantil, os lucros desse segmento nos EUA cresciam por volta de 4% ao ano, mas, a partir da década de 1980, passaram para 35% ao ano. A realidade encontrada um ano após a desregulamentação revelou que os dez brinquedos mais vendidos estavam baseados em programas de TV, expressando a relação existente entre o entretenimento como comunicação mercadológica e o aumento dos lucros. Entretanto, as corporações não ficaram apenas nos brinquedos e logo expandiram seus produtos, também associados a programas de TV, como roupas, revistas em quadrinhos, materiais escolares, alimentos etc. A seguir, veremos como isso impacta nas crianças, em sua relação com pais, mães e/ou responsáveis.
Comunicação mercadológica e consumo infantil
Na infância, a relação com o entretenimento e a comunicação mercadológica contida em seu interior acontece de forma particular e se torna mais nociva, dada à condição peculiar de desenvolvimento físico e psíquico da criança, que a deixa mais exposta aos mecanismos de convencimento. Em se tratando de desenhos animados, por exemplo, a criança é levada mais facilmente, em comparação com um adulto, pelos personagens e o conteúdo propagado por eles. Isso se constitui, nos marcos do século XXI, como forma de se comunicar mercadologicamente com o público infantil por meio da divulgação de suas marcas personificadas em personagens infantis.
A marca5, como elemento que dá uma nova tônica à indução de necessidades de consumo infantil, serve ao mundo do espetáculo, das imagens, das representações, das aparências, contribuindo para a espetacularização6 da vida cotidiana na infância. No geral, as crianças não conseguem perceber o personagem infantil como uma marca e passam a tomar como referência o personagem em si, admirando-o e desejando possuir tanto os objetos usados por ele quanto aqueles que estampem a sua face. Rapidamente, ele pode se tornar seu herói e até o seu melhor amigo por meio dos vínculos estabelecidos ao ter contato com os desenhos animados. Mas, tais relações de admiração e amizade logo se realizam hipotecadas às diversas aquisições. Assim, ainda que não percebam, a marca está lá, personificada no personagem infantil, exercendo um papel dentro deste circuito mercadológico. O objetivo primário não é o entretenimento para este público, ainda que se promova secundariamente, mas a divulgação das marcas comerciais.
Além de propagar um modo de ser e viver, a marca permite as crianças identificarem os produtos nos varejistas, associando-os rapidamente aos personagens. Engana-se, pois, quem se deixa levar pelo discurso de que determinadas propagandas, anúncios e/ou os produtos com a marca carimbada são direcionados aos pais, mães e/ou responsáveis das crianças, buscando persuadi-los, visto serem estes os detentores do poder aquisitivo. Isso porque “cada vez mais as crianças constituem um mercado de pessoas autônomas: elas têm dinheiro, exercem influência e se movimentam sozinhas dentro da cultura consumista” (SCHOR, 2007, p. 52). Os marqueteiros e as indústrias são cientes disso e estudam as crianças para lhes oferecer as mercadorias.
Na opinião dos marqueteiros, nós deveríamos considerá-las [as crianças] funcionalmente equivalentes a adultos no discurso liberal de política de consumo de laissez-faire, isto é, como indivíduos racionais e informados capazes de agir de acordo com seus interesses de longo prazo. Ao mesmo tempo, as mesmas pessoas estão elaborando as crianças como objetos vendáveis, dissecados, classificados e depois oferecidos às empresas clientes. Com esse conhecimento, essas empresas clientes têm maior capacidade de afetar o cotidiano das crianças, tornando seus produtos ainda mais irresistíveis. Juntos, marqueteiros e indústrias estão criando uma poderosa experiência de infância mercantilizada. (SCHOR, 2007, p. 52).
A política de consumo de laissez-faire, no português “deixe fazer”, a qual se refere Schor (2007), está em consonância com os elementos essenciais do liberalismo econômico. Dentre eles, defende-se a autonomia do indivíduo, ou seja, esse deve ser livre para decidir e agir sobre o que considera melhor para si no âmbito do mercado. Essa suposta liberdade está vinculada à liberdade de comercializar as diversas mercadorias – incluindo aqui a força de trabalho – e, também, de consumir livremente, sem qualquer interferência do Estado do ponto de vista da regulação. Por outro lado, o livre mercado deve predominar enquanto regulador das relações econômicas e sociais.
Tais ideias tornam-se problemáticas se aplicadas ao contexto infantil. Primeiramente, deve-se questionar até que ponto as decisões na escolha de fast-foods que acompanham brinquedos, materiais escolares ou roupas com o carimbo de personagens infantis, por exemplo, estão partindo de uma decisão própria da criança, como sujeito ativo, ou se existem influências. O que faz o público infantil preferir um determinado hambúrguer ou ovo de páscoa de maneira hegemônica não é, predominantemente, o seu sabor ou o custo/benefício no âmbito financeiro ou da saúde, mas o brinquedo7 ou a marca personificada na imagem dos personagens infantis que os acompanha8. A comunicação mercadológica por meio deles, como mediação entre o mercado infantil e a criança, possui um papel na formação das predileções e, consequentemente, nas decisões.
O discurso da autonomização infantil no âmbito da comunicação mercadológica e do consumo possui, portanto, certos limites pela falta de discernimento da criança para decidir com base em critérios elaborados previamente, a saber: 1) Este produto possui algum custo/benefício?; 2) Esta é minha prioridade neste momento?; 3) Este alimento pode fazer mal para a minha saúde?; ou, 4) Minha situação financeira permite adquiri-lo? Esses são exemplos de questões que, geralmente, estão no campo da racionalidade dos adultos e podem incidir em suas decisões. No universo infantil, o processo é qualitativamente distinto, pois a criança escolhe com base em cores, formatos e, essencialmente, a partir da imagem do personagem. Evidentemente, na comunicação mercadológica, ao passo que o adulto a percebe e pode negá-la, isso não acontece com as crianças. Devido esse processo diferenciado, internalizam facilmente e sem qualquer filtro a necessidade de comprar o que se está sendo divulgado.
Por isso mesmo, a orientação de pais, mães e/ou responsáveis é vista como fundamental para auxiliar seus processos decisórios na esfera do consumo. Nesse entendimento, a autonomia aparece com ressalvas e a particularidade infantil é considerada. Esse argumento foi incorporado com outro sentido na defesa da comunicação mercadológica direcionada às crianças e de sua não regulação pelo Estado. Se, por um lado, a criança é vista como um sujeito autônomo e livre no mercado, por outro, quando se pretende implementar um marco regulatório, afirma-se que cabe aos seus pais controlar o uso dos meios de comunicação pelos seus filhos como forma de impedir que as propagandas venham a lhes atingir, bem como a responsabilização pela concessão ou recusa na aquisição de determinados produtos. Reconhece-se que existe uma singularidade em relação à criança, mas continua-se a desconsiderá-la na comunicação mercadológica.
Diante deste cenário, o avanço ocorrido no ano de 2014, com a aprovação da Resolução n° 163, de 13 de março de 2014, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que considera abusiva a publicidade e comunicação mercadológica dirigida à criança e ao adolescente, revela o reconhecimento da necessidade de intervenção. O art. 2° é elucidativo:
Art. 2° Considera-se abusiva, em razão da política nacional de atendimento da criança e do adolescente, a prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço e utilizando-se, dentre outros, dos seguintes aspectos: I - linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores; II - trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança; III - representação de criança; IV - pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil; V - personagens ou apresentadores infantis; VI - desenho animado ou de animação; VII - bonecos ou similares; VIII - promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e IX - promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil (CONANDA, 2014).
Entende-se por comunicação mercadológica “toda e qualquer atividade de comunicação comercial, inclusive publicidade, para a divulgação de produtos, serviços, marcas e empresas independentemente do suporte, da mídia ou do meio utilizado” (CONANDA, 2014). Neste sentido, é significativa a atuação dos desenhos animados quando estes utilizam formas sutis de publicidade a partir da divulgação da marca dentro de seu conteúdo. Trata-se de uma técnica de marketing chamada product placement, por meio da qual se inserem determinadas marcas nas produções de entretenimento, de modo sutil, visando trocas comerciais. Desta forma, quem está assistindo não percebe a divulgação da marca como publicidade, vendo-a como algo natural, pertencente à encenação dos personagens.
Em consonância com um grupo de estudiosos de marketing, esta técnica constitui-se, atualmente, como uma estratégia vantajosa de comunicação persuasiva para os anunciantes, pois possibilita a expansão das marcas, globalmente, por um custo menor. Neste formato, as marcas são inseridas no cotidiano dos personagens e, com isso, os consumidores tendem a se identificar com determinados hábitos e são estimulados a segui-los. Nessa linha, “o product placement assume-se aos olhos do consumidor como uma ferramenta que não é percepcionada como manipuladora. Inconscientemente, o consumidor está a ser manipulado” (CARRIÃO et al., 2012, p. 48).
Outro ponto a ser destacado é a própria vulnerabilidade dessas crianças quando vão às lojas, pois, por não terem ainda capacidade de discernimento, passam a querer comprar de forma exacerbada tudo que está diante de seus olhos. Nesse momento, a comunicação mercadológica entra em cena novamente e, muitas vezes, de forma escamoteada, pois ela é percebida pela sociedade apenas em sua face mais explícita: no formato de comercial televisivo. No entanto, ela abrange anúncios impressos, embalagens, promoções, merchandising, ações por meio de shows e apresentações, spots de rádio, banners, bem como a disposição dos produtos nos pontos de vendas (CONANDA, 2014). Nas lojas, as embalagens e as promoções, envolvendo a imagem de personagens infantis, também se comunicam com as crianças. Isso, por sua vez, vira um efeito dominó quando elas começam a pressionar seus familiares para comprar.
Segundo Schor (2009), as crianças interferem diretamente na decisão de compras dos pais e, por isso, no mercado, além de serem vistas como capazes de decidir sobre o seu consumo, são consideradas influenciadoras. A nosso ver, a influência decorre da própria centralidade assumida pela criança no espaço familiar a partir do século XVIII (ARIÉS, 2009). Ademais, destacaríamos o papel da noção de infância atual, marcada pela mudança de paradigma em relação às crianças e aos adolescentes, ao torná-los sujeitos de direitos que devem, inclusive, ser ouvidos e a sua opinião considerada. Embora isso não ocorra universalmente, constitui-se um aspecto importante para pensarmos a influência exercida pelas crianças, tendo por base esse paradigma.
É preciso refletir, ainda, que à medida que essa concepção é empregada para dar voz a esses sujeitos, seja nas decisões jurídicas ou na elaboração de políticas públicas adequadas, também é absorvida com outra conotação, que se beneficia do discurso da autonomia para se comunicar mercadologicamente e obter lucratividade em nosso tempo às custas da condição peculiar da criança.
Considerações finais
A forma como a infância é vista e tratada acompanha os movimentos da sociedade e, particularmente na capitalista industrial, a maneira de concebê-la ganha novos contornos, sendo percebida enquanto fase específica da vida, na qual os sujeitos que a vivenciam precisam ser cuidados e protegidos. Nessa sociedade, a noção de infância emerge tendo como principal contradição o fato de sua condição ser negada e, ao mesmo tempo, utilizada de maneira funcional ao capitalismo, seja no âmbito da produção, com o trabalho infantil, seja, posteriormente, no consumo com a criança consumidora na fase do capital monopolista, com o direcionamento da comunicação mercadológica e, especialmente, com uma cultura de consumo particular colocada no século XX e agudizada no século XXI. O trabalho e o consumo infantil andam de mãos dadas na negação da particularidade da infância, cada um com a sua especificidade.
A noção de criança consumidora se expressa a partir das novas configurações assumidas pelo regime de acumulação, tornando-se uma realidade emergente no fordismo, especialmente nos anos dourados do capitalismo, mas que só vem se consolidar na passagem para o regime de acumulação flexível, acompanhado da política neoliberal. Esta última assume um papel, fundamentalmente, importante no processo de desregulamentação da TV infantil na década de 1980 nos EUA, permitindo a criação de programas infantis vinculados aos produtos disponíveis no mercado.
Em síntese, nossas incursões apontaram que, no plano imediato, a comunicação mercadológica dirigida às crianças ainda carece de regulação estatal e formas de enfrentamento em conformidade com a Resolução n° 163 do Conanda. Contudo, ainda que se estabeleçam, restaria, ainda, uma sociedade que, na sua estrutura e dinâmica, não comporta a vivência plena de uma infância sem espetacularização de sua vida cotidiana; sem o bombardeio de mensagens que enaltecem o ter em detrimento do ser; e com o direito de brincar de forma livre e espontânea sem a interferência de um mercado colocando a necessidade de determinados produtos quando, muitas vezes, não são projeções do universo da criança, mas dos próprios adultos.
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