Artigos

Judicialização no acesso a medicamentos: análise acerca dos impactos na gestão em saúde

Danilo Augusto Tonete
Universidade Estadual de Maringá (UEM), Brasil
Cláudio Luiz Chiusoli
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), Brasil

Judicialização no acesso a medicamentos: análise acerca dos impactos na gestão em saúde

O Social em Questão, vol. 21, núm. 44, pp. 87-110, 2019

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Resumo: Este artigo reflete e mensura quais impactos e dificuldades o fenômeno da judicialização no acesso a medicamentos causa na gestão dos serviços públicos de saúde. Trata-se de um estudo exploratório e de revisão da bibliografia disponível. Observou-se aumento exponencial no número de novos processos no decorrer do tempo, além dos gastos para o atendimento destes em todas as esferas da gestão, causando assim desordens no ciclo da assistência farmacêutica, além de prejudicar o financiamento de políticas públicas no cada vez mais escasso orçamento público. Esse aumento fere diretamente os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente a equidade, universalidade e igualdade.

Palavras-chave: Judicialização, Assistência Farmacêutica, Gestão em Saúde Pública, Acesso a medicamentos.

Judicialização no acesso a medicamentos: análise acerca dos impactos na gestão em saúde

Danilo Augusto Tonete1

Cláudio Luiz Chiusoli2

Resumo

Este artigo reflete e mensura quais impactos e dificuldades o fenômeno da judicialização no acesso a medicamentos causa na gestão dos serviços públicos de saúde. Trata-se de um estudo exploratório e de revisão da bibliografia disponível. Observou-se aumento exponencial no número de novos processos no decorrer do tempo, além dos gastos para o atendimento destes em todas as esferas da gestão, causando assim desordens no ciclo da assistência farmacêutica, além de prejudicar o financiamento de políticas públicas no cada vez mais escasso orçamento público. Esse aumento fere diretamente os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente a equidade, universalidade e igualdade.

Palavras-chave

Judicialização; Assistência Farmacêutica; Gestão em Saúde Pública; Acesso a medicamentos.

Judicialization in access to medicines: analysis of impacts in health management

Abstract

This article reflects and measures what impacts and difficulties the phenomena of the judicialization in access to medicines causes in the management of public health services. This is an exploratory study and review of the available bibliography. It was noted that there has been an exponential increase in the number of new processes over time, as well as the expenses to attend them, in all spheres of management, causing disorders in the pharmaceutical assistance cycle, as well as undermining the financing of public policies in the increasingly scarce public budget. This increase directly affects the principles and directives of Unified Health System (SUS), mainly the equity, universality and equality.

Keywords

Judicialization; Pharmaceutical care; Public Health Management; Access to medicines.

Artigo recebido: novembro de 2018.

Artigo aprovado: janeiro de 2019.

Introdução

Recentemente, é possível observar no dia a dia de gestores em saúde, do poder judiciário e da sociedade civil em geral um novo fenômeno, intitulado Judicialização da Saúde. Com aumento expressivo nos últimos 15 anos, vem suscitando debates e reflexões em torno do acesso à terapia medicamentosa através do meio judicial. Buscam-se incessantemente meios que possam, de fato, garantir os direitos constitucionais que, por ventura, não estejam sendo cumpridos pelo Estado, e ilustra uma quebra de braço entre o que o Estado garante e o que o cidadão julga que deve ser garantido e fornecido, ou esperaria que fosse garantido, mas não encontra fundamento nas leis ou políticas públicas existentes (MARQUES, 2008, p.1).

Os gastos da União e dos estados aumentaram incríveis 1.300% no período entre 2008 e 2015, saltando de aproximadamente R$ 70 milhões, em 2008, para aproximadamente R$ 1 bilhão, em 2015 (BRASIL, 2017, p.2).

Desde o advento da Constituição Federal de 1988, em seu artigo número 196, estabeleceu a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988, p.83).

Somente dez anos após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) é que o poder público efetivamente regulamentou o direito constitucional dos cidadãos à assistência farmacêutica, com a publicação da portaria que instituiu a Política Nacional de Medicamentos (PNM). Esta regulamentação se adequou e fortaleceu os princípios e as diretrizes do SUS, tendo como objetivo ainda a garantia da eficácia e segurança no uso racional de medicamentos e o acesso da população aos medicamentos essenciais (BRASIL, 1998 p.3).

Porém, o desenvolvimento constante de novos fármacos, aliado a uma forte divulgação da indústria farmacêutica com os profissionais prescritores, que ao prescreverem determinados medicamentos que não tem sua distribuição padronizada pelo SUS, por diversas vezes levam os pacientes a procurar o poder judiciário para que os medicamentos sejam fornecidos (CHIEFFI; BARATA, 2010, p.8; PEPE et al., 2010, p.3).

É tão grande a quantidade de ações judiciais com esse intuito que o fato já vem sendo chamado de “Judicialização da Assistência Farmacêutica”, tendo em vista que a grande maioria dos processos judiciais é de solicitação de fornecimento de medicamentos indisponíveis na rede pública, fenômeno também chamado simplesmente de “Judicialização da Saúde” (CHIEFFI; BARATA, 2010, p.3).

Esse aumento de demanda teve início em meados dos anos 1990, com uma grande quantidade de pacientes solicitando, via judicial, alternativas ao tratamento com medicamentos antirretrovirais oferecidos pelo SUS. A partir de então, tornaram-se mais frequentes ações que pleiteiam medicamentos para condições crônicas como câncer, doenças cardiovasculares, diabetes, distúrbios neurológicos e mentais, doenças essas que tratadas pela Assistência Farmacêutica no SUS (MESSENDER, OZORIO DE CASTRO; LUIZA, 2005, p.5).

No olhar do judiciário, o direito à saúde é líquido e certo, garantido na Constituição Federal de 1988, e no seu entender, o acesso aos recursos terapêuticos é parte desse direito. A decisão de instituir tratamentos farmacológicos, na maioria das vezes, é atribuição e responsabilidade médica, e é materializada na prescrição, reconhecida como ordem incontestável. No contexto das demandas judiciais por medicamentos, a junção desses princípios pressupõe uma forma concreta de resolubilidade dos problemas de saúde e agravos que incidem sobre o paciente, ou pelo menos em parte. Não obstante, ocorre que um tratamento farmacológico, considerando os atributos necessários aos medicamentos, traz em si riscos para a saúde humana mesmo quando empregado de modo racional (BRASSICA, 2015, p.1).

Somado a isto, a prescrição e o uso de medicamentos considerados novidades terapêuticas, e aqueles com valor intrínseco terapêutico duvidoso, sofrem fortes pressões da indústria farmacêutica, contrapondo-se à objetividade técnica e científica que essas ações exigem. Diante do exposto, é questionável se tais decisões, médica e judicial, intencionalmente trariam benefícios definidos na saúde e se realmente corroboram, em todos os casos, para o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas (DINIZ; MEDEIROS; SCHWARTZ, 2012, p.3).

O problema de pesquisa se fundamenta em: quais as dificuldades esse fenômeno traz para os gestores em saúde? O poder judiciário tem conhecimento das políticas públicas voltadas à assistência farmacêutica? Até que ponto essas demandas promovem justiça social?

A justificativa desta pesquisa é, prioritariamente, apontar possíveis deficiências na condução e deferimento destas demandas judiciais, além de ilustrar o impacto financeiro e de gestão que as mesmas trazem.

O presente estudo tem por objetivo mensurar e refletir qual impacto o fenômeno da judicialização no acesso a medicamentos causa na gestão em saúde e no financiamento dos serviços e políticas públicas de saúde voltadas a assistência farmacêutica no SUS, além de analisar, de maneira simples, o conhecimento do poder judiciário em relação a essas políticas.

Diretrizes do SUS: Assistência Farmacêutica como política pública em saúde

O Brasil através da Lei nº 8.080/1990 (BRASIL, 1990, p.3), ao dispor sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dando outras providências, definiu, no capítulo II, as diretrizes do SUS sobre a universalidade aos serviços, integralidade de assistência, preservação da autonomia e igualdade da assistência a saúde.

Essas diretrizes devem nortear todas as políticas públicas desenvolvidas nas três esferas de gestão.

Os medicamentos, em conjunto com os recursos de diagnóstico e a terapêutica, representam a expressão mais nítida entre a saúde de uma sociedade e a ação do Estado, seja por se constituírem instrumentos relevantes para a saúde e a qualidade de vida, seja no que diz respeito aos custos significativos para os sistemas de saúde. Para cumprir esta função é essencial que os medicamentos sejam seguros, eficazes, de boa qualidade, prescritos e usados racionalmente, e apresentem adequada relação custo-efetividade (OMS, 2000, p.2).

A Assistência Farmacêutica é caracterizada pelo conjunto de atividades sistêmicas articuladas em sistema de ciclo, que se sucedem e se complementam conforme as atividades anteriores tenham sido executadas de maneira satisfatória e corretas. Compõe o ciclo da assistência farmacêutica: a seleção de medicamentos com o melhor custo/benefício, programação para que os estoques sejam suficientes, aquisição dos medicamentos, armazenamento, distribuição para as unidades dispensadoras e dispensação, que se caracteriza pela prescrição do profissional habilitado, a entrega ao paciente com as devidas orientações pelo profissional farmacêutico, e a correta utilização do medicamento pelo paciente (MARÍN et al., 2003, p. 54).

No Brasil mediante Resolução 388 (BRASIL, 2004, p.1), do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que aprovou a Política Nacional de Assistência Farmacêutica, definiu que a Assistência Farmacêutica deve ser compreendida como política pública norteadora para a formulação de políticas setoriais, entre as quais se destacam as políticas de medicamentos, de ciência e tecnologia, de desenvolvimento industrial e de formação de recursos humanos.

Todas as ações desenvolvidas de assistência farmacêutica devem estar pautadas e fundamentadas juridicamente nos princípios previstos da universalidade, integralidade e equidade; Descentralização, com direção única em cada esfera de governo; Regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde; Multidisciplinaridade e intersetorialidade; Garantia da qualidade; Estruturação e organização dos serviços farmacêuticos, com capacidade de resolução; Enfoque sistêmico, isto é, ações articuladas e sincronizadas (MARIN et al., 2003 p. 123).

A estratégia de implementação da assistência farmacêutica no SUS engloba, de maneira racional e lógica, a definição de grupos de medicamentos direcionados a problemas de saúde, baseado em sua complexidade, perfil epidemiológico e relacionamento com os distintos níveis de atenção (BRASIL, 2004, p.3).

O planejamento da assistência farmacêutica no SUS busca garantir o acesso a medicamentos da forma mais racional possível, envolvendo e responsabilizando as três esferas de governo, utilizando as normalizações e, principalmente, os protocolos clínicos para atingir a efetividade esperada nos tratamentos. Este planejamento é identificado na atenção médica, brindada pelos distintos níveis do sistema de saúde (TANAKA, 2008, p.2).

A garantia da manutenção e provisão da assistência farmacêutica e terapêutica aos usuários do SUS, com a finalidade de melhorar sua qualidade de vida, é destaque da Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF) como parte da Política Nacional de Saúde. Compõe o eixo global da PNAF a manutenção de serviços de assistência farmacêutica na rede pública de saúde, nos diferentes níveis de atenção, considerando a necessária articulação e a observância das prioridades regionais definidas nas instâncias gestoras do SUS, incluindo as fontes e mecanismos de financiamento (BRASIL, 2004, p.4).

Desde a implementação da Política Nacional de Medicamentos (PNM), no ano de 1998 se destaca a implementação da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), lista oficial que norteia todas as ações da assistência farmacêutica relacionadas ao ciclo da assistência farmacêutica, incentivo ao desenvolvimento científico e tecnológico relacionado a medicamentos, a regulação e fiscalização sanitária de medicamentos e insumos correlatos, garantir e assegurar a qualidade, eficácia e segurança, além de promover o uso racional e incentivar a capacitação e o desenvolvimento dos profissionais de saúde, e a produção nacional de medicamentos (BRASIL, 2001 p. 41; VIEIRA, 2007, p.2).

A PNM também dividiu e instituiu qual o papel dos entes federativos na gestão da assistência farmacêutica. Coube à esfera municipal executar ações que visem o provimento de medicamentos considerados essenciais ou básicos, denominado Componente Básico da Assistência Farmacêutica, adquiridos com recursos próprios ou recursos repassados pelos entes estadual ou federal. O município deve avaliar o perfil epidemiológico da sua população para efetuar a aquisição e fornecimentos destes medicamentos básicos, tendo como base a RENAME, mas permitindo inclusões que atendam características especificas (MACHADO et al., 2011 p.5; LEITÃO, 2012, p.2).

A gestão estadual coube o papel de coordenar e organizar as ações voltadas à assistência farmacêutica no Estado, também cabe à esfera estadual ações do ciclo da assistência farmacêutica voltadas a medicamentos de alto custo, denominado Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica. Ficando o governo federal incumbido pela regulação do sistema em um olhar nacional, além de se responsabilizar por prover meios para financiamento e propor as bases de legislação a serem seguidas por estados e municípios. É responsável também por adquirir e distribuir medicamentos que compõe o Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica (MESSENDER; OZORIO DE CASTRO; LUIZA, 2005, p.4).

A incorporação de novas tecnologias e, por consequência, de novos medicamentos no SUS é feita a partir da análise da eficácia, efetividade e custo-benefício, sendo acompanhada de regras precisas quanto à indicação e forma de uso. Isso permite orientar adequadamente a conduta dos profissionais de saúde, além de garantir a segurança dos pacientes. A análise é feita pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS (CONITEC), criada em 2011 com o objetivo de assessorar o Ministério da Saúde na decisão de incorporação de novas tecnologias no SUS. Cabe também ao CONITEC assessorar o Ministério da Saúde nas decisões relativas à incorporação, exclusão ou alteração de novos produtos e procedimentos de diagnósticos ou terapêuticos na constituição ou alteração de protocolos clínicos e de diretrizes terapêuticas, bem como nas atualizações da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (BRASIL, 2011, p.2).

Toda solicitação de incorporação/exclusão de tecnologias submetida à CONITEC implica na instauração de processo administrativo, havendo um conjunto de requisitos a serem cumpridos pela empresa ou instituição demandante, entre os quais: documentação do número e validade do registro da tecnologia na Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); apresentação de evidências científicas demonstrando que a tecnologia pautada é, no mínimo, tão eficaz e segura quanto aquelas disponíveis no SUS para a indicação pretendida; estudo de avaliação econômica comparando a tecnologia solicitada com as já disponibilizadas no SUS; e, no caso de medicamentos, o preço fixado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos da ANVISA (BRASIL, 2011, p.3).

O que justifica e embasa a não incorporação de determinado medicamento pelos gestores públicos responsáveis pode ser, por exemplo, o recente registro, ou não possuir registro junto a ANVISA, ou em casos de indicação para tratamento de agravo de saúde diferente do indicado no registro e nos estudos clínicos (PEREIRA; PEPE, 2015, p. 3).

Várias políticas públicas no âmbito da saúde têm como objetivo racionalizar a prestação coletiva do Estado, baseadas nas principais necessidades de saúde de uma determinada população, de maneira a promover a justiça distributiva, que é uma característica marcante dos princípios dos direitos sociais (MARQUES, 2008, p.2).

Desafios impostos à gestão em saúde em decorrência de demandas judiciais

Apesar de a Política Nacional de Medicamentos determinar e delimitar as responsabilidades de cada esfera do governo, o aumento exponencial nos processos de judicialização da saúde desconsidera essa organização e determinação legal. Os municípios são frequentemente obrigados a fornecer medicamentos do Componente Especializado de Assistência Farmacêutica, que são de responsabilidade da gestão estadual, e é forçada a fornecer medicamentos que se enquadram no Componente Básico da Assistência Farmacêutica, que tem sua aquisição e fornecimento sob responsabilidade dos municípios (MESSENDER; OZORIO DE CASTRO; LUIZA, 2005, p.7; VIEIRA; ZUCCHI, 2007, p.8).

Entretanto, os gestores e a administração pública como um todo, vêm buscado meios para se organizar, em conformidade com as diretrizes e princípios do SUS, em face da irregularidade de financiamento. Neste cenário, a grande quantidade de decisões judiciais contrárias à administração recai sobre os gestores da assistência farmacêutica em todo território nacional e em todas as esferas de governo, determinando a aquisição de medicamentos, em especial os de alto valor financeiro, para atender as necessidades terapêuticas de alguns pacientes em específico. Essa demanda tem levado à desestruturação do ciclo da assistência farmacêutica, que conta com um orçamento já comprometido com programas e políticas de saúde consideradas prioritárias nas três esferas de governo (PEREIRA, 2013, p.24).

Esta realidade, aliada à falta de informações claras sobre quais caminhos seguir para que se obtenham os medicamentos prescritos, leva uma parcela da população a pleitear judicialmente o acesso a medicamentos e tratamentos de saúde (MORETTI, 2014, p.9).

O impacto da judicialização da saúde representa riscos à continuidade das políticas de saúde pública, por desorganizar as atividades administrativas e dificultar a aplicação racional dos, por muitas vezes escassos, recursos públicos. Em vários casos, se pode observar a concessão de privilégios para alguns pacientes que buscam os meios jurídicos em prejuízo da coletividade que depende das políticas públicas universais implementadas pelos gestores (BARROSO, 2008, p.32).

Pontos em comum foram observados em estudos acerca dos processos judiciais que visavam fornecimento de medicamentos em diversos estados e municípios brasileiros, dentre as similaridades, podemos destacar: a maior parte dos processos de solicitação de medicamentos é realizada de maneira individual e tem seu deferimento pelo poder judiciário baseado apenas na prescrição médica apresentada pelo paciente solicitante (PEPE et al., 2010, p.2); nas prescrições constam tanto medicamentos que constam na RENAME como medicamentos não padronizados na RENAME, com alguns casos, inclusive, de medicamentos sem registro sanitário junto a ANVISA, ou solicitado para tratar uma condição de saúde diferente da indicada no registro sanitário do medicamento (PEPE et al., 2010, p.2; FIGUEIREDO, 2010, p.92); há um aumento exponencial dos processos judiciais e do impacto financeiro com a aquisição destes medicamentos (BOMFIM, 2008, p.18; BRASIL, 2013, p.4; PARANÁ, 2016, p.117; SCHEREN; WERNKE; ZANIN, 2017, p.16).

Apresenta-se como dificuldade imposta à gestão da assistência farmacêutica devido ao aumento exponencial da judicialização está associada o fato que os processos deferidos não se delimitam a entrega de medicamentos inclusos ou não na RENAME. Existem características específicas destas demandas, que exigem uma atuação diferenciada dos gestores em saúde, tanto na esfera administrativa quanto na esfera jurídica, visando conter o aumento de novas demandas e zelar pelos princípios e as diretrizes do SUS (PEPE et al., 2010).

Este aumento impõe discussões e reflexões sobre o acesso dos pacientes aos medicamentos mediante a via judicial, e envolve autoridades judiciárias, gestores públicos e a sociedade em geral, onde o principal debate se dá em buscar meios que possam, de fato, fazer cumprir o direto constitucional dos cidadãos sem que sejam colocados em detrimento benefícios a população em geral (GANDINI; BARIONE; SOUZA, 2008, p.3).

Podemos citar também como problema causado à gestão da assistência farmacêutica o fato de que, quase em sua totalidade, os pedidos judiciais formulados terem concessão de tutela antecipada deferidos, implicando assim na obrigação da entrega em um curtíssimo espaço de tempo, situação que pode causar prejuízos ao atendimento e demandas rotineiras dos serviços de saúde (PEPE et al., 2010, p.2).

Alguns pontos devem ser observados acerca dos impactos negativos relacionadas à gestão de serviços de saúde.

Primeiramente, que o deferimento de todas as solicitações judiciais pode, a médio e longo prazo, acentuar a injustiça de acesso a medicamentos no SUS, indo na direção contrária dos princípios de equidade e integralidade, tendo em vista que beneficia os cidadãos que têm ampliadas as suas possibilidades de ingressar judicialmente para ter sua demanda atendida, e as decisões que beneficiem apenas um indivíduo não serem ampliadas a todos os cidadãos com a mesma condição patológica e que, em teoria, poderiam e deveriam ser beneficiados desta decisão (VIEIRA; ZUCCHI, 2007, p.22; MARQUES; DALLARI, 2007, p.7; CHIEFFI; BARATA, 2009, p.8).

O segundo ponto se refere às dificuldades impostas por essa situação à gestão da assistência farmacêutica em cumprir os curtos prazos impostos pelo judiciário, pois, devido a ser um gasto que não estava programado, faz com que a aquisição deste medicamento seja efetuada de uma maneira pouco efetiva e, muitas vezes, com um custo maior (PEPE et al., 2010, p.10).

Esse fato supracitado impõe por vezes a aquisição de medicamentos de forma desorganizada, por serem específicos para cada paciente e, muitas vezes, solicitados pelo poder judiciário através do nome comercial, e não pela sua denominação genérica, como preconiza a Lei nº 9.787/1999, que determina que as aquisições de medicamentos, sob qualquer modalidade de compra, e as prescrições médicas e odontológicas de medicamentos, no âmbito SUS, deverão adotar, obrigatoriamente a Denominação Comum Brasileira (DCB) (PANDOLFO; DELDUQUE, 2012, p.5; BRASIL, 1999, p.1).

Dos membros do poder judiciário, espera-se um conhecimento básico das políticas públicas voltadas à saúde, visando assim garantir de maneira efetiva o direito ao acesso a insumos que visem melhorar a saúde, nos casos que são submetidos a sua apreciação, agregando, desta maneira, os interesses individuais com os coletivos, efetuados mediante aplicação efetiva destas políticas (MARQUES; DALLARI, 2007, p.3; BRASSICA, 2015, p.1).

Metodologia da pesquisa

Trata-se de um estudo de pesquisa bibliográfica e se fundamenta a partir do conhecimento disponível em fontes bibliográficas, principalmente livros e artigos científicos, com a finalidade de ampliar o conhecimento na área, de dominar o conhecimento para depois utilizá-lo como modelo teórico que dará sustentação a outros problemas de pesquisa e para descrever e sistematizar o estado da arte na área estudada. Este tipo de pesquisa se restringe ao campo de atuação no levantamento e na discussão da produção bibliográfica existente sobre o tema. O processo de pesquisa envolve a escolha do tema, levantamento bibliográfico preliminar, formulação do problema, elaboração do plano provisório de assunto, busca das fontes, leitura do material, fichamento, organização lógica do assunto e redação do texto (GIL, 2008, p. 16), que consiste em apresentar o resultado de uma investigação tanto teórica como teórico-empírico, a qual se caracteriza principalmente por discutir informações já publicadas (ZANELLA, 2009, p.83).

Trata-se também de um estudo de caráter exploratório, o qual tem a finalidade de ampliar o conhecimento a respeito de um determinado fenômeno. Esse tipo de pesquisa, aparentemente simples, explora a realidade buscando maior conhecimento, para depois planejar uma pesquisa descritiva. O planejamento da pesquisa exploratória é bastante flexível, já que o pesquisador não possui clareza do problema nem da hipótese a serem investigados (GIL, 2008, p.68).

A fonte de dados é secundária, isto é, dados que já foram coletados, tabulados, ordenados, sistematizados e, algumas vezes, já analisados (ZANELLA, 2009, p.85). Foram investigados artigos científicos relacionados ao tema, além de livros e documentos em órgãos públicos, visando à coleta de dados de natureza qualitativa e quantitativa.

Buscou-se nas fontes dados referentes aos valores despendidos pelo poder executivo, em qualquer esfera de gestão, com a compra de medicamentos para cumprimento das ordens judiciais, além do número de pacientes e da porcentagem de medicamentos incluídos nas ordens judiciais, que estão inclusos na RENAME.

Resultados e discussão

Em pesquisa realizada em documentos oficiais obtidos no endereço eletrônico da secretaria estadual de saúde obteve-se os seguintes dados referentes ao crescimento dos números de novos pacientes atendidos por via judicial.

Gráfico 1. Evolução do número de novos processos judiciais atendidos pela secretaria estadual de saúde (2008-2015)

Novos Cadastros

Fonte: PARANÁ, 2018

Observa-se que houve um aumento considerável no número de novos processos julgados procedentes em um curto espaço de tempo, onde apenas em oito anos houve um aumento de 487% no número de novos processos recebidos, evidenciando um crescimento expressivo.

Ao confrontar com a literatura já disponível, observa-se que o estado do Paraná teve um aumento consideravelmente maior nos números de novos casos judiciais do que os processos atendidos pela União, que no período entre 2009 a 2012 teve um crescimento de 24,46% no número de novas ações, frente a 111,75% observados no estado do Paraná, no mesmo período (BRASIL, 2013, p.4).

Ainda segundo Brasil (2013, p.5), não há elementos seguros para aferir a razão do crescimento numérico das ações judiciais em face da União, mas o sucesso quase certo dessas demandas, em que, em regra, a antecipação dos efeitos da tutela é concedida em caráter irreversível, associado à interiorização da Justiça Federal, parecem concorrer fortemente para essa evolução.

Consequentemente, no Gráfico 2, apresenta-se uma evolução dos valores financeiros despendidos pelo estado para aquisição e atendimento de ordens judiciais pelo governo do estado do Paraná.

Gráfico 2. Evolução do valor gasto com compra de medicamentos oriundos de demandas judiciais (2008-2015)

Fonte: PARANÁ, 2016

Nota-se também um aumento gradativo nos gastos por parte do estado para a aquisição destes medicamentos, gastos estes muitas vezes não planejados e que podem prejudicar a efetivação de políticas públicas já programadas e planejadas no orçamento.

Observa-se que os valores gastos sofrem um aumento maior, em proporção simples, muito provavelmente devido à indicação de uso contínuo da maioria dos medicamentos solicitados via judicial, o que causa um acúmulo nos gastos ao longo do tempo, sem indícios de diminuição (BRASIL, 2013, p.7).

Em estudo realizado por Vieira (2018, p. 23), observou-se que no período entre 2010 e 2016, os gastos do governo federal para atendimento de decisões judiciais teve um crescimento real de 547%, saltando de R$ 199,6 milhões, em 2010, para R$ 1,3 bilhão, em 2016. No acumulado do período, o valor gasto foi de R$ 4,8 bilhões.

Para que se possa analisar o impacto financeiro das demandas judiciais na gestão financeira e de saúde, a tabela 1 apresenta um comparativo do valor total gasto pelo estado com medicamentos e qual é a participação das demandas judiciais nesse universo.

Tabela 1. Participação das aquisições de medicamentos provenientes de decisões judicais nos gastos totatis com medicamento pelo estado do Paraná (2012-2015)

Fonte: PARANÁ, 2016

Segundo Teixeira (2011, p. 25), em 2008, o estado do Rio de Janeiro gastou aproximadamente R$29.000.000,00 (vinte e nove milhões) para cumprimentos de decisões judiciais, em um universo de aproximadamente R$ 334.563.900,00, representando 8,66%, contrapondo uma representação menor em relação ao observado no estado do Paraná; vale ressaltar que no ano analisado, o fenômeno da judicialização estava iniciando seu processo de crescimento vertiginoso.

Ao comparar o impacto financeiro da judicialização em saúde nos estados do Paraná e do Rio Grande do Sul, verifica-se que no Rio Grande do Sul, no ano de 2014, o gasto total com medicamentos foi de aproximadamente R$ 316 milhões, onde R$ 192 milhões foram para aquisição de medicamentos para atendimento de demandas judiciais, representando 64% do valor, em comparação com o estado do Paraná, onde os gastos representaram 28,8% do gasto total. Vale ressaltar que o estado do Rio Grande do Sul é o estado brasileiro com o maior número de processos judiciais destinados à solicitação de medicamentos (MORETTI, 2014, p.3).

Em um universo reduzido, Scheren, Wernke e Zanin (2017 p. 94) analisaram a participação dos gastos com demandas judiciais frente ao total investido para aquisição de medicamentos pelo Município de Chapecó-SC, e observou-se que saltou de 1,13% dos gastos, em 2008, para 34,97% em 2015, resultado este que segue a mesma tendência de Estados e da União.

Um dos dados que mais evidencia uma falta de critérios técnicos e científicos das decisões judiciais, e de conhecimento das políticas públicas de fornecimento de medicamentos pelo SUS, é que 18% das apresentações de medicamentos que o estado fornece por ordens judiciais ativas em 2015 são usualmente fornecidos a todos os pacientes, mediante prescrição médica, por fazerem parte da RENAME (PARANÁ, 2016, p.5).

Segundo Silva, Guimarães e Silva (2014 p.5) no estado de Pernambuco, no ano de 2012, observou-se que 28,14% das demandas judiciais impetradas contra o governo estadual eram solicitando medicamentos que constam na RENAME.

E segundo Chieffi e Barata (2013 p. 4), no estado de São Paulo, no ano de 2009, observou-se que 23% dos processos julgados procedentes contra o estado continham medicamentos padronizados pelo SUS e incluídos na RENAME.

Em estudo, Machado et al. (2011 p. 593) observaram que no estado de Minas Gerais, entre os anos de 2005 e 2006, 19,6% das demandas judiciais solicitavam medicamentos padronizados pelo SUS e incluídos na RENAME.

Estes estudos demonstram uma grave falha de comunicação entre o poder judiciário e os serviços de saúde, devido ao desconhecimento das políticas públicas, prejudicando o ciclo da assistência farmacêutica, além de gerarem gastos desnecessários, tanto pelo poder judiciário, para dar andamento e julgar os processos, como para o estado, que precisa fornecer medicamentos básicos que têm seu financiamento e distribuição como obrigação dos municípios.

Considerações finais

O estudo teve por objetivo mensurar e refletir o impacto que o fenômeno da judicialização no acesso a medicamentos causa na gestão em saúde e no financiamento dos serviços e políticas públicas de saúde voltadas à assistência farmacêutica no SUS, além de analisar, de maneira superficial, o conhecimento do poder judiciário em relação a essas políticas.

Essas medidas judiciais têm um forte impacto financeiro e para a gestão da saúde. Todas as esferas do governo se mostram preocupadas com o crescente número de ações judiciais envolvendo a assistência farmacêutica.

Os gastos com a judicialização, em todos os estudos e dados observados, apresentaram um aumento significativo, por vezes até exponencial com o passar dos anos, em todas as esferas de governo, o que confirma o forte impacto na gestão e no financiamento das políticas de assistência farmacêutica, visto que esse gasto não esperado refletirá na execução de ações já programadas pelo poder executivo.

Não se deve analisar apenas o ponto da gestão, deve-se observar o valor subjetivo e imensurável da vida e da dignidade humana, que deve ser preservada, sempre que possível.

O conflito se dá pela falta de critérios técnicos pelo poder judiciário que, diversas vezes, julga procedentes pedidos de medicamentos usualmente fornecidos pelo SUS, ou indicados para tratamentos não preconizados pela própria empresa fabricante do medicamento, o que pode, por falta de estudos de segurança, colocar em risco a saúde dos pacientes.

Ao analisar os princípios e diretrizes que estruturam o SUS, nota-se que essas demandas judiciais, muitas vezes, contrariam os mesmos, principalmente ao analisarmos os princípios da universalidade e da equidade, uma vez que as ações garantem o atendimento apenas a seus autores, e não a todos os pacientes acometidos com a mesma patologia. Também podemos citar a afronta ao princípio da integralidade, uma vez que as decisões judiciais ordenam apenas o fornecimento do medicamento, sem o seu devido acompanhamento, além de desconsiderarem políticas públicas já existentes.

O fortalecimento da comunicação entre os serviços de saúde e o poder judiciário pode, em longo prazo, embasar cientificamente as decisões jurídicas, aumentando o conhecimento das políticas públicas relacionadas à assistência farmacêutica pelo poder judiciário, e diminuindo, assim, ações desnecessárias.

A limitação da pesquisa foi a impossibilidade de acesso a dados mais específicos relacionados às demandas judiciais nas fontes oficiais, embora sejam disponíveis, apresentam dados superficiais, impossibilitando aprofundamento na discussão. Logo, a pesquisa ficou restrita aos dados disponíveis; dados estes por diversas vezes com intervalos de tempo diferentes.

A contribuição da pesquisa foi evidenciar o aumento nos gastos de uma maneira geral e relativa com a compra de medicamentos via demanda judicial, mostrou que uma grande proporção dos processos solicita medicamentos usualmente fornecidos pelo SUS, e que esse fenômeno pode interferir na consolidação dos princípios e diretrizes básicas do SUS, além de servir de alerta aos gestores para que se desenvolva uma melhor relação de comunicação entre o poder executivo e o judiciário.

Como sugestão de pesquisa futura, estudos que possam levantar dados de documentos não disponíveis ao público, mas que possam traçar um perfil mais detalhado destas demandas pode ser de grande valia para o desenvolvimento de estratégias de gestão voltadas a conter esse fenômeno.

Referências

BOMFIM, R. L. Agenda única de saúde: a busca do acesso universal e a garantia do direito à saúde. 2008. Tese (Doutorado). Departamento de Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

______. Lei n. 8080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Diário Oficial da União, Brasília, 20 set. 1990.

______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

CHIEFFI, A. L.; BARATA, R. de C. B. Ações judiciais: estratégia da indústria farmacêutica para introdução de novos medicamentos. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 3, p. 421-429, jun. 2010.

DINIZ, D.; MEDEIROS, M.; SCHWARTZ, I. V. D.. Consequências da judicialização das políticas de saúde: custos de medicamentos para as mucopolissacaridoses. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 28, n. 3, p. 479-489, mar. 2012.

GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2008.

LEITÃO, L. C. A. Análise das demandas judiciais para aquisição de medicamentos do Estado da Paraíba. 2012. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública). Programa de Pós Graduação em Saúde Pública, Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2012. Disponível em: <http://tede.bc.uepb.edu.br/jspui/bitstream/tede/1810/1/Luana Couto Assis Leitao.pdf>. Acesso em: 25 dez. 2017.

MARÍN, N. et al. Assistência farmacêutica para gerentes municipais. Rio de Janeiro: OPAS/OMS, 2003.

PEPE, V. L. E. et al.. A judicialização da saúde e os novos desafios da gestão da assistência farmacêutica. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, p. 2405-2414, ago. 2010.

ZANELLA, L. C. H. Metodologia de estudo e pesquisa em administração. Florianópolis: Departamento de Ciências da Administração / UFSC; [Brasília]: CAPES/UAB, 2009.

HMTL gerado a partir de XML JATS4R por