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Loucos, Drogados e Associados: participação social no campo da saúde mental em tempos austeros
Samira de Alkimim Bastos Miranda; Lêda Antunes Rocha; Robson Kleber Souza Matos;
Samira de Alkimim Bastos Miranda; Lêda Antunes Rocha; Robson Kleber Souza Matos; Luci Helena Silva Martins
Loucos, Drogados e Associados: participação social no campo da saúde mental em tempos austeros
O Social em Questão, vol. 21, núm. 44, pp. 213-240, 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: Num contexto de desmonte do Sistema Único de Saúde em detrimento dos ajustes econômicos nas políticas sociais, a política de saúde mental tem padecido inúmeros atravessamentos. A participação popular, sobretudo o engajamento dos que são alvo desta política é fulcral para a luta e garantia de direitos. O presente artigo buscou identificar e analisar a organização coletiva dos usuários e seus familiares na política de saúde mental do município de Montes Claros-MG através da inserção numa Associação. Trata-se de um estudo de caráter qualitativo que se utilizou de análise documental e da observação participante. Percebeu-se que a nível, a organização dos usuários e familiares dos serviços substitutivos por meio de uma Associação desempenha papel crucial no processo de defesa de direitos e aperfeiçoamento das políticas públicas direcionadas a este segmento social.

Palavras-chave:Participação socialParticipação social,AssociaçãoAssociação,Política de Saúde MentalPolítica de Saúde Mental.

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Artigos

Loucos, Drogados e Associados: participação social no campo da saúde mental em tempos austeros

Samira de Alkimim Bastos Miranda
Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), Brasil
Lêda Antunes Rocha
UNIMONTES, Brasil
Robson Kleber Souza Matos
Universidade de Pernambuco, Brasil
Luci Helena Silva Martins
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Brasil
O Social em Questão, vol. 21, núm. 44, pp. 213-240, 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Loucos, Drogados e Associados: participação social no campo da saúde mental em tempos austeros1

Samira de Alkimim Bastos Miranda2

Lêda Antunes Rocha3

Robson Kleber de Souza Matos4

Luci Helena Silva Martins5

Resumo

Num contexto de desmonte do Sistema Único de Saúde em detrimento dos ajustes econômicos nas políticas sociais, a política de saúde mental tem padecido inúmeros atravessamentos. A participação popular, sobretudo o engajamento dos que são alvo desta política é fulcral para a luta e garantia de direitos. O presente artigo buscou identificar e analisar a organização coletiva dos usuários e seus familiares na política de saúde mental do município de Montes Claros-MG através da inserção numa Associação. Trata-se de um estudo de caráter qualitativo que se utilizou de análise documental e da observação participante. Percebeu-se que a nível, a organização dos usuários e familiares dos serviços substitutivos por meio de uma Associação desempenha papel crucial no processo de defesa de direitos e aperfeiçoamento das políticas públicas direcionadas a este segmento social.

Palavras-chave

Participação social; Associação; Política de Saúde Mental.

Crazy, Drug and Associates: social participation in the field of mental health in austere times

Abstract

In a context of dismantling of the Unified Health System to the detriment of economic adjustments in social policies, the mental health policy b has suffered numerous crossings. Popular participation, especially the engagement of those who are the target of this policy is central to the struggle and guarantee of rights. This article sought to identify and analyze the collective organization of users and their families in the mental health policy of the Montes Claros' county -MG through the insertion in an Association. It is a qualitative study that used documentary analysis and participant observation. It was noticed that at local level, the organization of users and family members of substitutive services through an association plays a crucial role in the process of defending rights and improving public policies directed to this social segment.

Keywords

Social Participation; Association; Mental Health Policy.

Artigo recebido: novembro de 2018.

Artigo aprovado: janeiro de 2019.

Introdução

No contexto de crise estrutural do capital, no Brasil, são manifestas cada vez mais medidas que limitam a ação do Estado quanto às políticas públicas. Face a um discurso de austeridade econômica, isto é, de ajustes econômicos alicerçados na redução dos gastos públicos, o Sistema Único de Saúde (SUS) passa por um processo de desmantelamento e nesse bojo a política de saúde mental, orientada pelo movimento da Reforma Psiquiátrica, tem padecido inúmeros atravessamentos. A participação popular, sobretudo o engajamento dos que são alvo desta política é fulcral para a luta e garantia de direitos.

Frente a uma herança de violência institucionalizada que marcou a histórica relação da sociedade com a “loucura”, a Reforma psiquiátrica com sua proposta de desinstitucionalização foi celebrada como um movimento de possível conquista da cidadania das pessoas com sofrimento mental/ “loucos e drogados”. Contudo, no Brasil, nesse campo, a política apresenta lacunas e fragilidades, ainda percebemos inúmeras dificuldades para o acesso desse grupo a uma assistência antimanicomial.

Ante aos desafios postos ao SUS, em especial no que tange ao campo da política de saúde mental, é primordial contemplar a participação social e a luta por direitos daqueles que dependem da mesma. O presente artigo6 buscou identificar e analisar a organização coletiva dos usuários e familiares da Rede de Atenção Psicossocial do município de Montes Claros-MG através da integração numa Associação, a “Associação Consciência Ativa.com”. Trataremos aqui de um coletivo de pessoas que vem buscando justamente garantir os direitos das pessoas com sofrimento mental, assim como ser um espaço de trocas subjetivas e construção de saídas singulares para os desafios do cotidiano desses que mais que qualquer um, conhecem o impacto do descaso.

O que despertou o interesse para realização deste trabalho foi a inserção dos pesquisadores na Rede de Atenção Psicossocial do município por meio do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Durante o percurso no programa houve o envolvimento com a criação da Associação de usuários e familiares. A partir de tal aproximação percebemos que são poucos estudos sobre a participação social no âmbito da saúde mental relacionada com a organização de Associações e, especialmente, que este coletivo é estratégico para o fortalecimento de uma política permeada de ataques algozes.

Faz-se aqui o relato de uma luta, travada em um sertão onde a força da resistência está presente não só na natureza, mas principalmente no povo que ali habita, uma terra árida e seca exige dos que nela nascem bravura e persistência, assim como tem exigido da Associação uma postura arrojada e corajosa. Desse modo, este trabalho se justifica por ser o registro de uma luta de muitos, um esforço não só em garantir direitos, mas, sobretudo, ofertar as pessoas com sofrimento mental a possibilidade de exercerem sua cidadania.

Para tanto o caminho metodológico a ser traçado é crucial. As contribuições de Minayo (1994) no que diz respeito à pesquisa social auxiliaram a proposição do andamento deste trabalho. Com base na autora temos a concepção de que o campo científico, apesar de sua normatividade, é permeado por conflitos e contradições, esse entendimento é fundamental para a construção da análise da temática abordada, haja vista que o campo da saúde mental é atravessado por discursos, interesses e práticas distintas.

Este trabalho foi construído fundamentado na abordagem qualitativa por se atentar para aspectos da realidade que não podem ser quantificados (MINAYO, 1994). As técnicas utilizadas para a coleta das informações dispostas aqui foram a observação participante, uma vez que os pesquisadores acompanharam as reuniões realizadas, o que viabilizou registros acerca do processo de organização da Associação; e a pesquisa documental, através da leitura das atas das reuniões e de documentos oficiais. É mister citar que o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – Brasil.

Entendemos que a reflexão acerca da participação social na saúde mental demanda a compreensão de que o ponto de partida para a discussão é o enquadramento desta área no horizonte do SUS. Portanto, fez-se necessário dissertar sobre o desenvolvimento da política pública de saúde no Brasil e suas interfaces com a conjuntura neoliberal com vistas a situar a saúde mental neste cerne. A exposição do texto, à vista disso, se estruturou em dois tópicos centrais, um que trouxe apontamentos sobre o SUS e a saúde mental no contexto de austeridade, e outro que discorreu acerca da experiência no sertão norte mineiro da criação e organização da “Associação Consciência ativa.com”.

Percebemos que embora a participação social no campo da saúde mental apresente fragilidades, a organização de usuários e familiares dos serviços de saúde mental por meio de uma Associação desempenha papel crucial no processo de defesa de direitos e aperfeiçoamento das políticas públicas direcionadas a este segmento social. Logo, a Associação pode criar formas inovadoras de organização e participação política de uma parcela da sociedade que historicamente esteve ausente das discussões e das formulações das políticas públicas, trazendo, assim, para o primeiro plano aqueles que costumeiramente não podem opinar, que tradicionalmente não participaram das decisões que diziam respeito a suas vidas e a suas histórias.

O SUS em tempos austeros e o campo da Saúde Mental

O movimento da Reforma Sanitária desencadeado na década de 1970, na luta pela saúde pública consoante com a defesa da Redemocratização da sociedade brasileira, corroborou para que a Constituição Federal de 1988 (CF/1988) definisse a saúde enquanto um direito universal e dever do Estado e criasse um sistema único para as ações e serviços públicos de saúde regido pelos princípios de universalidade, integralidade e participação da comunidade, o SUS.

Perante a hegemonia da ideologia neoliberal internacional refletida no Brasil, tem-se a ambiguidade do Estado garantir a universalidade do acesso à saúde pública. Logo, a promulgação da CF/1988 que colocou ênfase aos direitos sociais, em especial ao da saúde, provocou incômodos. De acordo com Sader (2013), a Constituição teve dificuldades em ser implantada por nascer na contramão das ideias neoliberais. O autor cita que inclusive foi dito no governo Sarney que os direitos dos cidadãos elencados no texto constitucional tornariam o país ingovernável e, que seria impossível que fossem cumpridos sem o agravamento da recessão econômica.

Na década de 1990 no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) a fundação de um plano de estabilização econômica por meio do Plano Real incrementou um conjunto de políticas de ajustes macroeconômicos e propostas de Reforma do Estado que produziram resultados divergentes aos preceitos constitucionais (PAIM, 2008). Ou seja, os dois grandes projetos de FHC consistiam no ajuste macroeconômico e na Reforma do Estado. A ênfase do governo ao aspecto macroeconômico proporcionou uma implementação tortuosa do SUS. Por isso a mudança de governo em 2003, com a eleição de um presidente de esquerda, Luís Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT) trouxe expectativas no que se refere às políticas sociais, sobretudo em relação à saúde, que estava distante do seu projeto constitucional. Acreditava-se que as bases neoliberais seriam enfraquecidas pelo fortalecimento da presença do Estado nas políticas e direitos sociais. Todavia em relação à saúde, “as políticas implementadas não desestabilizaram o núcleo da agenda liberal, que avança e ameaça o direito universal à saúde” (COSTA, 2013, p.24).

Paim (2008) reflete que desde a sua criação o SUS apresenta distintas concepções ou projetos, tais como: o SUS formal, expresso por um aparato legal; o SUS democrático, advindo do movimento da Reforma Sanitária; o SUS para pobres, direcionado a ações focalizadas e primitivas de saúde seguindo recomendações do Banco Mundial (BM) para apaziguar os efeitos das políticas de ajustes macroeconômicos; e o SUS real, submetido aos interesses econômicos que ampliam os seguros de saúde.

No que tange as recomendações do BM, Rizzoto e Campos (2016) elaboraram um estudo acerca do papel desempenhado pelo Banco na elaboração da política pública de saúde no Brasil no início do século XXI e demarcaram que o país, ao viabilizar constitucionalmente o acesso universal à saúde, trouxe contrariedades para a comunidade econômica internacional, haja vista que o SUS no início de sua implantação sofreu inúmeras críticas do BM. Segundo os autores, nos anos de 1990, o BM questionou os preceitos constitucionais que confere o papel de complementariedade do setor privado no que se refere ao sistema de saúde, sugerindo reformas que favorecessem a ampliação da participação da área privada nas ofertas dos serviços. Rizzoto e Campos (2016) apontaram, ainda, que o BM reiterava a centralidade do mercado para organização e gestão mais eficiente das políticas públicas, sobretudo a saúde. Fica explícita a posição do Banco de que o Brasil, um país da periferia do capitalismo, foi demasiadamente ousado ao colocar a saúde como direito de todos e dever do Estado.

Em período mais recente as influências neoliberais ganham ainda mais força com a ascensão de Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) – hoje Movimento Democrático Brasileiro (MDB) –, após o impeachment da Presidenta Dilma do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2016. De acordo com Reis et al. (2016, p.128), ao assumir o governo, Temer escancara “o projeto neoliberal, sem apreço pelos direitos sociais inscritos na CF/1988”, pois, assume a posição de um Estado mínimo subordinado às vontades de mercado e faz uso da crise econômica para justificar o desmonte do Estado voltado para maiores intervenções de cunho social.

Em outubro de 2015, o PMDB lançou o programa “Uma Ponte para o Futuro” que serviu de base para o mandato do presidente Temer. O documento apresentava propostas, sobretudo, para “preservar a economia brasileira e tornar viável o seu desenvolvimento”. Para essa preservação econômica fica notório o ataque às conquistas sociais advindas da CF/1988. Segundo o Plano, “esta mesma Constituição e legislações posteriores criaram dispositivos que tornaram muito difícil a administração do orçamento e isto contribuiu para a desastrosa situação em que hoje vivemos” (BRASÍLIA, 2015, p.07). Ainda é exposto que para o equilíbrio das contas públicas “é necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação” (BRASÍLIA, 2015, p.09).

Ademais, de acordo com Reis et al. (2016) atualmente a maior ameaça tanto para o SUS quanto para as demais políticas públicas é no que se refere à Proposta de Emenda Constitucional 95 (PEC 95), a Emenda do Teto dos Gastos, aprovada em dezembro do referido ano. Esta instituiu o novo Regime Fiscal que limita os gastos públicos – aí inseridos os gastos com saúde – por 20 anos, o que para Rossi, Dweck e Oliveira (2018) é a entrada do Brasil numa “Era de Austeridade”.

Reis et al. (2016, p.132) entendem que das últimas três décadas, o atual momento é o de maior ameaça da política de saúde pública, conforme os autores: “nunca estivemos tão perto da implosão do SUS”.

Notamos que o cenário econômico e político brasileiro não tem sido favorável às políticas sociais, sobretudo à de saúde que dentre as três políticas da seguridade social e é a única de caráter universal e não contributivo.

É nesse contexto de um SUS fortemente atacado que se insere o campo da saúde mental. Nos últimos anos, na formulação da política neste subsetor da saúde, há um a proposição de se constituir e consolidar um novo modelo de atenção, através do estabelecimento de uma Rede de dispositivos substitutivos ao modelo hospitalar manicomial. Este esforço foi desencadeado pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica, que corroborou com a construção de uma política de saúde mental e nos modos da sociedade se relacionar com as pessoas com sofrimento mental, que vêm sendo asfixiados por um Estado mínimo de direitos.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) tem seu início na década de 1970, é contemporânea ao movimento sanitário. Seguindo a influência de outros países, instalou-se no país críticas com proposições para a transformação do modelo de assistência psiquiátrica (DEVERA; COSTA-ROSA, 2007). Mobilizações sociais e políticas impulsionaram o movimento da RPB, que tem como um marco histórico as mobilizações ocorridas em 1978 com o movimento dos trabalhadores em saúde mental (MTSM). Este, apresentando reivindicações trabalhistas, denúncias contra a exclusão, contra a cronificação e a violência nos hospitais psiquiátricos, liderou os acontecimentos que fizeram avançar a defesa pela assistência aos sujeitos com sofrimento psíquico em caráter de desisntitucionalização.

O movimento que se articulou com familiares de usuários, associações e sindicalistas, em favor dos direitos das pessoas com sofrimento mental e, sobretudo, pela luta em prol do fim de internações prolongadas em hospitais psiquiátricos foi marcado por diversas conquistas, principalmente no que diz respeito às leis e decretos que não só põe fim ao modelo hospitalocêntrico, mas também inaugura uma nova Rede de cuidado em saúde mental, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) (BRASIL, 2005).

A participação social tem sido uma característica deste processo. Em 1987, como desdobramento da VIII Conferência Nacional de Saúde que propôs a construção SUS, ocorreu a Primeira Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM) contando com trabalhadores, familiares e usuários dos serviços. Um dos eixos temáticos debatido foi: “cidadania e doença mental: direitos, deveres e legislação do doente mental” (BRASIL, 1988). Na I CNSM houve a responsabilização do Estado pela efetivação da política de saúde mental. Além disso, ao final desta década Silvio Yasui (2006) destaca um novo ator crucial no decurso da Reforma Psiquiátrica: as associações de usuários e familiares nas quais nasceram da constatação da insuficiência da assistência pública, buscando soluções na participação dos próprios familiares e usuários (AMARANTE, 1995). Segundo Delgado (1997), desde então, houve um aumento significativo da participação dos familiares no debate sobre as mudanças na assistência psiquiátrica no Brasil.

Destacamos que em de dezembro de 2011, foi criada a principal portaria que diz respeito aos serviços substitutivos, a de nº 3.088 que institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), dispondo sobre a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do SUS. Uma das diretrizes que norteiam o seu funcionamento é justamente a inclusão da participação e controle social dos usuários dos serviços e de seus familiares (BRASIL, 2011).

No entanto, seis anos após o estabelecimento da RAPS, em 21 de dezembro de 2017, foi publicada no Dário Oficial da União a portaria nº 3.588 que trouxe alterações profundas na RAPS. Uma das principais mudanças refere-se à inclusão do Hospital Psiquiátrico Especializado como componente a Rede (BRASIL, 2017). Os defensores da RPB fizerem críticas às modificações propostas por entenderem que a portaria favorece o fortalecimento dos hospitais psiquiátricos e que a inclusão destes hospitais na Rede traz prejuízos de investimento em serviços de base territorial e comunitária. Por isso, os estudiosos da Reforma ponderam que as alterações são retrocessos para a política de saúde mental que vinha tentando se consolidar no país (ABRASME, 2018).

No país, os processos sociais e políticos vêm refletindo na degradação do quadro de saúde e saúde mental da população, desencadeando crescentes demandas de assistência. O quadro político no campo da saúde no Brasil tem apresentado problemas graves, o sub-financiamento das políticas sociais tem inviabilizado o funcionamento de qualidade de muitos serviços substitutivos (MIRANDA, 2019).

Para Bandeira (1991), a implementabilidade de um sistema depende do apoio financeiro que obtém e neste aspecto, o campo da saúde mental no formato da atenção psicossocial baseada em serviços substitutivos ao modelo asilar de cuidado, vive um dilema estrutural quanto ao financiamento adequado. Segundo Fonseca (2007, p.38), diferentemente das outras áreas da saúde, os problemas de sofrimento psíquico:

[...] não são transmissíveis por vírus ou bactérias, não são identificáveis por radiografia, ou exame de sangue e não afetam, portanto, de modo claro, a taxa de mortalidade da população. As terapêuticas custam caro porque dependem fundamentalmente de pessoas que cuidam de pessoas, por um prazo, em geral, indeterminado. Ou seja, é uma área da saúde para o qual o conceito “cura” não faz qualquer sentido, e os resultados terapêuticos, portanto, não podem ser apresentados sem uma boa dose de elementos subjetivos e qualitativos de análise.

Por estas razões, do ponto de vista do autor, para os gestores públicos, que de modo geral são orientados pelo horizonte do curto prazo de quatro anos de mandato, a saúde mental é uma área de investimento de baixa rentabilidade político-eleitoral. Por exemplo, “Diz-se efetuamos 15000 operações de catarata, ou aplicamos 1 milhão de vacinas, mas não se pode dizer ‘realizamos 200 reabilitações psicossociais’” (FONSECA, 2007, p.39). Com base nesse raciocínio o autor pondera que a defesa por uma política de saúde pública eficaz, já é difícil, do ponto de vista de se assegurar os recursos necessários a implementação dos princípios básicos do SUS, os desafios postos à saúde Mental são ainda mais corpulentos.

Segundo Vasconcelos (2010), no Brasil muitos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ainda não funcionam 24 horas e os que funcionam muitas vezes estão abarrotados, ficam fechados aos finais de semana, sobretudo nas regiões do interior. Há, assim, dificuldades da prestação de atendimento à crise aguda de um portador de sofrimento psíquico grave nestas regiões. Bezerra Jr. (2007, p.244) reitera que num país como o Brasil, de dimensões continentais e enorme diversidade cultural:

[...] não é possível construir um modelo assistencial que sirva igualmente para as megalópoles e as pequenas cidades do interior, para grandes concentrações populacionais e regiões de população escassa, como em certas áreas amazônicas. As noções de Rede e território, por exemplo, que são centrais às proposições da Reforma, não podem ser pensadas de forma idêntica em contextos socioculturais tão diferentes como os pequenos municípios.

Assim, os avanços (ou não) da RPB estão ligados à realidade econômica, social, histórica, política e cultural de cada região no país. Tem-se a ênfase à municipalização dos serviços, o que é importante, uma vez que a política de saúde mental a nível local irá se estruturar de acordo com as particularidades do município, porém, o risco é quando nas gestões locais a questão da saúde mental não entra na agenda política.

Os grandes obstáculos encarados tanto pela reforma psiquiátrica quanto pela sanitária, na realidade, representam um desafio com proporção mais abrangente que diz respeito ao processo de universalização das políticas sociais em contexto periférico ou semiperiférico, no qual tem se dado em meio à crise das políticas de bem estar social na esfera mundial, bem como a hegemonia e expansão de políticas neoliberais, resultantes em desemprego estrutural, sucateamento das políticas sociais públicas, desfiliação e desassistência aos grupos sociais subalternos (VASCONCELOS, 2010).

Nesse contexto, os desafios postos à sociedade, ao Estado e à política de saúde mental podem direcionar para uma regressão das conquistas nesta área (VASCONCELOS, 2010). Assim, entendemos que o movimento da Reforma se deu de forma complexa e progressiva e que atualmente luta-se para que os direitos assegurados às pessoas com sofrimento mental sejam, de fato, apropriados por elas. A batalha é travada não mais no campo legislativo, mas sim no real do cotidiano. Nesse viés, a seguir discorreremos sobre a criação de uma Associação de usuários e familiares dos serviços da RAPS na principal cidade do norte de Minas Gerais, uma experiência a nível local de invenção, resistência e insistência.

Política de Saúde mental e participação social em Montes Claros: a Associação de Usuários e Familiares

O movimento da Reforma Psiquiátrica influenciou a política de saúde mental do país propondo mudanças no âmbito teórico epistemológico, clínico, jurídico e social em relação ao sujeito com sofrimento mental (AMARANTE, 2007). Destacamos como mudança substancial o deslocamento da centralidade do cuidado no espaço hospitalar para a esfera comunitária. Para isto, em termos normativos, tem-se a proposição de uma Rede de cuidados composta por distintos serviços de caráter substitutivo ao modelo manicomial. Minas Gerais foi um dos principais estados para o curso do movimento. Os desdobramentos da Reforma são variados nas divergentes regiões do estado.

Dizia Guimarães Rosa: “Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas”. Possuindo o maior número de municípios no país (853), o estado de que se fala é dividido em doze mesorregiões que apresentam particularidades físicas, socioeconômicas e culturais (FONSECA, GUIMARÃES; FERNANDES, 2014). Nesta divisão, a mesorregião norte mineira se distingue das demais tanto pelos seus aspectos fisiográficos quanto pelos baixos indicadores socioeconômicos de alguns municípios que se assemelham a realidade do sertão do Nordeste, por tais características é conhecida como “sertão7 das gerais” (PEREIRA, 2007). Sob esse fundamento, segundo De Paula (2003), o norte de Minas apesar de pertencer à região Sudeste, considerada a mais próspera do país, é identificado como uma de suas áreas mais pobres, recebendo até mesmo incentivos do governo federal como se pertencesse ao Nordeste. Além disso, os longos períodos de seca frequentes na mesorregião também corroboram para o estereótipo de um lugar de pobreza e atraso.

O município de Montes Claros assume posição principal na mesorregião norte mineira com população superior a 400 mil habitantes e desempenha a função de centralizar serviços financeiros, suporte administrativo, serviços de educação e saúde (PEREIRA, 2007). No que tange ao campo da saúde mental, o processo de Reforma Psiquiátrica se deu de forma gradativa na cidade.

É importante ressaltar que até a década de 1980 não havia política de saúde mental instituída, as longas internações e o isolamento eram a única forma de tratamento, sendo que até meados de 1984 o subsídio público para tratamento dos doentes mentais em Montes Claros era praticamente inexistente, tinha-se nessa época leitos psiquiátricos no Hospital Clemente Faria (FHEMIG) e tratamento particular na Clínica Psiquiátrica de Repouso (Prontomente) – que se caracterizava tradicionalmente como um Hospital Psiquiátrico.

As mudanças mais significativas ocorreram a partir de 1996, quando foi inaugurado um novo serviço de saúde mental no município: A Policlínica Dr. Hélio Sales com uma equipe multiprofissional composta por psicólogos, assistente sociais, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, psiquiatras, enfermeiros, dentre outros profissionais de nível médio, para prestar apoio aos casos de saúde mental (MENDONÇA, 2009).

A transição do ambulatório para o CAPS ocorreu no ano de 2001, com a substituição da Policlínica pelo CAPS, que continuou funcionando no mesmo local. Implanta-se também o CAPS AD para dependentes de álcool e outras drogas. Nesta época o CAPS contava com os leitos de retaguarda no Hospital Clemente Faria, bem como 120 leitos conveniados pelo SUS no hospital psiquiátrico Prontomente.

No entanto, em 2003 esse número de leitos cai para 60, uma medida tomada pelo próprio Ministério da Saúde, já que em 2002, na primeira versão do programa Nacional de Avaliação dos Hospitais Psiquiátricos, este foi avaliado como inadequado. Temendo uma desassistência, a secretaria municipal de saúde e o hospital Prontomente estabeleceram um termo de ajuste para melhoria das condições de tratamento ofertado aos pacientes.

A diminuição dos leitos exigiu que a equipe do CAPS II fosse mais seletiva e cuidadosa com relação à necessidade de internação, além de exigir manejos mais articulados com toda a Rede de saúde (MENDONÇA, 2009). Em 2012 o hospital psiquiátrico Prontomente foi fechado definitivamente, o que foi um marco na história da Reforma Psiquiátrica no interior do estado de Minas Gerais.

Atualmente, o município de Montes Claros, conta com uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), composta por um CAPS II, um CAPSi, um CAPS AD, um Serviço Residencial Terapêutico (SRT), uma Unidade de Acolhimento mista (UA), dois Hospitais Gerais com leitos de saúde mental, além de serviços ambulatoriais de psiquiatria e psicologia, e de Equipes de Apoio Matricial que dão suporte técnico e pedagógico para o acompanhamento dos casos de saúde mental na Atenção Primária de saúde.

O trabalho em Rede tem sido o grande desafio para que de fato a política pública de saúde mental tenham maior alcance e efetividade, nesse sentido é necessário não só a participação popular, mas sobretudo o engajamento dos que são alvo da política.

A ideia de criar uma Associação de usuários e familiares surgiu durante as reuniões para formação do Colegiado Gestor8 Municipal de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas em que alguns residentes do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES) eram responsáveis pela implementação. Um dos objetivos do Colegiado Gestor era “contribuir para ampliar a interlocução da gestão da política de saúde mental com as organizações da sociedade civil”, mas durante a discussão notou-se a voz esmorecida dos usuários e familiares diante da política de saúde mental municipal, visto que não existia no momento nenhum grupo de usuários organizados no município. Surge, assim, o movimento de criação da Associação, em junho de 2016.

Nota-se que esse movimento surge através de uma provocação que não partiu dos usuários e familiares, mas sim de profissionais-residentes. Antes dos encontros com usuários para proposta de uma Associação, foram realizadas reuniões com antigos usuários de uma Associação que existiu no início dos anos 2000, a “Associação Loucos pela Vida”. A partir daí residentes espalhados em diversos pontos da RAPS municipal foram responsáveis pela divulgação do “Café da Manhã no CAPS”. O “Café da Manhã no CAPS” era uma atividade semestral, organizada pelos residentes, que tinha como objetivo aproximar os familiares e a comunidade do CAPS, e fazer germinar a ideia da criação de uma Associação na Rede. No total, entre folhetos e telefonemas, foram distribuídos cerca de 300 convites. Compareceram 46 pessoas, estando presentes usuários e familiares dos diversos pontos da RAPS.

O momento inicial serviu para apresentar aos usuários o funcionamento de uma Associação e levantar junto a eles as necessidades da Rede em questão. A Torre de Babel formou-se quando as diferentes queixas e insatisfações começaram a surgir, como gritos preso na garganta de pessoas que não imaginavam ter direito a voz. Entre apelações a Luciano Huck9 e a necessidade de atividades físicas nos ambientes do CAPS, houve grande número de propostas para melhora da Rede e do tratamento. E para além dos ruídos comunicacionais, o que ficou claro é que eles tinham muito a dizer e que era imperativo um movimento organizado dos mesmos, como consta na Primeira Ata da Associação, ocorrida em 04 de junho de 2016:

“Todos se apresentaram e expuseram suas angustias, agradecimentos e dificuldades que encontraram na Rede de Atenção Psicossocial, além das demandas para a Associação. A mãe do Paciente X do CAPS ad questionou sobre a falta de orientações do serviço a família com relação ao tratamento. A Cidadã B, paciente do CAPS III, ressaltou que é preciso que haja mais oficinas terapêuticas dentro do CAPS, pois tem ficado muito tempo ociosa na permanência-dia. [...] A paciente W disse não estar satisfeita, é preciso melhorar muita coisa, que a família precisa ser orientada”.

É possível verificar aqui queixas relacionadas a velhas práticas presentes no CAPS, onde o paciente ainda é tido como coadjuvante com relação ao próprio tratamento. Uma nova perspectiva de cuidado implica o reconhecimento de que os profissionais de saúde mental não detêm um conhecimento absoluto e/ou “acesso privilegiado às pretensas verdades das vidas das pessoas e seus dilemas, necessitando ser informados por elas” (GRANDESSO, 2000, p. 280). A autora reflete sobre a necessidade de considerar que o sujeito que sofre é o maior especialista em sua experiência, logo, ninguém melhor que ele mesmo para ensinar os possíveis caminhos para a construção do cuidado em saúde mental.

Nesse primeiro encontro foi possível não apenas escutar os pacientes e familiares, mas também ratificar o lugar de protagonismo que estes devem exercer dentro das políticas de saúde mental, estando os profissionais residentes dispostos a contribuir para tal conscientização, como demonstra outro trecho desta mesma ata:

“A assistente social residente X ressalta o papel político da Associação e sua legalidade jurídica, a também residente Y ressalta a Associação como instrumento político de fiscalização, de participação social da população que sabe de suas necessidades e demandas conforme as prerrogativas do SUS”.

Nesse sentido, o cuidado está relacionado à defesa da vida e a percepção dos usuários dos serviços de saúde como cidadãos pertencentes a uma comunidade, fazendo-se necessário considerar as conexões relacionais que envolvem o contexto do cuidado e os atores envolvidos e entendê-las como produtoras de vida (FERREIRA et al., 2016).

Na reunião seguinte definiu-se o nome e a composição da chapa da Associação, o que foi conferindo ao movimento sua identidade própria, conforme registro em ata do dia 18 de junho de 2016:

“Seguidamente, os presentes apontaram sugestões de nome para a Associação, tais quais: CEU (Comunidade Esquizofrênica Unida), Buscadores da Libertação, Amor pela vida, Unidos pela consciência, Novos Horizontes, Unidos para o bem, Consciência Ativa, Em busca de Soluções, Sempre em Frente, consciência ativa.com. Após as sugestões dos nomes, foi realizada a votação para escolha. Com a maioria dos votos o nome escolhido é ‘Consciência Ativa.com’”.

Após a escolha do nome social (Consciência Ativa.com) e a definição da diretoria, o movimento passa a concentrar esforços no sentido de divulgar o trabalho que está sendo realizado e concretizar a legalização. Este é um momento crucial para a Associação, já que se forma um coletivo heterogêneo composto por pacientes dos diversos serviços, familiares, profissionais, residentes e demais interessados na causa, todos movidos pelo desejo de construir uma Rede que de fato atendesse as necessidades da população.

Sempre é um desafio aglutinar pessoas que estejam movidas por causas outras que não apenas o capital, nesse sentido, a Associação mostrou-se um mecanismo não só de controle social, mas também como um movimento que faz furo aos discursos de poder.

A partir daí, de forma muita orgânica, as reuniões que se seguiram serviram para dar base à Associação, foram discutidos o regimento interno e as formas de organização da além das dos objetivos iniciais.

Aos poucos a Associação Consciência Ativa.com foi tomando corpo, as reuniões passaram a ocorrer de forma quinzenal no CAPS II, os profissionais dos serviços começaram também a ser afetados pelo movimento que nascia. No primeiro ano exigiu dos integrantes muito trabalho de divulgação, bem como foi preciso enfrentar as resistências das velhas forças que pairavam sobre a Rede; nesse sentido, os cafés com cidadania, que passaram a ser organizados e conduzidos pela Associação, proporcionaram encontros não só de pessoas, mas colaboraram também para a formação política dos membros. Entre os temas abordados nestes Cafés, estão: o processo de reforma psiquiátrica; campanha janeiro branco (prevenção ao suicídio); e o papel da Associação na Rede de Atenção Psicossocial, havendo em muitas ocasiões dificuldades relacionadas a participação nos eventos, como contata-se na Ata do terceiro café com cidadania realizado no dia 22 de julho de 2017:

“O vice-presidente diz da dificuldade em sensibilizar pacientes e familiares a participarem da Associação, chama atenção para o número de pessoas presentes no café, número ainda pequeno, tendo em vista o volume de convidados”.

Não seria estranho constatar a tímida participação daqueles que sempre foram colocados a margem, proibidos de opinar e convencidos do seu lugar subalterno. A Associação tem o papel justamente de fazer crer na pluralidade, e por isso deve ser um movimento contínuo, de intensidades variadas, com espaço para que cada sujeito, no seu devido momento, exerça em algum aspecto sua cidadania.

Oliveira (2012) destaca que em um primeiro momento da Reforma havia especialmente uma preocupação com o resgate da dívida social com os loucos, ou seja, seria preciso soltá-los para restituir uma cidadania perdida, no entanto, isso se mostra insuficiente se não há mecanismos que estimulem esses sujeitos a de fato tomarem partido de suas próprias causas, direitos e deveres.

Assim, muitas vozes paulatinamente tornarem-se uníssonas em torno da defesa dos seus direitos. E, mais importante, diante de desconfianças e empecilhos, a Associação fez-se ouvida. Antes de um ano de formação, havia uma mesa composta só por usuários no I Fórum Municipal de Saúde Mental de Montes Claros realizado em 2016.

Paralelo ao movimento de mobilização foram implantadas, também, estratégias para geração de renda em prol da legalização da Associação, contando com grande participação de vários setores da sociedade, incluindo parcerias com empresas do setor privado.

No segundo ano a Associação já havia estabelecido sua diretoria, composta por um presidente (usuário do CAPS AD), uma vice (Familiar de pacientes do CAPS II), secretária, tesoureira e conselheiros, todos de alguma forma envolvidos com a saúde mental. Dentre os cargos citados havia cadeiras ocupadas por alguns profissionais e residentes, o que revela o caráter hibrido do grupo, não se tratava de um movimento exclusivo dos usuários, já que os próprios pacientes se diziam incapazes de, pelo menos de início, sustentar sozinhos a Associação.

E foi a partir dessa pluralidade de integrantes e sua abertura para todos que se aproximava que a Associação foi angariando força. Foi possível, por exemplo, organizar uma feijoada beneficente para mais de 100 pessoas em um espaço cultural da cidade, contando com a participação dos pacientes, familiares e funcionários da RAPS, um momento propiciado a partir do engendramento de forças que nunca antes haviam se mobilizado tanto em direção a um objetivo único. É importante destacar que o movimento de Reforma se faz no cotidiano, em ações concretas e simbólicas que são capazes de romper velhas engrenagens e hábitos. Esse evento foi um marco para Associação não só por ter havido retorno financeiro, mas sobretudo por ter sido fruto da inquietação e da mobilização de toda RAPS, demonstrando a força do movimento.

Outro marco na história da Associação foi sua aproximação ao Conselho Municipal de Saúde (CMS), tal fato deu-se devido às paralisações realizadas pelos serviços substitutivos do município em maio de 2017, reivindicando melhorias nas condições de trabalho e tratamento mais digno aos pacientes; os profissionais se mobilizaram e não foi diferente com a Associação, que apoiou o movimento e passou a integrar um comitê permanente no conselho municipal de saúde, como consta na XIV Ata da Associação:

“A Associação esteve presente na reunião do conselho municipal de saúde no dia 17 de maio, onde também estavam presentes os profissionais da RAPS, sendo definido nesta reunião que o conselho municipal de saúde teria um comitê permanente para discutir as questões relacionadas a saúde mental , composta por: 4 representantes do conselho municipal, 1 representante de cada CAPS, 1 representante da coordenação de saúde mental e 2 representantes da Associação de usuários”.

A Associação tem demonstrado capacidade de intervenção tanto no micro, ou seja, no interior dos serviços, propondo oficinas e mobilizando profissionais, mas também em um sentido macro, quando ganha voz no Comitê da Saúde Mental do conselho municipal de saúde, como registrado na Ata de 12 de dezembro de 2017:

“O presidente fala sobre reunião no conselho municipal de saúde com o comitê de saúde mental, nesta reunião foram discutidas propostas de melhorias para os pacientes e servidores da RAPS, entre elas: Habilitação dos CAPS, mudança do CAPS i para uma casa e contratação de mais funcionários”.

Neste decurso vale demarcar que não diferente de muitas outras realidades municipais, a RAPS de Montes Claros, assim como a Reforma Psiquiátrica na região dá passos imbricados em uma tensão permanente entre a sobrevivência do modelo psiquiátrico clássico e a proposta do modelo de atenção psicossocial territorial. Uma série de atividades inovadoras e reformistas convive com CAPS’s precarizados e uma Rede de apoio burocratizada, com cuidados verticalizados, fragmentados e que, com efeito, negam as potencialidades individuais dos usuários e recaem em uma rotina institucional (VELLOSO et al., 2013; MATOS, SANTOS, ROCHA, MENDONÇA, 2018; SILVA, 2012; SANTOS et al., 2018).

Nesse contexto, e no que se refere aos profissionais, o surgimento da Associação criou “linhas de fuga” (DELEUZE, GUATTARI, 1995) em métodos de trabalho enraizados por ideias e modos de fazer saúde que a Reforma Psiquiátrica visa superar. Portanto, a Associação no contexto da Rede não realizou um corte significante, radical, mas sim uma leve ruptura que possibilitou a construção novas linhas de fugas posteriores. Usuários passaram a ser mais ativos em relação aos seus projetos terapêuticos singulares10 e críticos em relação ao cuidado como um todo, tendo na Associação a ajuda necessária a possíveis discordâncias em relação à condução dos seus casos. Logo, ainda que de forma tímida, a Associação Consciência Ativa.com tem se tornado um espaço de voz e vez dessa parcela que por muito tempo (e até mesmo atualmente) esteve desapercebida do espaço público, anulada no âmbito da política.

Considerações finais

Muito embora a diretriz ideológica de uma “sociedade sem manicômio” pareça clara e límpida, sua operacionalização tem passado por percalços expressivos nas últimas décadas. Atualmente a RPB recai sobre o descompasso de seu desenvolvimento institucional e sua realidade social, traçando-se uma tênue linha entre a esperança transformista de um movimento que deve ser continuamente subversivo e o desencanto com uma política de saúde mental ainda incipiente.

É possível verificar aqui que o modelo que viria a oferecer algo de novo e único para o usuário, pode acabar funcionando como negativo do excesso de gozo do sujeito que necessita dele e diante de tal desencanto salta a bordo antigas formas de cuidado que artificiosamente ganham novas roupagens, realizando antigas esperanças de um passado que visávamos superar – a “inovadora psicocirurgia”11 realizada em um hospital do município de Montes Claros é exemplo disso.

Pensando nisso e sem cair na armadilha maniqueísta que envolve tal antagonismo, e levando-se em conta o caráter determinante dos fatores políticos e culturais do Brasil atual, é imperativo pensar “uma sociedade sem manicômios” não como um dormente ideológico, mas como um ato político.

Observamos aqui que o SUS tem a cada governo mantido fôlegos para a sua sobrevivência. A emenda constitucional que congela os gastos distancia os preceitos do Estado viabilizar uma política de caráter universal. Os princípios da Reforma Sanitária permanecem como desafios fundamentais na agenda contemporânea do setor, tem-se um SUS polissêmico permeado por distintos interesses. Nesse ínterim, compreendemos que a RPB ainda está em processo, ou seja, está inacabada e inconclusa. Correa e Passos (2017) afirmam que é “Impossível voltar atrás”. Em concordância com as autoras, refletimos que numa sociedade democrática não há espaços para instituições que segreguem o “diferente”, que cerceei os direitos sociais e humanos e para a anulação da fala dos sujeitos diversos.

A experiência aqui relatada mostra que para além de definir aos usuários da RAPS, dar-lhe um lugar social, direitos, reconhecimento, também se faz necessário investir no potencial inventivo desses sujeitos. Trata-se, pois, de “avaliar a capacidade dos excluídos de construírem um território a partir da própria desterritorialização a que são submetidos” (PELBART, 2003, p.8).

Assim, impõe-se como desafio aos profissionais e usuários a efetivação de um fazer em saúde que leve em conta a construção de espaços de criação permanente, consonantes com a RPB. Contexto esse, que considere as intensidades do nosso tempo em uma produção ético e política de uma nova realidade social, mostrando que a RPB pode, ainda, interpor-se como resistência nesses tempos austeros. Que a “Era da Austeridade” no Brasil também seja a era das resistências, das invenções e das insistências dos diversos coletivos.

Material suplementar
Referências
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