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Resumo: Desde a chegada do neoliberalismo em solo brasileiro, os governos vêm orquestrando sucessivos ataques ao direito à saúde através de contrarreformas na política de saúde que visam o enxugamento do Estado. A partir do fim do ciclo petista, as investidas contra o Sistema Único de Saúde são intensificadas. Nesse cenário, o presente ensaio discute os desafios impostos à Política Nacional de Promoção da Saúde, tais como as ameaças de sua restrição à ênfase nos comportamentos de risco, à normatização sobre os estilos de vida individuais e a crescente privatização de suas ações, incorrendo no risco de descaracterizá-la enquanto política pública.
Palavras-chave: Saúde Coletiva, Sistema Único de Saúde, Promoção da Saúde, Política Nacional de Promoção da Saúde, Contrarreforma do Estado.
O novo patamar da contrarreforma da política de saúde no Brasil e os desafios para a Política Nacional de Promoção da Saúde
Ronice Maria Pereira Franco de Sá1
Valdilene Pereira Viana Schmaller2
Kathleen Elane Leal Vasconcelos3
Alexandra Bonifacio Xavier4
Resumo
Desde a chegada do neoliberalismo em solo brasileiro, os governos vêm orquestrando sucessivos ataques ao direito à saúde através de contrarreformas na política de saúde que visam o enxugamento do Estado. A partir do fim do ciclo petista, as investidas contra o Sistema Único de Saúde são intensificadas. Nesse cenário, o presente ensaio discute os desafios impostos à Política Nacional de Promoção da Saúde, tais como as ameaças de sua restrição à ênfase nos comportamentos de risco, à normatização sobre os estilos de vida individuais e a crescente privatização de suas ações, incorrendo no risco de descaracterizá-la enquanto política pública.
Palavras-chave
Saúde Coletiva; Sistema Único de Saúde; Promoção da Saúde; Política Nacional de Promoção da Saúde; Contrarreforma do Estado.
The new level of counter-reform of health policy in Brazil and the challenges for the National Health Promotion Policy
Abstract
Since the arrival of neoliberalism on Brazilian soil, governments have been orchestrating successive attacks on the right to health through counter-reforms in health policy aimed at reducing the state. From the end of the PT cycle, the attacks against the Unified Health System are intensified. In this scenario, the present article discusses the challenges posed to the National Health Promotion Policy, such as the threats of its restriction to the emphasis on risk behaviors, normalization about individual lifestyles and the increasing privatization of its actions, risk of mischaracterizing it as a public policy.
Keyworks
Collective Health; Health Unic System; Health Promotion; National Policy for Health Promotion; Counter-Reform of the State.
Artigo recebido: novembro de 2018.
Artigo aprovado: janeiro de 2019.
Introdução
Nos últimos decênios, a Promoção da Saúde (PS) vem obtendo cada vez maior importância nas políticas públicas em todo globo, sob os auspícios da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mesmo que neste final de década dos anos 2010, essa Organização Mundial e suas regionais tenham pactuado que a PS deva ser tratada enquanto um movimento social, político e técnico que aborda determinantes sociais da saúde para reduzir iniquidades sociais e de saúde e melhorar a saúde (OPAS, 2018), compete situar que existem diversas compreensões em torno da PS (VASCONCELOS; SCHMALLER, 2014).
Isso porque, a partir dos anos 1970, quando surgiu enquanto proposta comportamental afeita a estilos de vida e responsabilização do indivíduo, vem sendo considerada desde um novo paradigma (que se contrapõe ao modelo biomédico), um campo de formação de conhecimentos e práticas (CORREIA; MEDEIROS, 2014; FRANCO DE SÁ; NOGUEIRA; ALMEIDA GUERRA, 2018), passando por PS enquanto um enfoque que se baseia na visão ampliada do processo saúde-doença e nas formas de intervir no mesmo (BUSS, 2009), ou ainda enquanto um conjunto de estratégias que devem ser situadas no interior das proposições do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) dos anos 1980 (VASCONCELOS, 2013), até a proposta que a PS implica em interconexão e coerência entre as políticas públicas (WHO, 2018) mediante incentivo à conexão entre desenvolvimento sustentável e saúde global. Nesse contexto, discutem-se também os determinantes comerciais da saúde e os níveis de inclusão digital das populações.
Cumpre situar também que, desde os anos 1970 até o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, costumava-se adotar, por algumas correntes5 também a denominação de Nova Promoção da Saúde (NPS)6 (VASCONCELOS; SCHMALLER, 2014). Essa denominação surgiu em reação ao que Becker (1986 apud ROBERTSON; MINKLER, 1994) explicou como “reação à tirania da PS", que impunha metas pessoais de saúde em detrimento das metas humanas e societárias.
É preciso elucidar que a conjuntura de emersão da PS na década de 1970 é marcada por uma crise estrutural do sistema capitalista e consequente retração das políticas sociais, sob o receituário neoliberal, que passa a demandar cortes em seu financiamento por parte do Estado. No campo da saúde, se fortalecem questionamentos aos altos custos e a pouca efetividade do modelo biomédico (WESTPHAL, 2007), cenário no qual as proposições da NPS germinam e são disseminadas.
A partir dos anos 1990, os governos brasileiros passam a seguir as prescrições neoliberais e, em seu bojo, iniciam a aplicação de contrarreformas nas políticas sociais7, que se caracterizam pela regressividade imposta aos direitos e conquistas sociais da classe trabalhadora (BEHRING, 2003).
Esse processo vem conformando sucessivos ataques ao direito à saúde e a seu caráter universal, público, estatal e de qualidade, conforme alguns autores, dentre os quais Bravo e Menezes (2014); Mendes (2014); Salvador (2012). Destarte, apesar de alguns avanços no arcabouço do Sistema Único de Saúde (SUS), o processo contrarreformista8 prossegue nas gestões do Partido dos Trabalhadores (PT) e recrudesce a partir do fim do ciclo petista.
Compete situar que as discussões internacionais em torno da PS também chegam ao Brasil ainda na década de 1990. Entretanto, a proposta internacional não ocupou espaço significativo na agenda política de saúde até a metade daquele decênio, exceto no interesse de alguns núcleos acadêmicos e em algumas experiências municipais (PAIM, 2009).
A partir de meados da referida década, essas experiências impulsionam as primeiras iniciativas do Ministério da Saúde para a elaboração de uma Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), mas ainda de forma embrionária e pontual. Nesse trilho, apenas em março de 2006 a PNPS é construída e institucionalizada no país (BRASIL, 2006), passando por um processo de revisão no ano de 2014 (FRANCO DE SÁ et al., 2016).
Apesar de ser perpassada por distintos interesses políticos e pelas dificuldades em torno de sua conceituação, conforme pontuamos, a partir da política mencionada, a PS alcança um prestígio quase consensual no país (ALBUQUERQUE; FRANCO DE SÁ; ARAÚJO JÚNIOR, 2016).
Entretanto, enquanto parte do SUS, a política citada sofre os mesmos ataques a esse sistema. Destarte, no contexto de ajuste fiscal, as iniciativas de PS que mobilizam uma concepção mais abrangente de saúde são postas em uma encruzilhada, incorrendo no risco de serem reduzidas à ênfase nos comportamentos denominados de risco, às indicações normativas sobre os estilos de vida individuais (XAVIER, 2018), dentre outras tendências que buscamos discutir no artigo em tela.
É importante alertar que discorrer sobre a Promoção da Saúde não implica adentrar apenas no universo de uma política setorial, como é o caso da PNPS, mas requer atentar para a configuração das políticas sociais e econômicas para a determinação social da saúde, enfim, para iniciativas intersetoriais que possam contribuir para a produção da saúde. Contudo, no espaço desse artigo, debruçar-nos-emos sobre a PNPS enquanto uma política específica.
A partir do exposto, o presente artigo se estrutura do seguinte modo: no primeiro tópico, discutimos sobre os aspectos da contrarreforma na política de saúde, com destaque para o período pós-impeachment. Em seguida, apresentamos uma breve incursão acerca da institucionalização da Promoção da Saúde no Brasil, a qual ocorre nos anos 2000. Posteriormente, debatemos alguns dos desafios para a PS após o ciclo petista. Por último, traçamos algumas considerações finais a partir da síntese reflexiva sobre a temática tratada.
Neoliberalismo em solo brasileiro e a contrarreforma na política de saúde
As medidas de ajuste econômico constituem o cerne do neoliberalismo, ideário que surge para dar respostas à crise do capital e para gerenciá-la a partir das estruturas do Estado (MOTA, 2012). Esse movimento ideológico representa, conforme Castelo (2008), o projeto hegemônico das classes dominantes, conduzido por sua fração rentista através de governos conservadores.
De acordo com Paula (2016), a partir da década de 1990, medidas de ajuste neoliberal com base no Consenso de Washington, como a redução dos gastos públicos através das privatizações, o afrouxamento da ação do Estado em suas funções sociais e o controle estatal da estabilidade econômica com metas de inflação baseadas em altos juros que remunerem o capital especulativo, passam a referenciar as ações dos governos brasileiros.
A aplicação desses ajustes no país é dividida por este analista em duas etapas: 1) contrarreforma, fiel ao Consenso de Washington – fase de primazia da estabilidade monetária através do Plano Real (1980-1990); e 2) Fase marcada pela aplicação de remédios/ajustes menos amargos (anos 2000 até o fim dos governos petistas) (PAULA, 2016). Acrescentaríamos a fase que se inicia após o fim do ciclo petista e que melhor tem representado a ortodoxia neoliberal, com aprofundamento dos níveis de expropriação do trabalho e dos direitos, a começar pelas medidas regressivas9 adotadas por Michel Temer, as quais apenas configuram o prelúdio do governo Bolsonaro.
Segundo Gonçalves (2012), nas fases do neoliberalismo brasileiro anteriores ao impeachment da presidenta Dilma10, as contrarreformas são marcadas pelo papel moderado do Estado no investimento e na política industrial, mas central na esfera da distribuição de bens e serviços, visando à redução das desigualdades econômicas, caracterizando a busca por um reformismo social. Nessa linha, destacamos que, após o fim do ciclo petista, notadamente no governo Bolsonaro, essas contrarreformas passam a ser definidas não só pelo aprofundamento dos cortes orçamentários, restrições de investimentos e ampla defesa das privatizações, mas também pela busca irrestrita da diminuição do Estado em suas responsabilidades sociais, somados ao incentivo ao preconceito, ao discurso de ódio e à incitação à violência de classe, gênero, raça e etnia.
Destarte, após o impeachment, o ajuste fiscal assume um caráter muito mais rígido e permanente, comprometendo o orçamento da Seguridade Social e elevando a um novo patamar a contrarreforma na política de saúde. Nesse cenário regressivo para os direitos sociais, o desmonte do SUS vem ocorrendo numa velocidade assustadora (VASCONCELOS; SILVEIRA; XAVIER, 2017): as contrarreformas implementadas no governo Temer – e aquelas que estão previstas por seu sucessor – dão continuidade, de forma muito mais abrupta, ao enxugamento do Estado, garantindo a imperiosa rentabilidade ao capital financeiro internacional, em detrimento dos direitos sociais.
Nesse trilho é que podemos pensar as configurações da PNPS, cujo percurso de institucionalização buscamos apresentar e discutir a seguir, o que permitirá apontar posteriormente as tendências para a mesma no contexto contrarreformista atual.
O percurso da institucionalização da Promoção da Saúde no Brasil
Vale situar que, em nosso país, o tema da PS provoca controvérsias (CAMPOS, 2006), visto que, na década de 1980, houve uma postura de reserva política das/os defensores/as do Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) quanto às proposições do movimento internacional (PASCHE; HENNINGTON, 2006).
Segundo Vasconcelos e Schmaller (2014), a principal controvérsia se referia à radicalidade defendida nas propostas nacionais em torno da Reforma Sanitária, pautadas na perspectiva da determinação social da saúde11. Cumpre alertar que o termo PS não foi devidamente tratado pelos referidos sujeitos nos anos 1980 (VASCONCELOS; SCHMALLER, 2014), apesar de incorporado textualmente na Constituição Federal de 1988 e de ser utilizado em diversas publicações da área.
Conforme as autoras acima, a partir da década de 1990 é que passa a ocorrer uma paulatina incorporação da PS no Brasil, sendo possível constatar, em documentos e iniciativas do Ministério da Saúde, as influências do referido movimento internacional. A pioneira foi a Estratégia Saúde da Família (ESF), à época denominada de Programa Saúde da Família (PSF) (BUSS; CARVALHO, 2009; PAIM, 2009). Considerada a principal forma de configuração da Atenção Primária à Saúde (APS) no país, continua em vigência, revalidando em seu escopo princípios do SUS e do movimento internacional de PS.
Os debates em torno da PS se intensificam no Brasil a partir da segunda metade dos anos de 1990, através da inserção de iniciativas, documentos e projetos voltados às principais causas de morbimortalidade – as Doenças Crônicas Não-Transmissíveis (DCNT) e as causas externas como violência e acidentes de trânsito – na agenda de saúde (FERREIRA, 2008; MALTA et al., 2014; BUSS, CARVALHO, 2009).
Os autores referidos discutem que, como resultado dos vários esforços da Secretaria de Políticas de Saúde do MS, no ano de 2002 surge o “Documento para Discussão” sobre uma PNPS. Na análise de Malta et al. (2014), esse projeto não ultrapassou as fronteiras da relação entre MS, Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e alguns membros da academia, mas contribuiu para a análise da situação de saúde do Brasil, para a sistematização de boas práticas em PS no SUS e para o delineamento de estratégias para impulsionar a institucionalização da política.
Entretanto, apesar dessas iniciativas, até o ano de 2003, a institucionalização da PNPS no Brasil ainda enfrentaria certa invisibilidade. Malta et al. (2014) destacam que, além das diferentes concepções teórico-conceituais que envolvem a própria PS, houve uma série de dificuldades em articular as tensões do paradigma biomédico e o da PS e mudanças sucessivas de gestão da PS no MS, que gerou a descontinuidade do projeto de implementação da PNPS. Ferreira Neto et al. (2013, p.2000) corroboram que, apesar da intenção de elaborar a PNPS na gestão do PSDB, “isto não se mostrou factível. Atribui-se esse insucesso a uma série de dificuldades de consenso e de articulação”.
Em 2005, sob a gestão de Lula, após mudanças de gestão do MS, a Coordenação Geral de Doenças e Agravos Não Transmissíveis (CGDANT) da Secretaria de Vigilância em Saúde do MS, assumiu o processo e constituiu um Comitê Gestor – à época formado apenas por representantes de departamentos e órgãos do MS – para a formulação da PNPS (MALTA et al., 2014).
Em março de 2006, o MS formalizou a PNPS elaborada pelo referido Comitê, por meio da Portaria nº 687, a qual tem o objetivo de contribuir para a consolidação do sistema público de saúde (BRASIL, 2006). O fato representou um marco, segundo analistas, na definição de metas e recursos específicos para a PS no contexto do SUS (ROCHA et al., 2014).
Esse processo, segundo os autores acima, ratifica o papel da OPAS na elaboração da PNPS, bem como o embate entre distintas concepções de PS na formulação dessa política.
Como discutem Vasconcelos e Schmaller (2014), constata-se um tensionamento entre a introdução e o restante do documento da PNPS: embora haja amplos objetivos e referências à PNPS, parte considerável das ações propostas foca na necessidade de mudanças nos estilos de vida individuais. Cruz (2010) analisa que, na verdade, o texto da citada política vai na contramão da concepção ampliada da PS, apontando mais para uma perspectiva preventivista.
Não obstante, como discutem Rocha et al. (2014), apesar da escassez de recursos para as ações de PS e das controvérsias quanto ao lócus da coordenação da PNPS, a iniciativa de institucionalizar uma política pública dessa magnitude detém reconhecimento internacional.
Ainda segundo os autores referidos, a partir de 2007, passaram a fazer parte do Comitê Gestor da PNPS o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) e, em 2010, por demanda de Guilherme Franco, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) também passa a compor o referido colegiado, sendo oficializado somente em 2012.
No ano de 2013, o Comitê Gestor da PNPS propôs uma ação de atualização e reflexão sobre essa política, que ocorreu entre abril de 2013 e junho de 2014, no qual se buscou uma maior participação social (ROCHA et al., 2014). Fomentado pela OPAS, em conjunto com o Grupo Temático de Promoção da Saúde e Desenvolvimento Sustentável (GTPSDS) da ABRASCO e a Secretaria de Vigilância em Saúde do MS, o novo documento foi consolidado na Portaria nº 2.466, de 11 de novembro de 2014 (BRASIL, 2015).
A nova PNPS apresenta como objetivo central a melhoria das condições de vida, a partir do enfrentamento aos DSS (BRASIL, 2015). Desde a construção dessa nova política, a PS passa a ser compreendida enquanto parte indissociável da integralidade da atenção à saúde. O documento menciona a necessidade de fortalecimento da participação social enquanto elemento fundamental à consecução das ações de promoção, embora haja no texto fragilidades na designação das atribuições dos gestores no que se refere ao tema, como também indefinição de mecanismos para que a participação se efetive (XAVIER, 2018).
O enfrentamento dos DSS é apregoado, dentre outras maneiras, através do combate às violências e às iniquidades em saúde12, da formulação de políticas e estratégias que favoreçam a mobilidade e a acessibilidade humana, promovam a paz, o respeito às diferenças e a produção social de ambientes que favoreçam o desenvolvimento humano.
Na construção dessas ações é afirmado que os saberes populares e tradicionais devem ser valorizados de modo que a população tenha voz ativa em seu planejamento e execução. Outro importante elemento é a defesa da promoção da Educação Permanente em Saúde para os profissionais do SUS na área da PS.
O estabelecimento de estratégias de comunicação social, pesquisas e produção do conhecimento que fortaleçam e disseminem a PS bem como a articulação de políticas públicas inter e intrassetoriais são também apregoados como objetivos precípuos da PNPS (BRASIL, 2015).
Além do setor saúde, outras políticas e programas possuem a PS como elemento articulador, a exemplo dos programas de combate à fome e desnutrição, ligados ao desenvolvimento social13.
Compete mencionar que, apesar do potencial que a PNPS apresenta na melhoria dos níveis de saúde, dos temas, eixos e princípios que expõem numa perspectiva ampliada de saúde, como aludem Albuquerque, Franco de Sá e Araújo Júnior (2016), os gestores podem ou não priorizar as ações propostas por essa política. Isso porque, a PNPS surge de demandas sociais e do esforço de sujeitos políticos individuais e coletivos, mas só se configura enquanto uma política pública por também representar uma forma de resposta do Estado às mesmas.
Assim sendo, a PNPS é perpassada por distintos interesses políticos. Destarte, a referida política não foge às mudanças no cenário político e econômico do país. É partindo desse pressuposto que no tópico subsequente analisamos alguns desafios para a PNPS a partir do ano de 2016, no período das contrarreformas implementadas pós-ciclo petista no país.
Desafios para a Promoção da Saúde em tempos de contrarreformas
No âmbito das contrarreformas em curso nos últimos anos, como anteriormente mencionado, várias medidas afrontam ou ameaçam os direitos sociais e as políticas sociais a eles relacionadas, a de saúde incluída, como a Emenda Constitucional nº 95/2016, que estabelece um teto para os gastos públicos por um período de 20 anos, o qual causará diversos retrocessos nas políticas sociais e aprofundará o subfinanciamento crônico do SUS (VASCONCELOS; SILVEIRA; XAVIER, 2017). Não obstante os retrocessos constantes em tais iniciativas, estas parecem ser somente o prenúncio do desmonte dos direitos sociais no Brasil, tendo em vista o programa do governo recém-eleito para o nível federal.
Outros elementos que floresceram especialmente no governo Temer e que também tendem a atacar frontalmente o SUS e descaracterizar o direito à saúde, com impacto direto sobre a PS são: o projeto denominado “SUS legal”14; o projeto dos “Planos de Saúde Acessíveis”15 e a nova Política Nacional de Atenção Básica16 (PNAB).
Tais ações são pertinentes ao maior enxugamento do Estado e garantem a imperiosa rentabilidade do capital financeiro internacional em detrimento do direito à saúde. Também indicam a volta ao modelo tradicional de atenção à saúde em detrimento da produção da saúde, que a médio e longo prazo trará repercussões negativas nos índices de morbimortalidade. Nesse cenário de profundos retrocessos, a flexibilização da Atenção Básica – na qual a PS tem (ou deve ter) um importante papel – é uma das faces do projeto de desmonte do SUS que robustece ainda mais o modelo biomédico e privatista (VASCONCELOS; SILVEIRA; XAVIER, 2017) e ao mesmo tempo contribui para a restrição das concepções e das ações de PS no cenário nacional.
Entendemos que, no contexto de intensificação dos ataques ao SUS e ao direito à saúde, existe a tendência de que os governantes aprofundem o processo de mobilização de concepções mais restritas de saúde ao efetivar ações de PS, afastando-se cada vez mais da perspectiva da determinação social do processo saúde e doença e dos DSS, para enfatizar a normatização e prescrição de hábitos de vida.
No cenário do ajuste fiscal, medidas mais estruturantes de PS, como o combate ao uso de agrotóxicos, o fomento à agricultura familiar e à segurança alimentar e nutricional pouco avançam, pelo contrário, sofrem retrocessos (XAVIER, 2018).
Nesse trilho, ao invés do enfrentamento aos DSS, a direção conferida à PNPS tende a enfatizar com mais veemência o discurso dos fatores de risco, as dimensões individuais e comportamentais no que se refere à saúde (XAVIER, 2018), caminho esse que abre precedentes para o agudizamento do processo de culpabilização dos sujeitos17 e, ao mesmo tempo, para a desresponsabilização do Estado pela PS, em sintonia com a contrarreforma na política de saúde e os anseios do setor privatista.
Essa perspectiva é abertamente incorporada pelo MS a partir de junho de 2017, através da iniciativa “quarteto da saúde” que se baseia nos pilares: “eu quero me exercitar”, “eu quero me alimentar melhor”, “eu quero ter peso saudável” e “eu quero parar de fumar”, que apresenta a PS como “o melhor remédio para a vida saudável”18, relegando quase que ao esquecimento a determinação social do processo saúde-doença.
Nesse cenário, os “velhos” desafios enfrentados pela PS no país, os quais são discutidos no estudo de Albuquerque, Franco de Sá e Araújo Júnior (2016), alcançam um novo patamar. Diante da diminuição dos investimentos na saúde, a consolidação da PS no SUS, mencionada pelos autores referidos como desafio histórico da PS, sofre maiores retrocessos, notadamente através da redução do investimento em pesquisas envolvendo o tema. Compete mencionar ainda que as ações de PS implementadas nos estados e municípios podem deixar de ser priorizadas nos instrumentos de gestão em contextos recessivos para ceder espaço à ênfase em programas e inciativas afinadas ao modelo biomédico e privatista, gerando maior rentabilidade a este setor.
A partir das oportunidades de alianças com o Estado, o setor privado vem investindo cada vez mais no ideário da NPS e em ações de PS, conformando um verdadeiro processo de privatização da Promoção da Saúde, nos termos de Kickbusch e Payne (2003).
Como discute Xavier (2018), no requerimento de informações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (BRASIL, 2009), 52,6% das operadoras de planos privados de saúde afirmaram desenvolver programas de OS. Entretanto, os estudos de Rodrigues e Silva (2015 apud XAVIER, 2018) questionam a abordagem de PS na saúde suplementar ao afirmar a tensão entre a racionalidade econômica do setor privado e os interesses dos beneficiários na indução desses programas.
Através de pesquisa realizada junto a gestores de operadoras de planos de saúde que realizam programas de PS, as autoras concluem que:
Na perspectiva de quem oferta os programas de promoção da saúde, a lógica dominante é a da acumulação do capital, operacionalizada na redução de custos assistenciais, na atração e na fidelização de clientes e na transferência de responsabilidade para os beneficiários (RODRIGUES; SILVA, 2015 apud XAVIER, 2018, p. 99).
Nessa direção, percebemos claramente que os discursos da PS de ações na direção da intersetorialidade, da determinação social e dos DSS são substituídos pela ênfase nos comportamentos individuais, pela perspectiva autoritária e prescritiva de PS, conforme o modelo biomédico.
A sustentabilidade da política numa direção ampliada é, portanto, dificultada. As restrições na política de saúde conduzidas pelo governo atual reiteram que a PNPS se encontra frente ao maior desafio que já enfrentou até o presente: a ameaça de se tornar apenas um documento com um conjunto de prescrições sobre os estilos de vida dos sujeitos.
Considerações finais
Os ataques à política de saúde, orquestrados no âmbito da contrarreforma do Estado, ainda não alcançaram seu apogeu no Brasil. No conjunto do neoliberalismo ortodoxo, dos resultados das eleições de 2018 e das terríveis promessas do novo presidente fica evidenciada a vivacidade do golpe que depôs a presidenta Dilma e que permitiu a ascensão de Temer ao poder, enquanto uma ponte para o abismo: o governo Bolsonaro.
Em nossa análise, o contexto de verdadeira involução civilizacional atualmente vivenciado no país (VASCONCELOS; SILVEIRA; XAVIER, 2017) tem como uma de suas facetas o desmonte de políticas sociais que visam assegurar direitos, gerando retrocessos no processo de enfrentamento ao “adoecimento” e na produção/promoção da saúde, visto que esta necessariamente envolve iniciativas voltadas para a determinação social da saúde, para o enfrentamento às desigualdades sociais, para a intersetorialidade.
Conforme tratamos neste artigo, o desmonte do SUS está no alvo dos interesses privatistas defendidos pelo novo presidente. Nesse trilho, se as resistências a esse processo não forem organizadas e fortalecidas, restará à PNPS sua redução a um caráter estritamente normativo, o afunilamento de investimentos e a privatização de suas ações, a descaracterizando enquanto uma política pública.
Nesse sentido, para além das distintas concepções e interesses políticos que marcam a PNPS, buscamos reforçar no presente artigo que, no contexto regressivo atual, se permitirmos que essa importante política se molde aos interesses hegemônicos na política de saúde – os quais o último presidente eleito já demonstrou defender com obstinação – esta tende a se distanciar cada vez mais da radicalidade reivindicada pela VIII Conferência Nacional de Saúde, da discussão acerca da determinação social da saúde e dos DSS, abrindo amplo front não só para a égide da perspectiva autoritária e prescritiva da PS, mas para os anseios mercadológicos e privatistas em torno dessa proposta.
É necessário aludir que o Guia para a implementação da Declaração de Xangai (OPAS, 2018) aponta muitos dos desafios que precisaremos enfrentar para não nos desviarmos do caminho percorrido pela PS no país, tanto do ponto de vista político, quanto técnico, salientando os valores e princípios que são caros à PS no Brasil e no mundo.
No complexo cenário vivenciado no país, os sujeitos políticos que representam os interesses das classes subalternas detêm uma função central no processo de lutas pela reafirmação do direito à saúde, nele inscrito a Promoção da Saúde. Na resistência, organização das lutas e ações políticas da sociedade civil na perspectiva da Reforma Sanitária Brasileira, destaca-se o papel dos intelectuais coletivos como a ABRASCO, o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES) e a Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde (FNCPS).
A tarefa é árdua e a luta exige organização e persistência contra a onda regressiva e privatizante que assola o país, contudo, o SUS é patrimônio do povo brasileiro, assim sendo, a defesa da saúde pública e estatal, incluso a conservação de uma PNPS que operacionalize a concepção ampliada de saúde e sua produção social se mostra necessária, notadamente num país de profundas disparidades sociais como o Brasil.
No âmbito desse verdadeiro combate, entendemos que é necessário o constante alinhamento das discussões traçadas em torno da PS aos princípios da Reforma Sanitária, por permitirem a inserção das lutas pela saúde no quadro mais geral da luta de classes e do projeto societário das classes trabalhadoras.
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