Resumo: O presente artigo discute a questão dos sem-teto na Escócia e sua relação com a pobreza, apresentando a experiência de intervenção do programa nacional de prevenção e promoção da saúde oral e do bem estar psicossocial da população homeless (sem-teto), o Smile4life. Discutem-se as implicações da falta de moradia na saúde, saúde oral e bem estar dos sem-teto, no contexto das respectivas políticas públicas do governo. Amplia-se o debate no que tange ao direito a saúde de grupos em situação de vulnerabilidade social, tendo como elemento essencial a necessidade de uma melhor articulação entre a política de habitação e a política de integração dos serviços de saúde e assistência social voltadas para os sem-teto.
Palavras-chave:População sem tetoPopulação sem teto,vulnerabilidade socialvulnerabilidade social,saúde oralsaúde oral,políticas integradas de cuidadopolíticas integradas de cuidado.
Artigos
Promoção de saúde, saúde oral e bem estar psicossocial para a população homeless na Escócia: a experiência de implementação do programa Smile4life associado às politicas de habitação e de integração dos serviços
Promoção de saúde, saúde oral e bem estar psicossocial para a população homeless na Escócia: a experiência de implementação do programa Smile4life associado às politicas de habitação e de integração dos serviços
Andrea Rodriguez1
Laura Beaton2
Ruth Freeman3
Resumo
O presente artigo discute a questão dos sem-teto na Escócia e sua relação com a pobreza, apresentando a experiência de intervenção do programa nacional de prevenção e promoção da saúde oral e do bem estar psicossocial da população homeless (sem-teto), o Smile4life. Discutem-se as implicações da falta de moradia na saúde, saúde oral e bem estar dos sem-teto, no contexto das respectivas políticas públicas do governo. Amplia-se o debate no que tange ao direito a saúde de grupos em situação de vulnerabilidade social, tendo como elemento essencial a necessidade de uma melhor articulação entre a política de habitação e a política de integração dos serviços de saúde e assistência social voltadas para os sem-teto.
Palavras-chave
População sem teto; vulnerabilidade social, saúde oral; políticas integradas de cuidado.
Health promotion, oral health and psychosocial well-being for the homeless population in Scotland: the experience of implementing the Smile4life program associated with housing policies and services integration
Abstract
This article discusses the problem of homelessness in Scotland and its relations with poverty, presenting the intervention experience of the national program for prevention and promotion of oral health and the psychosocial well-being for homeless people, the Smile4life. It discusses the implications of homelessness on health, oral health and well-being in the context of respective public policies from the Government. The debate on the right to health of groups in situation of social vulnerability is expanded, having as essential element the need for a better articulation between housing policy and the policy of integration of health services and social assistance to tackle homelessness.
Keywords
Homeless; social vulnerability; oral health; integrated policies of care.
Artigo recebido: novembro de 2018.
Artigo aprovado: janeiro de 2019.
O problema dos Sem-teto e sua relação com a pobreza no Reino Unido
A situação de pessoas afetadas pela pobreza extrema na Escócia e no Reino Unido de forma ampliada, não pode ser entendida sem que se observe a dinâmica da crise do estado do bem-estar social, que se estende desde o início da implementação das medidas neoliberais adotadas por Margaret Thatcher quando foi eleita líder do Partido Conservador britânico, em 1975, e, posteriormente, no período em que foi primeira-ministra (1979-1990). As políticas de Thatcher foram associadas com aumentos substanciais das desigualdades socioeconômicas e de saúde. Essas duas áreas foram ativamente marginalizadas e ignoradas em seus governos, com reformas no setor público que prepararam o Serviço Nacional de Saúde para posterior privatização. O Thatcherism foi descrito como um projeto ideológico que se propôs a explicar a crise do capitalismo nos anos de 1970 como uma crise do estado de bem-estar social, com uma crítica ao chamado poder “antidemocrático” em 1984, ou de “o inimigo interno” – representado pelos sindicatos de trabalhadores (SCOTT-SAMUEL et al., 2014, p.54). Isto foi acompanhado por um discurso racializado visando não-brancos e imigrantes com queda do padrão de vida da população no curto prazo. Seu modelo de política caracterizou-se pela redução da intervenção do Estado na economia, exaltação do livre-mercado, defesa da otimização dos serviços através de privatizações de empresas estatais; eliminação do salário mínimo e redução do estado do bem-estar social.
Tais medidas ainda se fazem notar na sociedade britânica atual, aonde o modelo neoliberal se expandiu e se consolidou, mesmo no âmbito de governos de cunho mais social, como foi o caso do governo trabalhista (Labour Party) que se elegeu em 1997, e que buscou conciliar medidas neoliberais com ações de compensação para minimização de seus impactos junto a população mais vulnerável. Não obstante, a crise global de 2007-2008 foi um fator preponderante para a intensificação das políticas neoliberais no Reino Unido. Com a formação de um governo de coalisão entre Conservadores e Liberais a partir de 2010, uma série de medidas de austeridade foram adotadas a fim de equilibrar o déficit econômico. Como resultado, a insegurança social se acentuou e os níveis de pobreza extrema assumiram contornos não vistos em muitas décadas. Um indicador relevante é o numero de pessoas acessando os chamados food banks (banco de alimentos) que teve a taxa mais alta em 2018, com um aumento de 13% em relação ao ano anterior, revelando que os benefícios sociais não estavam sendo capazes de cobrir os custos básicos da população mais pobre4.
As medidas de austeridade tiveram no desmonte do estado do bem-estar social uma de suas estratégias mais agressivas. Mudanças nas regras de acesso aos benefícios sociais puseram milhares de pessoas automaticamente em situação de extrema vulnerabilidade. Ao mesmo tempo em que estabeleceu os parâmetros ideológicos para uma narrativa sobre a crise do estado do bem-estar, cuja explicação era centrada na culpabilização de indivíduos e em sua patologização social (FERNANDES et al., 2018). Com efeito, falar de pobreza nesse contexto compreende um processo socio-político e ideológico cuja centralidade do indivíduo e sua responsabilização estão no cerne de um discurso politico hegemônico, que influencia práticas profissionais e, o próprio rumo que as políticas de assistência social e de saúde tomam a partir de seu redesenho no âmbito das medidas de austeridade.
A situação de pessoas afetadas pela insegurança social e a pobreza tem uma relação muito específica com a falta de moradia e a população homeless, termo em inglês para se referir aos sem-teto. Em 2018, 22% da população do Reino Unido, em torno de 14,3 milhões de pessoas viviam em situação de pobreza. 7% se encontravam em situação de pobreza persistente, em torno de 4,6 milhões de pessoas. Pobreza persistente é definida nos países do Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte) como a situação de pessoas que permanecem em situação de pobreza por mais de quatro anos consecutivos. A taxa mais alta de pobreza persistente esta entre as famílias monoparentais (24%), seguida por homens solteiros e sem filhos (12%). Os índices de pobreza infantil também aumentaram nos últimos cinco anos, com 4,1 milhões de crianças vivendo na pobreza. Um aumento muito mais rápido do que seria de se esperar com base nos índices de crescimento da população, já que o número total de crianças aumentou somente 3%, enquanto o número de crianças em situação de pobreza no mesmo período aumentou em 15% (JOSEPH FOUNDATION, 2018).
Na Escócia, no período entre 2014-2017, um milhão de pessoas (a cada ano) foram consideradas vivendo em situação de pobreza (SCOTTISH GOVERNMENT, 2018a). 8% dessas pessoas estavam em situação de pobreza persistente. A situação de crianças é ainda mais complexa com 24% vivendo em situação de pobreza, aproximadamente 230.000 crianças, e a tendência e que a pobreza infantil continue a aumentar. Recente análise destacou a pobreza, especialmente a pobreza infantil, como um fator central para a geração de futuras populações de homeless – e ainda os rough sleepers – ou moradores de rua (BRAMLEY; FITZPATRICK, 2018). Neste sentido, vale a pena ressaltar como o aspecto das desigualdades socioeconômicas agrava diretamente o problema dos sem-teto e deve ser visto como um fator extremamente relevante para a culminância e a permanência de indivíduos nesta situação.
Definição de Homeless na Escócia
Existem algumas diferenças entre as nomenclaturas usadas no Brasil e na Escócia no que tange ao fenômeno dos sem-abrigo ou sem-teto. Uma pessoa pode ser considerada sem-teto aos olhos do governo escocês, se após dar entrada num processo junto as Local Authorities (espécie de prefeituras locais) for comprovado à falta de moradia; ou ainda, se apesar de possuir uma moradia, não tiver como continuar residindo nela, por causa de ameaças de violência ou outras razões relativas às condições de habitação (sem higiene ou com superlotação, por exemplo). Desse modo, mesmo que uma pessoa tenha onde morar pode ser intitulada de “homeless” ou “potencialmente desabrigada” (ameaçada de tornar-se sem abrigo), se por variadas causas seja provável que se torne sem-teto dentro de curto um período de tempo (SHELTER SCOTLAND, 2018).
A forma oficial para contabilizar o número de pessoas consideradas desabrigadas pelas autoridades locais na Escócia baseia-se na Lei de Habitação (Pessoas Desabrigadas) de 1977; e na Lei de Habitação de 1987. Nelas, constam os procedimentos envolvidos nos processos relativos à solicitação e a avaliação de pedidos de moradia feitos por qualquer cidadão. Em 2017-2018, 34.972 pedidos de moradia foram feitos às autoridades locais (SCOTTISH GOVERNMET, 2018b). Contudo, os números presentes nos registros oficiais do governo somente contabilizam as pessoas que solicitaram o benefício formal e que puderam formalmente ser avaliadas e consideradas “sem-teto”. É importante destacar a existência de um enorme número de pessoas que igualmente são afetados pela falta de moradia, mas que por diversas razões, não solicitam auxilio do governo, e por isso não contam formalmente nas estatísticas (REEVE; BATTY, 2011). O fenômeno dos sem-teto que estão “ocultos” faz com que os números reais ultrapassem as estatísticas formais. Para ilustrar esse fato, 42% dos pedidos de moradia, quase um terço, foram de pessoas que já estavam vivenciando a falta de moradia e vivendo por um período na casa de amigos, parentes e parceiros. A maior parte dessas aplicações foi de jovens com idades entre 25 e 34 anos, para homens foi de 55% e 61% para mulheres (SCOTTISH GOVERNMET, 2018b).
Causas que levam a perda da moradia
No Reino Unido, as razões que levam a perda da moradia são muitas e estão interconectadas. No geral, estruturam-se em torno de um conjunto de fatores sociais e estruturais, como aqueles relativos ao mercado de trabalho (níveis de desemprego), as condições de saúde, habitação, dados demográficos, bem como as redes de suporte social e individual. A maioria dos quais não relacionados com uma simples mudança de comportamento do indivíduo (JOHNSEN; WATTS, 2014; BRAMLEY; FITZPATRICK, 2018), embora a opinião pública ainda não pense dessa forma.
Na Escócia, atualmente, as principais razões citadas pelas candidaturas dos sem-teto permaneceram praticamente inalteradas desde 2007 (SCOTTISH GOVERNMENT, 2018b). Ser expulso de casa é uma das principais causas (25%). Esta razão se conecta intimamente com as disputas no âmbito doméstico, decorrentes de conflitos nas relações familiares5 (entre pais e filhos, e/ou outros parentes, ou entre casais). Em 2017/2018, 13% e 18% dos pedidos de desabrigados vinham decorrentes de disputas domésticas violentas ou não violentas, respectivamente. 5% dos solicitantes relataram a impossibilidade de continuarem arcando com despesas de aluguel ou hipotecas. Enquanto, 6% das solicitações foram de pessoas que saíram da prisão, hospital ou de alguma outra instituição. No entanto, existiram alterações nos últimos cinco anos em termos de complexidade e variedade de outras razões, que justapostas, também foram identificadas. Houve um aumento de necessidades múltiplas e complexas (SCOTTISH GOVERNMENT, 2018b) dos sem-teto, em que quase metade dos aplicantes (47%) apresentava uma ou mais necessidades de suporte específico, incluindo: problemas de saúde mental (49%), dificuldades de gestão habitacional básica/habilidades de vida independente (47%), dependência de drogas e álcool (24%), condições médicas graves (21%), deficiências físicas (11%), e dificuldades de aprendizagem (6%). Esses dados demonstram como as pessoas que vivem nesta condição enfrentam complexas demandas em saúde, físicas e psicológicas, muitas vezes com maior gravidade de outras doenças, particularmente quando comparadas à população geral (SCOTTISH GOVERNMENT, 2018b; HWANG, 2001; COLES et al., 2011; FERNANDES; SHARP, 2015).
Um dos maiores estudos sobre a condição de saúde dos sem-teto no Reino Unido, realizado pela Universidade de Glasgow (MORRISON, 2009), confirmou que a falta de moradia funciona como um fator de risco independente para a mortalidade. Assim, a população sem teto tem quatro vezes maior probabilidade de morrer prematuramente do que aqueles que possuem uma moradia estável. As causas mais comuns de morte entre esta população estão ligadas ao uso abusivo de drogas e álcool, bem como as decorrentes de doenças circulatórias, o estresse, a ansiedade, a depressão e o suicídio. Dessa forma, os sem-teto experimentam “extremas desigualdades em saúde” (HETHERINGTON; HAMLET, 2015, p.8) com evidências mostrando como a falta de cuidados básicos de saúde, integrados, podem tanto contribuir significativamente para aumentar os riscos de grupos vulneráveis virem a perder suas moradias, quanto impedir aqueles que já se encontram nesta situação de quebrar o ciclo da falta de moradia (MORRISON, 2009; SCOTTISH GOVERNMENT, 2005a e 2012; SPRAKE et al., 2014; HOMELESS LINK, 2014).
A situação de vulnerabilidade e insegurança social cíclica de muitas famílias torna-se pano de fundo essencial para o entendimento de determinadas ações que levam a falta de moradia (como a já mencionada expulsão de casa), com consequências perversas para aqueles que não dispõem de capital social (ISLAM et al, 2006) e econômico capazes de reconstruir suas vidas, e que iniciam e/ou fortalecem processos de forte isolamento social. Estudos sobre os sem-teto na Escócia (FERNANDES; SHARP, 2015) bem como recente matéria na BBC News (2018) noticiava o problema da solidão como sendo “tão prejudicial para a saúde escocesa quanto à pobreza e a falta de moradia”. De acordo ainda com um relatório oficial do Governo (SCOTTISH GOVERNMENT, 2018c), o isolamento social seria um problema de saúde pública tão significativo na Escócia quanto a baixa renda afetando fortemente a população sem abrigo, pois estar vivenciando o problema da falta de moradia e da pobreza, junto com o estigma social (HATZENBUEHLER et al., 2013) associado a isso – faz com que os sem-teto se isolem ainda mais, inclusive dos serviços de apoio que existem para ajudá-los a sair dessa condição.
As Necessidades de Saúde dos Sem-teto no Contexto das Políticas Públicas
Apesar de a Escócia ser um dos países da Europa entre os mais fortes em termos de políticas públicas que priorizem os direitos de pessoas desabrigadas e/ou sem-teto, houve um aumento dessa população no ano de 2018. Um aumento que não ocorria desde 2008. Reduzir a falta de moradia é então uma parte vital do combate à pobreza nesse país.
Reconhecendo a variedade de desafios para enfrentar o problema, em 1999 com a criação do Grupo de Trabalho para Desabrigados (SCOTTISH GOVERNMENT, 2002) existiu uma recomendação especial das autoridades governamentais no que tange a desenhar políticas e práticas sociais que adotem uma abordagem holística dos cidadãos sem-teto. Nela, esses grupos seriam vistos como grupos que requerem cuidados especiais, integrados e simultâneos em diferentes campos (saúde mental, saúde oral, educação, moradia, serviço social, empregabilidade, entre outros) para que desse modo existam de fato respostas adequadas as suas necessidades, consideradas “complexas” (ou complex needs – termo usado em inglês). Como resposta a esta recomendação, novos quadros legislativos (Housing – Scotland – Act 2001; e Homelessness etc. – Scotland – Act 2003) surgiram nos anos posteriores e tiveram como princípio norteador o entendimento de que, para além da questão de moradia (que precisa ser sanada em curto prazo e sustentada em longo prazo), existe ainda uma série de outros aspectos, concomitantes, a serem igualmente considerados, sendo o direito a saúde um deles.
O governo escocês adota uma medida que serve para identificar os índices de expectativa de vida saudável da população – Healthy Life Expectancy (HLE) –, e os compara com os índices de expectativa de vida – Life Expectancy (LE) – no geral. A diferença entre a expectativa de vida saudável e a expectativa de vida geral dos indivíduos nos indicaria o número esperado de anos que uma pessoa vive gozando de uma saúde considerada “não boa”. Nos últimos cinco anos na Escócia constatou-se que a HLE foi significativamente menor nas áreas mais pobres do país se comparada com outras áreas de maior status econômico e social. Ou seja, segundo os dados recentes do governo (SCOTTISH GOVERNMENT, 2017) homens e mulheres que vivem em áreas pobres e menos privilegiadas da Escócia passam mais anos de suas vidas, praticamente o dobro, gozando de uma saúde “não boa”, em média 25,9 anos, se comparado com aqueles que não residem nessas áreas, em média 12,9 anos.
As necessidades de saúde dos sem-teto, no contexto da política de saúde escocêsa dos últimos vinte anos, foram então entendidas como parte essencial de ações mais amplas que tinham como objetivo reduzir as desigualdades no país. Os programas do governo visualizavam o alcance de uma Escócia “mais saudável”, com a população sendo ajudada a melhorar e a sustentar uma boa saúde, especialmente aqueles residindo em comunidades pobres. Ao governo caberia garantir um melhor e mais rápido acesso aos serviços de saúde. O Plano Nacional de Saúde lançado no ano 2000 foi um dos primeiros a apontar a necessidade de melhorar a saúde de grupos específicos, como o dos sem-teto, através de ações integradas com diversos setores do poder público. Em sequência, outros planos de governo foram sendo lançados, com o objetivo de alcançar melhorias na saúde desta e outras populações menos favorecidas da Escócia. São eles: “Orientação Nacional sobre Saúde e População Sem Teto” (SCOTTISH EXECUTIVE, 2001); “Melhorando a Saúde na Escócia: desafios” (SCOTTISH EXECUTIVE, 2003); “Padrões Básicos de Saúde para Populações Sem Teto” (SCOTTISH EXECUTIVE, 2005a); “Melhor saúde, melhor atendimento” (SCOTTISH EXECUTIVE, 2007); “Saúde igual para todos” (2008); entre outros.
Para o Sistema Nacional de Saúde da Escócia (chamado de NHS Scotland), esses planos representaram um componente-chave na prevenção e redução da falta de moradia por meio da recomendação de uma estrutura de serviços básicos que deveriam estar integrados. Uma importante publicação da Rede Escocêsa de Profissionais da Saúde Pública (SCOTPHN, 2015) chamada “Restaurando a resposta da Saúde Pública a questão dos Sem Teto na Escócia”, enfatizava ainda mais o papel do Sistema Nacional de Saúde (NHS) na prevenção da falta de moradia e seus impactos sociais e na saúde. O governo então, mais uma vez, endossa que os rough sleepers (moradores de rua) e os sem-teto seriam os grupos menos favorecidos da sociedade em termos de condições de saúde e expectativa de vida, merecendo assim atenção e serviços diferenciados. O acesso a atendimento odontológico por parte dessa população seria outro elemento chave que insere grandes desafios ao setor de saúde pública na medida em que há a exigência de endereço físico de muitos serviços básicos de saúde para iniciarem o tratamento de pacientes. Outro fato seria que, quando se tornam sem-teto, esta população passa a experienciar maiores problemas relacionados à saúde oral, que se iniciaram ou se agravaram por conta da falta de moradia, com relatos mencionando extrema dor dentária, casos de dentes perdidos, ou a própria extração voluntária, aliado ao uso abusivo de álcool e drogas na tentativa de lidar com a dor (COLES; FREEMAN, 2016; GROUNDSWELL, 2017).
O presente artigo tem como foco apresentar a experiência de intervenção de um programa nacional de prevenção e promoção da saúde oral, bem como do bem estar psicossocial de populações sem-teto na Escócia, o Smile4life, ampliando o debate no que tange ao direito a saúde de grupos em situação de vulnerabilidade social.
O programa Smile4life e a interface com a política pública de saúde oral
A Unidade de Pesquisa em Serviços de Saúde Oral (DHSRU) baseada na Escola de Odontologia da Universidade de Dundee, na Escócia, é um centro de pesquisa internacionalmente reconhecido em saúde pública odontológica. Responsável por contribuir para a melhoria da saúde oral e do bem-estar psicossocial de grupos marginalizados e excluídos, como os sem-teto e pessoas em situação de privações de liberdade, o centro realiza pesquisas que visam à implementação e o desenvolvimento de programas nacionais relacionados com políticas públicas de saúde oral. Um desses programas é o Smile4life.
Estabelecida em 2007, numa articulação entre a Universidade de Dundee, o governo escocês e o Sistema Nacional de Saúde (NHS), o Smile4life é o Programa Nacional de Melhoria da Saúde Oral e do bem estar Psicossocial de pessoas que vivem em situação de rua e/ou os sem-teto. Ele nasceu como resposta a uma política pública criada nos dois anos anteriores, “O Plano de Ação para melhorar a saúde bucal e modernizar os serviços odontológicos do NHS na Escócia” (SCOTTISH EXECUTIVE, 2005b). Nele, a Escócia era reconhecida como um dos países europeus com os piores níveis de desigualdades significativas relacionadas à saúde bucal da população e o plano serviria como base para o desenvolvimento de programas preventivos voltados para os grupos considerados mais vulneráveis a doenças orais. Sendo eles: os idosos, as pessoas com necessidades especiais, as privadas de liberdade e os sem-teto.
A primeira ação do Programa Smile4life foi realizar um amplo levantamento das necessidades de saúde oral e psicossocial da população sem-teto, através de uma pesquisa qualitativa com pessoas que viviam nesta condição na Escócia. Conhecido como um dos maiores levantamentos do mundo com foco na saúde oral, a pesquisa “Saúde Oral dos Sem-Teto na Escócia” – programa Smile4life (FREEMAN et al., 2011) produziu dados de 853 participantes sobre perfil demográfico; comportamentos de saúde geral e de saúde oral; grau de complexidade de gestão do paciente e a saúde psicossocial.
Este estudo identificou como os principais problemas de saúde: asma/doença pulmonar, hipertensão, epilepsia, doenças cardíacas, diabetes, HIV positivo e hepatite C. Mais da metade, 58% da amostra, apresentou depressão. Em termos de comportamentos de risco para a saúde oral, 85% se declararam fumantes, 30% bebiam álcool diariamente e 29% usavam drogas, sendo que 81% desses eram usuários de drogas injetáveis. 70% da amostra não tinha registro no dentista, 54% não tinham ido ao dentista nos últimos dez anos e 68% afirmaram terem ido ao dentista pela ultima vez em decorrência de dor de dente. 20% da amostra experimentava fobia dentária.
Em termos de estado de saúde bucal, a amostra informou que 27% dos participantes tinham dentes cariados, 52% tinham perdido alguns dentes e 22% tinham dentes obturados. Isso sugeriu que os participantes tiveram seus dentes cariados extraídos, em vez de tratados. Com relação às atitudes para acessar o tratamento odontológico, 79% da amostra afirmaram que eles gostariam de usar um serviço em que não precisassem marcar atendimento, que pudessem ser recebidos a qualquer hora. 61% afirmaram que gostariam de saber mais sobre o tratamento dentário que receberiam, 48% responderam ser difícil encontrar tratamento dentário pelo NHS, mais da metade da amostra (59%) afirmaram que prefeririam tomar analgésicos que ir ao dentista, 57% sentiram que a pior parte do tratamento odontológico era estar na sala de espera, sendo um dado relevante associado a esse foi que 28% sentiram-se não bem acolhidos pelas recepcionistas.
Em relação aos impactos na saúde bucal experimentados por esta amostra de pessoas desabrigadas, 25% relataram sentir-se envergonhadas por causa da aparência da boca e dentes. 13% afirmaram que muitas vezes sentem suas vidas menos satisfatórias por causa de problemas relacionados com a boca e os dentes. Como esperado, muitos entrevistados, por conta de problemas com a saúde oral, experimentaram dor (31%), desconforto ao comer (28%) e até impossibilidade de continuar as refeições (21%).
Em comparação com a população geral, a higiene oral dos participantes da pesquisa Smile4life se mostrou bem inferior. Outro dado importante foi que, diante de outras demandas urgentes relacionadas à falta de moradia, a saúde oral não era considerada uma prioridade. Os participantes tendiam a comparecer para tratamento odontológico somente quando estavam com dor e em serviços de emergência, em vez de regularmente ou para check-ups de rotina. A pesquisa e os resultados qualitativos mostraram a complexidade e interconexão entre as diversas demandas de saúde, para além da saúde oral, que afetam esse grupo, e serviram como base para a posterior co-produção de um Guia para profissionais que trabalham com esta população: o “Guia para Profissionais: melhor atendimento em saúde oral para pessoas desabrigadas” (FREEMAN et al., 2012). Com um foco principal em saúde oral, o Guia adotou uma abordagem centrada na pessoa, provendo informação adequada para o suporte de profissionais que desejassem promover a saúde oral de usuários de seus serviços em situação de desabrigo, e ainda fazer os encaminhamentos para as clínicas dentárias, no sentido de encorajar e auxiliar a frequência desses grupos ao dentista. Projetado para familiarizar os profissionais com os desafios envolvidos neste campo de intervenção, o guia tinha como princípio não ser usado como uma “receita pronta”, mas sim que as informações fornecidas fossem “adaptadas” pelo profissional, de diferentes áreas, para atender às necessidades locais e contextuais de cada serviço.
Torna-se importante pontuar que tanto a pesquisa desenvolvida pelo Smile4life, como o próprio nascimento do programa, e ainda o lançamento do Guia para profissionais foram uma resposta às demandas da política de saúde pública do momento, e ocorreram num contexto político de receptividade bastante propício. O lançamento do Guia ocorreu simultanemante com o lançamento de um segundo plano do governo focando na saúde oral de grupos vulneráveis, “A Estratégia Nacional de Melhoria da saúde Bucal de Grupos Prioritários” (SCOTTISH GOVERNMENT, 2012). Esta estratégia definia os meios pelos quais o Plano de Ação Odontológica lançado em 2005 deveria se desenvolver, citando os programas preventivos que foram criados desde então em suporte a situação de adultos experenciando maior vulnerabilidade social. O programa Smile4life, neste contexto, foi citado como o único programa criado para promover a saúde oral da população sem-teto.
Em 2018, foi lançado o novo “Plano de Melhoria da Saúde Bucal” (SCOTTISH GOVERNMENT, 2018e) definindo o futuro da melhoria da saúde oral e dos serviços dentários do NHS na Escócia. O plano reconhece que apesar dos esforços de equipes de saúde oral continua particularmente difícil conseguir uma melhoria da saúde bucal nas comunidades mais pobres do país. O plano coloca como objetivo geral a necessidade de encontrar formas inovadoras de combater as desigualdades em saúde bucal, reconhecendo, em primeiro lugar, que seria necessário ajudar as pessoas a adotarem comportamentos de promoção da saúde, reduzindo os comportamentos de risco a saúde oral. Esta premissa, apesar de bem intencionada, reforça o papel individual de sanar o fenômeno social dos sem-teto quando a situação só pode ser resolvida através de um esforço concentrado das instituições e da sociedade civil numa luta que precisa ser multidimensional. Não existiu também nesse novo plano menção a grupos específicos, como os sem-teto ou pessoas em privação de liberdade, como anteriormente. O termo desigualdades em saúde oral é o único adotado, sem menção ao princípio de equidade em saúde. O plano faz referência somente a idosos e crianças como sendo os grupos prioritários das ações, o que surtiu impactos negativos nos profissionais de saúde pública que interpretaram isso como certo retrocesso tendo em vista os planos anteriores. Existe assim, atualmente, certo temor de que haja cortes no orçamento direcionado aos profissionais de saúde oral trabalhando com a população sem-teto bem como nas ações que atendem a esse grupo específico. O que iria contra o respeito a diversidade, equidade e a garantia de atendimento integral, mas diferenciado, às populações em situação de vulnerabilidade social.
Contudo, o plano inova por outro lado, ao considerar as organizações do terceiro setor6, não ligadas diretamente a promoção da saúde oral, como parceiros importantes na construção de estratégias integradas para a implementação do plano. Nele, iniciativas lideradas pelas comunidades seriam apoiadas por um Fundo de Governo, que permitiria as ONGs, por exemplo, licitarem recursos para projetos destinados a melhorar a saúde bucal dos moradores de suas comunidades. No entanto, o governo ainda estuda a melhor maneira de selecionar essas iniciativas e iniciar esta ação, sem que nenhuma medida tomada neste sentido esteja ainda ocorrendo.
Desafios e potencialidades do Programa Smile4life
Uma avaliação piloto qualitativa do processo de Intervenção do Smile4life (BEATON et al., 2016) ocorreu logo após o lançamento do Guia para profissionais em 2012. Teve como objetivo examinar os benefícios relacionados ao trabalho e ao treinamento adicional de equipes do NHS e de outros profissionais de assistência social trabalhando com a população sem-teto. Contudo, a avaliação do programa ocorreu somente em quatro áreas geográficas da Escócia quando o sistema nacional de saúde se divide em 14 áreas, sob a responsabilidade de 14 conselhos locais. Todos os participantes da avaliação completaram um questionário linha de base antes de implementar o Smile4life e um questionário de acompanhamento seis meses depois para avaliar qualquer mudança em termos de benefícios relacionados ao trabalho. Questionários de linha de base e acompanhamento foram realizados por profissionais de saúde oral e de assistência social que trabalhavam com a população sem-teto. Os resultados mostraram um aumento no conhecimento do contexto de vida desses grupos e mudanças nas atitudes e nos comportamentos relacionados à saúde bucal e a falta de moradia, tanto por parte dos usuários do serviço como por parte da equipe de profissionais que os acompanhava. Houve, ainda, um aumento da confiança e da motivação por parte dos profissionais do programa para ajudar os sem-teto a cuidarem de sua saúde bucal e também a acessarem o dentista.
Um dos principais desafios identificados nesta avaliação piloto foi ainda a falta de uma integração efetiva aumentando os canais de diálogo e as parcerias entre os profissionais de saúde oral, da área social, do terceiro setor e as organizações comunitárias de base no que tange a abordar em conjunto as necessidades das pessoas sem abrigo. Nesta perspectiva, para o Smile4life, a saúde oral seria mais um elemento a ser considerado no quesito saúde geral, uma espécie de “porta de entrada” para a discussão de outros temas correlacionados a suas trajetórias de vida7. A avaliação piloto e a própria experiência de trabalho no programa Smile4life sugere-nos que, em muitas ocasiões, a falta de integração entre os profissionais que atuam em diferentes serviços se deve a: 1) a falta de conhecimento maior sobre as causas, as necessidades especiais dos sem-teto e o contexto que leva a falta de moradia; 2) a falta de compreensão sobre a importância de investir em parcerias com outros setores, para além de suas especialidades, tendo em vista que as demandas são complexas e correlatas; 3) a falta de conhecimento de serviços sociais e de saúde disponíveis para atender a população sem-teto dificulta ainda mais o diálogo entre setores; 4) a ausência de uma melhor orientação sobre procedimentos existentes para a realização de encaminhamentos complementares a outros serviços restringe o cuidado global do indivíduo que muitas vezes, requer diferentes especialidades de cuidado, mas só é atendido por um serviço.
Para responder as questões levantadas nesta avaliação piloto, a equipe de pesquisa do programa Smile4life iniciou um processo de engajamento ativo e de diálogo frequente com as principais ONGs que trabalhavam com a população sem-teto, bem como com os formuladores de políticas públicas voltadas para prevenir e reduzir a população sem-teto. Uma plataforma de discussão (RODRIGUEZ et al., 2016) sobre a integração dos serviços e o aumento do diálogo entre profissionais de outros setores para além da área da saúde/saúde oral, foi criada. A ocupação de certos espaços de tomada de decisão que influenciassem o desenho de políticas públicas foi uma estratégia imediata. Conselhos e comissões do governo e/ou das prefeituras locais, bem como grupos de trabalho em nível nacional e internacional foram então mapeamentos. Ao longo dos últimos quatro anos o programa tornou-se membro e assumiu assentos em diferentes comissões e grupos de trabalho ligados ao tema sendo um deles o Grupo Nacional de Trabalho Saúde e População Sem-Teto, que se concentra em identificar como o setor público pode trabalhar junto com as organizações da sociedade civil e o setor da saúde para apoiar pessoas em situação de rua e/ou os sem-teto. Em nível local, o programa Smile4life passou a fazer parte da Comissão Integrada para Prevenção e Redução dos Desabrigados da Cidade de Dundee (City Council), uma das cidades com maiores índices de pobreza e população sem-teto da Escócia. O grupo, composto de 25 organizações, foi responsável por produzir o atual Plano Estratégico de Apoio aos Sem-teto, em vigor de 2016 até 2021 (DUNDEE CITY COUNCIL, 2016).
Um mapeamento reflexivo dos serviços para atender pessoas com necessidades complexas e vivenciando o problema da falta de moradia e/ou correndo o risco de se tornarem sem-teto foi, também, implementado pelo programa Smile4life como resposta a um dos desafios da integração dos serviços: a falta de conhecimento dos serviços existentes. Usando uma abordagem participativa e multisetorial, o exercício de mapeamento reflexivo de serviços foi proposto em 3 (três) cidades da Escócia que apresentam os maiores índices de população sem-teto e desigualdades sociais. Com o objetivo de encorajar sinergias e maior diálogo entre os diversos setores envolvidos na problemática dos sem-teto, o mapeamento reflexivo dos serviços (NHS HEALTH SCOTLAND, 2019) foi finalizado nas cidades de Dundee e Aberdeen, e esta em andamento na capital, Edimburgo. Ele forneceu uma compreensão do atual cenário de serviços existentes cobrindo oito áreas de apoio (saúde, educação, moradia, informação, emprego, alimentação, mobília e desenvolvimento comunitário). Os resultados deste mapeamento estão sendo usados pelo plano estratégico de cinco anos para prevenir e combater a falta de moradia na cidade de Dundee.
A política de integração dos serviços aliada à política do Housing First como principal alternativa ao problema dos sem-teto
Desde os anos de 2008-2009 que a Escócia não tinha um aumento do número da população sem-teto, como ocorreu em 2018, pelo contrário, com a implementação da política de habitação Housing First – as estatísticas vinham diminuindo. Esta política surgiu nos EUA nos anos de 1990 e aos poucos foi sendo adotado por diversos países da Europa (AHURI, 2018). No Reino Unido o primeiro projeto piloto do Housing First ocorreu na Escócia, em Glasgow, de 2010 a 2013. A partir daí começou a ser disseminado para outras áreas do país. Trata-se de uma abordagem que define a habitação como uma prioridade, mais do que como resultado final de um trajeto de várias etapas. Baseia-se em conceder uma habitação permanente para aqueles sem-teto que, para além da questão de moradia, apresentam necessidades múltiplas e complexas que exigem também um suporte especializado.
Tradicionalmente, o que ocorria antes era que uma pessoa sem-teto poderia fazer uma solicitação de moradia as autoridades locais, mas existia um critério que concedia a moradia em caráter permanente somente para aqueles inicialmente avaliados como portadores de necessidades especiais e/ou prioritárias – priority needs – como as famílias com crianças, pessoas com deficiências, com condições de saúde grave e idosos. O que deixava de fora completamente determinados perfis como os de homens solteiros e sem filhos. Em novembro de 2012, o Parlamento Escocês aprovou a Ordem da Abolição da Necessidade de Abandono da Escócia (Escócia) de 2012, que deu efeito a este compromisso. Em dezembro de 2012, o teste de necessidades prioritárias para as famílias sem-abrigo foi abolido (SCOTTISH GOVERNMENT, 2012b). Como resultado, a partir desta data, todos os solicitantes de habitação, teriam direito a moradia em caráter permanente. No entanto, deveriam passar por uma avaliação de seu pedido, e caso fosse concedido, primeiramente receberiam uma moradia em caráter emergencial (por algumas noites, geralmente um quarto) e depois recebiam um abrigo temporário (em hostels, Bed and Breakfast, casas de acolhida, acomodações providas por ONGs, casa abrigo para vítimas de violência, etc.). Tendo que, muitas vezes, compartilhá-la com outras pessoas, até que houvesse uma nova avaliação de seu processo e ela fosse considerada apta a receber uma casa em caráter permanente. Os critérios envolvidos nessa segunda avaliação identificavam possíveis elementos de risco que pudessem fazer a pessoa não conseguir sustentar a moradia em caráter permanente (como por exemplo, uso abusivo de álcool e drogas, casos de depressão, conflitos com a justiça, isolamento social, violência, problemas de saúde mental, entre outros). O problema é que isso podia significar, para aqueles mais vulneráveis, e com complexas e múltiplas demandas, longos períodos de tempo vivendo em acomodações temporárias, o que por sua vez, tornava mais difícil ainda, quando não agravavam, o quadro geral dessas outras demandas.
Estudos apontam que a política do Housing First sem dúvida teve efeitos no declínio do número dos sem-teto na Escócia (FITZPATRICK et al., 2015). No entanto, tem sido sugerido que o impacto dessa abordagem talvez não resulte mais em “maiores reduções além do já visto” (SCOTTISH GOVERNMENT, 2018a, p.4). Uma avaliação piloto preliminar (JOHNSEN, 2013) apontou que as dificuldades de acesso à moradia permanente, têm sido fonte de grande frustração para os sem-teto que se candidatam ao programa e para os demais profissionais encarregados de prover os diferentes suportes, concomitantes com a provisão de moradia. Esta avaliação indicou que a eficácia da abordagem Housing First está mais concentrada (se não, totalmente) na oferta de suporte profissional qualificado, em diferentes áreas, flexível e por tempo indeterminado, do que na alocação dos sem-teto a uma habitação independente, permanente e estável. Por conta do limitado estoque de moradia social disponível pelo governo, as acomodações temporárias, continuam ainda ocupando grande espaço neste contexto. Como apontou um estudo das políticas de habitação no Brasil e Europa, verificaram-se muitas situações de incorporação do Housing First enquanto política, mas não tanto da sua aplicação prática, este sendo ainda um modelo em experimentação na Europa (BRASIL, 2013).
Outra explicação para o fato do número de candidaturas de pessoas sem moradia ter aumentado recentemente na Escócia teria relação com a necessidade urgente de que os serviços públicos se tornem focados em produzir resultados mais integrados e colaborativos, que permitam transparência na gestão e que estejam centrados em atender as necessidades dos usuários. Tais desafios, já tinham sido colocados pela Comissão sobre a Prestação Futura de Serviços Públicos (SCOTTISH GOVERNMENT, 2011) fazendo com que surgisse uma ampla gama de regulamentos escocêses, bem como de guias de orientação para melhorar o atendimento de serviços voltados para grupos vulneráveis. Existia um consenso mútuo do governo de que era necessário oferecer serviços de qualidade, acessíveis, centrados no cliente, que fossem eficientes e equitativos, devendo ser, no entanto, integrados e colaborativos (SCOTTISH HOUSING REGULATOR, 2014; SCOTTISH GOVERNMENT, 2014, 2018b; GUIA DE OPÇÕES DE HABITAÇÃO DO GOVERNO ESCOCÊS, 2016).
Cinco anos depois, umas das atuais políticas em vigor desde 2016, centra-se justamente na integração dos serviços de saúde e assistência social – Public Bodies (Joint Working) (Scotland) Act 2014 (SCOTTISH GOVERNMENT, 2014). Essa política recomenda que uma abordagem de acompanhamento holístico do ser humano seja adotada para garantir os direitos e as necessidades das populações vulneráveis, como os que vivem em situação de rua, os sem-teto ou aqueles em risco de ficarem desabrigados. A abordagem integrada passa por um conjunto coordenado de serviços em diferentes níveis de intervenção. Neste sentido, os planos de combate ao fenômeno das pessoas sem-abrigo devem contemplar medidas que se dirijam à prevenção junto a grupos de risco; à intervenção em situação de rua e alojamento temporário; e a intervenção no acompanhamento posterior ao alojamento definitivo e respectiva inserção comunitária (com um enfoque muito especial nas questões da saúde, educação e emprego). Como resultado, a partir de abril de 2016, todos os Conselhos do NHS, o Terceiro Setor e as Autoridades Locais devem estar comprometidos em desenvolver um plano operacional completo de responsabilidades para fornecer serviços integrados de saúde e assistência social. Esta política espera melhorar a saúde e o bem-estar da população em geral na Escócia, em particular daqueles cujas necessidades são complexas e requerem múltiplos serviços de ambos os setores, simultaneamente.
O cenário destaca a importância da colaboração multisetorial na promoção de serviços públicos mais eficazes, aspecto central da política de governo escocêsa. Outros estudos também apontaram a relevância desse elemento de integração dos serviços e suas relações com o cuidado das populações vulneráveis (RICHARDSON, ASTHANA, 2006; ROBINSON, COTTRELL, 2005; SALMON, 2004). As diretrizes de um trabalho multisetorial e interprofissional reconhecem as interconexões presentes nas necessidades dos sem-teto e enfatizam a importância de se criar formas integradas de prestação de serviços pelos diferentes campos de intervenção (EDWARDS; MILLER, 2003).
No entanto, os diferentes serviços não necessariamente compartilham das mesmas visões a respeito de procedimentos de cooperação com parceiros de diferentes setores. Existe a falta de um sistema comum de comunicação entre os parceiros (BRYSON et al., 2006), diversas formas de trabalho cooperativo e multissetorial tendem a estar altamente sujeitas a questões de âmbito pessoal, das relações e práticas informais de cada profissional, que muitas vezes não são incorporadas de forma rotineira ou amplamente adotadas pelos serviços e organizações (UNIVERSITY OF DUNDEE; SHELTER SCOTLAND, 2016). Como resultado, os processos de colaboração e maior integração dos serviços que atendem a um mesmo usuário, ao invés de se complementarem, muitas vezes, acabam competindo entre si. Ou ainda, dependem das relações pessoais entre a equipe de um serviço e a equipe de outro, da relação entre um profissional específico e o usuário, estando sujeitas a uma falta de continuidade, na medida em que os profissionais saem ou mudam de cargo, com consequente perda de informações sobre o acompanhamento de cada individuo.
Discussão Final
O direito à saúde é amplamente reconhecido em instrumentos internacionais de direitos humanos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (UNITED NATIONS, 1948, art. 25), e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – CESCR (UNITED NATIONS, 1966, art. 12). Ambos reconhecem o direito à saúde como o direito de se atingir o mais alto padrão de saúde física e mental. Contudo, numa compreensão mais ampla do direito à saúde (CESCR, 1966) este não se restringiria somente ao direito de ser saudável. Os determinantes subjacentes da saúde abrangeriam uma ampla gama de fatores socioeconômicos, como o gozo de uma variedade de instalações, bens, serviços e condições de vida necessárias para o exercício de uma vida saudável. Ou seja, o direito à saúde estaria ligado as obrigações dos Estados no que tange a cumprir inúmeras outras recomendações, sendo a questão da habitação, permanente e segura, condição vital para o exercício dos direitos humanos.
No artigo damos suporte a análises predominantemente estruturais no que concerne às causas que levam a perda de moradia na Escócia sem, no entanto, desconsiderar as possibilidades individuais em casos específicos (JOHNSON et al., 2015; BRAMLEY, FITZPATRIK, 2018). É bastante claro que uma ação para combater a pobreza infantil deveria ser prioridade máxima da política de moradia escocêsa, tendo em vista que isto pode determinar o surgimento de futuras gerações de homeless. Fortes associações entre a falta de moradia e experiências adversas na adolescência e juventude sinalizam também outra oportunidade de intervenção crítica (WATTS et al., 2015), assim como uso abusivo de drogas e recorrentes atos infracionais e/ou criminais.
O modelo Housing First como política de habitação tem um princípio orientador que é muito bem recebido pelas organizações sociais e profissionais de saúde pública que trabalham com o tema: uma moradia permanente que não estaria condicionada a outras questões de saúde e bem-estar, como a participação em programas de saúde mental ou a abstinência do uso de álcool ou drogas, por exemplo. O que em muitos casos, inviabilizava o recebimento da moradia definitiva. No entanto, a implementação do Housing First ainda não foi alcançada em toda a Escócia, havendo muitos desafios para que se torne da maneira que foi pensada, uma realidade de fato.
Outra política pública atual, a de Integração da Saúde e Assistência Social tem, igualmente, mobilizado diferentes setores na direção de construírem planos integrados e colaborativos de combate a falta de moradia que de fato promovam um acesso mais coordenado a diferentes serviços de suporte a grupos vulneráveis. Ambas as políticas em vigor, assim como, o próprio programa Smile4life, resultado de uma ação da política de saúde oral, se complementam e se apoiam mutuamente, deixando a Escócia num lugar privilegiado no que tange a prevenção e a criação de alternativas para aqueles que se encontram sem moradia. Contudo, na prática, tanto a política de habitação como a de integração dos serviços ainda requerem estratégias amplas e esforços coletivos para serem efetivamente implementadas.
Um trabalho efetivo entre as agências responsáveis pela provisão da moradia combinada com o acesso a outros serviços de saúde e bem estar psicossocial torna-se fundamental. O recrutamento de profissionais experientes para dar o suporte as demandas dessa população é também um fator crítico. Uma vez que é imperativo que todos os profissionais entendam e apoiem os princípios da política de Housing First, particularmente no que tange ao acolhimento, sem restrições, de pessoas que inicialmente apresentam complexas e variadas demandas, que podem vir a comprometer o compromisso e envolvimento satisfatório com o programa. Os profissionais devem ser respeitosos, imparciais e ter a capacidade para responder de maneira apropriada se o indivídio apresentar dificuldades para se engajar, cumprir as normas dos serviços ou até mesmo, se vier a se desconectar do programa, em algum momento. Visto que recaídas associadas ao uso indevido de substâncias, entre outras condições de saúde, como depressão, logo após ser alojado, são bastante comuns.
Em relação ao programa Smile4life, sua implementação se deu em todo o território do NHS na Escócia e segue desenvolvendo esforços no sentido de se integrar com os serviços de moradia, e com as organizações comunitárias e com as agências do governo. Sua incorporação no plano estratégico local de governo em Dundee, uma das cidades que tem os maiores níveis de pobreza e de população sem-teto, traduz bem esses esforços, ao mesmo tempo em que vem contribuindo para as mudanças nas práticas dos profissionais de saúde oral no que tange a melhorar atender as demandas desses grupos. No entanto, um processo mais amplo de avaliação do programa Smile4life é necessário.
Conclusão
As declarações de direitos reforçam o imperativo moral da ação política dos países através do compromisso destes com o desenho e a implementação de políticas públicas integradas, dada a natureza complexa e multifacetada do fenômeno da falta de moradia. Se por um lado, a abordagem do Housing First ganha muitos adeptos do ponto de vista teórico e técnico, torna-se ainda difícil sua implementação, porque devem vir acompanhada de investimentos em habitação a custos sustentáveis, e ainda contar com o apoio e compreensão da opinião pública, incluindo os profissionais envolvidos. Uma mudança de paradigmas é necessária para que a sociedade perceba os homeless como um grupo social dotado de direitos e que para exercer sua cidadania necessitam que as devidas oportunidades lhes sejam reconhecidas e concedidas.
Embora a política escocêsa tenha se concentrado em determinantes sociais e econômicos mais amplos, na prática ainda permanecem as ênfases no papel dos indivíduos e de suas escolhas de vida enquanto fatores que levam a perda da moradia. A ideia hegemônica de que seriam exclusivamente os únicos responsáveis pela situação em que se encontram, muitas vezes, abre espaço para pensamentos e práticas que determinam que também sozinhos encontrem as soluções.
Permanece a necessidade de promover um acesso mais coordenado aos diferentes serviços existentes, ou, tanto os usuários quanto os provedores de serviços continuarão a serem desafiados na busca por informações, muitas vezes, fragmentadas ou desatualizadas, que resultam em acesso restrito e limitado as opções de suporte aos sem-teto. Também é preciso desenvolver formas inovadoras de aumentar a confiança desses usuários na utilização dos serviços e de outras instalações dentro de suas comunidades, como espaços de lazer e interação social. Reconhece-se, assim, o impacto potencialmente negativo do estigma que esses grupos sofrem ao transitarem pelos espaços públicos da cidade, incluindo os próprios serviços.
Um relevante fator protetor para evitar a falta de moradia, seria o papel das redes de apoio social e individual. O fato de ter um parceiro/a e/ou gozar de convívio com amigos próximos auxiliam muito no combate ao isolamento social, uma das principais barreiras que esses grupos têm a superar.
O governo escocês, em especial, a partir da gestão do Scottish National Party (SNP) vem buscando adotar medidas compensatórias às políticas de austeridade, que ainda são definidas pelo governo central, em Westminister (Londres). Com efeito, um dos maiores desafios é conciliar a estrutura político-econômica pano de fundo para agravamento da situação dos sem-teto, com os problemas mais relacionados aos indivíduos, muitas vezes associados a patologias de foro pessoal. Demanda uma ampla articulação político-social, de debate sobre os problemas fundamentais de uma sociedade próspera, como a Escócia, incluindo, a questão do estigma, e das narrativas de patologização. Não haverá política eficiente, no entanto, sem a participação dos sem-teto na construção dessas soluções, abrangentes e sustentáveis, e sem que as condições para a sua aceitação social e de implementação estejam resolvidas na sociedade.