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A remanicomialização do cuidado em saúde mental no Brasil no período de 2010-2019: análise de uma conjuntura antirreformista
O Social em Questão, vol. 21, núm. 44, pp. 111-138, 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Artigos



Resumo: Este artigo trata da política de saúde mental no Brasil e da cidadania das pessoas com transtorno mental. Investiu-se em elementos indispensáveis para produção de uma análise de conjuntura da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB). A análise de leis e documentos ministeriais identifica tendência de remanicomialização do cuidado em saúde mental no Brasil no período de 2010-2019, quando seus princípios foram ameaçados pelo Decreto 7.179 de 2010, que institui o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, e, em 2017, negados pela Portaria 3.588, e, reafirmados, em 2019, pela Nota Técnica 11/2019 que gerou significativas mudanças na Política Nacional de Saúde Mental, fortalecimento da lógica de mercado e reversão dos direitos garantidos constitucionalmente, desconsiderando o processo construído ao longo de décadas no contexto da RPB.

Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica, Saúde Mental, Cidadania.

A remanicomialização do cuidado em saúde mental no Brasil no período de 2010-2019: análise de uma conjuntura antirreformista1

Thaís de Andrade Alves Guimarães2

Lucia Cristina dos Santos Rosa3

Resumo

Este artigo trata da política de saúde mental no Brasil e da cidadania das pessoas com transtorno mental. Investiu-se em elementos indispensáveis para produção de uma análise de conjuntura da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB). A análise de leis e documentos ministeriais identifica tendência de remanicomialização do cuidado em saúde mental no Brasil no período de 2010-2019, quando seus princípios foram ameaçados pelo Decreto 7.179 de 2010, que institui o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, e, em 2017, negados pela Portaria 3.588, e, reafirmados, em 2019, pela Nota Técnica 11/2019 que gerou significativas mudanças na Política Nacional de Saúde Mental, fortalecimento da lógica de mercado e reversão dos direitos garantidos constitucionalmente, desconsiderando o processo construído ao longo de décadas no contexto da RPB.

Palavras-chave

Reforma Psiquiátrica; Saúde Mental; Cidadania.

The remanicomialization of mental health care in Brazil from 2010 to 2019: analysis of an counter-reform conjecture

Abstract

This article deal with mental health policy in Brazil and the citizenship of people with mental disorders. It was invested in necessary elements for the productions of a conjuncture analysis of the Brazilian Psychiatric Reform (BPR). The analysis of ministerial laws and documents identifies a tendency of remanicomalization of mental health care in Brazil in the period of 2010-2019, when it's principles were threatened by Decree 7.179 of 2010, which establishes the Integrated Plan to Combat Crack and Other Drugs, denied by Ordinance 3.588 in 2017 and reaffirmed in 2019 by Technical Note 11/2019, which generated significant changes in the Policy National Mental Health, strengthening of market logic and reversal of constitutionally guaranteed rights, disregarding the process built over decades in the context of BPR.

Keywords

Psychiatric Reform; Mental Health Policy; Citizenship.

Artigo recebido: novembro de 2018.

Artigo aprovado: janeiro de 2019.

Introdução

Para entender a política pública, é fundamental conhecer o contexto histórico, mais precisamente em que circunstâncias políticas, econômicas e sociais se produziram os marcos legais. As leis e a política pública/social expressam um determinado momento da história, que condensa processos de mudança e permanência, a conformação de prioridades na agenda pública, os atores em cena e o jogo de interesses. Esse jogo se expressa na materialidade legal, institucional e política, e compõe uma arena de disputa (GIOVANELLA, 2012) envolvendo o Estado, o fundo público, os sentidos de proteção social, cidadania, participação e democracia.

Nesse mosaico, a análise de conjuntura é “uma mistura de conhecimento e descoberta, é uma leitura especial da realidade e que se faz sempre em função de algumas necessidades ou interesse” (SOUZA, 1984, p. 8). É ferramenta potente para se aproximar da realidade e buscar elementos para compreender a direção do processo envolvendo o Estado de direito, que abarca os últimos 40 anos, o maior tempo histórico no contexto brasileiro, de intensa participação da sociedade civil na apropriação da política social.

De 1978 a 2019, a sociedade brasileira se conformou de diversas maneiras, na direção do processo de institucionalização, consolidação e avanços democráticos, cujo ápice foi à promulgação da Constituição Federal de 1988. A sociedade civil, inicialmente contra o regime ditatorial de 1964, tem como marco o processo de luta pela redemocratização de 1978, possibilitada pelo processo de abertura lenta e gradual, quando novos personagens entram em cena (SADER, 1995). Novos movimentos sociais surgiram, lutando contra as privações expressas no cotidiano e em prol de uma vida digna. O que caracteriza esses movimentos é a luta cotidiana pela afirmação e extensão de direitos, que ocorre de maneira localizada e fragmentada, expressando necessidades de minorias sociais, dentre elas as pessoas com transtornos mentais.

Incrementa-se a esfera pública, concebida como “rede adequada para a comunicação de conteúdo, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos” (HABERMAS, 1992, p. 92). A característica constitutiva dessa esfera é “a construção e o reconhecimento da alteridade, do outro, do terreno indevassável de seus direitos, a partir dos quais se estruturam as relações sociais” (OLIVEIRA, 1998, p. 39). Tal esfera, mesmo nos marcos de uma sociedade capitalista desigual, conformou o Estado ampliado, que condensou, por meio da proteção social e do fundo público, os interesses das classes que vivem do trabalho (ANTUNES, 1998) e de parte significativa daqueles impossibilitados de trabalhar ou considerados “improdutivos para o capital”. Logo, várias vozes são vocalizadas no espaço público, a partir de 1978, inclusive as silenciadas até então, como as das pessoas com transtorno mental.

Nesse contexto, surge o Movimento da Reforma Sanitária e em seu interior, o Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira (MRPB), que lutam pela universalidade da saúde, pelos direitos sociais e pelo cuidado em liberdade, com ênfase nos direitos civis, conjugados aos primeiros. A cidadania desse segmento é desenhada e construída processualmente, com reorientação da política de saúde mental, a partir dos anos de 1990.

O processo de consolidação democrática, marcado pela Constituição Federal de 1988 e eleições diretas para Presidente da República em 1989, institui-se em um contexto de “confluência perversa” (DAGNINO, 2004), em que a universalização de direitos como os relacionados à saúde, instituídos nos marcos legais, como “expressão de interesses coletivos e de cidadania” (TELLES; HENRY, 2005, p. 4) são ameaçados pela invasão do projeto neoliberal no interior do Estado brasileiro, sob a regência dos organismos internacionais, principalmente do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Há um deslocamento da luta entre capital e trabalho para a órbita do Estado, das políticas sociais, atingindo sua dimensão redistributiva, pois como analisa Oliveira (1998), os bens e serviços vinculados à proteção social funcionam como antimercadorias sociais, “direitos do antivalor”, afirmando ser impensável a formação do sistema capitalista sem o emprego de recursos públicos, situação agravada pela expressão dos interesses de fundamentalistas religiosos nessa mesma arena. Intensifica-se a luta em torno do fundo público, forjando-se uma cidadania do consumidor, acompanhada do risco de desregulamentação do Estado, com a indistinção entre as dimensões pública e privada do viver e significativos comprometimentos na implementação das políticas sociais universalizantes.

Com o processo democrático “consolidado”, há uma heterogeneização da sociedade civil, que se materializa em distintos projetos de sociedade (BRAVO, 1996) e ganha corpo no contexto da saúde: de um lado, o projeto da Reforma Sanitária, que luta pela coletivização de direitos, na direção da universalidade da atenção; de outro, o projeto privatista, que procura impor a lógica do mercado na implementação das políticas sociais para atender aos pobres, transformando direitos em mercadorias e benesses, a lógica do caráter público versus a lógica privada das relações de mercado e de favor.

Vale ressaltar que há distintas forças que se somam no interior de cada um desses projetos, com tensionamento de interesses. Essas forças disputam hegemonia, tendo em comum a ênfase nos processos coletivos, na direção da universalização da cidadania. De outra maneira a lógica da mercantilização, que tem o mercado e a filantropia como esfera do atendimento às necessidades sociais, privatiza ou terceiriza a atenção.

Telles e Henry (2005), ao analisar as repercussões da financeirização da economia via políticas neoliberais dominantes no Brasil a partir dos anos 1990, afirmam que ocorre o desmonte de formas públicas de regulação social e das próprias políticas públicas:

[...] importância crescente dos sistemas privados de seguro saúde e previdência, nos termos de uma contratualização de serviços e relações que termina por transfigurar os direitos do cidadão em direitos do consumidor [...], ativando a lógica de um individualismo que [...] conspira contra a capacidade coletiva de articular valores comuns, construir referências simbólicas de identidades e lugares partilhados e imaginar instituições portadoras de futuro (TELLES; HENRY, 2005, p. 30).

Contraditoriamente, na política de saúde mental, é exatamente a partir dos anos 1990 que é construída a cidadania da pessoa com transtorno mental, com representantes que lutam pela universalização de direitos, por meio do MRPB e do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLA). Essa direção se afirma e se reforça até 2010, quando se impõe a tendência de outra direção a partir das questões postas midiaticamente, condensadas política e socialmente em torno do crack e seus consumidores.

O objetivo deste artigo é realizar uma análise de conjuntura, enfatizando o período de 2010-2019, quando os rumos da Reforma Psiquiátrica foram ameaçados pelo Decreto 7.179 de 2010, que institui o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, e, posteriormente, negados pela Portaria 3.588/2017 e reafirmados pela Nota Técnica do Ministério da Saúde n. 11/2019 que gerou significativas mudanças na Política Nacional de Saúde Mental. Não é pretensão esgotar a realidade, tarefa impossível, mas trazer elementos para contribuir no deciframento da direção do processo em curso.

Determinantes que impulsionaram a correlação de forças do Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira (MRPB)

Souza (1984), ao explicitar os elementos imprescindíveis para realizar uma análise de conjuntura, destaca cinco categorias que lhe dão sustentação: I- acontecimentos; II- cenários; III- atores; VI- relação de forças; e V- relação entre estrutura e conjuntura. Didaticamente, conceitua cada uma delas, apresentadas sequencialmente, mas neste texto serão tratadas de maneira imbricada. Iniciaremos pela relação entre estrutura e conjuntura, que fornece a base das permanências e possibilidades de mudanças substanciais na construção da cidadania da pessoa com transtorno mental, inicialmente tutelada/interditada, sob o manto do direito ao abrigo, mas que, ao ser ampliada, incorpora e destaca principalmente os direitos civis.

Para compreender os elementos novos introduzidos pelo MRPB, é fundamental compreender as características estruturantes da política de saúde no país, pois influenciaram no desenho da trajetória da cidadania em cada conjuntura. As bases do sistema de proteção social no Brasil foram conformadas na década de 1930 e estiveram assentadas na “cidadania regulada/ocupacional” (SANTOS, 1987), baseada na cisão entre o trabalhador e o pobre. Todavia, o trabalhador focalizado é o urbano, com ofício reconhecido e localização estratégica nos ramos de produção mais dinâmicos economicamente.

Tal distinção se materializa no duplo padrão da política de saúde no país: uma dirigida para o trabalhador segurado do sistema previdenciário; outra para o pobre, considerado indigente, implementado pelo Ministério da Saúde. Sem universalizar direitos nem reconhecer o brasileiro como parte de uma comunidade política, os traços marcantes da política social se caracterizaram pela reprodução das desigualdades sociais, tendo por marca a centralização da tomada de decisão no Governo Federal, ação setorizada a partir de necessidades de determinados segmentos sociais. É nesse quadro que se consolida o sistema manicomial-hospitalocêntrico de atenção à pessoa com transtorno mental, cujo início se dera com a criação do Hospício Pedro II em 1852, no Rio de Janeiro.

O referido modelo se propaga no país, concentrando-se nas capitais, tendo como público-alvo inicial o “louco pobre”, cujo destino é a exclusão/segregação social em “instituições totais” (GOFFMAN, 1992), inserido no rol das estratégias de enfrentamento da questão social, reconhecida como questão política em 1930 e tratada no binômio assistência-repressão.

Nesse cenário, há uma tendência social de exclusão e de criminalização também das pessoas vulnerabilizadas pelo consumo de substâncias psicoativas (SPA) da condição cidadã que, equiparados aos traficantes, são considerados “viciados infratores”, marcando o percurso desse personagem no imaginário social. O modelo manicomial se aprofunda na década de 1970, pelo alargamento de seu público para os trabalhadores urbanos, quando ocorre o “milagre econômico brasileiro”, momento de intensificação do desgaste da força de trabalho (RESENDE, 1990).

Alterações substanciais nessa configuração são vislumbradas a partir do final dessa década, com a emergência do MRS e do MRPB que, a partir de 1986, com os avanços na direção do Estado de direito e a VIII Conferência Nacional de Saúde, incluem a participação dos usuários na formatação e discussão dos rumos da política de saúde. Com a Constituição Federal de 1988, que cria a Seguridade Social e redimensiona a política de saúde como um “direito de todos e dever do Estado”, há a universalização do direito à saúde. Nesse contexto, outras características formatam as políticas sociais, configurando o controle social como base das ações. Há uma descentralização das ações assistenciais para os municípios, onde o cuidado em saúde se concentra.

Aquelas ocorrências têm uma dimensão de tal monta que alteram a política de saúde mental e a construção da cidadania da pessoa com transtorno mental, revelam também novos atores, aquele ser coletivo que “encarna uma ideia [...] um projeto, uma promessa, uma denúncia” (SOUZA, 1984, p. 12). Consequentemente, remontam: a) às lutas dos trabalhadores de saúde mental por melhores condições de trabalho, no final dos anos 1970 (AMARANTE, 1995), que também denunciam as violações de direitos humanos, corporificados no Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental, em 1987; b) às quatro conferências de saúde mental (1987; 1992; 2001; 2010); e c) às mudanças legislativas. De um lado, expressas nos textos dos organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) que, em 1991, lança a normativa sobre a proteção de pessoas com problemas mentais e a melhoria da assistência à saúde mental e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) que, em 2001, orienta priorizar o cuidado na atenção primária, o acesso aos medicamentos psicotrópicos, a atenção na comunidade, a educação em saúde, a participação social de usuários, familiares e comunidade, ações intersetoriais e investimentos em pesquisa.

No plano nacional, a base legal principal é a Lei nº 10.216/2001, que dispõe sobre os direitos da pessoa com transtorno mental e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, também denominada como Lei da Reforma Psiquiátrica; a Portaria MS/GM nº 336/2002, que define as modalidades de centros de atenção psicossocial, modelo de base comunitária, assegurador da cidadania da pessoa com transtorno mental, e a Lei 11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), postulando a redução de danos e as ações de prevenção como base da atenção aos consumidores de SPA.

Um acontecimento fundamental materializa-se em 2006, quando ocorre a inversão de financiamento da saúde mental, do modelo hospitalar para os serviços de base comunitária (GARCIA, 2011). Apesar disso, destaca-se o subfinanciamento da saúde mental, considerando que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que o investimento desejável em saúde mental deva ser de aproximadamente 5%, mas a média de gastos em saúde mental no país é de 2,0 a 2,5% do orçamento.

Vários cenários serviram de base para impulsionar o MRPB. No final da década de 1970, o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Camboriú/SC, quando trabalhadores demitidos no Rio de Janeiro por denunciar péssimas condições de trabalho receberam apoio às suas lutas. Em seguida, municípios com secretários de saúde com propostas progressistas que afirmavam direitos da pessoa com transtorno mental ganharam atenção da mídia. Em 1986, em São Paulo, foi criado o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do país. A partir dos anos 1990, o cenário principal é o espaço da Coordenação de Saúde Mental, álcool e outras drogas, que passa a ser dirigido por mentores do processo de Reforma Psiquiátrica até 2015.

Extensivamente, a influência desse grupo também passa a ser ampliada para a esfera do Ministério da Justiça, por incorporar a Secretaria Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SENAD), historicamente atrelada à Segurança Pública. Os problemas relacionados ao consumo nocivo de SPA, somente a partir de 2003, são reconhecidos como questões de saúde pública e como da alçada da Coordenação de Saúde Mental. Como essa questão no país historicamente esteve vinculada à política proibicionista e a um ministério mais conservador, tal espaço também se configurou como cenário em que os grupos opositores ao MRPB buscaram influir sobremaneira. Nesse contexto, a Coordenação de Saúde Mental bem como representantes de centros acadêmicos, sob a égide da redução de danos, conseguem influenciar a reorientação normativa do texto das políticas sobre drogas no país, a partir do final dos anos 1990 e até meados de 2010.

Destaca-se que o MRPB, seus princípios e a Política de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde passam a sofrer ofensiva intensa de opositores, que ganham hegemonia na direção da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), cujo projeto é condensado nas “Diretrizes para um modelo de assistência integral em saúde mental no Brasil”, de 2006. Rosa e Feitosa (2008) explicitam que os principais ataques dos opositores dirigem-se aos: 1) significado da Lei nº 10.216; 2) natureza “ideológica” do movimento; 3) processo de trabalho, pelo entendimento de que os atos médicos foram subordinados à equipe multiprofissional e à Promotoria Pública; 4) suposta exclusão do médico psiquiatra da equipe de saúde mental – o movimento seria “antimédico”; “antipsiquiátrico”; 5) centralidade da atenção nos CAPS’s.

Nesse sentido, parte da categoria médica, liderada pela ABP, reforça o grupo de opositores em torno de interesses da corporação. Outro grupo, movido pelo interesse em questões religiosas e no orçamento público, começa a ganhar o espaço estatal, sob a insígnia de Comunidades Terapêuticas, sintetizando um segmento heterogêneo com práticas bem diversificadas entre si, agregadas pela Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas4 (FEBRACT) de 1990, com a finalidade, inclusive, de influenciar “a elaboração e execução de políticas públicas” e também no redirecionamento do orçamento da política de assistência social, isso é, de pelo menos três ministérios e nos níveis municipal, estadual e federal.

De 1990 a 2010, o MRPB avança na direção da construção e consignação de direitos da pessoa com transtorno mental, materializados no cuidar em liberdade, sob comando dos CAPS’s e construção de uma rede diversificada, formada por serviços residenciais terapêuticos, centros de convivência e outros. Todavia, a partir de 2010, uma nova configuração de forças ganha visibilidade, tendo por ápice a campanha eleitoral para a presidência da República. Estranhamente, apesar de os estudos epidemiológicos mostrarem o consumo abusivo de álcool como principal problema de drogas no país, é outra substância que, pela força midiática, ganha projeção e investimentos de recursos: a “epidemia do crack”. Desenha-se a perspectiva disjuntiva entre a saúde mental e a questão de álcool e outras drogas, girando em torno das disputas pelo orçamento público de diferentes setores e níveis governamentais.

Logo, o orçamento ministerial da pasta da saúde e da justiça torna-se palco de disputas, sobretudo por forças contrárias à direção do Sistema Único de Saúde (SUS), que buscam reorientar os recursos para organizações não governamentais. Tal influência se capilariza, se expande e se materializa no Decreto 7.179 de 2010, que institui o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, implementado pelo programa “Crack: é possível vencer”. Representantes dos segmentos opositores ao MRPB, em 2016, ganham o posto da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, impondo alterações inclusive legais, para reorientar o processo em andamento, sintetizado na Portaria 3.588/2017.

As implicações da “nova-velha” Política Nacional de Saúde Mental

Segundo Passos (2017), a Reforma Psiquiátrica, desde que se tornou uma política pública em 1992, era orientada por uma perspectiva antimanicomial. Entretanto, em 2011, ocorre uma “crise” com a inserção das Comunidades Terapêuticas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), por meio da Portaria nº 131, de 26 de janeiro de 2012, como componente substitutivo que não atende às exigências para ser considerado um serviço de saúde, pois atua na perspectiva manicomial, com cunho religioso e sem uma equipe técnica para compor a rede de saúde mental.

A partir de 2015, propostas conservadoras e neoliberais provocam mudanças na gestão da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) para cumprir acordos políticos. No ano seguinte, houve mudanças no indicador de avaliação da saúde mental, que desde 2008 foi pactuado como sendo principal a taxa de cobertura de CAPS por 100 mil habitantes. Em 2016, tal indicador foi substituído, na Resolução nº 08 de 24/11/2016 da Comissão Intergestores Tripartite, pelas ações de matriciamento realizadas por CAPS com equipes de Atenção Básica. Com isso, o financiamento de novos serviços é obstado.

Neste mesmo período, as Comunidades Terapêuticas (CT) se reafirmam como estabelecimentos de saúde por meio da Portaria SAS/MS nº 1.482 de 25/10/2016, o que as capacita a receberem recursos do SUS. Como a maioria das CTs não conta com equipe técnica, os equipamentos do SUS tendem a figurar como porta de entrada desses serviços, em um mix perverso público x privado, com divisões de trabalho danoso para os CAPS. Ademais, com o uso da verba pública, tende a haver a quebra dos princípios da administração pública (impessoalidade, publicidade, transparência, moralidade, universalidade), pois geralmente, serviços terceirizados tendem a impor critérios seletivos (por exemplo, parte significativa não admitem pessoas com orientação sexual considerada “desviante”; nem pessoas sob efeito de SPA ou que usem medicação psicotrópica, mesmo sob orientação médica e pautam sua intervenção predominantemente na religião).

Nesse sentido, tende a haver uma divisão de trabalho entre as CTs e os CAPS AD, em que as primeiras ficam encarregadas de um público mais seleto, que apresenta maior possibilidade de êxito nos resultados, o que sinalizará maior eficiência dos serviços não governamentais. De outra maneira, o SUS ficará encarregado do público refratário, que tende a apresentar respostas limitadas, requerendo maior investimento dos profissionais e do serviço na atenção psicossocial. Ademais, há uma reatualização do coronelismo, em que o proprietário da CT, no geral associado a um líder religioso, figurará como o “salvador” a quem se deve gratidão, ou seja, o usuário é destituído da condição de cidadão, sujeito de direitos.

Essa tendência consolidou-se com a implantação da Portaria 3.588/GM/MS aprovada pela CIT de 21 de dezembro de 2017, no Governo Temer, que gerou significativas mudanças na Política Nacional de Saúde Mental, na contramão dos avanços da Reforma Psiquiátrica no Brasil que preconiza a desinstitucionalização e a reabilitação psicossocial e o mais grave, sem a tradição prevista na cultura da participação de pesquisadores e representantes dos movimentos sociais. Realizou-se análises unicamente quantitativas focadas nas fragilidades da RAPS, e que propõe defender nitidamente os valores corporativos e econômicos, desconsiderando toda a potência desta política, além de seus determinantes sociais.

A “nova” política reapresenta métodos e práticas que foram abortados. A atual gestão de saúde mental do Ministério da Saúde golpeia vertiginosamente os avanços de três décadas da Reforma Psiquiátrica brasileira. Este direcionamento é, na prática, “um esforço de esconder seu componente manicomial [...] como forma de maquiar o ‘velho modelo’ que é o mesmo existente antes da reforma psiquiátrica em curso”, sinalizado no Manifesto Público do Coletivo Baiano da Luta Antimanicomial (2018).

A partir da Portaria 3.588/GM/MS de 21 de dezembro de 2017, elencam-se 4 (quatro) elementos que merecem destaque nessa política:

• Ambulatorialização do cuidado com equipes especializadas, uma vez que há amplos estudos que revelam a impotência desses equipamentos, historicamente voltado para a prescrição medicamentosa. Esta proposta de criação de equipes de assistência multiprofissional em saúde mental de média complexidade desconstrói a lógica de cuidado no território, ancorada pelo acolhimento, estabelecimento e manutenção de vínculo e responsabilização dos sujeitos. A RAPS o fortaleceu por meio das equipes de atenção básica e do incentivo ao matriciamento;

• A remanicomialização da saúde mental, com o asseguramento e enorme investimento financeiro no reajuste de recurso do Governo Federal, que aumenta o valor da diária dos manicômios em média 65%. Em contrapartida, não há aumento do repasse para os CAPS em suas diferentes modalidades desde 2011, o que intensifica a precarização do equipamento e gera dificuldades operacionais no cotidiano desses serviços, ou seja, o hospital psiquiátrico, que na lógica da Reforma sofreu uma amortização gradativa, sendo excluído da RAPS, retorna com força total e muito dinheiro;

• A utilização de até 20% da capacidade dos leitos em Hospitais Gerais para alas psiquiátricas, sendo que enfermarias com maior número de leitos terão mais recursos investidos do que enfermarias com vagas reduzidas, devendo permanecer com 80% de ocupação, como condição para que a instituição receba a verba de custeio do serviço. Na prática, teremos mini hospícios nos hospitais gerais, acarretando a multiplicação de internações, com menos investimentos em estratégias de reabilitação psicossocial;

• A ampliação de aporte financeiro das comunidades terapêuticas de 4.000 para 20.000 vagas, ou seja, há um claro desinvestimento na RAPS/SUS em prol de instituições não públicas que tendem a violar direitos humanos, até pela resistência histórica em se abrir para fiscalizações e avaliações públicas. Há uma disparidade de valores oferecidos por usuário/mês em cada serviço. Para o Governo Federal, um usuário/mês em CAPS AD II, com porta aberta, ou seja, sem limites de atendimento, custa, em média, R$ 43,00, enquanto o mesmo usuário/mês para uma Comunidade Terapêutica custa aproximadamente R$ 1.100,00, para no máximo 50 pessoas.

É nítido que a internação em comunidades terapêuticas e no modelo manicomial é o grande foco central do cuidado, evidenciado no crescente financiamento de dispositivos antirreformistas de saúde mental, tendo em vista a possibilidade de mercado que isso representa para a indústria da doença e da loucura. Isso tudo camufla os reais interesses representados pelos empresários dos hospitais psiquiátricos e da indústria farmacêutica que perderam 60 mil leitos no país para os serviços substitutivos (AMARANTE, 2018, p. 5-6).

Segundo Bravo et al. (2018), o MNLA e a Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME) repudiam tal medida pelo retrocesso na implantação da RAPS de base territorial, comunitária e construída com participação dos movimentos sociais da luta antimanicomial, além de trazer à tona o elemento extremamente manicomial e os desinvestimentos nos dispositivos da RAPS, conforme elencado na Nota de Repúdio contra o desmonte da Política Nacional de Saúde Mental, de 11 de dezembro 2017:

[...] Não aceitaremos a revisão da Política Nacional de Saúde Mental feita por um governo ilegítimo. Consideramos esse ataque à Política de Saúde Mental como mais um momento do golpe e da violação ao estado democrático que o país vive. Não aceitamos nada que venha de cima para baixo, tal como os medicamentos impostos pela medicalização do sofrimento, pela indústria de psicofármacos e seus representantes, para as pessoas usuárias dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial. Desta forma exigimos a rejeição de qualquer medida que represente retrocessos ao SUS e à Reforma Psiquiátrica Antimanicomial.

Logo, essa proposta representa um grande retrocesso, fruto de um golpe de Estado, que retoma um investimento muito significativo em dispositivos antirreformistas que é individualizante, segregador que limita o usuário ao diagnóstico e à prescrição medicamentosa.

No ano seguinte, a partir da Resolução CONAD nº 1/2018, a Política brasileira sobre drogas dá uma verdadeira guinada rumo à tendência predominantemente proibicionista. Segundo o Ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, “a política de drogas que está em vigência hoje tem causado danos à sociedade”. Então, foram estabelecidas as diretrizes para o realinhamento e fortalecimento da Política Nacional sobre Drogas (PNAD), programas, projetos e ações dela decorrentes sob responsabilidade e gestão da União observada às seguintes premissas básicas:

I - O realinhamento da política nacional sobre drogas deve considerar prioritariamente estudos técnicos [...];

II - [...] deve considerar aspectos legais, culturais e científicos, em especial a posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto às iniciativas de legalização de drogas;

III - Os programas, projetos e ações [...], promoção da saúde, promoção da abstinência, suporte social e redução dos riscos sociais e à saúde e danos decorrentes;

IV - O fomento e incentivo aos programas [...] devem ser direcionados exclusivamente às iniciativas cujos resultados de impacto sejam satisfatoriamente mensuráveis no cumprimento dos objetivos de proteção;

[...] §2º - A União deve promover de forma contínua o fomento à rede de suporte social, composta por organizações da sociedade civil e de prevenção, acolhimento, inclusive em comunidades terapêuticas [...].

Percebe-se que as alterações na PNAD priorizam a abstinência em detrimento as estratégias de redução de danos, dando ênfase ao impacto mensurável da proteção que possivelmente será considerado o número de pessoas “limpas” com incentivo ao confinamento em comunidades terapêuticas, desqualificando as práticas de RD, a complexidade que envolve o consumo prejudicial, assim como o uso medicinal de algumas substâncias até agora consideradas ilegais.

Ao longo do ano de 2018, mais de R$ 87 milhões foram assegurados ao novo pacto federal de acolhimento em comunidades terapêuticas através do Edital nº 01/2018 SENAD, havendo um aumento 100% no volume de recursos inicialmente previstos para este edital que eram R$ 37 milhões, devido a adesão dos Ministérios da Saúde e do Desenvolvimento Social. Tal investimento permitiu o aumento do valor do repasse mensal por vaga para as comunidades terapêuticas, reajustado para R$ 1.172,88 por adulto; R$ 1.596,44 por adolescente e R$1.528, por mãe nutriz, acompanhada do lactente (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2018), sendo credenciadas 492 CT’s em todo país que corresponde a 9.395 vagas, vale destacar que este edital previa inicialmente 6.000 vagas, sendo 46 na região Centro Oeste, 98 no Nordeste, 21 no Norte, 168 no Sudeste e 159 no Sul5.

Em agosto de 2018 é lançada a portaria nº 2.434 na intenção de fortalecer ações manicomiais no SUS, sendo reajustado o valor das diárias de internação hospitalar acima de 90 (noventa) dias do Incentivo para Internação nos Hospitais Psiquiátricos. Em seguida, 14 de novembro de 2018, através da portaria nº 3.659, é suspenso o repasse de R$ 1.077.141,12 referente ao recurso financeiro destinado ao incentivo de custeio mensal de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Unidades de Acolhimento (UA) e de Leitos de Saúde Mental em Hospital Geral, integrantes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), por suposta ausência de registros de procedimentos nos sistemas de informação do SUS, impondo que a não regularização no prazo de até 06 (seis) meses, acarretará na revogação das Portarias de habilitação e qualificação. Subsequentemente, após 08 (oito) dias é publicado outra portaria de nº 3.718, listando Estados e Municípios que receberam recursos referentes à parcela única de incentivo de implantação dos dispositivos que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), e não executaram o referido recurso no prazo determinado nas normativas vigentes, totalizando o montante de: R$ 43.655.000,00.

Outro fato importante que ocorreu em novembro de 2018 foi à criação da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Nova Política Nacional de Saúde Mental e da Assistência Hospitalar Psiquiátrica6, movimento apoiado principalmente pelas entidades representativas do setor hospitalar tendo como objetivo promover amplos debates, diálogos e conscientização sobre os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental. De acordo com a entrevista cedida à Câmara dos Deputados Notícias, o coordenador de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, Quirino Cordeiro afirma que: “os frutos colhidos pela política de saúde mental anterior são incabíveis, devido o elevado aumento dos índices de suicídio, de pessoas em situação de rua e de usuários de drogas, sobretudo por consumo do Crack, com a ampliação das cracolândias”. Vale recordar que durante a sua gestão nenhum dispositivo de saúde mental foi habilitado e que a publicação anual “Saúde Mental em Dados”, não é mais produzida desde 2015, tendo informações monopolizadas e apresentadas de forma restrita para mascarar os recursos da RAPS que foram alocados para as comunidades terapêuticas.

Para finalizar o ano, gestores de CT’s são convidados para reunião com a equipe de transição do novo governo de Bolsonaro, visando a fortalecer PNAD e as ações em parceria com as Comunidades Terapêuticas, além da pesquisa, prevenção e reinserção social.

No início deste ano, através da medida provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019, foi estabelecida a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, incluindo as atribuições relativas à Política Pública de Drogas dessa “nova era”:

Art. 23. Constitui área de competência do Ministério da Cidadania:

[...] V - políticas sobre drogas, quanto a:

a) educação, informação e capacitação para a ação efetiva para a redução do uso indevido de drogas lícitas e ilícitas;

b) realização de campanhas de prevenção do uso indevido de drogas lícitas e ilícitas;

c) implantação e implementação de rede integrada para pessoas com transtornos decorrentes do consumo de substâncias psicoativas;

d) avaliação e acompanhamento de tratamentos e iniciativas terapêuticas;

e) redução das consequências sociais e de saúde decorrente do uso indevido de drogas lícitas e ilícitas; e

f) manutenção e atualização do Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas;

VI - articulação, coordenação, supervisão, integração e proposição das ações governamentais e do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad nos aspectos relacionados com o tratamento, a recuperação e a reinserção social de usuários e dependentes e ao Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas;

VII - atuação em favor da ressocialização e da proteção dos dependentes químicos, sem prejuízo das atribuições dos órgãos integrantes do Sisnad.

Art. 37. Constitui área de competência do Ministério da Justiça e Segurança Pública:

[...] III - políticas sobre drogas, quanto a:

a) difusão de conhecimento sobre crimes, delitos e infrações relacionados às drogas lícitas e ilícitas; e

b) combate ao tráfico de drogas e crimes conexos, inclusive por meio da recuperação de ativos que financiem, ou seja, resultado dessas atividades criminosas;

Art. 38. Integram a estrutura básica do Ministério da Justiça e Segurança Pública:

[...] III - o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas.

Desse modo, nota-se que houve uma divisão entre as atribuições da Política sobre drogas do Ministério da Cidadania, comandado pelo Osmar Terra que assume a área da redução da demanda e do Ministério da Justiça e Segurança Pública, gerido pelo Sérgio Moro, que ficou encarregado com a área da redução da oferta de drogas.

A partir do decreto de 9.674 de 02 de janeiro de 2019 é criada a Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas que possui 3 (três) departamentos: de Articulação e Projetos Estratégicos; de Planejamento e Avaliação; e de Prevenção, Cuidados e Reinserção Social onde estão vinculadas as Comunidades Terapêuticas. Em 25 de janeiro de 2019, Quirino Cordeiro Júnior, coordenador geral da área de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (CGMAD) do Ministério da Saúde foi nomeado para assumir a referida pasta no Ministério da Cidadania , esse fato materializa a cisão da política de saúde mental X política álcool e outras drogas

Em 04 de fevereiro de 2019, o coordenador supracitado, através CGMAD assinou e publicou a Nota Técnica de n.º 11/20198, que esclareceu sobre as mudanças na Política Nacional de Saúde Mental e nas Diretrizes da Política Nacional sobre Drogas entre 2017 e 2018, que explicita o retrocesso da Reforma Psiquiátrica e, consequentemente, o reordenamento da atenção das pessoas que necessitam de assistência em saúde mental, com supressão do controle/participação social. Dentre as barbáries, podemos citar: a internação, inclusive de crianças e adolescentes, em hospitais psiquiátricos considerados espaços privilegiados de cuidados, contrapondo-se com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), além do redirecionamento do financiamento público; a legitimação das comunidades terapêuticas como local estratégico no “tratamento” de pessoas em consumo de SPA, desqualificando as estratégias de redução de danos; a previsão de financiamento público para aquisição de equipamentos de eletroconvulsoterapia que passou a compor a lista do Sistema de Informação e Gerenciamento de Equipamentos e Materiais (SIGEM) do Fundo Nacional de Saúde. Vale destacar que fica nítido nesta Nota Técnica o lugar privilegiado da Psiquiatria, em detrimento dos outros campos do conhecimento, da clínica ampliada e do trabalho em equipe.

O documento ainda ressalta a nova visão do Ministério da Saúde em relação aos CAPS’s, equipamento considerado central do MRPB, “que não os considera mais serviços como sendo substitutos de outros, não fomentando mais o fechamento de unidades de qualquer natureza” referindo-se aos leitos psiquiátricos (p. 3-4).

A Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), Conselhos de Classes entre outras entidades pró-movimento da luta antimanicomial elaboraram notas de repúdios contra o retorno da manicomialização da assistência em saúde mental. Após polêmicas e manifestações, a Nota Técnica foi retirada dos veículos oficiais de comunicação do Governo Federal e o Ministro da Saúde justifica que o conteúdo do documento será reavaliado pela nova coordenação, ainda não anunciada, pois em 07 de fevereiro Quirino Cordeiro é exonerado da CGMAD através da Portaria 203/20199.

Outro ponto que merece destaque, pois vai de encontro à lógica proibicionista, é o Anteprojeto sobre a reforma e atualização da Lei de Drogas apresentada no dia 07 de fevereiro deste ano pela Comissão de Juristas ao Presidente da Câmara dos Deputados propondo significativas alterações na lei 11.343/2006, dentre elas a descriminalização, vedação de “qualquer modalidade de internação” em comunidades terapêuticas e que o usuário só deve ser internado “excepcionalmente” e sempre em unidades de saúde após prévia autorização médica e o Art. 26-A § 4º afirma que “as comunidades terapêuticas acolhedoras não se caracterizam como unidades de saúde”. A princípio, esse documento, tenta reforçar algumas pautas do MRPB e do MNLA, mas, também de certas alas da categoria médica.

Nesse cenário, ratifica-se que a Política de saúde mental, álcool e outras drogas constitui-se uma arena de disputa, com explícitos interesses econômicos e políticos, apontando para uma correlação de forças sob hegemonia de entidades evangélicas, leia-se CT’s, e médicas, na perspectiva de desmonte do que foi construído pela MRPB.

Considerações finais

A remanicomialização da Política Nacional de Saúde Mental faz parte de um projeto geral de desmonte do SUS e de sua universalização que segue tendências neoliberais baseadas no nefasto trinômio da austeridade, privatização e desregulamentação que, acentuadas pela grave crise econômica, ataca um dos princípios fundamentais da atenção integral à saúde, desobedecendo um direito constitucional, conforme sinalizam Doniec et al. (2018).

Com o incremento das diretrizes dos direitos humanos, da participação e do controle social nas políticas públicas, dinamizado pelo Movimento da Reforma Sanitária e instituído na Constituição Federal de 1988, no Brasil, se conquista o direito a um serviço usuário-centrado, ou seja, baseado nas necessidades de seus usuários. Outras vozes entram em cena, as dos estudiosos do tema e de quem vive uma determinada situação e consegue se fortalecer e explicitar suas necessidades, como os familiares e usuários.

A relação de forças a favor de outros olhares, sem julgamentos e estigmas, passa a prevalecer e modificar o modo de cuidar dos usuários, fortalecendo a produção de leis e políticas públicas mais sintonizadas com as diversidades. Essa conquista representou o MRPB, nos últimos quarenta anos, sinalizando para maiores avanços na conquista de direitos de pessoas com transtorno mental e consumidores de SPA e vocalização de suas necessidades.

As conquistas consignadas no plano legal e nas políticas públicas de saúde mental parecem pouco sólidas, pois são desafiadas por uma conjuntura política e econômica de desinvestimento no SUS, observado pela insuficiência numérica e infraestrutural da RAPS. Há dificuldades em fazer valer a lógica do cuidado territorial, intersetorial da redução de danos, e a reinserção social daqueles que foram desinstitucionalizados, apesar dos textos legais orientarem as políticas públicas para essas direções.

Assiste-se às disputas por modelos e recursos públicos, entre uma perspectiva de reforço à lógica universal do SUS, pautada no direito, e outra privatizante, que ganha força e busca redirecionar os recursos do SUS, remercantilizando os serviços e a atenção em saúde, focalizando-a para determinados segmentos, transferindo os recursos financeiros dos equipamentos do Estado para serviços vinculados à lógica de mercado e às entidades não governamentais, com uma tendência de transformar a saúde em mercadoria.

Esse “novo” desenho ameaça garantias de proteção e de dignidade asseguradas pela legislação brasileira às pessoas com transtorno mental, pois incentiva a manutenção de hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas, cujo modelo de funcionamento está baseado em propostas higienistas que restringem a vontade e os direitos dos usuários, excluindo-os do convívio com a família, violando frontalmente um conjunto de princípios estabelecidos pela Lei 10.216/2001, pela Portaria 3.088/2011, pela Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência (2009) e pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (2015).

Percebe-se um verdadeiro sucateamento de uma política pública de direitos, pautada em uma rede ampla de serviços abertos, comunitários, territorializados, de valorização da subjetividade e diversidade e, acima de tudo, de reconhecimento da cidadania de um segmento até então silenciado, o que convoca a sociedade civil para reforçar a luta por ampliação e garantia do cuidado em liberdade e pautado nos direitos humanos.

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