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A política de saúde sob o governo Temer: aspectos ideológicos do acirramento do discurso privatista
Bárbara Terezinha Sepúlveda Barros; Ângela Ernestina Cardoso de Brito
Bárbara Terezinha Sepúlveda Barros; Ângela Ernestina Cardoso de Brito
A política de saúde sob o governo Temer: aspectos ideológicos do acirramento do discurso privatista
O Social em Questão, vol. 21, núm. 44, pp. 67-86, 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: O artigo em questão busca demonstrar o fortalecimento de uma perspectiva privatista quanto à política de saúde no Brasil, durante o governo Temer. Tem como foco analisar documentos e discursos produzidos no intuito de tecer uma narrativa, que favoreça o consenso da população em torno desse projeto, que o entenda como inevitável, abandonando assim a proposta de democratização radical da saúde, consubstanciada no Sistema Único de Saúde (SUS). Utiliza-se, para tanto, de uma pesquisa bibliográfica, que cumpre oferecer subsídios importantes para localizar nosso direito social à saúde num quadro histórico mais amplo e, assim, refletir sobre a própria configuração do Estado brasileiro e os rebatimentos da adoção do neoliberalismo entre nós. Recorre-se concomitantemente à pesquisa documental, a fim de elucidar as inconsistências de certos argumentos e a ofensiva à saúde pública e universal, nos moldes constitucionais. Para as análises propostas faz-se uso de algumas categorias gramscianas, sobretudo os escritos sobre hegemonia.

Palavras-chave:Direito SocialDireito Social,SaúdeSaúde,HegemoniaHegemonia.

Abstract: The article in question seeks to demonstrate the strengthening of a privatization perspective regarding health policy in Brazil during the Temer government. Its aim is to analyze documents and speeches produced in order to weave a narrative that favors the consensus of the population around this project, which understands it as inevitable, thus abandoning the proposal of radical democratization of health, embodied in the Unified Health System (SUS). For this purpose, a bibliographical research is used, which must offer important subsidies to locate our social right to health in a broader historical context and thus reflect on the very configuration of the Brazilian State and the refutations of the adoption of neoliberalism among us . It is used concurrently with the documentary research, in order to elucidate the inconsistencies of certain arguments and the offensive to public and universal health, in the constitutional molds. For the analysis proposed some Gramscian categories are used, especially the writings on hegemony.

Social Law; Health; Hegemony

Keywords: Social Law, Health, Hegemony.

Carátula del artículo

Artigos

A política de saúde sob o governo Temer: aspectos ideológicos do acirramento do discurso privatista

Bárbara Terezinha Sepúlveda Barros
Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), Brasil
Ângela Ernestina Cardoso de Brito
Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil
O Social em Questão, vol. 21, núm. 44, pp. 67-86, 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

A política de saúde sob o governo Temer: aspectos ideológicos do acirramento do discurso privatista

Sociedades modernas, a que Gramsci (2000) chamou “ocidentais”, caracterizar-se-iam por um equilíbrio dialético entre infraestrutura e superestrutura, em que as esferas econômico-produtivas seguiriam articuladas a uma base político-cultural viva, onde os vários interesses dos grupos, classes e frações de classe, permaneceriam em constante conflito. Os canais ou instituições responsáveis por conservar ou reproduzir esses interesses seriam os seus aparelhos “privados de hegemonia”, os quais comporiam a sociedade civil.

O moderno príncipe, o governante que em Gramsci (2000) assume a forma do partido, seria tanto quanto mais supremo na medida em que conseguisse dirigir tais interesses, não sendo mais suficiente o mero monopólio da força, que se dá através dos aparelhos típicos de coerção, basicamente, o aparato jurídico-militar. Na ausência de um consenso mínimo se instauraria uma crise de hegemonia, o que acabaria por deflagrar a queda do príncipe, a possibilidade de ascensão de outras forças políticas6.

Temer chega ao poder em 2016, em virtude da falência do pacto lulista e de uma inabilidade por parte do Partido dos Trabalhadores (PT) e da presidenta Dilma Rousseff, em manter a direção e o consenso entre os grupos até aquele ponto, aliados.

O vice acaba por aglutinar interesses de setores do empresariado nacional e internacional, descontentes com uma manifesta incapacidade do PT em efetivar reformas, que esses consideravam fundamentais para retomada das taxas de lucro, em queda vertiginosa diante de uma desvalorização das commodities, que se acelera em 2015 e atinge seu ápice em 2016.

Uma vez empossado presidente da república, uma série de reformas são realizadas ou encomendadas no interior do Estado, com o objetivo de enviar sinais positivos ao mercado (BORÓN, 1997), dando novos contornos ao capitalismo monopolista no Brasil, abrindo novas possibilidades de nichos de acumulação do capital.

Tais reformas (ou contrarreformas, tendo em vista seu conteúdo regressivo) retiraram direitos dos trabalhadores, enfraqueceram suas instâncias de representação, promoveram o congelamento dos gastos públicos na área social, intensificando um processo de desfinanciamento já flagrante.

O discurso em torno delas, disseminado nas mídias tradicionais – típicos aparelhos privados de hegemonia da burguesia – procurou dar legitimidade a essas reformas7, angariando consenso em torno de um projeto sucessivamente rechaçado pela sociedade brasileira, em várias eleições seguidas.

Repete-se insistentemente a justificativa da crise, abusando de certo terrorismo, a partir do qual se afirma que o Brasil irá “quebrar” caso as reformas não sejam feitas, que nossas legislações trabalhistas estão defasadas, que é preciso “flexibilizar”, “modernizar”, palavras que parecem ganhar vida própria. Na verdade, conforme afirma Mota (2006, p.06), “o que pretendem os intelectuais orgânicos da burguesia é reverter a intervenção social do Estado, base da construção de um novo contrato entre Estado, sociedade e mercado”.

No caso específico da saúde, esse novo contrato tem implicado na própria negação do SUS.

Essa iniciativa tem se dado em pelo menos duas frentes: A nível de controle e restrição orçamentária8, cuja novidade se dá pela aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Teto (PEC 241-55), e a nível ideológico, em que se verifica a busca da construção de um projeto, que se pretende hegemônico: a privatização da Saúde, diminuição das obrigações do Estado na sua garantia enquanto direito social e aumento do Mercado na prestação desses serviços. Temos assim, o acirramento do discurso privatista, que oscila entre a própria inoperabilidade do SUS e a fábula de um Mercado ávido para “ajudar” na resolução do problema.

O plano do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), hoje Movimento Democrático Brasileiro (MDB), para a política de saúde no Brasil foi apontado no documento Travessia Social (FUNDAÇÃO ULYSSES GUIMARÃES, 2016), antes mesmo de Temer se tornar presidente, em pleno processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Nele procuram dar ênfase ao gerencialismo, restringindo os problemas do SUS a uma má gestão, buscando afirmar ainda a necessidade de focalização do atendimento na parcela da população que não pode pagar planos privados de saúde; e nesse caminho, estimula o aumento de cobertura dos planos privados (BRAVO; PELAEZ; PINHEIRO, 2018).

Ganha força a necessidade de ampliação do mercado via institucionalização dos planos populares de saúde, que aparecem como o “canto da sereia” para operadoras, que veem dia a dia reduzir o número de consumidores de planos de saúde privados.

Uma vez empossado presidente, Temer nomeia Ricardo Barros para o Ministério da Saúde, que sai em defesa dos planos populares, institui um grupo de trabalho sobre, destacando a impossibilidade de se manter o SUS, conforme o padrão constitucional. A narrativa privatista ganha novo fôlego com o Ministro. Segundo ele, em entrevista a um jornal de grande circulação:

Vamos ter que repactuar, como aconteceu na Grécia, que cortou as aposentadorias, e em outros países que tiveram que repactuar as obrigações do Estado porque ele não tinha mais capacidade de sustentá-las [...]. Nós não vamos conseguir sustentar o nível de direitos que a Constituição determina [...]. Não estamos em um nível de desenvolvimento econômico que nos permita garantir esses direitos por conta do Estado (FOLHA DE SÃO PAULO, 2016).

O Ministro entende ser “fundamental para o Brasil o investimento da saúde privada”. Afirma não estar ali para fazer discurso ideológico, mas a prática da saúde como deve ser feita, atingindo maior número de pessoas, com maior qualidade possível. E nesse caminho diz acolher quem puder contribuir para a saúde (ESTADÃO, 2016). Massifica-se nos argumentos e proposições do referido Ministro, a ideia de que todos devem colaborar diante do colapso do financiamento do sistema (SOARES, 2018). Embora se negue a fazer discurso ideológico, é justamente o que acaba por fazer, como autêntico intelectual orgânico dos empresários do setor da saúde.

O que o Ricardo Barros e outros interlocutores do projeto privatista insistem em ver como gasto, na verdade está entre os investimentos que mais produzem impactos positivos no PIB. O efeito multiplicador do gasto com saúde no país foi calculado em 1,7; o que significa dizer que para um aumento do gasto com saúde de R$ 1,00, o aumento esperado do PIB seria de R$ 1,70 (ABRAHÃO; MOSTAFA; HERCULANO, 2011, apud NORONHA et al., 2018, p. 2055). Apesar do discurso aparentemente técnico e de uma preocupação dita atuarial, explicitam-se razões de natureza política na defesa de uma política de saúde cada vez mais restritiva.

A articulação do governo Temer com o setor empresarial de saúde pode ser observada na sua receptividade quanto ao “Coalizão Saúde Brasil: uma agenda para transformar o sistema de saúde”, divulgado em 2017. Trata-se de um documento, que foi elaborado pelo Instituto Coalizão Brasil, formado por representantes do setor e que tinha como objetivo enfrentar e construir um novo sistema de saúde para o Brasil. Defendiam a tese de que os setores público e privado precisam construir uma rede integrada de cuidados contínuos, em que a tal integração significaria mais participação da iniciativa privada na gestão dos serviços, através de um novo modelo de governança (BRAVO; PELAEZ; PINHEIRO, 2018). O lobby segue forte, tanto quanto o esforço de ingerência das empresas privadas no trato da política pública.

As propostas sintetizadas foram apresentadas ao Senado brasileiro em seminário realizado em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Associação Médica Brasileira (AMB) em agosto de 2016, quando alguns daqueles atores foram recebidos pelo próprio presidente. Segundo Soares (2018, p.3):

Na prática, a gestão do ministro Ricardo Barros trabalhou em sintonia com essas proposições, pois mantinha contato permanente com setores e entidades privadas da saúde, como se fossem efetivamente conselhos consultivos orientadores da gestão da política (SOARES, 2018, p. 3).

Documentos como esse fornecem um discurso valoroso para a defesa de uma perspectiva privatista no que se refere à política de saúde no Brasil. Tornam-se o norte, a partir do qual técnicos de um governo afinado com os setores do empresariado passam a trabalhar. Esses intelectuais começam a disseminar uma “verdade” sobre o SUS que lhes parece mais conveniente. Trata-se do próprio aparelhamento do Ministério da Saúde pelos interesses do setor privado.

Mais recentemente, Temer deu mais um sinal sobre sua falta de compromisso com a saúde universal, tirando dinheiro do SUS para subsidiar o preço do diesel, por ocasião da greve de caminhoneiros. A Medida Provisória nº 838, de 2018, busca recursos em impostos que financiam o SUS, entre outros serviços da Seguridade Social brasileira. Essa medida vem somar-se a uma série de outros mecanismos, que ao longo dos últimos anos têm retirado recursos da saúde, promovendo o:

[...] acirramento da competição entre os entes federados e, nestes, entre os prestadores; à inviabilização de organização em rede dos serviços com fragmentação e segmentação dos cuidados; à redução dos investimentos em novas capacidades; e à queda da qualidade e segurança dos serviços. No setor privado, se tornaram visíveis a expansão de novos arranjos assistenciais como as clínicas de vizinhança e clínicas populares, bem como o desenvolvimento e fortalecimento de novas modalidades de pré-pagamento: planos populares, VGBL Saúde e franquias. É de se prever um aumento da desigualdade territorial por riqueza e da estratificação do atendimento e, da mesma forma, da concentração das inversões e inovações no setor privado de ponta (NORONHA et al., 2018, p. 2057).

Não era essa a saúde pensada pelo constituinte, idealizada por milhões de brasileiros.

Considerações finais

Numa sociedade que não conseguiu superar os problemas históricos da sua formação – a segregação social e racial, a dependência econômica, o latifúndio – as consequências de um projeto restaurador do capital, a serviço dos interesses do imperialismo internacional, tem significado a barbárie, com o retorno iminente do Brasil ao mapa da fome, aumento da violência, banalização da vida.

O ataque direto ao SUS se insere, assim, num contexto mais amplo de reforma ou contrarreforma no interior do Estado, que tem reduzidas suas responsabilidades para com os cidadãos, tornando-se instrumento da financeirização, sobretudo pela política do superávit primário, a serviço da dívida pública, em nome do que se transferem mais e mais recursos.

Material suplementar
Referências
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